Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
73/12.3GAVNC.G1
Relator: JOÃO LEE
Descritores: COACÇÃO SEXUAL
ACTO SEXUAL DE RELEVO
IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
PENA ACESSÓRIA
ARGUIDO EXPLICADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário: I) A doutrina e a jurisprudência coincidem no entendimento de que acto sexual de relevo será o acto dotado de conotação sexual objectiva identificável por um observador externo, que seja abstractamente idóneo à satisfação de instintos sexuais, e que, por isso mesmo, seja susceptível de vir a condicionar a liberdade e autonomia sexual da vítima.

II) No caso dos autos, se é certo que existe prova de que o arguido praticou actos sexuais de relevo, já o mesmo se não pode dizer quanto à prova do requisito referente aos meios típicos de constrangimento da ofendida, elemento essencial ao crime do artº 163, nº 1, do C. Penal, pelo qual o recorrente foi condenado. É que, não se descortina uma forma de comportamento violento do arguido que seja, a um tempo, preexistente ou contemporâneo dos actos sexuais de relevo e idóneo ou apto para vencer a resistência da ofendida.

III) Porém, o comportamento do arguido preenche todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de importunação sexual, previsto e punido no artº 170º, do Código Penal.

IV) As particulares preocupações de defesa do ordenamento jurídico e de protecção dos bens jurídicos neste tipo de crime não permitem a opção por uma pena de multa. Daí que, sopesando todo o circunstancialismo apurado nos autos, é justo e equitativo fixar ao recorrente a pena concreta de dez meses de prisão, a qual deverá ficar suspensa na sua execução sujeita ao regime de prova.

V) Por outro lado a actividade do arguido enquanto explicador da ofendida de uma disciplina ou matéria compreendida no programa oficial de estudo que tem perante a explicanda uma responsabilidade de educação muito próxima ou mesmo idêntica à do professor que lecciona a respectiva disciplina, é subsumível na previsão da anterior redacção do artº 179º do Código Penal

VI) A disposição hoje vigente (artº 179ª do CP na redacção decorrente da Lei nº 103/2015, de 24 de Agosto) implicaria necessariamente uma medida da pena acessória superior, pelo que não se justifica a aplicação da lei nova.

Decisão Texto Integral: 26
Processo 73/12.3GAVNC.G2

Acordam na secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. No acórdão proferido nestes autos com nº 73/12.3GAVNC, o tribunal singular da Instância Local de Valença da Comarca de Viana do Castelo condenou o arguido Nuno D. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de coacção sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dois anos e quatro meses de prisão, de execução suspensa pelo mesmo período, mediante regime de prova e na pena acessória de proibição do exercício de qualquer profissão, função ou actividade que impliquem ter menores sob sua responsabilidade, educação, tratamento ou vigilância, pelo período de três anos.

