Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3873/19.0T8VNF-A.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: FALTA DE CITAÇÃO
PESSOA COLECTIVA
INSCRIÇÃO OBRIGATÓRIO NO FICHEIRO CENTRAL DE PESSOAS COLECTIVAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- É aplicável à citação da apelante - requerida em procedimento cautelar comum - o disposto no artigo 246.º, n.ºs 2 a 4 do CPC, enquanto regime especial que regula a citação das pessoas coletivas obrigadas a inscrição no ficheiro central do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, sendo irrelevante para efetivação da citação no procedimento cautelar em referência a menção ao domicílio designado no contrato para comunicações posto que a sua aplicação apenas tem lugar no âmbito das ações para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito, o que manifestamente não acontece no caso em apreciação atento o objeto do procedimento cautelar;

II- Para se concluir pela falta de citação, nos termos do artigo 188.º, n.º1, al. e), do CPC não basta a alegação pela requerida/citanda de que não teve conhecimento do ato de citação, revelando-se ainda necessário que aquela alegue e demonstre não só que tal aconteceu, mas ainda que sucedeu devido a circunstâncias que não lhe são imputáveis;

III- Tratando-se de citação de pessoa coletiva sujeita a inscrição obrigatória no ficheiro central de pessoas colectivas, o recurso à respetiva sede estatutária (constante de tal ficheiro) como domicílio para efeitos de citação não se revela incompatível com os princípios de defesa e do contraditório, também não representando um excessivo ónus para a citanda a obrigação de garantir a correspondência entre o local inscrito como sendo a sua sede e aquele em que esta se situa de facto, a fim de evitar que à sua citação se venha a proceder em local correspondente a uma sede anterior.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

F. M., requereu procedimento cautelar comum contra Santa Casa da Misericórdia ..., NIPC ... indicando a sede da requerida como sendo na Rua …, Vila Nova de Famalicão. Alegou para o efeito, e em suma, ser filho de M. F., de 91 anos de idade, que se encontra atualmente a residir em regime de acolhimento no quarto 09 - Lar Residencial … - da Santa Casa da Misericórdia de …, na sequência de um contrato de acolhimento que celebrou com a requerida e que tinha como subjacente a total liberdade de acesso dos familiares aos aposentos ocupados pela mesma, sem qualquer restrição horária, contemplando ainda a visita diária dos familiares de modo a haver uma interação completa entre a utente e a família, visitas que tiveram início desde o primeiro dia de entrada na Residencial, mantendo-se o horário sem qualquer oposição ou alteração até 12-06-2019, momento a partir do qual foram limitadas as visitas e determinado período, alteração que afeta não só a utente da residencial, mas igualmente todos aqueles que a visitam, sem qualquer explicação lógica e racional, pretendendo assim que seja decretada a providência e a requerida condenada a repor os horários de visita conforme inicialmente se processavam, sem limitação de horários permitindo o livre acesso ao requerente e demais familiares, conforme sempre o vinham fazendo e, ainda, a abster-se de praticar quaisquer atos que lesem o seu direito de aceder livremente à suite do Lar residencial …, da Santa Casa da Misericórdia ..., Quarto 09, pelo requerente, familiares e amigos ou terceiro indicado pelos familiares.
Mais requereu a inversão do contencioso, nos termos do disposto no artigo 369.º do Código de Processo Civil (CPC).
Com a petição inicial foram juntos pelo requerente dois documentos, entre os quais o contrato celebrado com a requerida, aludido naquele articulado, do qual consta a Santa Casa da Misericórdia ..., ali primeira outorgante, como tendo sede na Rua …, Vila Nova de Famalicão, mais prevendo na Cláusula XI, com a epígrafe «Domicílio Convencionado» que «A primeira outorgante designa a sua sede como morada para comunicações».
Por despacho de 17-06-2019 foi determinada a citação da requerida para deduzir oposição, nos termos do artigo 293.º, n.º 2, do CPC, após o que foi efetuada pela secção pesquisa à base de dados do Registo Nacional de Pessoas Colectivas, datada 18-06-2019, às 09:38, a qual indica como sede da requerida Santa Casa da Misericórdia ... (NIPC ... com o tipo: Pessoa Coletiva Regular) Avenida …, Vila Nova de Famalicão.
A 18-06-2019 foi enviada citação por carta registada com A/R para «Santa Casa da Misericórdia ... Avenida … Vila Nova de Famalicão», da qual consta, além do mais que: «Assunto: Citação por carta registada com AR - Nos termos do disposto no art.º 228.º do Código de Processo Civil, fica V. Ex.ª citado para, no prazo de 10 dias, querendo, deduzir oposição à providência acima identificada, oferecendo logo as respectivas provas, com a advertência de que a falta de oposição importa a confissão dos factos articulados pelo(s) requerente(s)». A carta registada com A/R foi devolvida com a seguinte menção: «Mudou-se». Em 26-06-2019 foi enviada nova citação por carta registada com A/R para «Santa Casa da Misericórdia ... Avenida … Vila Nova de Famalicão», da qual consta, além do mais que: «Assunto: Citação Pessoas Coletivas - art.º 246.º do CPC; Nos termos do disposto no art.º 228.º do Código de Processo Civil, fica V. Ex.ª citado para, no prazo de 10 dias, querendo, deduzir oposição à providência acima identificada e ao pedido de inversão de contencioso, se requerido, oferecendo logo as respectivas provas, com a advertência de que a falta de oposição importa a confissão dos factos articulados pelo(s) requerente(s). A citação considera-se efetuada: 1. No dia de assinatura do aviso de receção; 2. Se a carta tiver sido depositada na sua caixa postal, no dia do depósito; Ou, se não for possível o depósito na caixa do correio, sendo deixado aviso para levantamento no estabelecimento postal devidamente identificado, nos termos previstos no nº 5 do Art.º 228.º do CPC, o citando a não for levantar, no 8º dia posterior à data constante do aviso. Ao prazo de defesa acresce uma dilação de: a) 0 dias, (no caso de o processo correr em comarca diferente daquela onde foi efetuada a citação); ou: b) 10 dias, nos casos previstos no número 2 (a dilação aplicável, individualmente considerada ou o somatório delas, nunca pode ser superior a 10 dias (nº 3 do Art.º 366.º do CPC). O prazo é contínuo, não se suspendendo durante as férias judiciais. Terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte. Fica advertido de que é obrigatória a constituição de mandatário judicial. Juntam-se, para o efeito, um duplicado da petição inicial e as cópias dos documentos que se encontram nos autos». A carta para citação da requerida, enviada a 26-06-2019, foi depositada a 27-06-2019, às 10:30 constando da certificação exarada pelo distribuidor postal no correspondente A/R, entretanto junto aos autos, o seguinte: «Na impossibilidade de Entrega depositei no Recetáculo postal Domiciliário da morada indicada a citação a ela referente».
Não foi apresentada oposição ao procedimento cautelar.
Em 24-07-2019 foi proferida decisão que, considerando a requerida devidamente citada, nos termos do artigo 246.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, julgou provados os factos alegados pela autora na petição inicial, atenta a falta de contestação dos mesmos e considerando os documentos juntos com o referido articulado, em consequência do que julgou procedente o procedimento cautelar, determinando que a requerida permita a realização de visitas a M. F. por parte do requerente e pelos demais familiares e amigos daquela, sem limitação de horário.
Em 29-07-2019 a requerida apresentou requerimento, arguindo a nulidade decorrente da falta de citação e dos atos subsequentes, alegando, em síntese, que não recebeu qualquer nota de citação, requerimento inicial ou outra documentação relativos ao presente procedimento cautelar, não tendo sido notificada da decisão e ter tomado conhecimento da mesma através do requerente, sustentando não ter aplicação ao caso a previsão legal do artigo 246.º do CPC.
O requerente pronunciou-se no sentido do indeferimento da invocada nulidade, sustentando a regularidade da citação efetuada por ter sido concretizada na morada que consta das bases de dados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 246.º do CPC.
Em 22-08-2019 foi proferido o seguinte despacho: «Com cópia da informação constante de fls. 15, notifique a requerida para, em 10 (dez) dias, esclarecer se tem a sua sede (ou algum serviço) a funcionar na morada na Avenida … Vila Nova de Famalicão, visto que é essa a morada da sede que surge inscrita no ficheiro central de pessoal coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas e que, como tal, foi observada para os efeitos previstos no art.º 246.º, do CPC», ao que a requerida respondeu negativamente, por requerimento apresentado em 23-08-2019.

