Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
73/14.9T8AMR.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: DIREITO MORTUÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/09/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - No cumprimento da obrigação contratual assim como no exercício do direito correspondente, as partes devem proceder de boa fé, no que se inclui a observância dos deveres laterais como o de informar a outra parte quando o cumprimento da prestação tenha de sofrer algum desvio, seja por exigência legal, seja por exigência de terceiro que tenha o poder de decidir e dispor sobre os moldes a que deve obedecer a prática de determinados actos.
II - O “direito mortuário” português está actualmente regulado pelo Dec.-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, com as alterações que foi sofrendo, a mais recente introduzida pelo Dec.-Lei n.º 109/2010, de 14 de Outubro, estando ainda em vigor o Decreto n.º 48.770, de 18 de Dezembro de 1968, que criou um modelo de regulamento dos cemitérios municipais, na parte em que não contrarie o disposto naquele Diploma Legal, pelo que a ele devem obedecer os contratos com as agências funerárias que tenham por objecto a inumação, a exumação, a trasladação e a cremação dos restos mortais humanos.
III - O artº. 829º.-A do C.C. introduziu uma «astreinte» judicial (nº. 1), e uma «astreinte» legal (nº. 4), aquela para obrigações de prestação de facto, positivo ou negativo, e esta para obrigações pecuniárias, visando desmotivar o devedor a adiar injustificadamente o cumprimento da obrigação.
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES-

A)RELATÓRIO
I.- Adelina A, com os sinais de identificação nos autos, intentou a presente acção comum contra a sociedade comercial “Costa, Ld.ª”, com sede em Amares e António L, também aí residente, pedindo a condenação solidária destes:
I – a) na execução da inumação dos restos mortais do marido dela, Autora, Manuel L, e do seu neto, Frederico D, com o encerramento daquele restos mortais nas primitivas urnas ou, na sua impossibilidade, em urnas de primeira, modelo Porto, em madeira de mogno, e sequente enterro na sepultura térrea do Talhão 4 da parte ampliada do Cemitério de Ferreiros, concelho de Amares, com observância das boas práticas e as regras da arte, e entrega das chaves das duas urnas à Autora;
b) na fixação judicial do prazo de quinze dias de calendário para a execução dos actos acima descritos.
Para o caso de não proceder o antecedente pedido, sejam os Réus solidariamente condenados a pagarem-lhe a quantia de € 3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros) a título de enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora a contar da data da citação e até integral pagamento.
II – Em qualquer dos casos, a condenação solidária dos Réus:
c) no pagamento à Autora, a título de indemnização pelo dano moral que sofreu, na quantia de €4.000,00 (quatro mil euros), acrescida de juros de mora a contar da citação e até integral pagamento;
d) no pagamento à Autora e ao Estado, em partes iguais, a título de sanção pecuniária compulsória, de quantia não inferior a €100,00 (cem euros) por cada dia de atraso no cumprimento do peticionado na alínea a) nos termos do art.º 829º- A do Cód. Civil;
e) no pagamento de todas as despesas com o presente pleito que a Autora venha a suportar, incluindo os honorários da sua mandatária, a liquidar em momento ulterior ou em execução de sentença, atento o disposto no art.º 447º-D, n.º 2, al. d) do CPC, e no pagamento de custas e procuradoria.
Fundamenta estes pedidos alegando, em síntese, que tendo contratado com a 1.ª Ré, da qual o segundo 2.º Réu é gerente de facto, o funeral do seu marido e do seu neto, pelo amor e estima que lhes tinha escolheu urnas de primeira, modelo Porto, que pagou àquela. No decorrer do ano de 2013 contratou com a mesma Ré a exumação dos restos mortais daqueles seus entes-queridos e a sua trasladação para uma sepultura que comprou no mesmo cemitério, tendo ficado estabelecido que as pegas e os crucifixos das referidas urnas, porque delas teriam de ser retirados, ser-lhe-iam entregues, pois pretendia ficar com eles como recordação.