2. O arguido interpôs recurso do acórdão e das motivações extraiu as seguintes conclusões (transcrição) :

“I-Ao condenar o Recorrente pelo crime de Coacção sexual, nos termos do nº 1 do artigo 163º do Código Penal, o Tribunal de Valença julgou e condenou por factos diversos dos descritos na pronúncia, que imputava ao recorrente o crime de Actos sexuais com adolescentes, nos termos previstos no nº 1 do artigo 173º.
II-Ao julgar o Recorrente pelo crime de Coacção sexual, o Tribunal operou uma alteração dos factos que não é minimamente subsumível na figura da alteração da qualificação; em causa está, com efeito, uma arquetípica alteração substancial dos factos, tal como a define a al. f) do nº 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal e regulada no nº 1 do artigo 359º da mesma codificação.
III-O artigo 379º, nº 1 al. b) prescreve a nulidade da sentença que condena por factos diversos dos que constavam do despacho de pronúncia.
IV-A produção da prova levada a cabo pelo douto Tribunal a quo assenta na sistemática e generalizada valoração contra reum das grandes manchas de dúvida que a produção da prova deixou atrás de si.
V-Para além da declaração inicial da ofendida ..., apresentada no momento da denúncia dos factos e frontalmente negada pelo Recorrente, o Tribunal só teve ao seu dispor depoimentos de testemunhas que não tiveram conhecimento direto dos factos.
VI-E, por isso, depoimentos que se dividem em dois lados frontalmente opostos e contraditórios; em termos tais, que eles não permitem concluir pela prova, acima de qualquer dúvida razoável, pelos factos indispensáveis à condenação do Recorrente.
VII-Ao dar estes factos como provados, o Tribunal violou invariavelmente o imperativo constitucional in dubio pro reo.
VIII-Os factos dados como provados, mesmo suposta a validade da sua prova, nunca permitiriam condenar o recorrente pelo crime de Coacção sexual, por absoluta e insuprível atipicidade dos factos.
IX-A tipicidade está excluída logo pela falta, tão patente como unívoca, de um dos pressupostos nucleares do tipo objetivo, a violência, com o sentido e alcance que o conceito assume no contexto da incriminação da Coacção sexual.
X-Só seria possível condenar o Recorrente pelo crime de Coacção sexual à custa de violação frontal e irremível do princípio constitucional da legalidade/tipicidade, nullum crimen sine lege.
XI-Mesmo que o Recorrente fosse legitimamente condenado por aquele crime contra a liberdade sexual, nunca sobraria espaço para a pena acessória de proibição temporária do exercício da atividade, nos termos da al. b) do artigo 179º do Código Penal.
XII-Não se pode dizer que entre o recorrente (explicador) e a vítima (explicanda) subsistisse aquela relação de responsabilidade, exigida pela norma sancionatória. Por ser manifesto que um explicando não está sob a responsabilidade ou a educação do explicador.
XIII-Existe, por outro lado, erro na fixação da matéria de facto prova inserta nos pontos 5º a 11º, inclusive dos factos provados, os quais deviam ter sido considerados não provados e, alíneas a), b) e c) dos factos não provados, os quais deviam resultar provados face à prova produzida em audiência de julgamento em consonância com os documentos juntos aos autos.
XIV-A prova produzida em audiência de julgamento conjugada com a demais existente nos autos, não permite concluir que o Recorrente praticou os factos dados como assentes nos pontos 5 a 11 da factualidade provada, tendo sido produzida prova da factualidade que o tribunal considerou não provada, isto é, que à data da prática dos factos se encontravam, também, no centro de explicações a companheira e irmão do Recorrente e que, tal Centro de Explicações era um espaço com 3 salas (cada uma usada pelas três pessoas referidas no artigo precedente) juntas umas das outras, sempre abertas ou entreabertas e com um circuito de pessoas consecutivo e abundante.
XV-A livre convicção ou apreciação não poderá nunca confundir-se com apreciação arbitrária da prova produzida nem com uma impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, devendo, antes, ser um processo lógico e legalmente apoiado que o julgador haverá que considerar como provados e como não provados determinados factos.
XVI-No caso vertente, o tribunal recorrido resvalou para a discricionariedade ou livre arbítrio, o que lhe está impedido.
XVII-Para fundamentar a matéria de facto que o Recorrente considera, salvo melhor entendimento, erradamente dada como tal (pontos 5 a 11), o Tribunal “a quo” baseou-se, apenas e tão só no depoimento indireto da Assistente, das testemunhas … e … (respetivamente, mãe, irmã e prima da inditosa …), entendendo que as mesmas foram relatar que a … lhes havia dito (e ainda que lhes tenha contado, de verdade) – o tal depoimento indireto – é suficiente com um grau de certeza acima de qualquer dúvida de que os factos ocorreram dessa forma.
XVIII-Daí que, dando-se aqui como totalmente reproduzido tudo quanto acima se disse sobre os depoimentos de tais testemunhas, a consideração de tal factualidade como provada está errada, devendo, ao invés ter sido considerada não provada.
XIX-E, relativamente aos factos dados como não provados, abunda da prova produzida nos autos que a mesma devia ter sido dada como provada.
XX-Relativamente ao facto dado como não provado que o centro de explicações onde o Recorrente prestava serviços como explicador e onde a … se deslocava como explicanda, era um espaço aberto e que a porta do local nunca se encontrava fechada, sendo que muitas vezes até se encontrava aberta para arejamento do espaço, temos desde logo as declarações da Assistente, mãe da ..., prestadas na sessão do dia 28/05/2015, que referiu o acima transcrito que aqui se reproduz na íntegra, em síntese, que a propósito de se ter deslocado ao centro de explicações para deixar a filha ... para uma explicação, fugindo-lhe a boca para a verdade, referiu expressamente que o Recorrente não estava e que estava o irmão na sala ao lado com a porta aberta como já era habitual.