A 16-09-2019 foi proferida decisão julgando improcedente a nulidade da citação invocada pela requerida, nos seguintes termos:

«Fls. 23 e segs. – Estabelece o art.º 246.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, a propósito da citação das pessoas colectivas, que:

“1. Em tudo o que não estiver especialmente regulado na presente subsecção, à citação de pessoas colectivas aplica-se o disposto na subsecção anterior, com as necessárias adaptações.
2. A carta referida no n.º 1 do artigo 228.º é endereçada para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas do Registo Nacional de Pessoas Colectivas”.

Por seu turno, o art.º 228.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dispõe que “A citação de pessoa singular por via postal faz-se por meio de carta registada com aviso de recepção, de modelo oficialmente aprovado, dirigida ao citando e endereçada para a sua residência ou local de trabalho, incluindo todos os elementos a que se refere o artigo anterior e ainda a advertência, dirigida ao terceiro que a receba, de que a não entrega ao citando, logo que possível, o faz incorrer em responsabilidade em termos equiparados aos da litigância de má fé”.

Da conjugação dos normativos acima transcritos, decorre que a citação das pessoas colectivas é efectuada por meio de carta registada com aviso de recepção, endereçada para a sede da citanda que conste do ficheiro central de pessoas colectivas do RNPC.
Foi o que sucedeu, conforme resulta de fls. 15 e 16 dos autos.
Por outro lado, dispõe o n.º 4 do art.º 246.º, do Código de Processo Civil, que “Nos restantes casos de devolução do expediente, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de recepção à citanda e advertindo-se da cominação constante do n.º 2 do artigo 230.º, observando-se o disposto no n.º 5 do art.º 229.º”.

Ora, estabelece o art.º 229.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, a este respeito, que “(…) é deixada a própria carta, de modelo oficial, contendo cópia de todos os elementos referidos no artigo 227.º, bem como a advertência referida na parte final no número anterior, devendo o distribuidor de serviço postal certificar a data e o local exacto em que depositou o expediente e remeter de imediato a certidão ao tribunal; não sendo possível o depósito da carta na caixa do correio do citando, o distribuidor deixa um aviso nos termos do n.º 5 do artigo 228.º”.
Por fim, nos termos do art.º 230.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, “No caso previsto no n.º 5 do artigo anterior, a citação considera-se efectuada na data certificada pelo distribuidor do serviço postal ou, no caso de ter sido deixado o aviso, no 8.º dia posterior a essa data, presumindo-se que o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados”.

Ou seja, em face dos normativos acima transcritos, em caso de frustração da citação postal por qualquer motivo que não seja a recusa do aviso de recepção, deverá:

- Repetir-se a citação postal, com a cominação prevista no art.º 230.º, n.º 2, do Código de Processo Civil;
- Frustrando-se novamente a entrega da carta, por motivo diferente da recusa, o distribuidor postal deposita a carta ou deixa aviso, nos termos do art.º 229.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, considerando-se feita a citação na data referida no art.º 230.º, n.º 2
- Cfr., neste sentido, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 4.ª Edição, pág. 496.

Ora, mais uma vez, resulta de fls. 17 dos autos que o procedimento referido nos artigos 246.º, n.º 4, e 229.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, foi inteiramente observado, uma vez que, não logrando entregar a carta registada com aviso de recepção, o distribuidor postal efectuou o seu depósito.
Em face do exposto, julgo improcedente a nulidade da citação invocada pela Requerida».

