Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
124/11.9GAPVL.G1
Relator: MARIA AUGUSTA
Descritores: DIFUSÃO DE MÚSICA AMBIENTE
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
DIREITOS DE AUTOR
DIREITOS DO DONO DA OBRA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: Tendo os direitos de autor sido já pagos pela entidade difusora, a arguida, na qualidade de proprietária e exploradora do estabecimento, não carece de autorização do(s) autor(es) da obra radiodifundida (música) para a transmitir ao público que frequenta esse estabelecimento, mesmo utilizando colunas para amplificar o som.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

No processo comum singular nº124/11.9GAPVL, do Tribunal Judicial da Póvoa de Lanhoso, foi a arguida GREICIENE N... E não Maria B... como por manifesto lapso consta do dispositivo da sentença. identificado a fls.97, condenada pela prática de um crime de usurpação, p. e p. pelos artºs195º, nº1 e 197º, nº1, ambos do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos, na pena de 30 dias de prisão, substituída por igual tempo de multa, à taxa diária de € 8,00 e 150 dias de multa, à mesma taxa.

Inconformada, a arguida interpôs recurso, terminando a sua motivação com conclusões das quais resulta serem as seguintes as questões a decidir:
1. Saber se foi incorrectamente dado como provado o facto nº1;
2. Saber se a pena aplicada é excessiva;
3. Saber se foram violados os artºs13º, 18º e 32º da CRP.

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Ao recurso respondeu o MºPº, concluindo pela sua improcedência.

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O Exmo Procurador–Geral Adjunto, nesta Relação, emitiu douto parecer no qual conclui pela mesma forma.

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Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do C.P.P..

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo a seguinte a matéria de facto provada, não provada e a fundamentação de facto (transcrição):
A) Factos provados
1. No dia 6 de Março de 2011, pelas 01h00, numa acção de fiscalização da GNR de Póvoa de Lanhoso, verificou-se que no estabelecimento comercial denominado “F... Snack & Bar”, sito no Lugar do Cruzeiro, parque industrial de Fonte Arcada, nesta comarca, explorado pela arguida, estava a ser reproduzida música através de um canal televisivo, reprodução efectuada através do televisor de marca continental EDISON, modelo SYSTRM-7700, composto por leitor de cassete e CD, um amplificador, um equalizador e rádio assim como três colunas distribuídas pela área do estabelecimento, estando cerca de 10 clientes presentes.
2. Assim, foram apreendidos os objectos constantes do auto de apreensão de fls. 5.
3. A arguida não havia obtido junto da Sociedade Portuguesa de Autores as necessárias autorizações para a fixação, reprodução e eventual distribuição pública das mesmas.
4. Agiu a arguida livre, voluntária e conscientemente, ciente de que lhe estava vedada a utilização de tais obras, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Mais resultou provado:
5. A arguida explorava o referido bar até há uns meses, altura em que foi com o companheiro para o estrangeiro; a arguida nasceu a 25/03/1984.
6. A arguida não tem antecedentes criminais averbados.

B) Factos não provados
Com interesse para a boa decisão da causa não se provaram outros factos para além dos supra referidos ou que com estes estejam em contradição, sendo que se provaram na íntegra os factos imputados.

C) Motivação da decisão
A convicção do Tribunal baseou-se na apreciação crítica e global de toda a prova produzida, à luz das regras da experiência, sendo que, na falta da arguida, foi determinante o depoimento do militar da Guarda Nacional Republicana que efectuou a operação, e que depôs apenas determinado pelo conhecimento dos factos, com a informação constante do auto de apreensão de fls. 5 e falta de autorização da SPA (fls. 11).
O elemento subjectivo resulta da experiência comum, sendo que a arguida explorava de forma profissional estabelecimento aberto ao público, tal como foi confirmado por ambas as testemunhas.
Atendeu-se ainda ao teor dos CRC juntos e às declarações da testemunha de defesa, amiga da arguida e TIR, quanto às condições económicas e sociais, que mereceram crédito e não foram infirmados por qualquer outro meio.