XXI-E a testemunha Olga S., companheira do Recorrente e explicadora no mesmo centro de estudos que ele, mas da disciplina de Português e relativamente a quem todas as testemunhas (mesmo as de acusação) referiram que na verdade também dava ali explicações, portanto, indubitável conhecer perfeitamente o local, no seu depoimento prestado no dia 18/06/2015, que supra também se transcreveu e que se reproduz na íntegra.
XXII-E, a tal propósito depôs também a testemunha José P., irmão do Recorrente e explicador no mesmo centro de explicações que ele e a sua companheira (reconhecido por todas as testemunhas como tal), na sessão de julgamento de 18/06/2015, cujo depoimento se transcreveu supra e que se dá aqui por totalmente reproduzido.
XXIII-Ainda a propósito da descrição do local (centro de explicações) e as portas dos gabinetes se encontrarem normalmente abertas, depôs a testemunha Maria T., na sessão de julgamento de 18/06/2015, proprietária de um estabelecimento comercial de … do mesmo centro comercial onde se situa o centro de explicações do Recorrente, amiga deste e que com frequência ia àquele centro, tendo tido o filho como explicando lá, e cujo depoimento se transcreveu supra e que aqui também se dá por reproduzido.
XXIV-Também a testemunha Maria P., ouvida na sessão de julgamento de 18/06/2015, mãe de um menino que foi explicando do Recorrente, e cujo depoimento também acima se transcreveu e aqui dá-se por integralmente reproduzido.
XXV-E, também a tal propósito, a testemunha L…, explicanda do Recorrente, prestou depoimento na sessão de 18/06/2015, e cujo depoimento acima se transcreveu e aqui se reproduz.
XXVI-Por sua vez e ainda sobre tal factualidade, depôs a testemunha Margarida R., na sessa do dia 18/06/2015, cujo depoimento também se transcreve supra e aqui se reproduz.
XXVII-E, ainda sobre a mesma materialidade, depôs a testemunha Margarida B., na mesma sessão de 18/06/2015, cujo depoimento também se transcreveu acima e também se dá aqui por reproduzido.
XXVIII-Ora, resulta inequívoco da prova supra transcrita:
· que o Centro de Explicações onde o Recorrente dava explicações era um espaço relativamente pequeno, localizado num primeiro piso de um centro comercial.
· A porta de entrada era de vidro, seguia-se um corredor cujo final fazia um “U”, de um lado tinha a sala do Recorrente, em frente a da sua companheira e ao lado, a de seu irmão.
· Tais portas eram tão juntas umas com as outras que os aros das mesmas portas tocavam entre si.
XXIX-Mais resulta assente, que os três gabinetes funcionavam, habitualmente, com as portas abertas ou entreabertas mas nunca fechadas (a própria Assistente refere, como acima se transcreveu, que numa das idas ao centro de explicações, o Recorrente não estava e ela deparou-se com o irmão dele, no seu gabinete, com a porta aberta, como era habitual – palavras da própria).
XXX-E ainda que, dada a exiguidade do espaço, era audível de uns gabinetes para os outros, sons mais elevados.
237.º-Mais se conclui que nesse centro de explicações as pessoas – alunos, explicadores, encarregados de educação – circulavam de forma livre, com respeito mas com confiança, e todos os assuntos eram tratados com o explicador diretamente – pagamentos, marcações e desmarcações de explicações, etc. – para o que, quer os pais dos explicandos (ou encarregados de educação), quer os próprios entravam e saíam dos gabinetes quando era necessário.
XXXI-Sendo assim, como é, e resulta da prova transcrita, não se compreende como foi possível o tribunal “a quo” considerar não provados os factos que considerou como tal, quando foram várias as testemunhas a descrever o espaço (número e localização dos gabinetes e área do centro), a referir que era uma constante a entrada e saída de alunos, pais, explicadores etc, o próprio irmão afirmou que se encontrava no local na data constante dos autos, por ter consultado a sua agenda que até levou consigo e exibiu no julgamento, e a companheira a referir que, obviamente, fazendo um esforço de memória, logo que soube da imputação que faziam ao companheiro (e não apenas agora), e inúmeras testemunhas, incluindo a própria Assistente, a referir que o habitual era as portas dos gabinetes se encontrarem abertas ou entreabertas mas nunca fechadas.
XXXII-É, pois, manifesta errada e deficiente a fixação da matéria de facto, devendo os três factos considerados não provados, resultar como provados, por isso mesmo resultar da prova produzida, sendo que o local em apreço não se adequava minimamente ao desígnio criminoso do autor de um crime de coação sexual: um local com portas abertas ou entreabertas, onde inopinadamente poderia entrar qualquer pessoa, a qualquer momento, inclusive a companheira do Recorrente e seu irmão.
XXXIII-Mas mais, a própria ... bem sabia disso, pelo que facilmente ao mais pequeno gesto por parte do Recorrente que a importunasse, bastava falar um pouco mais alto que todos os demais ouviriam no centro, ou levantar-se e sair que, certamente, o Recorrente não iria no seu encalço; mas assim não correu, erradamente.
XXXIV-E relativamente aos factos provados 5 a 11, igualmente devem os mesmos ser considerados não provados dada a inexistência de prova direta sobre os mesmos, tendo o Meritíssimo Juiz “a quo” extravasado os limites imposto pelo artº. 127º do C.P.P. ao considerá-los como tal.
XXXV-Acresce um flagrante erro na apreciação da prova previsto no artigo. 410º nº 2 c) CPP.
XXXVI-Constando do processo todos os elementos de prova que serviram de base à fixação da matéria de facto, e dado cumprimento ao imposto pelo artigo 412º, nº 3 do CPP, impõe-se a modificabilidade da decisão recorrida, nos termos do disposto nos artigos 412º, nºs. 3 e 4 e 431º, alíneas a) e b), todos do Cód. Proc. Penal.
XXXVII-Tendo em conta que esse Venerando Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, e que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, e constante das gravações, não conduz à factualidade apurada na douta decisão em crise, supra discriminada, justificado está o pedido supra formulado de modificabilidade da decisão do tribunal de 1ª. Instância sobre a matéria de facto, nos termos apontados e conforme disposto no artigo 431º do Código de Processo Penal”