Inconformada, a requerida veio interpor recurso, pugnando no sentido de ser revogada a decisão proferida em 16-09-2019 e determinada a nulidade da citação.

Termina as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1 - O tribunal recorrido decidiu contra a vontade de ambas as partes e contra todas as indicações expressas que ambas carrearam para os autos.
2 - Desde logo, importa fazer referência ao histórico factual existente nos autos:
• A requerente apresentou a providência cautelar dos autos contra a requerida, indicando expressamente como estando sediada na Rua …, Vila Nova de Famalicão,”.
• A requerente assentou a sua pretensão, instruindo-a com um contrato de acolhimento celebrado com a requerida, em que figura expressamente como estando sediada na Rua …, Vila Nova de Famalicão,
• Nesse contrato, está clausulado o regime do domicilio convencionado (vd. Cláusula XI)
• a citação foi devolvida,
• a recorrente apresentou nos autos seis documentos (não impugnados) dos quais consta a localização da sua sede social como sendo (desde 1994) na Rua …, Vila Nova de Famalicão,
• a própria requerente da providência reafirma expressamente, em 2/8/2019, que indicou como sede social a Rua ..., …, Vila Nova de Famalicão,
• no âmbito das diligências que entendeu pertinentes, o Tribunal recorrido questionou, em 23/8/2019, a recorrente para que, em 10 dias, informasse «se tem a sua sede (ou algum serviço) a funcionar na morada na Avenida … Vila Nova de Famalicão»
• no mesmo dia - 23/8/2019 - a recorrente respondeu negativamente.
• esta posição não foi posta em causa por quem quer que seja.
3 - A recorrente não é uma entidade sujeita a registo comercial obrigatório e a alteração da sua sede social para a actual localização ocorreu em 1994.
4 - Por um lado, o tribunal recorrido considerou relevante para a decisão da nulidade invocada que a recorrente informasse «se tem a sua sede (ou algum serviço) a funcionar na morada na Avenida … Vila Nova de Famalicão», o que a recorrente respondeu negativamente, conforme consta dos autos.
5 - Mas, por outro lado e de forma manifestamente contraditória, acaba por esvaziar de efeito a informação prestada pela recorrente em resposta (prestada no mesmo dia) a tal determinação judicial.
6 - Primeiro, o tribunal recorrido quer saber se o que a recorrente alegou é verdade, mas, após a resposta da recorrente, o tribunal recorrido já passou a considerar irrelevante o que anteriormente queria averiguar e passou a concluir que bastava a citação ter sido enviada para a morada constante do RNPC, independentemente de ali funcionar ou não a recorrente.
7 - Pela prova produzida nos autos, no local para onde a citação foi remetida, não trabalha ou está qualquer trabalhador, funcionário ou representante legal da recorrente.
8 - Nos termos do art. 246, nºs 2 e 3, a citação considera-se efectuada «se for recusada a assinatura do aviso de recepção ou o recebimento da correspondência por representante legal ou funcionário da citanda».
9 - A citação dos autos não foi recusada por qualquer funcionário ou representante legal da citanda, o que, de resto, não é posto em causa por quem quer que seja nos autos.
10 - O acto de citação tem natureza receptícia e constitui um pressuposto necessário do exercício do direito de defesa, constitucionalmente garantido (art. 20 CRP),
11 - Ao caso dos autos, não se aplica a previsão legal do art. 246, nºs 2 e 3, CPC, uma vez que o endereço postal para onde foi enviada a citação não é utilizada pela recorrente desde 1994, não sabendo a recorrente, nem lhe sendo exigível que saiba, quem e para que fim está a ser utilizado o mencionado local.
12 - A recorrente não tem (desde 1994) a sua sede social (nem qualquer serviço seu) no local para onde foi enviada a citação.
13 - É inequívoco que a citação é nula, não podendo considerar-se que a recorrente tenha sido citada validamente para os termos da presente providência cautelar, conforme Douta e Vasta Jurisprudência supra-invocada.
14 - O Douto Despacho recorrido viola nomeadamente o disposto no art. 246. nº 3, 411 e 417 CPC.

Nestes termos e no mais que for doutamente suprido por V.Exas,

Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o Douto Despacho recorrido substituido por Douto Acórdão que determine a nulidade da citação
Assim se fazendo
JUSTIÇA»

O requerente apresentou resposta na qual defende a improcedência do recurso interposto com a consequente confirmação do decidido, sustentando, no essencial, as seguintes questões:

«1 - Nas alegações o requerido alega não possuir quaisquer instalações na Avenida … Vila Nova de Famalicão.
2 - Sucede que, o requerente, teve o cuidado ao fazer o pedido de ressarcimento de custas de parte, de enviar duas cartas registadas com A/R, com os dois endereços diferentes, mas com conteúdo comum, no seu interior, sendo uma enviada para a Avenida de … (o endereço da base de dados) e uma outra para a Rua ….
3 - Sucede que ambos os envelopes registados com a AR foram recepcionados conforme se afirma e se comprova pelos talões de registo em anexo (aliás pela mesma pessoa).
4 - Assim, se comprova a existência de funcionamento de serviços da Recorrente, nas instalações da Avenida … Vila Nova de Famalicão.
6 - Confirmando-se assim, a citação da recorrente de forma regular, mesmo que por via de depósito.
7 - A Douta Sentença recorrida cumpre as normas legais aplicáveis, encontra-se devidamente fundamentada e não é merecedora de qualquer reparo.
6. Assim, deverá ser negado provimento ao recurso intentado pelo Recorrente, mantendo-se a Douta Sentença recorrida, com todas as consequências legais,
Pois só assim se fará a tão costumada JUSTIÇA!»