Porém, os Réus, sepultaram os restos mortais dos seus entes-queridos directamente na terra, apropriando-se das urnas, das pegas e dos crucifixos.
Quando teve conhecimento destes factos ela, Autora, sofreu um enorme desgosto e entrou em estado de depressão ansiedade, tendo tido necessidade de recorrer a cuidados médicos e tomar medicamentos.
Os Réus contestaram negando terem celebrado qualquer contrato com a Autora.
Os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que decidiu:
1.- absolver o réu António L dos pedidos formulados pela Autora.
2. - condenar a ré “Costa, Ld.ª” a encerrar os restos mortais do marido da Autora, Manuel L, e do seu neto, Frederico D, nas primitivas urnas ou, na sua impossibilidade, em urnas de primeira, modelo Porto, em madeira de mogno, e sequente enterro na sepultura térrea do Talhão 4 da parte ampliada do Cemitério de Ferreiros, concelho de Amares, com observância das boas práticas e as regras da arte, e entrega das chaves das urnas à Autora.
3. - Condenar a mesma Ré a cumprir essa obrigação no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, avisando a Autora da data da realização dessas exéquias com uma antecedência mínima de 15 dias, por carta registada com aviso de receção para a residência dela e escritório do seu ilustre Mandatário.
4.- Condenar ainda a referia Ré no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória do montante de € 50 (cinquenta) euros por cada dia de incumprimento da obrigação identificada em 2. e 3.
5.- Mais condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 4.000 (quatro mil euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos por esta na sequência da sua conduta.
6.- Finalmente, condenar a Autora e a Ré nas custas da acção, incluindo custas de parte, na proporção de 50% para cada uma delas.
Inconformada, traz a Ré o presente recurso pretendendo que a supra transcrita decisão seja revogada e substituída por outra que a absolva dos pedidos que a Autora formula.
Contra-alegou a Autora propugnando pela confirmação do decidido.
O recurso foi recebido como de apelação com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II.- A Ré/Apelante funda o seu recurso nas seguintes conclusões:
A. Com os factos provados a recorrente nunca poderia ser condenada.
B. A lei foi violada pela sentença.
C. A Sentença não respeita o decreto lei 411/98 de 30 de Dezembro, com a sua última versão dada pela redacção do DL 109/2010 de 14/10.
D. Este diploma estabelece o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, transladação e cremação de cadáveres, bem como alguns desses actos de fetos mortos e peças anatómicas, e ainda da mudança de localização de um cemitério.
E. Se atentarmos no seu artigo 22.º - Transladação – acto para o qual foi a recorrente contratada – esta tem de ser efectuada em caixão de Zinco.
F. Não refere que é em caixão de madeira – pelo que não podia a sentença condenar em disposição diversa.
G. Outra questão de direito que a recorrente quer aqui apresentar e levantar é o facto de a condenação para se colocar de novo os caixões de madeira - ser uma obrigação que se pode tornar impossível.
H. Para qualquer intervenção no cemitério é necessária a devida autorização da entidade administrativa que é a proprietária do cemitério – neste caso ou Câmara Municipal ou Junta de Freguesia.
I. Para se proceder a qualquer intervenção na sepultura em causa – só o concessionário de tal sepultura é que tem legitimidade para tais requerimentos.
J. A empresa aqui recorrente não poderá assim cumprir com tal decisão, porque não terá qualquer legitimidade para requerer essa intervenção.
K. Essa intervenção pode ser recusada pela entidade administrativa.
L. A entidade administrativa não foi nesta acção condenada para o efeito.
M. Qualquer intervenção/transladação requer esse pedido e até pode não ser dado em tempo útil para que se cumpra a decisão, ou até se indeferida por falta de legitimidade ou indeferida porque a pretensão é ilegal – transladar sem ser de acordo com o artigo 22 do diploma referido.
N. Aliás a sentença põe em causa a saúde pública até porque mexer em caixão de chumbo/zinco com estes anos passados poderão ceder e soltar restos mortais que deve e têm de estar enterrados.