O Ministério Público, representado pela magistrada na Instância Local de Valença, apresentou resposta concluindo a final que a sentença recorrida não merece qualquer reparo e deve ser confirmada.

A assistente A…. formulou igualmente resposta, concluindo que deverá ser negado provimento ao recurso.

Realizada a audiência a requerimento do arguido, cumpre apreciar e decidir.

2. O objecto do recurso e o poder de cognição deste tribunal da relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

Em conformidade com as conclusões do recurso, as questões a resolver são as seguintes, pela ordem lógica de conhecimento:

1.º - Nulidade da sentença por alteração substancial dos factos descritos na pronúncia;

2ª - Erro de julgamento na decisão da matéria de facto;

3.º - Enquadramento jurídico dos factos provados;

4.º - Condenação do arguido em pena acessória.

3. Da nulidade da sentença:

O regime da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia encontra-se estabelecido nos artigos 303º, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal. Aí se distinguindo entre “alteração substancial” e “alteração não substancial” dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo apelo à definição constante do artigo 1.º, alínea f), do CPP, segundo a qual se considera alteração substancial de factos “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.".

O alargamento do âmbito de aplicação do instituto às situações de requalificação pelo tribunal da matéria de facto por força do n.º 3 do artigo 358.º procurou fundamentalmente assegurar igualmente o efectivo exercício da defesa do arguido num processo leal e justo, onde se inclui o perfeito conhecimento das disposições legais com fundamento nas quais o arguido irá ser julgado e eventualmente absolvido ou condenado.

Na situação processual em apreço, os factos constantes da sentença e susceptíveis de fundamentarem a condenação do arguido são exactamente os mesmos que já constavam do despacho de pronúncia (cfr. fls. 259), sem que tenha havido qualquer adicionamento ou substituição.

Ou seja, não ocorreu qualquer alteração dos factos e logo fica excluída a eventualidade de preenchimento da definição constante da alínea f) do artigo 1.º do C.P.P. e de nulidade da condenação por factos diferentes.

É certo que o arguido foi pronunciado pelo cometimento de um crime de actos sexuais com adolescentes, previsto e punido pelo artigo 173.º n.º 1 e veio a ser condenado pela autoria do crime de coacção sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

Perante os mesmos factos, houve alteração da qualificação jurídica, mas na fase de julgamento o tribunal comunicou essa modificação, garantindo ao arguido a possibilidades de exercício do direito de defesa perante a nova incriminação (despacho proferido em 11-09-2015, cfr. fls. 570 e 571).

Tendo havido essa comunicação e possibilidade do contraditório, a questão de saber se os factos provados preenchem todos os elementos do novo tipo de crime não é um problema que releve em sede de nulidade da sentença, mas da subsunção jurídica ou de enquadramento jurídico-penal, a apreciar no momento próprio.

Em face do exposto, improcede a arguida nulidade.