O recurso veio a ser admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente, e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC -, o objeto do presente recurso circunscreve-se à reapreciação da decisão de 16-09-2019 que julgou improcedente a nulidade da citação invocada pela requerida, cumprindo apreciar, no essencial, a questão suscitada relativamente à nulidade da citação para o procedimento cautelar em referência:

i) Aferir se ao caso tem aplicação a previsão legal do artigo 246.º do CPC e se foram cumpridos todos os trâmites processuais previstos para a válida citação da requerida;
ii) Se está verificada a falta de citação da requerida, determinativa da nulidade de todo o processado a seguir à petição, incluindo a sentença proferida no pressuposto da falta de oposição por parte da requerida;
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1. Os factos, as ocorrências e os elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, atento o que se pode constatar mediante a certidão junta e o acesso eletrónico ao processo.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

No âmbito deste recurso a apelante alude nas conclusões das suas alegações à «nulidade da citação», sustentando, além do mais, que ao caso dos autos «não se aplica a previsão legal do art. 246, n.ºs 2 e 3, CPC uma vez que o endereço postal para onde foi enviada a citação não é utilizada pela recorrente desde 1994, não sabendo a recorrente, nem lhe sendo exigível que saiba, quem e para que fim está a ser utilizado o mencionado local»; «a citação é nula, não podendo considerar-se que a recorrente tenha sido citada validamente para os termos da presente providência cautelar». Também no requerimento apresentado a 29-07-2019 que deu origem ao despacho recorrido, a ora recorrente suscitou a nulidade da citação efetuada, sustentando que no caso não tem aplicação a previsão legal do artigo 246.º CPC pelo que não pode a requerente considerar-se válida e eficazmente citada nos termos do referido preceito legal, ainda que alegue em simultâneo que não recebeu qualquer nota de citação, requerimento inicial ou outra documentação relativos ao presente procedimento cautelar, não tendo sido notificada da decisão, e que teve conhecimento da mesma através do requerente.
Com relevo para a apreciação do presente recurso, importa considerar que relativamente à citação a lei distingue duas modalidades de nulidade (lato sensu): a falta de citação e a nulidade (stricto sensu)(1).
A falta de citação, apesar de consubstanciar também uma nulidade, apresenta diferenças de regime relativamente à nulidade da citação “stricto sensu”, sendo aquela sempre de conhecimento oficioso, nos termos previstos no artigo 196.º do CPC, e podendo ser arguida em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artigo 198.º, n.º 2, do CPC), estabelecendo o artigo 189.º do CPC que, se o réu intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade. Tal como dispõe o artigo 188.º, n.º1, do CPC, há falta de citação:

«a) Quando o ato tenha sido completamente omitido;
b) Quando tenha havido erro de identidade do citado;
c) Quando se tenha empregado indevidamente a citação edital;
d) Quando se mostre que foi efetuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste, tratando-se de pessoa coletiva ou sociedade;
e) Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável.

Já no que concerne à nulidade de citação, estabelece o artigo 191.º do CPC o seguinte regime:

«1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 188.º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei.
2 - O prazo para a arguição da nulidade é o que tiver sido indicado para a contestação; sendo, porém, a citação edital, ou não tendo sido indicado prazo para a defesa, a nulidade pode ser arguida quando da primeira intervenção do citado no processo.
3 - Se a irregularidade consistir em se ter indicado para a defesa prazo superior ao que a lei concede, deve a defesa ser admitida dentro do prazo indicado, a não ser que o autor tenha feito citar novamente o réu em termos regulares.
4 - A arguição só é atendida se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado».

À semelhança da recorrente, também o Tribunal a quo não especificou de forma clara o tipo de vício em causa na arguição de nulidade que deu origem ao despacho recorrido, ainda que se afigure manifesto que o conhecimento da referida questão tem como pressuposto a falta de citação, posto que no caso em apreciação o referido vício foi suscitado já após o decurso do prazo indicado para a oposição, o que se mostra incompatível com o regime que decorre do citado artigo 191.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC. De resto, como se viu, para além de vir invocado pela recorrente não ter aplicação ao caso a previsão legal do artigo 246.º CPC, o que parece remeter para a invalidade ou ineficácia da citação efetuada e, por contraponto, para a inobservância das formalidades prescritas na lei, o que constitui fundamento para a nulidade da citação, nos termos previstos no artigo 191.º, n.º1, do CPC, a recorrente alega em simultâneo que não recebeu qualquer nota de citação, requerimento inicial ou outra documentação relativos ao presente procedimento cautelar, não tendo sido notificada da decisão, e que teve conhecimento da mesma através do requerente, o que parece compatível com a invocação da falta de citação.

Analisando as questões submetidas à apreciação neste recurso, importa ter presente que a decisão sobre a arguida nulidade da citação baseou-se, no essencial, no entendimento expresso no despacho recorrido de que a citação da requerida, pessoa coletiva, observou integralmente os procedimentos previstos nos artigos 229.º, n.º 5, 230.º, n.º 2, e 246.º do CPC, os dois primeiros por via da expressa remissão deste último, dos quais resulta que a citação das pessoas coletivas é efetuada por meio de carta registada com aviso de recepção, endereçada para a sede da citanda que conste do ficheiro central de pessoas coletivas do RNPC, tal como sucedeu nos presentes autos. E mediante o confronto entre as concretas vicissitudes processuais ocorridas no âmbito da tramitação do referido processo, conforme enunciadas, e o disposto nos referidos preceitos legais, julgou improcedente a nulidade invocada pela requerida por verificar que o distribuidor postal, apesar de não lograr entregar a carta registada com aviso de receção, efetuou o seu depósito, nos termos do artigo 229.º, n.º 5, do CPC, considerando-se efetuada a citação na data referida do artigo 230.º, n.º 2, do CPC, aplicável por via do n.º 4 do artigo 246.º, do CPC.

