Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
819/15.8BGC.G1
Relator: FRANCISCA MICAELA VIEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
NULIDADE
JUNTA DE FREGUESIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Os tribunais comuns são competentes para decidir acções nas quais uma Junta de Freguesia pretende que seja declarada a nulidade da escritura de justificação notarial outorgada pela Junta de Freguesia e que alegadamente teve por objecto prédios rústicos com a natureza alegada de terrenos baldios.
Decisão Texto Integral: Processo nº 819/15.8BGC.G1
Origem: Comarca de Bragança, Bragança, Instância Local, Secção Cível- J1.
Relator: Francisca Micaela da Mota Vieira.
1º Adjunto Des. Fernando Fernandes Freitas
2º Adjunto Des. António M. A. Figueiredo de Almeida

Acordam os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – RELATÓRIO
Nos presentes autos de acção declarativa com processo comum que Junta de Freguesia P instaura contra Baldios de P, representada pelo Ministério Público, aquela pretende que seja declarada a nulidade da escritura de justificação notarial outorgada pela mesma em 08.03.1995 no Cartório Notarial de Vimioso, pela qual, declarou ter adquirido por usucapião a propriedade de 40 prédios rústicos a que aludem os documentos nºs 2 a 42 juntos com a petição inicial.
Para tanto, alega que contrariamente ao declarado pela autora na referida escritura de justificação notarial, tais prédios nunca foram, nem são pertença da autora.
Alega que tais prédios rústicos têm a natureza de terrenos baldios.
A autora alega ainda que os atos de posse reiterada que a Junta de Freguesia invocou para justificar a aquisição por usucapião dos prédios em causa não eram suscetíveis de ser por si praticados, tendo em conta a sua própria natureza jurídica de pessoa coletiva publica, o que, sendo assim, traduziria sempre ato jurídico de objeto legalmente impossível e contrário à lei, concluindo que a referida escritura de justificação notarial é nula, nulidade que invocou então nos termos dos art°s 240°, 242°, nº 1, 280°, nº 1, 294° e 295°, do Código Civil.
Acresce ainda que a Autora invocou ainda que os terrenos baldios da Freguesia de P não são e nunca foram administrados por órgãos próprios eleitos ou constituídos pelos respetivos compartes, pelo que a sua administração foi sempre assumida e assegurada pela Junta de Freguesia de Pinelo, por delegação legal - cfr. art°s 22° e 36°, daquela Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, concluindo que a referida escritura enferma de nulidade nos termos do artº 4°, nº 1, da Lei nº 68/93, de 4 de setembro, que determina que qualquer ato ou negócio jurídico de apropriação ou apossamento de terrenos baldios é nulo.
Apresentada em juízo, a acção foi indeferida liminarmente a petição, com fundamento, na falta de jurisdição do tribunal comum, tendo sido proferido despacho a 23.07.2015, cujo conteúdo se transcreve parcialmente:
“Através dos presentes autos a Junta de Freguesia de P pretende que seja declarada a nulidade da escritura de justificação notarial outorgada pela mesma em 08.03.1995 no Cartório Notarial de Vimioso que teve por objecto os 40 prédios rústicos que se encontram penhorados no âmbito de execução fiscal que corre termos contra a Autora, tendo com isso em vista sustar as referidas penhoras que incidem sobre terrenos que afinal são baldios.
Vejamos.
(…)
Sendo a outorga de escritura de justificação notarial, que através da presente acção se pretende anular, um acto jurídico unilateral celebrado pela Junta de Freguesia de P do concelho de Vimioso enquanto pessoa jurídica diferente da comunidade local, consubstanciada no universo dos compartes, que no dizer da lei são "todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respectivos terrenos baldios ou que aí desenvolvam uma actividade agroflorestal ou silvopastoril" (cfr. artigo 1º, nºs 2 e 3, da Lei nº 68/93, de 04.09) que delegaram na Junta de Freguesia de P a administração dos seus baldios, existe uma evidente confusão de direitos e interesses na mesma pessoa.