O. Também não foi feita a prova de que a viúva é a titular do alvará de tais sepulturas, o que inviabiliza esta de pedir judicialmente e ter procedência nos seus pedidos, já que não terá qualquer legitimidade para o fazer (pelo menos não se encontra provado).
P. Nos factos provados diz-se que é jazigo de família (quem é o titular do alvará?).
Q. Isso não foi provado nem alegado, daí que a sentença nunca poderia presumir tais factos e legitimidades e consequentemente condenar a recorrente.
R. A sanção pecuniária compulsória é de todo ilegal. Já que a recorrente pode nunca mais conseguir, por falta de legitimidade, a devida autorização para a prática de um acto ilegal (violar o artigo 22 do diploma referido).
S. Foi violado o artigo 22 do Dec lei de 411/98 de 30 de Dezembro, com a sua última versão dada pela redacção do DL 109/2010 de 14/10.
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III.- A Autora, propugnando para que se mantenha a decisão, releva, em síntese, que:
a) da prova carreada para os autos e produzida em sede de audiência de julgamento, conclui-se inequivocamente que a Recorrente foi contratada para efectuar um serviço de trasladação das urnas em madeira de mogno para a sepultura adquirida pela Recorrida com observância das boas práticas e regras da arte, o que não sucedeu, tendo ocorrido uma supressão das urnas em madeira sem o conhecimento e consentimento da Recorrida;
b) alega a Recorrente que a pretensão da Recorrida é ilegal recorrendo, como refere o Mm. Juíz a quo, a um "argumento (errado) de que não é permitido colocar urnas em madeira de mogno nas campas térreas", argumento esse que foi contrariado pela Junta de Freguesia de Ferreiros, concelho de Amares, que oficiada pelo tribunal se pronunciou negativamente quanto à existência de qualquer norma que proíbe o depósito de urnas em madeira nos jazigos;
c) nunca a Recorrente colocou em causa a legalidade do uso no traslado de urnas em madeira, mas em madeira de mogno, espécie de material que dizia proibido!
d) Ao que acresce, do depoimento da testemunha indicada pela Recorrente, António S, coveiro que auxiliou o segundo Réu e gerente da Recorrente na execução do serviço, resultou provado que a supressão das urnas em madeira não foi devido à necessidade de observar uma disposição legal, mas antes a alegada escassez do jazigo, o que auxiliou o Tribunal a quo no apuramento da veracidade dos factos alegados pela Recorrida.
e) Aquando da solicitação do serviço de traslado pela Recorrida, o gerente da Recorrente solicitou as autorizações necessárias para a realização do serviço, não carecendo da intervenção da Recorrida.
f) É entendimento da Recorrente que nos autos não foi feita prova de que a Recorrida é titular do alvará da sepultura, pelo que esta carece de legitimidade para formular os pedidos em que a Recorrente foi condenada.
g) Na petição inicial a Recorrida alegou ter adquirido "uma sepultura térrea no Talhão 4 da parte ampliada do Cemitério de Ferreiros, concelho de Amares", facto provado em sede de audiência de julgamento pelas declarações de parte da Recorrida que afirmou ser a proprietária da sepultura in casu, bem como pelas testemunha/familiares desta.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Como se extrai das conclusões as questões a decidir são:
- (im)possibilidade do cumprimento da obrigação: i) por contrariar lei expressa; ii) por falta de legitimidade da Apelante para requerer os trâmites necessários ao seu cumprimento; e
- pertinência da sanção pecuniária compulsória.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
V.- O Tribunal a quo fundou a sua decisão na seguinte matéria de facto:
1.- A Autora é viúva de Manuel L, falecido a 13 de Dezembro de 2004 e sepultado em 14 de Dezembro do mesmo ano no cemitério da freguesia de Ferreiros, concelho de Amares, no jazigo da família “Agostinho Vieira”.