3. Decisão em matéria de facto

Para a fundamentação da presente decisão, torna-se imprescindível transcrever parcialmente a sentença objecto de recurso.

O tribunal recorrido julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição):

1. A ofendida ... nasceu no dia 28 de Outubro de 1995.
2. Por sua vez, o arguido Nuno D. nasceu no dia 21 de Setembro de 1975.
3. No sétimo ano de escolaridade, a ofendida começou a frequentar um centro de explicações, sito no …, onde recebia explicações de matemática leccionadas pelo arguido, tendo recebido explicações durante cerca de cinco anos.
4. Normalmente, as explicações eram leccionadas em grupo, com cerca de cinco a seis alunos.
5. Assim, no dia 28 de Março de 2012, pelas 17h30m, a ofendida deslocou-se ao edifício referido em 3. a fim de aí ter explicações de matemática com o arguido, tendo então verificado que a aula iria decorrer apenas com a sua presença e a do arguido.
6. No decorrer da aula, o ofendido dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe que aquela ainda não o tinha cumprimentado com dois beijos na face, como era habitual, sendo que, quando a ofendida se preparava para o cumprimentar, o mesmo, de forma inusitada, beijou-o na boca, com o contacto da língua.
7. No decorrer da aula, o arguido veio ainda a passar as mãos pelas costas, braços e pernas da ofendida, percorrendo-as e subindo até à zona das virilhas, mais tendo tocado de forma dissimulada nos seus seios, ao mesmo tempo que lhe dizia “posso-te chupar as tuas maminhas?”.
8. Mais beijou o arguido a ofendida no pescoço.
9. Quando a ofendida se preparava para sair da sala, o arguido encostou-o à parede, tendo voltado a beijá-la na boca e, acto contínuo, tocou na sua zona vaginal, por cima da roupa, tendo de seguida pegado na mão da ofendida, que encostou, por cima da roupa, aos seus órgãos genitais.
10. A ... era uma adolescente muito reservada, tímida e inocente, totalmente inexperiente a nível de relações de índole sexual, o que era do conhecimento do arguido, tendo-se o mesmo aproveitado de tais circunstâncias para actuar da forma descrita, por forma a satisfazer os seus intentos libidinosos.
11. Sabia ainda o arguido que a ofendida tinha apenas 16 anos de idade, apesar do que, de forma livre, deliberada e conscientemente, actuou da forma descrita, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
12. A ofendida ... pôs termo à própria vida no dia 7 de Maio de 2013.
13. O arguido é primário, nunca tendo sido condenado pela prática de qualquer crime.
14. O arguido dá explicações de matemática há 22 anos e é sócio de uma empresa de construção civil, auferindo rendimentos mensais médios na ordem dos 1.500,00 €.
15. Vive com a companheira em casa própria.
16. Já deu explicações a centenas de crianças/meninas e nunca teve qualquer problema ou queixa das mesmas.
17. Tem uma imagem social positiva, sendo reconhecido como profissional competente.
18. O arguido viveu quase sempre na freguesia de …, onde é uma pessoa conhecida, quer no meio escolar, por força da sua actividade laboral, quer no seu meio social, pelo envolvimento em actividades de carácter promocional e cultural da região.
19. É o mais novo de dois irmãos e foi criado pelos pais e pelos avós maternos num contexto equilibrado, estável e afectuoso, sem dificuldades económicas relevantes.
20. Ingressou no ensino superior no ano lectivo de 1993/1994 e frequentou o Instituto … durante cinco anos, não tendo concluído a licenciatura.
21. Nessa época já auferia rendimentos próprios porquanto se dedicava a dar explicações de Matemática e Física, actividade que passou a exercer progressivamente a tempo inteiro..”

O tribunal julgou não provados os seguintes factos (transcrição)

a) Que o local onde os factos ocorreram é um espaço aberto;
b) Que na data dos factos encontravam-se no centro de explicações onde o arguido lecciona inúmeros alunos a entrar e a sair de forma constante, e bem assim estavam ali a trabalhar mais dois explicadores, designadamente a companheira do arguido;
c) Que a porta do local nunca se encontrava fechada, sendo que muitas vezes até se encontrava aberta para arejamento do espaço.”