Assim sendo, sempre deverá ser no âmbito do processo de execução fiscal que a questão terá de ser colocada e solucionada, através da dedução de oposição à execução ou de embargos de terceiro, estando vedado aos tribunais judiciais ou comuns o conhecimento da mesma, para além de que a presente acção apresenta-se-nos como uma clara forma de contornar e defraudar as supra citadas normas processuais: a pessoa que é executada em processo de execução fiscal é a mesma pessoa que, em vez de fazer uso dos expedientes legalmente previstos para o efeito -a oposição à execução, na veste de Junta de Freguesia de P, ou os embargos de terceiro, na veste de administradora dos terrenos baldios penhorados com poderes delegados, fora desse mesmo processo, pretende obter, à revelia da Administração Tributária, a anulação da escritura de justificação notarial que outorgou, para depois, contra a mesma Administração Tributária, mas já dentro do processo executivo, obter a suspensão ou até extinção da execução.
Termos em que, por falta de jurisdição deste Tribunal de Comarca, indefiro liminarmente a presente acção”.
Inconformada a junta de Freguesia de P interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes Conclusões:
1ª Pela douta sentença recorrida, com data de 23-07-2015, foi indeferida liminarmente a ação interposta pela ora recorrente, por se considerar ocorrer falta de jurisdição do Tribunal de Comarca.
2a. A Autora não se conforma com tal douto entendimento, considerando que, ao invés da justificação expressa na douta sentença, a sua pretensão / causa de pedir e pedido manifestados na petição inicial não estão vedados ao conhecimento dos tribunais comuns e, por outro lado, que a ação é legal e legitima e que não visa, como não visou, contornar e defraudar quaisquer normas processuais tributarias.
3a. A Autora invocou expressamente que a escritura pública de justificação notarial de 8 de março de 1995 foi celebrada de forma simulada e que, para além disso, os atos de posse reiterada que a Junta de Freguesia aí expressou para reconduzir à usucapião não eram suscetíveis de ser por si praticados, pelo que invocou a nulidade daquela nos termos dos arts 240°, 242°, nº 1, 280°, nº 1, 294° e 295°, do Código Civil.
4a. Para além desta circunstância, a Autora invocou mais uma causa de nulidade daquela escritura publica de justificação notarial, o que fez nos termos dos arts 4°, nºs 1 e 2, aI. c) e 22° e 36° da Lei nº 68/93, de 4 de setembro.
5a. A Autora interpôs a ação ciente da veracidade e propriedade das razões, factos e fundamentos invocados, para cuja prova arrolou dez testemunhas, e invocou as normas legais, substantivas e processuais, que, em face do ordenamento jurídico vigente, justificavam e justificam a tutela dos direitos invocados.
6a. A Autora não omitiu qualquer facto relevante ou essencial, não vislumbrando de que forma é que a sua ação pode ser douta mente considerada como destinada a contornar e defraudar quaisquer normas processuais tributarias.
7ª. Nestes pressupostos, considera-se (i) inexistir qualquer fundamento legal válido que possa justificar a exclusão da jurisdição dos tribunais judiciais para apreciar os factos e direitos invocados e peticionados na petição inicial e (ii) que a ação é legal e legitima e que não representa mais do que o exercício legal e legitimo dos direitos que assistem à Autora.
8a. Pelo que ao assim não considerar, a douta sentença violou o direito de acesso aos tribunais, previsto no art° 2°, CPC.
9a. Considera-se ainda que os fundamentos invocados na douta sentença não fundamentam de forma suficiente, clara e inequívoca, das razões que determinam que a jurisdição judicial está excluída da apreciação da ação, circunstância que a faz padecer de falta de fundamentação e com violação, neste particular, dos artigos 154° e 607°, nºs 4 e 5, CPC.
10a. SEM PRESCINDIR, a Autora considera que a ação deveria sempre ter sido admitida e prosseguir, ainda que pela aplicação do disposto no art° 2°, nº 2 e art° 12°, nº 2, da Lei nº 83/95, de 12/10, que regula o Direito de Ação Popular, para cuja interposição teria sempre legitimidade, por força da competência que lhe é atribuída na defesa dos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição.
11a. Conforme supra invocado, foram violados ainda os art°s 240°,242°, nº 1,280°, nº 1, 294° e 295°, do Código Civil e arts 4°, nºs 1 e 2, aI. c), 22° e 36° da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro
Conclui pela revogação da decisão recorrida.
O Ministério Público foi citado para os termos da acção e do recurso e apresentou as suas contra-alegações, concluindo pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II -DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
As conclusões acima transcritas definem e delimitam o objecto do presente recurso – cfr. artigos 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2; 635º., nº. 4; 639º., nºs. 1 a 3; 641º., nº. 2, b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), pelo que, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, e atendendo às contra-alegações do recorrido, urge apreciar as seguintes questões:
1- Da alegada falta de fundamentação da decisão.