2.- A Autora é, ainda, avó de Frederico D, falecido em Setembro de 2009 e sepultado a 12 de Setembro do mesmo ano no cemitério da freguesia de Ferreiros, concelho de Amares, no jazigo da família “Agostinho Vieira”.
3.- Por sua vez, a 1ª Ré é uma sociedade que tem por atividade a exploração de agência funerária, nomeadamente a prestação de serviços relativos à organização e realização de funerais, transporte de cadáveres para exéquias fúnebres, inumação, cremação ou expatriamento e trasladação de restos mortais inumados, com estabelecimento comercial em Ferreiros, Amares, da qual são únicos sócios o 2º Réu e a sua mulher, e gerente de facto o 2º Réu, conforme certidão da conservatória do registo comercial junta a fls. 12 e ss., cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
4.- A Autora providenciou pelas exéquias fúnebres do falecido marido e neto, tendo contratado os respetivos serviços fúnebres à 1ª Ré, COSTA, LDA., à qual adquiriu as urnas que encerravam os corpos dos familiares falecidos de acordo com o desejo e consideração da Autora e família pelos seus entes queridos.
5.- Com efeito, a elevada estima e amor fraternal pelos familiares falecidos motivou a opção da Autora e família pela prestação de um serviço fúnebre com as características que, no seu entender e demais família, melhor homenageavam e prestigiavam aqueles entes queridos,
6.- o que influenciou e motivou a escolha de urnas, modelo Porto, em madeira de mogno, com seis asas metálicas cada, estufadas em cetim e renda, com valor superior às demais urnas convencionais e que se destinam a sepultura, por se estimar ser superior a €1.750,00 cada, conforme estimativa orçamental apresentada pelos Réus para o funeral do neto da Autora, Frederico D, junto a fls. 15, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
7.- Por indisponibilidade de jazigo de família, a Autora solicitou à família “Agostinho V” o favor de, temporariamente e enquanto não adquirisse uma sepultura no Cemitério de Ferreiros, acolher os corpos daqueles seus entes queridos no jazigo da “Família Agostinho V” no mesmo cemitério.
8.- Assim, a 1ª Ré procedeu ao funeral do neto e marido da Autora naquele jazigo, ali depositando as respetivas urnas.
9.- Sucede que, no decorrer do ano de 2013, a Autora adquiriu uma sepultura térrea do Talhão 4 da parte ampliada do Cemitério de Ferreiros, concelho de Amares, tendo, por isso, solicitado ao 2º Réu António L, na qualidade de gerente de facto da 1ª Ré, que procedesse ao traslado das duas urnas dos seus familiares que se encontravam no jazigo da família “Agostinho V” para a referida sepultura.
10.- O contrato celebrado entre a Autora e o Réu António L, na qualidade de gerente da primeira ré, consistia somente na trasladação dos corpos do jazigo para uma campa, com depósito das urnas que encerravam os corpos do falecido marido e neto da Autora nesta sepultura que esta adquiriu, pelo preço de € 250,00.
11.- Todos os trabalhos executados no serviço de traslado foram dirigidos pessoalmente pelo 2º Réu, na qualidade de gerente da primeira ré, o qual tinha conhecimento expresso das condições contratadas com a Autora e a vontade por esta manifestada.
12.- No entanto, ao contrário do convencionado entre as partes e contrariando qualquer norma moral e de respeito para com os mortos, o 2º Réu António L, na qualidade de gerente da primeira ré, suprimiu as urnas em que se encontravam os corpos dos falecidos e que a Autora havia adquirido aquando do funeral dos seus familiares,
13.- apropriando-se delas para fins que a Autora desconhece, e procedeu ao enterro dos restos mortais dos falecidos diretamente na sepultura térrea nas respetivas urnas de zinco.
14.- Durante a prestação do serviço de traslado, nunca o 2º Réu ou qualquer outro funcionário da 1ª Ré solicitaram ou sequer comunicaram à Autora que iriam proceder à supressão das urnas,
15.- pois sabia aquele 2º Réu que tal conduta jamais seria autorizada pela Autora ou qualquer familiar.