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O objecto do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação por ele apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e que são as acima enunciadas.
Antes, porém, iremos conhecer de uma questão prévia cuja procedência determina a inutilidade do conhecimento das questões suscitadas - Saber se os factos provados integram o crime de usurpação, p. e p. pelos artºs195º, nº1 e 197º, nº1, ambos do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos.

Dispõe o nº1 do artº195º do Código dos Direito de Autor (de ora em diante designado por CDADC):
Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.
Escreve Vera Elisa Marques Dias A Tutela Penal do Direito de Autor - http://www.verbojuridico.com/doutrina /2011/veradias _tutela penaldireitoautor.pdf, pág.23 que «para podermos qualificar um comportamento como usurpação devido a utilização ilícita temos de saber o que é considerado utilização nos termos da lei portuguesa.»
A utilização da obra é tratada no Título II do CDADC, cujo artº67º, sob o título “Fruição e utilização” estabelece:
1. O autor tem o direito exclusivo de fruir e utilizar a obra, no todo ou em parte, no que se compreendem nomeadamente, as faculdades de a divulgar, publicar e explorar economicamente por qualquer forma, directa ou indirectamente, nos limites da lei.
2. A garantia das vantagens patrimoniais resultantes dessa exploração constitui, do ponto de vista económico, o objectivo fundamental da protecção legal.
O artigo seguinte, sob o título “Formas de utilização”, dispõe:
1. A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser.
2. Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) A fixação ou adaptação a qualquer aparelho destinado à reprodução mecânica, eléctrica, electrónica ou química, a execução pública, transmissão ou retransmissão por esses meios;
e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite, quando essa comunicação for feita por outro organismo que não o de origem;
f) (…);
g) (…);
h) (…);
i) (…)
3. (…).
4. (…).
5. (…).
A utilização através da radiodifusão sonora ou visual da obra está prevista no artº149º do refrido diploma, que preceitua:
1. Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto directa como por retransmissão, por qualquer modo obtida;
2. Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.
3. Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão.
Por seu lado, o artº150º, sob o título “Radiodifusão de obra fixada”, prescreve:
Se a obra foi objecto de fixação para fins de comercialização com autorização do autor, abrangendo expressamente a respectiva comunicação ou radiodifusão sonora ou visual, é desnecessário o consentimento especial deste para cada comunicação ou radiodifusão, sem prejuízo dos direitos morais e do direito a remuneração equitativa.
E o artº153º estipula:
1. A autorização para radiodifundir uma obra é geral para todas as emissões, directas ou em diferido, efectuadas pelas estações da entidade que a obteve, sem prejuízo de remuneração ao autor por cada transmissão.
2. (…).
3. A transmissão efectuada por entidade diversa da que obteve a autorização referida no nº1, quando se faça por cabo ou satélite, e não esteja expressamente prevista naquela autorização, depende do consentimento do autor e confere-lhe o direito a remuneração.
Finalmente, de acordo com o artº155º, «É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida por altifalante ou por qualquer instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens.».
São modalidades de utilização da obra, a reprodução, a transformação, a distribuição e a comunicação da obra ao público Vera Elisa Marques Dias- A Tutela Penal do Direito de Autor - http://www.verbojuridico.com/doutrina /2011/, pág.28..
São modalidades de comunicação pública a representação cénica, recitação, execução, projecção ou exibição audiovisual, exposição de obras de arte, difusão à distância, como emissão, transmissão e retransmissão, comunicação pública de obra radiodifundida, acesso público a base de dados via telecomunicações Vera Elisa Marques Dias, pág.34..