2-Apreciar e decidir se os tribunais comuns são competentes, em razão da matéria, para julgar a presente acção.
III – FUNDAMENTAÇÃO
3.1 – Da alegada falta de fundamentação da decisão.
Afirma a recorrente que a decisão recorrida padece de nulidade, porquanto, alega, as razões invocadas não justificam a decisão.
Apreciando.
A nulidade da sentença por falta de fundamentação está prevista na alínea b), do nº 1, do artº 615º, do CPC.
Tal normativo refere-se às causas da nulidade da sentença, sendo que a dita alínea se reporta à não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al.b)).
As nulidades da decisão previstas no artº 615º do CPC são deficiências da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento, o qual se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável. Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito (cfr. Ac. RC de 15.4.08, in www.dgsi.pt).
Acresce que não se verificando nenhuma das causas previstas naquele número pode haver uma sentença com um ou vários erros de julgamento, mas o que não haverá é nulidade da decisão, conforme Ac. RL de 10.5.95 (in CJ, 1995, t. 3, pág. 179).
Assim, a sentença será nula, além do mais, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Logo, uma das causas de nulidade da sentença consiste precisamente na ausência total de fundamentação [caso da citada al.b)], não traduzindo tal a fundamentação deficiente, incompleta ou inexacta, como vem sendo entendido uniformemente pela jurisprudência.
No caso em apreço, a recorrente alicerça a alegada nulidade da sentença na falta de invocação de razões suficientes para concluir pela incompetência material dos tribunais comuns para a apreciação e decisão da presente acção.
Trata-se, nesta perspectiva, de meras generalidades, uma vez que não concretiza em que traduz afinal a propalada insuficiência de fundamentos.
Logo, carência total de fundamentação inexiste.
Por último, também não assiste razão quanto à falta de fundamentação de direito, relativa à decisão recorrida, irrelevando aqui se houve ou não erro na aplicação do direito.
Basta atentar no conteúdo da decisão recorrida para se concluir que o Mmo Juiz da 1ª instância elaborou a respectiva motivação de direito.
Coisa distinta será a existência ou não de erro de julgamento, quanto ao direito aplicável.
Neste contexto, a sentença posta em crise não carece de falta absoluta de fundamentação, como esgrime a recorrente. E só esta conduz à nulidade da sentença.
Não se verifica, pois, a nulidade prevista na al. b) do nº 1, do artº 615º, do CPC.
Não procede, portanto, a conclusão 9ª do recurso.
3.2 -Tem interesse para a decisão do presente recurso a seguinte factualidade:
1- No Serviço de Finanças de Vimioso – Autoridade Tributária e Aduaneira, corre termos contra a aqui Autora a execução fiscal nº 0574200501003798, decorrente de uma dívida ao IFADAP, hoje IFAP, com data de 2005.
2-No âmbito de tal execução fiscal encontram-se penhorados, designadamente, quarenta prédios rústicos, penhora levada a registo predial por parte da AT / Fazenda Nacional com data de 22-09-2005.
3-A propriedade desses prédios rústicos encontra-se registada desde 15-05-1995 a favor da Junta de Freguesia de P na Conservatória do Registo Predial de Vimioso, sendo, os prédios inscritos na matriz da freguesia de Pinelo sob os Artigos - cfr. doc. 2 a 42: Artigos 1, 368, 371, 432, 483, 494, 504, 715, 1075, 1426, 1542, 1554, 1572, 1611, 1631, 1995, 2078, 2385, 2467, 2645, 2748, 2794, 2816, 2825, 3173, 3233, 3293, 3389, 3564, 3569, 3608, 3614, 3627, 3640, 3686, 3755, 3777, 3813, 3881 e 3919.