16.- Esta conduta do 2.º Réu foi, depois da execução desse serviço, do conhecimento da Autora.
17.- No momento em que a Autora acordou com o 2.º Réu, na qualidade de gerente da primeira ré, a transladação dos corpos nas respetivas urnas, pelo preço de 250 euros, solicitou ao 2º Réu António L que lhe entregasse as pegas metálicas e demais objetos (crucifixos) existentes nas urnas que encerravam os corpos dos seus entes queridos, objetos que desejava ter em sua posse em memória dos familiares falecidos e os quais não podem ser levados à sepultura térrea.
18.- O 2º Réu nunca entregou à Autora as referidos peças metálicas.
19.- Quando a Autora interpelou o 2º Réu para que lhe entregasse as pegas e os demais objetos, este respondeu-lhe que as mesmas estavam na posse do coveiro presente no momento da trasladação, Sr. António S,
20.- o que motivou a Autora a solicitar junto do referido coveiro que lhe entregasse as pegas, tendo o mesmo informado a Autora que, no momento da trasladação, o Réu António L suprimiu as urnas de madeira onde se encontravam os corpos dos familiares da Autora,
21.- tendo o 2º Réu ficado na posse das duas urnas de madeira de mogno, bem como de todos os objetos que as acompanhavam, as referidas seis pegas e o crucifixo por cada urna,
22.- e os restos mortais sido sepultados nas urnas de zinco, situação que se mantém na presente data.
23.- O segundo réu apropriou-se das duas urnas em madeira de mogno completas, contendo cada uma seis pegas metálicas e um cruxifixo.
24.- Confrontados com o incumprimento do serviço nas condições contratadas, o segundo réu recusa-se a devolver as urnas suprimidas e a executar o serviço de traslado de acordo com o solicitado pela Autora,
25.- apesar da carta que a autora lhe dirigiu nesse sentido, conforme documento junto a fls. 15v, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
26.- Por força destes acontecimentos, a Autora tem sofrido um desgaste psicológico muito grande, motivado pelo desgosto derivado do total desrespeito perpetrado pelos Réus aos seus familiares já falecidos.
27.- A Autora é uma pessoa religiosa e praticante da fé católica, tendo providenciado aos seus familiares um serviço fúnebre condicente com o amor, carinho, estima e consideração que por eles sentia e ainda perdura, o que ainda manifesta semanalmente nas deslocações à sepultura onde os seus corpos estão depositados, fazendo o culto da memória dos seus entes queridos.
28.- Mais, a Autora é uma pessoa de idade e com fortes princípios morais, razão pela qual considera que a atitude dos Réus é imoral e repugnável,
29.- pelo que muito constrangimento e dor lhe causou e causa saber que as ossadas/corpos dos seus entes queridos foram remexidos e sepultados sem qualquer pudor diretamente na terra, contrariando o mais elementar respeito pelos mortos e pela vontade da Autora e seus familiares que sempre manifestaram o desejo de garantir que os restos mortais fossem cuidados com a consideração que a memória dos que partiram merece.
30.- Em consequência da conduta dos Réus a Autora sentiu-se enganada, ultrajada e desrespeitada,
31.- uma vez que o serviço por si solicitado e já pago não foi prestado nas condições estipuladas entre as partes e sem qualquer respeito pelos corpos dos seus familiares,
32.- causando-lhe profundo desgosto saber que o último desejo de honrar os seus familiares não foi realizado por culpa de outrem,
33.- o que arrastou a Autora para um estado de depressão e ansiedade.
34.- A autora pagou ao segundo réu, na qualidade de gerente da primeira ré, o valor acordado de 250 euros.
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VI.- Como resulta da facticidade provada, a Autora celebrou com a Ré um contrato, consistindo a prestação contratual desta no desenvolvimento de todas as diligências necessárias à execução da trasladação dos restos mortais do marido e neto da primeira, para uma campa que a mesma adquiriu dentro do mesmo cemitério onde haviam sido inumados.