A recorrente insurge-se contra tal decisão, defendendo, além do mais, que «[a]o caso dos autos, não se aplica a previsão legal do art. 246, nºs 2 e 3, CPC, uma vez que o endereço postal para onde foi enviada a citação não é utilizada pela recorrente desde 1994, não sabendo a recorrente, nem lhe sendo exigível que saiba, quem e para que fim está a ser utilizado o mencionado local».

Analisemos, pois, as questões suscitadas tendo por base os elementos de facto descritos no relatório que antecede, atinentes à fase da citação da requerida no âmbito do procedimento cautelar em referência.

Prevê o CPC, na secção referente a «Citações e notificações», regras específicas atinentes à citação de pessoas singulares - Subsecção II (artigos 225.º a 245.º) - e à citação de pessoas coletivas - Subsecção III (artigo 246.º) - resultando expressamente do n.º 1 deste último preceito que, «Em tudo o que não estiver especialmente regulado na presente subsecção, à citação de pessoas coletivas aplica-se o disposto nas subsecções anteriores, com as necessárias adaptações». Porém, o n.º 2 do referido preceito impõe como regra especial atinente à citação das pessoas colectivas que a carta de citação registada com aviso de receção destinada à respectiva citação é endereçada para a sede inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas. Assim, com relevo para as questões suscitadas, prevê o artigo 246.º do CPC, o seguinte:

«Artigo 246.º
Citação de pessoas colectivas

1 - Em tudo o que não estiver especialmente regulado na presente subsecção, à citação de pessoas coletivas aplica-se o disposto nas subsecções anteriores, com as necessárias adaptações.
2 - A carta referida no n.º 1 do artigo 228.º é endereçada para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.
3 - Se for recusada a assinatura do aviso de receção ou o recebimento da carta por representante legal ou funcionário da citanda, o distribuidor postal lavra nota do incidente antes de a devolver e a citação considera-se efetuada face à certificação da ocorrência.
4 - Nos restantes casos de devolução do expediente, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de receção à citanda e advertindo-a da cominação constante do n.º 2 do artigo 230.º, observando-se o disposto no n.º 5 do artigo 229.º.
5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica às citandas cuja inscrição no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas não seja obrigatória.
(…)».

Com este regime, constante do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, cessa a alternativa de efetuar a citação da pessoa coletiva no local da sede de facto (local onde funciona normalmente a administração), ou na sede estatutária da mesma, regressando-se à citação na sede estatutária, constante do ficheiro central do Registo Nacional de Pessoas Coletivas (2). Tal como salienta o Ac. TRL de 12-05-2015 (relator: Manuel Marques) (3), “[u]ma das especialidades previstas na lei para citação das pessoas colectivas é que a citação realizada por via postal, através de carta registada com aviso de recepção (artº 228º, nº 1), é feita por carta «endereçada para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas do Registo Nacional de Pessoas Colectivas» (artº 246º, nº 2) e não na sede de facto, conceito que a lei não reconhece”. De forma idêntica, refere o Ac. TRP de 18-12-2018 (relatora: Ana Paula Amorim) (4): «I - Nos termos do art.º 246.º do C.P.C. a citação de pessoas colectivas cuja inscrição seja obrigatória no Registo Nacional de Pessoas Colectivas, passou a ser realizada na sede estatutária constante desse ficheiro, com as cominações dos n.ºs 3 e 4. II - O envio da segunda carta com aviso de recepção e a certificação do depósito pelo distribuidor postal observa o regime da Portaria 953/2003, de 9 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Portaria 275/2013, de 21 de Agosto. III - A citação de pessoa colectiva, cuja inscrição seja obrigatória no Registo Nacional de Pessoas Colectivas, realiza-se na data em que se certificou o depósito da carta no receptáculo postal da sede que consta do ficheiro do Registo Nacional de Pessoas Colectivas, por aplicação do regime previsto no art.º 246.º n.º 4, conjugados com o art.º 230.º n.º 2, do C.P.C., presumindo-se que o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados».

A recorrente não questiona que se trata de uma pessoa coletiva - com o NIPC ... - nem que do ficheiro central do Registo Nacional de Pessoas Colectivas conste como sede da requerida Santa Casa da Misericórdia ... (NIPC ... com o tipo: Pessoa Coletiva Regular) Avenida …, Vila Nova de Famalicão. Alega, porém, na conclusão 3.ª das respetivas alegações, que não é uma entidade sujeita a registo comercial obrigatório e que a alteração da sua sede social para a atual localização ocorreu em 1994. Ora, perante o quadro legal aplicável, julgamos absolutamente irrelevantes as questões suscitadas a tal propósito pela recorrente. Na verdade, a circunstância de se tratar de pessoa coletiva não sujeita ao registo comercial em nada contende com a obrigatoriedade de inscrição no aludido ficheiro central do Registo Nacional de Pessoas Coletivas. Como se viu, a requerida está inscrita neste ficheiro central, nada alegando no sentido da inexistência de tal obrigação de inscrição. O ficheiro central de pessoas colectivas (FCPC) é constituído por uma base de dados informatizados onde se organiza informação atualizada sobre as pessoas coletivas necessária aos serviços da Administração Pública para o exercício das suas atribuições, contendo ainda, com os mesmos objetivos, informação de interesse geral relativa a entidades públicas ou privadas não dotadas de personalidade jurídica, bem como pessoas coletivas internacionais e pessoas colectivas de direito estrangeiro (5), integrando, além do mais, informação relativa a «[a]ssociações, fundações, sociedades civis e comerciais, cooperativas, empresas públicas, agrupamentos complementares de empresas, agrupamentos europeus de interesse económico, bem como quaisquer outros entes colectivos personalizados, sujeitos ao direito português ou ao direito estrangeiro, que habitualmente exerçam actividade em Portugal» e a «[e]ntidades a que a lei confira personalidade jurídica após o respectivo processo de formação, entre o momento em que tiverem iniciado esse processo e aquele em que o houverem terminado» (6), o que contempla necessariamente a requerida, ora recorrente.