4-Tal registo foi efetuado na sequência de escritura pública de justificação notarial celebrada em 8 de Março de 1995 no Cartório Notarial de Vimioso, pela qual, a Autora, representada à data pelo respetivo Presidente da Junta, declarou : “que a sua representada JUNTA DE FREGUESIA DE P é dona e legitima possuidora dos quarenta prédios situados na freguesia de Pinelo, constantes do documento complementar ….; que, a mesma sua representada JUNTA DE FREGUESIA DE P já é possuidora em nome próprio dos indicados prédios há mais de vinte anos e tem usufruído os mesmos, arrendando-os, dando-os para pastoreio, colhendo alguns frutos, de forma continua desde o seu inicio, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, sendo certo que a população da freguesia sempre entendeu que os mesmos prédios eram pertença da JUNTA DE FREGUESIA e a mesma Junta através dos seus membros sempre realizou os atos acima descritos no convencimento de serem os prédios coisa sua, tendo por isso exercido sobre eles identificados prédios, com o conhecimento da generalidade das pessoas, um a posse pacifica, continua e publica, pelo que adquiriu os prédios por usucapião que expressamente se invoca, não dispondo, todavia, dado o modo de aquisição de titulo ou títulos que pelos meios normais lhes permita fazer a prova do seu direito de propriedade perfeita.
3.3 Decidir se o tribunal recorrido é, ou não, materialmente competente para preparar e julgar a presente ação.
É consabido que a competência de um tribunal – enquanto pressuposto processual - é a medida da sua jurisdição, a parte da jurisdição que a lei lhe assinala, tratando-se de determinar, quanto à competência em razão da matéria, em que tribunal é que a ação deve ser proposta, se num tribunal comum, se num tribunal de outra ordem jurisdicional.
Como tem sido enfatizado pela doutrina e jurisprudência pátrias , a apreciação de tal pressuposto processual (tal como os demais) é feita tendo por base a forma como o autor configura a sua ação, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, tendo-se ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exata configuração da causa.
Em suma, para decidir qual das diversas normas definidoras dos critérios que presidem à distribuição do poder de julgar entre os diferentes tribunais, deve olhar-se aos termos em que a ação foi posta – seja quanto aos seus elementos objetivos seja quanto aos seus elementos subjetivos.
A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação.
É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.
Como assim, será em função do modo como a causa é delineada na petição inicial, e não pela controvérsia que venha a resultar da ação e da defesa, que a competência do tribunal se averigua, irrelevando neste recurso apreciar e decidir sobre a legitimidade das partes, bem como, sobre a bondade e acolhimento jurídico da pretensão da demandante.
Como se notou, através da presente ação pretende a autora obter a declaração judicial de nulidade da escritura de justificação notarial celebrada pela Junta de Freguesia de P do Concelho de Vimioso a 15.05.95 enquanto pessoa jurídica diferente da comunidade local traduzida no universo dos compartes.
Aqui chegados, urge determinar qual o tribunal competente ratione materiae para a preparação e julgamento da presente demanda, sendo que, face ao posicionamento assumido pelas partes, a questão radica em dilucidar se essa competência incumbe aos tribunais judiciais (como advoga a apelante) ou então aos tribunais administrativos (como foi o entendimento sufragado pelo tribunal a quo).
Antes de mais, urge assinalar que a Lei 69/93, de 04.09 Lei n.º 68/93, de 04 de Setembro (Lei dos Baldios) na versão actualizada, (a 4ª versão é a mais recente (Retificação n.º 46/2014, de 29/10) tem uma norma própria em matéria de competência material, a qual, contém a resolução da questão que está em causa no presente recurso.
Aqui segue-se de perto o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28-06-2012, proferido no Processo 1360/05.2TBBGC.P1, relatora: Deolinda Varão.
É ela a norma do artº 32º, nº 1, segundo a qual, é da competência dos tribunais comuns territorialmente competentes conhecer dos litígios que directa ou indirectamente tenham por objecto terrenos baldios, nomeadamente os referentes ao domínio, delimitação, utilização, ocupação ou apropriação, contratos de cessão, deliberações dos seus órgãos ou omissões de cumprimento do disposto na lei.
Diz Jaime Gralheiro que os casos que aquela norma especifica sob o “nomeadamente” são a título exemplificativo, embora se lhe afigure que lá cabem, praticamente, toda a espécie de litígios ligados aos baldios (quer directa quer indirectamente).
Segundo o mesmo autor, de fora daquela competência está a apreciação da legalidade da actuação das entidades administrativas que tutelam os baldios, que cabe aos tribunais administrativos (artº 7º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei 13/02 de 19.02).