Já tinha sido a Ré quem organizara o funeral e prestara os serviços fúnebres daqueles dois entes-queridos da Autora e esta fez-lhe saber que pretendia que lhe fossem entregues as pegas e os crucifixos das duas urnas visto terem de ser delas retirados.
A Ré foi contratada e actuou no exercício da actividade comercial a que se dedica.
É através dos contratos que as pessoas regulam os seus interesses.
Tem plena aplicação ao contrato em mérito o princípio da consensualidade, consagrado no art.º 219.º do Código Civil (C.C.), gozando as partes contratantes de liberdade na conformação das respectivas estipulações contratuais, de acordo com o princípio consagrado no art.º 405.º do mesmo Código, estando, embora, limitadas pelas disposições legais de natureza imperativa.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos, sendo que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado – cfr. art.os 406.º e 762.º, n.º 1 do C.C.
No cumprimento da obrigação assim como no exercício do direito correspondente, as partes devem proceder de boa fé – cfr. n.º 2 do art.º 762.º do C.C. – no que se inclui a observância dos deveres laterais, como o de informar a outra parte quando o cumprimento da prestação tenha de sofrer algum desvio, seja por exigência legal, seja por exigência de terceiro que tenha o poder de decidir e dispor sobre os moldes a que deve obedecer a prática de determinados actos.
Deste modo, na situação sub judicio a Apelante, que é quem detém o conhecimento das regras e das boas práticas relacionadas com a sua actividade, estava obrigada a avisar a Autora da existência de um qualquer obstáculo, legal ou outro, ao cumprimento integral da prestação contratual a que se vinculara pelo contrato.
Como por certo não ignorará o representante da Apelante, está profundamente arreigado nas pessoas o culto pela memória dos mortos, e é ainda o respeito pela dignidade da pessoa humana que impõe se tratem os despojos mortais com consideração.
Daí que o sentimento manifestado pela Autora devia merecer-lhe total deferência, não só por estar relacionado com os seus entes-queridos como também porque, tendo recebido dela o preço das urnas, vistas as coisas do ponto de vista objectivo do contrato, estes bens ingressaram na sua esfera jurídica patrimonial, tendo, por isso, toda a legitimidade para querer para si as peças que, devido à sua composição metálica, por imposição legal, tinham de ser retiradas das urnas.
Para a Apelante, além do cumprimento escrupuloso da sua prestação contratual, e além do respeito devido aos sentimentos da Autora, a imporem-lhe o depósito das urnas, com os seus componentes de zinco e de madeira, na nova sepultura, era ainda o respeito pela propriedade alheia a impor-lhe a entrega dos objectos em relação aos quais a Autora manifestou interesse, e, pelo mínimo, a consultá-la quanto à parte de madeira das urnas.
O “direito mortuário” português está actualmente regulado pelo Dec.-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, com as alterações que foi sofrendo, a mais recente introduzida pelo Dec.-Lei n.º 109/2010, de 14 de Outubro, estando ainda em vigor o Decreto n.º 48.770, de 18 de Dezembro de 1968, que criou um modelo de regulamento dos cemitérios municipais, na parte em que não contrarie o disposto naquele Diploma Legal – cfr. art.º 32.º, n.º 2.
Pretende a Autora ser legalmente impossível o cumprimento da condenação por o n.º 1 do art.º 22.º do referido Dec.-Lei n.º 411/98 impor a trasladação de cadáver em caixão de zinco, e invocando ainda a sua falta de legitimidade para requerer a prática dos actos agora necessários ao cumprimento da obrigação imposta.
Como se afirma no texto preambular, foi de caso pensado que o legislador alargou o leque das pessoas a quem é reconhecida a legitimidade para a prática dos actos regulados no referido Diploma Legal, que passou a ser reconhecida “a qualquer pessoa ou entidade”, nos termos da alínea f) do n.º 1 do art.º 3.º, aqui se incluindo a Apelante, justificando o seu pedido na condenação imposta.