Nos termos do artigo 6.º do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas «[e]stão sujeitos a inscrição no FCPC os seguintes atos e factos relativos a pessoas colectivas:

a) Constituição;
b) Modificação de firma ou denominação;
c) Alteração do objecto ou do capital;
d) Alteração da localização da sede ou do endereço postal, incluindo a transferência da sede de e para Portugal;
e) A alteração do código de actividade económica (CAE);
f) Fusão, cisão ou transformação;
g) Cessação de actividade;
h) Dissolução, encerramento da liquidação ou regresso à actividade.

Em decorrência do exposto, não existem dúvidas de que ao tempo da citação estava a requerida, ora recorrente, sujeita à obrigatoriedade de inscrição no aludido ficheiro central do registo Nacional de Pessoas Colectivas, obrigação que contemplava, designadamente, a obrigação de promover a inscrição da alteração da localização da respetiva sede ou do endereço postal.

Vem ainda a recorrente referir que o Tribunal recorrido decidiu contra a vontade de ambas as partes e contra todas as indicações expressas que ambas carrearam para os autos, sustentando designadamente que o requerente assentou a sua pretensão, instruindo-a com um contrato de acolhimento celebrado com a requerida, no qual está clausulado o regime do domicílio convencionado e do qual figura expressamente como estando aquela sediada na Rua ..., …, Vila Nova de Famalicão. Neste domínio, importa referir que o artigo 229.º do CPC regula a citação quando haja domicílio convencionado. Porém, tal como resulta expressamente do n.º 1 do referido preceito, a sua aplicação apenas tem lugar no âmbito das ações para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito, o que manifestamente não acontece no caso em apreciação atento o objeto do presente procedimento cautelar. Deste modo, a menção ao domicílio designado no contrato para comunicações mostra-se irrelevante para efetivação da citação no procedimento cautelar em referência.

O que significa ser aplicável à citação da recorrente o disposto no artigo 246.º, n.ºs 2 a 4 do CPC, enquanto regime especial que regula a citação das pessoas colectivas obrigadas a inscrição no ficheiro central do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.

Assim sendo, cabia à secretaria do Tribunal aceder à base de dados e averiguar qual a sede estatutária da pessoa coletiva para onde deverá ser remetida a citação postal, observando-se o disposto nos arts. 227.º e 228.º, n.º1 (7), tal como sucedeu no caso em apreciação.

Por outro lado, verifica-se que se é verdade que no caso em apreciação a assinatura do aviso de receção ou o recebimento da carta não foi recusada por qualquer funcionário ou representante legal da citanda, nos termos previstos no artigo 246.º, n.º 3, do CPC, certo é que se observa ainda que a primeira carta enviada foi devolvida por outro motivo (que não o indicado no referido n.º 3), pelo que tem aplicação o disposto no n.º 4 do referido artigo 246.º do CPC, sendo, por isso, repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de receção à citanda e advertindo-se da cominação constante do n.º 2 do artigo 230.º, observando-se o disposto no n.º 5 do artigo 229.º. E, tal como entendeu - e bem - a decisão recorrida, na situação em apreciação foram efetivamente observadas as formalidades antes enunciadas. Assim, verificada a morada da sede da requerida inscrita no ficheiro central do registo Nacional de Pessoas Colectivas, foi tentada uma primeira citação para essa morada, tendo a carta registada com A/R sido devolvida. Foi então efetuada uma segunda remessa, de cujo depósito no respetivo recetáculo postal foi feita certificação pelo distribuidor do serviço postal, com a data de 27-06-2019, às 10:30, constando da certificação exarada no correspondente A/R, entretanto junto aos autos, o seguinte: «Na impossibilidade de Entrega depositei no Recetáculo postal Domiciliário da morada indicada a citação a ela referente». Mais resulta dos elementos constantes dos autos que da carta enviada e depositada consta as advertências legais, designadamente a cominação de que a citação se considera efectuada na data certificada pelo distribuidor postal, presumindo-se que o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados.

Como tal, deve entender-se que foram observadas pelo Tribunal a quo as formalidades legais para a citação da requerida, devendo considerar-se a mesma validamente efetuada a 27-06-2019, data em que se certificou o depósito da carta no recetáculo postal da sede da ré que consta do ficheiro do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, por aplicação do regime previsto no artigo 246.º, n.º 4, do CPC, conjugado com o artigo 230.º, n.º 2, do CPC.

Por conseguinte, revelam-se inócuas as questões suscitadas pela recorrente nas conclusões 3.ª a 12.ª das alegações de recurso.

Daí que não se verifique a nulidade de citação, nos termos do artigo 191.º, n.º1, do CPC, improcedendo as questões suscitadas a propósito.

Ainda assim, importa apreciar se está verificada a falta de citação da requerida, determinativa da nulidade de todo o processado a seguir à petição, incluindo a sentença proferida no pressuposto da falta de oposição por parte da requerida.

Relativamente ao artigo 188.º do CPC já referido, que regula a respeito da falta de citação, resulta manifesto que apenas a situação enunciada na al. e), do n.º 1 é passível de poder relevar para o caso em apreciação, caso se verifiquem os respetivos requisitos legais. Assim, como se viu, foram praticados diversos atos e implementadas várias diligências com vista à citação da requerida, pelo que não se verifica a previsão contida na alínea a) do n.º 1 do referido preceito, nos termos do qual só há falta de citação quando o ato tenha sido completamente omitido. Também não se mostra alegado que tenha havido erro de identidade do citado ou que se tenha empregado indevidamente a citação edital, nem se mostra que a citação tenha sido efetuada depois da extinção da citando, tal como exigem as alíneas b), c), e d), do normativo em referência.

Como se viu, para haver falta de citação, nos termos da previsão do artigo 188.º, n.º1, al. e), do CPC exige a lei que se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável.