Isto posto e fixadas as normas com relevância para apreciação da questão em causa nos autos, podemos desde já concluir que a simples recepção, em lugar público, de emissões de radiodifusão não depende de autorização dos autores das obras nem lhes atribui o direito à remuneração previsto no artº155º.
Como ensina Oliveira Ascensão Oliveira Ascensão Direito Civil, Direito de Autor e Direitos Conexos - págs. 301 e 302. «Princípio fundamental nesta matéria é o da liberdade de recepção. Poder-se-ia pensar na sujeição de recepção a autorização do autor, ou pelo menos em atribuir uma remuneração ao autor em consequência da recepção. Mas seria absurdo sujeitar a duas autorizações o mesmo programa, com a consequente dupla cobrança, na fonte e no destino. Na realidade, quem possuir um receptor pode utiliza-lo livremente, pois a autorização inicial para a radiodifusão abrange já a posterior recepção.
(…)
A lei não pode pois pretender limitar uma recepção que se quer sem barreiras, e está já prevista na autorização para a radiodifusão.
(…)
A recepção é livre, qualquer que seja o modo como se realiza. Não tem a ver com o uso privado. Mesmo a recepção pública não altera esta situação.»
Neste sentido se tem pronunciado, cremos que uniformemente a jurisprudência – cfr., entre muitos – Acs. desta Relação, de 15/11/2004, 02/07/07 e 04/04/2011 - http://www.dgsi.pt/jtrg.; Relação do Porto, de 08/03/95, Relação de Lisboa, de 15/05/2007- www.dgsi.pt.
Podemos, por outro lado, concluir que sendo o conteúdo do direito de autor composto por faculdades de carácter patrimonial, e faculdades de carácter pessoal/moral Vera Elisa Marques Dias – pág., lhe assegura «o exclusivo da exploração económica da sua obra, reservando-lhe todas as formas adequadas a tal (art. 67º).
A outra face dessa protecção consiste na proibição a qualquer terceiro, de fruir e utilizar a obra do autor, sem a autorização deste (art. 67º, nº 1 e 195º).
Pressupõe-se que esta autorização tem por contrapartida uma vantagem para o autor.».
Assim, assiste ao autor ou a quem o representar, o direito de autorizar a difusão pela televisão ou pela radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens, bem como a sua comunicação, quando não seja realizada pelo organismo de origem, por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite (artº68º, nº 2, al.e)), dependendo de autorização sua a radiodifusão sonora ou visual das obras literárias ou artísticas, seja directa seja por qualquer processo de retransmissão, bem como a comunicação da obra radiodifundida em lugar público por qualquer meio de difusão de sinais, sons ou imagens (artigo 149º, nºs 1 e 2).
No caso, o que resulta da matéria de facto que ficou provada é que no estabelecimento comercial explorado pela arguida que, sem margem para dúvidas, é um local público, conforme é definido no nº3 do artº149º, acima transcrito, estava a ser recepcionada música, no televisor aí instalado, através de um canal ao qual tinha acesso.
Externo ao televisor e sem que integrasse a sua estrutura de origem, existiam três colunas, que distribuíam o som pelo estabelecimento.
A questão que se coloca é a de saber se não fazendo as colunas parte integrante do televisor, a distribuição do som, através delas, pelo estabelecimento extravasa a mera recepção e configura já uma (re)transmissão do programa.
Vejamos:
Em primeiro lugar, sem as colunas era possível não só a exibição e visualização do canal em causa mas também a sua audição. Estas apenas permitiam a distribuição uniforme do som por toda a área do estabelecimento, ou seja, permitiam que quem estivesse junto do televisor ou mais fastado dele tivesse uma qualidade de som idêntica.
Em segundo lugar, sendo o estabelecimento em causa um espaço limitado, com ou sem colunas, o programa que estava a ser recepcionado seria acessível a todos os clientes (público visado), variando apenas a qualidade do som.
Assim, a utilização das colunas em nada alterava a utilização da obra transmitida através da televisão - quer a imagem quer som eram exactamente os que o canal sintonizado transmitia. Não existiu nova utilização ou aproveitamento organizados da transmissão original nem se verifica qualquer das situação a que se reportam os artºs3º e 4º do Dec–Lei nº42660, de 20/11/1959 Art. 3.°