Na motivação da convicção do tribunal consta o seguinte (transcrição):

A convicção do Tribunal formou-se com base na apreciação crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, como passaremos a explicar.
Antes de mais, ter-se-á em conta que a ofendida pôs fim à própria vida no dia 7 de Maio de 2013 (conforme resulta do auto de notícia de fls. 169 a 171 e do teor da certidão de assento de óbito junto a fls.177), pelo que, não lhe tendo sido tomadas declarações para memória futura e não tendo o arguido (ao abrigo do disposto no artigo 356.º, n.ºs 2, alínea b), e 5, do CPP) dado o seu acordo à leitura do auto de denúncia e do depoimento que aquela prestou no inquérito, e não havendo testemunhas presenciais dos factos, toda a prova produzida sobre os mesmos foi necessariamente indirecta, nomeadamente a prova testemunhal, que foi valorada ao abrigo do disposto no artigo 129.º, n.º 1, in fine, do CPP.
Posto isto, e no que tange com a posição do arguido (que esclareceu que tem como actividade profissional, entre outras, a de dar explicações de matemática, o que faz há já cerca de 22 anos) perante a factualidade constante do despacho de pronúncia, reconheceu que no dia em causa – 28.03.2012, pelas 17h30m – efectivamente deu uma explicação à ofendida ... no local identificado no ponto 3 dos factos provados, mas negou categoricamente ter praticado os factos descritos naquela peça processual, sendo que, perguntado se conseguia representar algum motivo que pudesse ter levado a ofendida a fazer imputações daquele jaez, contestou negativamente, aludindo até ao bom relacionamento que sempre ambos tiveram entre si, apesar de não ter com ela uma empatia especial uma vez que era uma pessoa muito reservada.
Feita uma breve alusão às declarações do arguido – às quais voltaremos mais adiante –, debrucemo-nos sobre as declarações da assistente e sobre os depoimentos das testemunhas.
…, mãe da menor, prestou declarações que nos pareceram, mesmo tendo em conta a tragédia que se abateu sobre si e sobre a sua família por força do suicídio da ofendida ..., isentas e objectivas. Explicou que naquele dia 28 de Março a ... deslocou-se ao centro de explicações para ter uma explicação com o arguido e que, volvida cerca de uma hora, aquela telefonou-lhe pedindo que a fosse buscar. Referiu que pediu à sua filha mais velha que o fizesse e que, quando a ... chegou a casa, esta logo se foi trancar no quarto. A assistente disse que de imediato foi ter com a filha ao quarto para perceber o que se estava a passar uma vez que estranhou tal comportamento, mas que aquela se mostrou algo renitente quanto a apontar a causa justificativa do seu estado de ânimo – a declarante referiu que a filha chorava e que o quarto estava às escuras –, sendo que após alguma insistência sua a ofendida lhe disse de forma perturbada que sentia nojo e que a mãe não sabia o que o … lhe tinha feito, após o que relatou todos os acontecimentos ocorridos na sala de explicações onde pouco antes tinha estado com o arguido, os beijos na boca (com a introdução da língua do arguido), o beijo no pescoço, as carícias nas costas, nos braços, nos seios e por fim nos órgãos genitais, dela – ofendida – e dele – arguido, isto quando a ofendida se levantou da cadeira onde estava sentada para se dirigir à saída da sala, no que foi impedida pelo arguido, que a encostou à parede e, com a sua mão, levou a dela a tocar na sua genitália.
A assistente esclareceu também que pouco depois das revelações mencionadas se deslocou na companhia da filha a casa duma sua sobrinha, a testemunha Sara R., psicóloga de profissão, e que perante ela a ... voltou a reproduzir os acontecimentos ocorridos naquela tarde durante a explicação com o arguido.
Sara R. informou conhecer o arguido apenas porque tem uma relação de amizade com o seu irmão José P.e (sendo que essa ligação lhe proporcionou – à depoente – a exploração, entre 2011 e 2012, de um gabinete de psicologia no mesmo local onde funciona o centro onde o arguido dá explicações), e, quanto aos factos, exprimiu-se no sentido de que, tal como a assistente havia assinalado nas suas declarações, logo no dia 28 de Março de 2012, à noite, aquela, na companhia da ... e da filha mais velha (…), deslocou-se a sua casa e lhe deu conta do sucedido entre a ofendida e o arguido, tendo-lhe sido pedido conselho sobre a forma como deveriam actuar em face de tais acontecimentos, dada a sua formação académica e profissional. A depoente explicou que achou a ... apática (sem expressão emocional) e nervosa (as mãos trémulas), e que se sentou com ela para conversarem sobre o sucedido, sendo que no decurso de tal conversa lhe relatou que naquela tarde tinha tido uma explicação individual com o arguido e que no decurso da lição foi abordada por este nos termos dados como provados, sendo por isso tal depoimento concordante com as declarações prestadas pela assistente … sobre o que a ofendida lhes transmitiu no dia em análise acerca dos factos ocorridos no centro de explicações.