Deste modo, tal como se sintetizou no Ac. TRP de 11-04-2018 (relatora: Inês Moura) (8), «Para se concluir pela inexistência de citação (…), não basta a alegação pelo destinatário de que não teve conhecimento do acto de citação, é ainda necessário que seja alegado e provado não só que tal aconteceu, mas também que aconteceu devido a facto que não lhe é imputável» (9).

Como se viu, a conclusão de que a citação da requerida/apelante se deve considerar realizada na data em que foi certificado o depósito da carta no recetáculo postal da sede da ré que consta do ficheiro do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, por aplicação do regime previsto no artigo 246.º, n.º 4, do CPC, conjugado com o artigo 230.º, n.º 2, do CPC, implica a presunção de que o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados. Como tal, cabia à requerida/apelante, na qualidade de destinatário da citação, o ónus de alegar e provar que não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável. Ora, da decisão recorrida não consta qualquer referência à circunstância de facto atinente ao alegado desconhecimento do ato de citação, sendo certo que a requerida/apelante também não impugnou (expressa ou implicitamente) a sentença recorrida nessa vertente (10), nem tal facto decorre, por si só, dos elementos de prova juntos aos autos pela requerida. Verifica-se, por outro lado, que não foram sequer alegadas em concreto quaisquer circunstâncias de facto que, a provarem-se, pudessem revelar que o alegado desconhecimento do ato de citação só aconteceu por facto não imputável à requerida/apelante, o que afasta desde logo qualquer fundamento para a intervenção oficiosa deste Tribunal, nos termos do artigo 662.º, n.ºs 1 e 2, al. c), do CPC.

Tal como sublinham Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa (11), a propósito do último caso de falta de citação definido na alínea e), do n.º1 do artigo 188.º do CPC, essa previsão legal «funda-se na circunstância de, no campo da citação pessoal, o réu não ter chegado a ter conhecimento do ato por motivo que não lhe seja imputável», o que constitui o contraponto da opção legislativa de, em certos casos, presumir o efetivo e oportuno conhecimento, por parte do réu, da existência da citação. Assim, «[p]ara que nestas ou noutras situações possa concluir-se pela verificação da omissão de citação é insuficiente a simples invocação e prova do efetivo desconhecimento; exige-se ainda que este não seja imputável ao citando (…). Considerando a referida presunção de conhecimento, é sobre o réu que recai o ónus de alegar e de provar os pressupostos legais referidos. Com efeito, em qualquer daquelas situações, pode ter-se verificado o efetivo desconhecimento do ato de citação e, ainda assim, afirmar-se ser isso imputável ao citando, caso em que a citação se deve considerar regularmente efetuada, independentemente das suas consequências», entendendo mesmo que se justifica esta solução como decorrência da autoresponsabilidade dos entes colectivos quanto ao cumprimento dos preceitos legais que impõem a publicitação dos atos que interessam a terceiros, remetendo mesmo para o artigo 246.º do CPC como um dos exemplos possíveis de tais situações.

Tal como se salienta no Ac. do TRL de 17-11-2015 (relatora: Rosa Ribeiro Coelho) (12) « [p]assou, pois, a recair sobre as pessoas coletivas (e sobre as sociedades) o ónus de garantir a correspondência entre o local inscrito como sendo a sua sede e aquele em que esta se situa de facto, atualizando-o com presteza, a fim de evitar que à sua citação se venha a proceder em local correspondente a uma sede anterior.

Pode dizer-se, em face disto, que deixou de ser tolerada uma situação de “clandestinidade”, com a manutenção indefinida, voluntariamente ou por simples negligência dos órgãos competentes, de uma sede desatualizada, em prejuízo de terceiros ou do Estado», para concluir que a lei atual passou a «fazer impender sobre a pessoa coletiva o ónus de garantir que chegue ao seu conhecimento, em tempo oportuno, uma citação que lhe seja enviada por um tribunal, o que poderá fazer por qualquer meio à sua escolha, como sejam, a periódica e regular inspeção do seu antigo recetáculo postal, o acordo estabelecido com o novo detentor do local das suas anteriores instalações, no sentido do aviso de recebimento ou da entrega do expediente, ou a contratação do serviço de reexpedição junto dos Correios.

Todavia, porque nenhum destes meios – ou outros que possam conceber-se – tem relevância legal, o risco da sua eventual falha sempre correrá por conta da entidade citanda que poderá vir a ser citada sem disso tomar efetivo conhecimento.

E não se está perante exigência insuportável ou particularmente severa, pois que no caso teria bastado que a ré tivesse tomado a deliberação de mudança de sede e procedido ao seu registo em tempo devido».

De forma idêntica, no caso em apreciação a requerida/apelante, enquanto pessoa coletiva, nada invocou de relevante no sentido de permitir firmar a convicção de que o eventual desconhecimento do ato de citação, consubstanciado no certificado depósito da carta no receptáculo postal da sede da ré que consta do ficheiro do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, só aconteceu devido a facto que não lhe é imputável, sendo certo que recaía sobre a apelante o ónus da prova de tal matéria.

Por conseguinte, e ao contrário do que sustenta a apelante, o despacho recorrido mostra-se em consonância com as determinações legais aplicáveis à citação da requerida no âmbito do processo em referência, não se constatando que a interpretação nele vertida seja atentatória do disposto nos artigos 246.º, 411.º e 417.º do CPC.

Considera-se, por isso, que não merece censura o despacho que indeferiu a nulidade suscitada por falta de citação.

Na conclusão 10.ª das suas alegações, a apelante sustenta que «[o] acto de citação tem natureza receptícia e constitui um pressuposto necessário do exercício do direito de defesa, constitucionalmente garantido (art. 20 CRP)».