Cumprida que se mostra a trasladação (que a alínea f) do art.º 2.º define como “o transporte de cadáver inumado em jazigo ou de ossadas para local diferente daquele em que se encontram, a fim de serem de novo inumados, cremados ou colocados em ossário”) estando já os restos mortais inumados (a alínea e) do mesmo preceito legal define inumação como “a colocação de cadáver em sepultura, jazigo ou local de consumpção aeróbica”) a Apelante deve, neste aspecto, obedecer, não ao preceito legal que invoca, mas antes à proibição de abertura do caixão de zinco, nos termos do art.º 10.º do supramencionado Diploma Legal, por não estarmos perante nenhuma das excepções aí previstas.
Estando o caixão de zinco devidamente selado, como é pressuposto que esteja, já não periga a saúde pública, pelo que também este obstáculo, brandido pela Apelante, não é de considerar na situação sub judicio.
O único obstáculo legal à abertura da sepultura poderá ser o da proibição contida no art.º 21.º que, após a inumação, proíbe que se abra qualquer sepultura “antes de decorridos três anos”, presumindo o legislador que ao fim deste tempo a matéria orgânica do cadáver estará destruída e o esqueleto mineralizado.
Ora, considerada a data dos factos – provadamente no ano de 2013 – estará salvaguardado aquele prazo, não constituindo, assim, óbice a que a Apelante cumpra com o que se obrigara.
Para além de configurar uma questão nova, apenas suscitada em sede de recurso, o que, desde logo, é impeditivo de dela se conhecer, carece de justificação o argumento da ilegitimidade da Autora para formular os pedidos por não ter sido “feita a prova” de que “é a titular do alvará de tais sepulturas”, não só por ignorar a facticidade provada transcrita sob o n.º 9, onde se diz que a Autora, no decorrer do ano de 2013, “adquiriu uma sepultura térrea no Talhão 4” como também por colidir frontalmente com o próprio facto que a Apelante prestou.
Relativamente à sanção pecuniária compulsória, a Apelante insurge-se alegando que “pode nunca mais conseguir, por falta de legitimidade, a devida autorização para a prática de um acto ilegal” (conclusão R)).
A improcedência destes argumentos crê-se ter ficado demonstrada acima.
O artº. 829º.-A do C.C. introduziu uma «astreinte» judicial (nº. 1), e uma «astreinte» legal (nº. 4), aquela para obrigações de prestação de facto, positivo ou negativo, e esta para obrigações pecuniárias, visando desmotivar o devedor a adiar injustificadamente o cumprimento da obrigação, e compeli-lo a cumprir (cfr. Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 12ª. edição, págs. 1063-1068).
Hão-de ser critérios de razoabilidade a presidir à fixação do montante da sanção, que pode ser fixada por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção.
Sem embargo, só o comportamento culposo (doloso ou negligente) do devedor justifica o pagamento da quantia sancionatória, admitindo-se-lhe que demonstre não ser já possível o cumprimento ou que o incumprimento não lhe é imputável.
Na situação sub judicio a obrigação imposta pela condenação só a Apelante a pode cumprir visto que em primeira linha se exige o encerramento dos restos mortais “nas urnas primitivas”.
Deste modo, se a prestação alternativa poderá, em princípio, ser prestada por qualquer agência funerária, aquele segmento da condenação justifica a fixação da sanção pecuniária compulsória que, por isso, se deve manter.
Da sucumbência dos fundamentos invocados para sustentar o presente recurso resulta, agora, que lhe deverá ser recusado provimento.
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C) DECISÃO
Nos termos que acima ficam expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, consequentemente confirmando e mantendo a decisão impugnada.
Custas pela Apelante.
Guimarães, 09/06/2016
(escrito em computador e revisto)
(Fernando Fernandes Freitas)
(António Figueiredo Almeida)
(Maria Purificação Carvalho)