A testemunha Anabela G. informou que, também ela, atendendo à ligação de amizade que a une à assistente (e ao marido desta, de quem é amiga de infância, conforme sublinhou) há mais de 20 anos – para além ser sua vizinha, vivendo a não mais de 150 metros de distância da mesma –, que se estendia à ..., falou com esta uns dias depois dos factos terem ocorrido (soube do sucedido pouco tempo depois do dia 28 de Março por ser visita regular da casa), explicando que pretendeu dar força e apoio à ..., tendo dito a esta última que só falaria consigo sobre o sucedido se ela mesma assim o pretendesse, e que a ofendida acabou por lhe relatar, chorosa, que o arguido a havia tocado com as mãos, nomeadamente apalpando-lhe os seios e a zona vaginal; que a dado momento aquele pegou numa das suas mãos (da ofendida) e encostou-a aos seus órgãos genitais (do arguido); que aquele a beijou o pescoço; que a beijou na boca, introduzindo a língua, explicando a testemunha que a ofendida ..., no que tange estas dois últimos momentos, verbalizou que sentia “nojo”, e que, quanto ao quadro geral dos acontecimentos em análise, se sentia “suja”.
…, irmã da ofendida, prestou um depoimento idêntico ao da sua mãe no que aos acontecimentos respeitantes ao período subsequente à explicação que aquela teve com o arguido no dia 28 de Março de 2012 respeita. Explicou que, a pedido da mãe e na sequência de uma solicitação da ofendida, foi buscar esta última ao centro de explicações e que percebeu imediatamente que a irmã não estava bem, tendo a ofendida justificado perante as depoente tal estado de ânimo por se encontrar com dores de cabeça. Confirmou que a irmã falou no quarto com a mãe e que pouco depois também lhe relatou a si os acontecimentos em análise, mormente os toques do arguido nas suas costas, seios, virilhas e vagina, os beijos na sua boca com introdução da língua, a colocação – por iniciativa do arguido – da mão da ... no seu órgão genital, as interpelações verbais daquele junto dela (“posso chupar-te as maminhas?”), dando a testemunha ainda nota do sentimento de revolta e de nojo que a ofendida verbalizou ao longo da conversa que com ela manteve. Mais esclareceu a depoente que a iniciativa de consultarem a testemunha Sara R. foi sua uma vez que aquela é psicóloga e que a mesma as aconselhou a que fosse apresentada queixa contra o arguido, o que de resto sucedeu naquele mesmo dia, pelas 22 horas, como resulta do auto de notícia de fls. 3 e ss.
Os depoimentos supra escalpelizados foram prestados de modo consistente, o que nos permitiu perceber que as testemunhas reproduziram fielmente o que a ofendida ... lhes transmitiu, mormente nas horas seguintes aos acontecimentos. Não vislumbrámos por banda das testemunhas qualquer ponta de animosidade para com o arguido, designadamente no que tange com a assistente e a testemunha …, mãe e irmã da ofendida respectivamente (e atenta essa relação de parentesco com a vítima poderiam ter demonstrado uma má disposição de espírito contra o arguido no sentido de o prejudicar, o que não detectámos), sendo certo até que a primeira revelou ter do arguido uma boa imagem, na senda aliás do que a ... lhe foi transmitindo ao longo dos anos em que foi explicanda daquele, de quem a jovem nunca se queixou por que motivo fosse, como a assistente mencionou nas suas declarações.
Por outro lado, apesar de não terem presenciado os factos, tanto a assistente como as testemunhas …, Sara R. e … deram nota do estado de espírito e emocional da vítima após a ocorrência dos acontecimentos sob escrutínio (relatos esses que resultam da sua percepção sensorial por via do contacto directo que tiveram com aquela, tanto no dia dos factos como nos dias, semanas e meses seguintes), mormente o estado de grande perturbação emocional que aquela evidenciou quando regressou a casa no dia 28 de Março de 2012 após ter estado com o arguido no centro de explicações, perturbação que também a sua prima Sara R. nesse mesmo dia constatou, tal como já tivemos oportunidade de mencionar; a alteração do comportamento da jovem após aquela data até ao momento em que faleceu nas circunstâncias