Neste domínio, verifica-se que a recorrente não especifica expressamente quais as concretas normas do direito infraconstitucional aplicadas ou interpretadas pelo Tribunal a quo de forma desconforme com a Constituição da República Portuguesa, designadamente o seu artigo 20.º, n.º 1, no qual se refere que «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» ou o seu n.º 4 «Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo», ainda que pareça decorrer do que vem alegado sob a conclusão 11.ª das alegações que a discordância se centra na indevida aplicação da previsão legal do artigo 246.º do CPC à situação dos autos.

Ora, como se viu, a decisão sobre a arguida nulidade da citação baseou-se, no essencial, no entendimento expresso no despacho recorrido de que a citação da requerida, pessoa coletiva, observou integralmente os procedimentos previstos nos artigos 246.º, 229.º, n.º 5, e 230.º, n.º 2, do CPC, estes últimos por via da expressa remissão do primeiro, dos quais resulta que a citação das pessoas coletivas é efetuada por meio de carta registada com aviso de recepção, endereçada para a sede da citanda que conste do ficheiro central de pessoas coletivas do RNPC, tal como sucedeu nos presentes autos. Os referidos preceitos configuram normas destinadas precisamente a garantir e regular adequadamente o acesso à Justiça e a conciliar o interesse na sujeição da tramitação da ação judicial a regras precisas, imprescindíveis ao normal e célere desenvolvimento dos trâmites processuais, com a garantia do acesso ao direito.

Por outro lado, tratando-se de pessoa coletiva sujeita a inscrição obrigatória no ficheiro central de pessoas coletivas não se vislumbra que o recurso à respetiva sede estatutária (constante de tal ficheiro) como domicílio para efeitos de citação seja incompatível com os princípios de defesa e do contraditório, também não representando um excessivo ónus para a citanda a obrigação de garantir a correspondência entre o local inscrito como sendo a sua sede e aquele em que esta se situa de facto, a fim de evitar que à sua citação se venha a proceder em local correspondente a uma sede anterior. Tal como salientam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (13), a propósito da norma prevista no artigo 246.º do CPC referente à citação de pessoas colectivas, «[o] regime previsto neste artigo está desenhado à imagem das pessoas colectivas, reflectindo a sua natureza especial. A criação de uma pessoa colectiva – ou a participação numa – comporta ónus e deveres, subjectivamente imputáveis ao ente colectivo, assim se explicando a relevância aqui dada ao registo obrigatório da sede. Conclui-se, pois, que este regime não é aplicável aos patrimónios autónomos ou aos condomínios (arts. 12.º e 223.º), ainda que se encontrem registados no Registo Nacional de Pessoas Colectivas».

Por último, ainda que não se desconheça que a citação constitui pressuposto necessário e privilegiado de concretizar e garantir o princípio do contraditório consagrado no processo civil, o exercício do direito de defesa e de acesso à justiça mostra-se suficientemente assegurado mediante a possibilidade concedida à citanda de ilidir a presunção estabelecida quanto ao conhecimento da citação, nos termos supra enunciados.

Deste modo, não merece a decisão recorrida qualquer censura pois se limitou a aplicar as determinações legais aplicáveis, não se constatando que a interpretação nela vertida seja atentatória dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados e das disposições da lei fundamental invocadas pela recorrente.
Nestes termos, improcedem as conclusões da apelante.
Pelo exposto, cumpre julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Síntese conclusiva:

I - É aplicável à citação da apelante - requerida em procedimento cautelar comum - o disposto no artigo 246.º, n.ºs 2 a 4 do CPC, enquanto regime especial que regula a citação das pessoas coletivas obrigadas a inscrição no ficheiro central do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, sendo irrelevante para efetivação da citação no procedimento cautelar em referência a menção ao domicílio designado no contrato para comunicações posto que a sua aplicação apenas tem lugar no âmbito das ações para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito, o que manifestamente não acontece no caso em apreciação atento o objeto do procedimento cautelar;
II - Para se concluir pela falta de citação, nos termos do artigo 188.º, n.º1, al. e), do CPC não basta a alegação pela requerida/citanda de que não teve conhecimento do ato de citação, revelando-se ainda necessário que aquela alegue e demonstre não só que tal aconteceu, mas ainda que sucedeu devido a circunstâncias que não lhe são imputáveis;
III - Tratando-se de citação de pessoa coletiva sujeita a inscrição obrigatória no ficheiro central de pessoas colectivas, o recurso à respetiva sede estatutária (constante de tal ficheiro) como domicílio para efeitos de citação não se revela incompatível com os princípios de defesa e do contraditório, também não representando um excessivo ónus para a citanda a obrigação de garantir a correspondência entre o local inscrito como sendo a sua sede e aquele em que esta se situa de facto, a fim de evitar que à sua citação se venha a proceder em local correspondente a uma sede anterior.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 16 de janeiro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)



1. Cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pgs. 385.
2. Cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, ob. cit., pgs. 495.
3. P. 873/14.0TYLSB-A.L1-1, disponível em www.dgsi.pt.
4. P. 1467/17.3T8PVZ.P1, disponível em www.dgsi.pt.
5. Cfr. artigo 2.º do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, aprovado pelo DL n.º 129/98, de 13 de Maio.
6. Cfr. artigo 4.º, n.º1, als. a), e c), do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.
7. Neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pgs. 283.
8. P. 6418/12.9TBMAI-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.
9. Neste sentido, cfr., ainda, entre outros, os Acs. TRP de 24-09-2018 (relatora: Ana Paula Amorim) p. 2759/15.3T8STS-B.P1; TRE de 13-09-2018 (relatora: Albertina Pedroso) p. 845/17.2T8ENT-A.E1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
10. Tal como resulta da análise conjugada do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como de facto, sendo este último o meio adequado e específico legalmente imposto ao recorrente que pretenda manifestar divergências quanto a eventuais questões de facto atinentes à decisão recorrida, o que implica o ónus de suscitar a revisão da correspondente decisão.
11. Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pgs. 226-227.
12. P. 2070/13.2TVLSB-B.L1-7, acessível em www.dgsi.pt.
13. Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, Coimbra, 2013, Almedina, p. 220.