A norma do nº 1 do artº 32º da Lei 69/93, pela fórmula abrangente utilizada, parece querer incluir qualquer situação que, de algum modo, tenha a ver com terrenos baldios
E face à redacção da citada norma, não colhe, a nosso ver, o entendimento no sentido de que a mesma estatui a competência residual dos tribunais comuns, nos mesmos termos em que a estatui o citado artigo 64º do CPC.
Presumindo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artº 9º nº 3, do CC), se se visasse consagrar naquela norma a competência residual dos tribunais comuns, ter-se-ia expressamente excluído dessa competência os litígios que (tendo por objecto terrenos baldios, directa ou indirectamente) não fossem atribuídos a outra ordem jurisdicional – à semelhança do citado artigo 64º do CPC.
Mas ainda que a norma do artº 32º, nº 1 da Lei 68/93 não comportasse a resolução do litígio que está em causa no presente recurso, entendemos que, ainda assim, aquela resolução cairia na competência residual dos tribunais comuns.
Vejamos.
Prescreve, desde logo, o art. 211.º, nº 1 da Constituição da República que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Por seu turno, de acordo com o nº 3 do art. 212.º da Lei Fundamental “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Determina ainda o art. 64º do Cód. Processo Civil e bem assim o art. 40º da Lei nº 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), que são da competência dos tribunais judiciais, na ordem interna, em razão da matéria, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Da concatenação dos citados normativos, pode, pois, extrair-se um critério geral residual para a determinação do tribunal competente em razão da matéria, nos termos do qual todas as causas que não forem por lei atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência do tribunal comum.
Porque assim, à luz de tal critério, haverá que apurar se alguma lei estabelece jurisdição especial para a ação que vai propor-se: se tal existir, a ação deverá ser intentado ante essa jurisdição; no caso contrário, deverá a causa ser proposta perante o tribunal comum.
Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais de outras ordens jurisdicionais e se ter verificado que nenhuma disposição da lei submete a ação em causa à jurisdição de qualquer tribunal especial.
Daí que a afirmação da incompetência em razão da matéria do tribunal comum implique necessariamente a identificação de um normativo que atribua o conhecimento da causa em apreço a outra ordem jurisdicional.
A este propósito, dispõe o art. 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, doravante ETAF, (com as alterações das Leis 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, e pela Lei 107-D/2003, de 31 de Dezembro)) que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”, norma esta que reproduz, assim, a regra adrede consagrada na Lei Fundamental.
O segmento normativo transcrito incorpora uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos para apreciação dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, que constitui, deste modo, a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais. Por conseguinte, os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas são, em regra, julgados nos tribunais administrativos, embora venha sendo objeto de discussão na doutrina a questão de saber se a reserva material de jurisdição que é atribuída, pelo citado art. 212º, nº 3 da Constituição, aos tribunais administrativos é ou não absoluta, isto é, se somente os tribunais administrativos poderão julgar questões de direito administrativo e se estes tribunais apenas podem julgar questões dessa natureza.
Portanto, a definição do âmbito da jurisdição administrativa assenta num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas”, critério esse que, na esteira da casuística do Tribunal Constitucional e bem assim do Tribunal de Conflitos , não assume caráter absoluto, impeditivo da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa (é o caso, por exemplo, das expropriações), ou, em sentido contrário, de atribuição à jurisdição administrativa de competências em matérias de direito comum.
À luz dos citados normativos, o conceito de relação jurídica administrativa assume-se como decisivo para determinar a competência material dos tribunais administrativos, conceito esse que a doutrina tem procurado densificar, defendendo-se majoritariamente que o mesmo deverá ser entendido no sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, regulada por normas de Direito Administrativo, e que serão aquelas em que “pelo menos um dos sujeitos seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
No entanto, para além da referida cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos, o ETAF contém no nº 1 do seu art. 4º um elenco de matérias que, em concreto, se consideram ser da competência dos Tribunais Administrativos. Neste artigo 4º do ETAF, enunciam-se, exemplificativamente, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, umas vezes de acordo com a cláusula geral do referido art. 1º, outras em desconformidade com ela.
Escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira que estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); 2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.
O actual ETAF eliminou o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido.
O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa — conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público — cfr. Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 9ª edição, 103, e Margarida Cortez, “Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma”, 258.
Fernandes Cadilha, in “Dicionário de Contencioso Administrativo”, 2007, págs. 117/118, sustenta: “Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.
Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem.
Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (quanto às características de uma relação jurídica deste tipo, Gomes Canotilho, “Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n°1, Junho 1994, págs. 55 e ss.)”.
- Feitas estas considerações e reportando-as ao caso em apreço:
No caso sub judice, pese embora a Autora Ré ser uma Junta de Freguesia, a outorga pela Autora da escritura pública de justificação notarial não pode ser considerada um acto administrativo. E não estamos perante uma relação jurídico-administrativa a regular pelas regras de direito público, mas antes perante um conflito de natureza privada.
Acresce que a autora pretende obter a declaração judicial da nulidade da escritura de justificação notarial, e implicitamente a declaração da inexistência do direito justificado, o que, determina que a apreciação da presente acção constitutiva – art. 10º, 2, al. c) do CPC- bule, manifestamente, com as regras civilísticas, em matéria de direitos reais, tal como com as normas registais previstas no Código do Registo Predial e ainda com normas do Código Civil relativas ao objecto negocial- arts 280º a295º do Código Civil.
A justificação notarial para estabelecimento de trato sucessivo – art. 116.º, n.º 1, do CRP – consiste numa declaração, feita pelo interessado, em que este se afirma, com exclusão de outem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e aludindo aos motivos que o impossibilitam de comprovar aquele direito pelos meios normais e, quando for alegada a usucapião, devem ser mencionados expressamente os factos que determinaram o início da posse, bem como os que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.
Ora, fazendo a escritura de justificação notarial prova plena da declaração efectuada perante o oficial público, não a faz, porém, da verdade dessa declaração – arts. 371.º, n.º 1, e 372.º, n.º 1, do CC.
Assim, no caso a Autora terá de fazer prova de factos que revelem que a situação registral dos imóveis não corresponde à realidade, em ordem a lograr provar a ineficácia da referida escritura de justificação notarial.
Como assim, em consonância com as considerações expostas, a apreciação e decisão da presente acção na qual se visa obter a declaração de nulidade de escritura de justificação notarial não convoca normas de direito administrativo e/ ou fiscal.
Trata-se de um litígio emergente de uma relação jurídica que não é regulada, sob o ponto de vista material, pelas normas de direito administrativo e /ou fiscal, mas sim, por normas de natureza jurídico-civil –
Concluimos, assim, que o tribunal comum é competente para conhecer da presente acção.
Sumário:
Os tribunais comuns são competentes para decidir acções nas quais uma Junta de Freguesia pretende que seja declarada a nulidade da escritura de justificação notarial outorgada pela Junta de Freguesia e que alegadamente teve por objecto prédios rústicos com a natureza alegada de terrenos baldios.
IV- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e assim revogando a decisão recorrida, consideram competente, em razão da matéria, a jurisdição comum para o conhecimento da acção, devendo esta prosseguir os seus termos normais.
Sem custas.
Notifique.
Guimarães,25-05-2016
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
(Francisca Micaela Fonseca da Mota Vieira)
(Fernando Fernandes Freitas)
(António M. A. Figueiredo de Almeida)
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1 Cfr., por todos, TEIXEIRA DE SOUSA, A competência declarativa dos tribunais comuns, pág. 36 e seguintes; MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 88 e seguinte; LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 129; acórdãos do STJ de 9.12.99, CJ, Acórdãos do STJ, ano VII, tomo 3º, pág. 283 e de 18.06.2015, relatado por Silva Gonçalves (processo nº 13857/14.9T8PRT.P1.S1), disponível no sítio www.dgsi.pt.
2 Comentário à Nova Lei dos Baldios, pág. 190.
3 Ac. do TCA Sul (Contencioso Administrativo) de 14.02.08, www.dgsi.pt., citado no douto acórdão da Relação do Porto de 28-06-2012, no processo nº 1360/05.2TBBGC.P1, www.dgsi.pt.
4 Cfr., por todos, acórdãos nºs 347/97, de 25.07.97 e 284/2003, de 29.05.2003, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
5 Cfr., v.g., acórdão de 27.11.2008 (processo nº 19/08), disponível em www.dgsi.pt, onde expressamente se sublinha que «o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alterar o perímetro natural da jurisdição, quer atribuindo-lhe algumas competências em matérias de direito comum, quer atribuindo aos tribunais comuns algumas competências em matérias administrativas».
6 VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 4ª edição, págs.59 e segs.
7 CRP Anotada, 3ª ed., 815.