A recepção pública de emissões de radiodifusão visual, em recinto especialmente destinado para esse efeito, fica em tudo sujeita ao regime estabelecido para os cinemas, excepto quando de outra forma se determinar expressamente.
Art. 4.°
O disposto no artigo anterior aplica-se de igual modo à recepção pública de emissões de radiodifusão visual em recintos que se destinem à exploração de outra actividade como principal, desde que aos espectadores seja exigida directamente qualquer importância para assistirem à recepção, ou, para este particular efeito, se faça reserva de mesas, se imponham consumos mínimos, se cobrem preços mais elevados do que os habituais, ou por qualquer outra forma, directa ou indirecta, se faça pagar o espectáculo.
- Cfr., no mesmo sentido, Ac. Rel. do Porto, de 08/05/97 e de 19/09/2012 - http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf; Ac. Rel. de Lisboa, de 22/03/2011 – http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
Em sentido contrário, entre outros, Acs. desta Relação de 02/07/07 e 04/04/2011 - http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf.; Relação do Porto, de 08/03/95 - http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf - Relação de Lisboa, de 17/12/2002, 15/05/2007 - http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf. .
Sintetizando:
Como bem se escreve no voto de vencido exarado no Processo nº974/07-2, deste Tribunal In http://www.dgsi.pt/jtrg, em situação em tudo idêntica à destes autos, «quem difundia a obra em causa era a TV Cabo, como entidade emissora, e o arguido apenas ampliava um dos sinais, o de som, por tal forma que nada retirava ou acrescentava à obra em si, melhorando apenas, qualitativa e quantitativamente, o aspecto sonoro», acrescentando, «a conduta do arguido não era uma actividade da recepção-transmissão, mas sim, se quisermos ser rigorosos, uma actividade de recepção-ampliação e só de um dos sinais, como se disse, mantendo-se a obra recebida e ampliada a mesma e sem qualquer violação dos direitos de autor.
Por isso, como se escreve no Parecer nº 4/92, de 28/05/1992, «Os autores têm o exclusivo de autorizar as diversas utilizações das obras literárias ou artísticas e de participar nas vantagens patrimoniais de cada uma de tais utilizações.
Mas se autorizaram uma determinada utilização e por ela auferiram a correspondente remuneração, não lhes assiste "jus" quanto a ela, seja quanto à autorização ou não seja quanto à exigência de remuneração.
Tendo autorizado a radiodifusão das suas obras e por isso recebido dos organismos emissores a correspondente remuneração, exerceram os seus direitos pessoais e patrimoniais em termos de cobertura da actividade de mera recepção pública das emissões independentemente do lugar - público ou privado - em que ocorra.
Deste princípio de livre recepção de emissões de radiodifusão só se exceptuam as situações em que a recepção se consubstancia em transmissão potenciadora de uma nova utilização das obras literárias ou artísticas.
Não se verificam os pressupostos desta excepção no caso de os empresários dos hotéis, cafés, restaurantes, pensões, bares, tabernas, "pubs" e estabelecimentos similares se limitarem à recepção das emissões de radiodifusão.» (sublinhado e negrito nosso).
Assim e em conclusão, tendo os direitos de autor sido já pagos pela entidade difusora, a arguida, na qualidade de proprietário e exploradora do estabecimento, não carece de autorização do(s) autor(es) da obra radiodifundida (música) para a transmitir ao público que frequenta esse estabelecimento, mesmo utilizando colunas para amplificar o som.
Consequentemente, não se mostram preenchidos os pressupostos do crime por que vinha condenada, o que determina a sua absolvição.

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Fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pela recorrente.

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DECISÃO:
Pelo expostos e em conclusão, acordam os Juízes deste tribunal absolver a arguida GREICIENE N... do crime de usurpação, p. e p. pelos artºs195º, nº1 e 197º, nº1, ambos do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos, por que vinha condenada.
Sem tributação.

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Guimarães, 07/01/2013