trágicas já conhecidas (passou a isolar-se no seu quarto – quando chegava a casa das aulas e logo que acabava jantar, como informou a testemunha … – e a evitar o contacto com terceiros, mesmo com a família; a assistente viu-a a chorar em diversas ocasiões; durante algum tempo evitou beijar o próprio pai – a assistente referiu que chamou a filha à atenção para esse comportamento dizendo-lhe que o pai não tinha culpa do sucedido e que ela retorquiu dizendo que, apesar ter disso consciência, não o conseguia beijar porque era um homem; teve acompanhamento psicológico após a data dos factos em análise, designadamente na sequência de duas ingestões voluntárias de medicamentos que os familiares, à luz do trágico fim da ofendida no dia 7 de Maio de 2013, qualificaram como tentativas de suicídio; tanto a mãe da ... como a sua prima … mencionaram terem visto, no dia 28 de Março de 2012, uma zona à volta dos lábios daquela ruborizada, que a assistente associou ao facto de, como asseverou, o arguido usar barba na data dos factos e de ter beijado a boca da filha nos moldes que esta logo naquele dia lhe transmitiu).
De relevância incontestável para o apuramento da verdade revestiu-se outrossim o depoimento de …. Esta testemunha – uma jovem que actualmente tem 20 anos de idade – revelou factos que permitiram reforçar a credibilidade do relato da ofendida ... no que aos acontecimentos do dia 28 de Março diz respeito, como passaremos a esclarecer.
A testemunha em causa explicou que também ela foi explicanda do arguido durante alguns anos (entre o 8.º e o 12.º ano, até Março de 2012) no centro de explicações sito no…, e que também ela foi vítima de comportamentos do arguido idênticos àqueles que vêm sendo examinados na presente sentença. A depoente referiu que o arguido, durante o mês de Março de 2012 (a depoente apontou para o dia 15), no decurso de uma explicação que aquele lhe ministrava (para correcção de um teste intermédio que a depoente havia realizado e por solicitação do arguido – mediante mensagem de telemóvel que enviou à testemunha, segundo esta explicou –, a que aquela acedeu), a tocou/apalpou com as mãos numa das pernas e as foi subindo em direcção à zona da vagina; que a tocou no ombro, debaixo das axilas e nos seios; que o arguido agarrou numa das mãos das depoente e a encostou à sua – dele, arguido – genitália; que a beijou na boca – com língua, “ou pelo menos a tentar”, como a testemunha mencionou – e que inclusivamente a encostou à parede da sala de explicações quando aquela se levantou e a voltou a apalpar “em tudo que era sítio”, tendo aquele sustado as suas investidas porque entretanto uma senhora bateu à porta, tendo a depoente aproveitado o ensejo para se ausentar.
Ora, para além de a testemunha ter prestado um depoimento que se nos afigurou seguro e consistente, existem alguns pormenores do mesmo que nos levaram a dar-lhe a merecida relevância. Na verdade, ficou bem patente da prova produzida que a depoente e a falecida ... não se conheciam (a ... frequentava a Escola … – onde residia – e a testemunha … a Escola .., para além de frequentarem anos de escolaridade distintos – a testemunha é mais velha que a ofendida) nem as explicações que tinham com o arguido alguma vez coincidiram. Por outro lado, o arguido reconheceu que efectivamente deu uma explicação à testemunha … durante o mês de Março de 2012 por causa dum teste que aquela tinha feito e que não lhe tinha corrido nada bem, confirmando que a depoente, a partir dessa explicação, nunca mais apareceu no centro de explicações – como vinha sucedendo há 3 ou 4 anos àquela parte, como referiu o arguido – nem o contactou para justificar a ausência. O arguido revelou aliás que, na sequência de a testemunha ter deixado de comparecer nas explicações, lhe enviou uma mensagem de texto por telemóvel (“sms”) para averiguar os motivos da sua ausência mas que não obteve qualquer resposta, o que a depoente … também mencionou no seu depoimento, esclarecendo que efectivamente não deu qualquer resposta ao sms enviado pelo arguido. Este último, aliás em consonância com o que a testemunha … também asseverou, referiu que nunca teve qualquer tipo de problema com ela e que até tinha consigo uma maior empatia do que a que tinha com a ..., não tendo nós vislumbrado, mais uma vez, qualquer motivo que pudesse ter levado (em primeiro lugar) a depoente … a imputar a prática de acontecimentos tão graves ao arguido e (em segundo lugar) a concertar com a ofendida as versões dos factos que pudemos ouvir directamente da boca da primeira e através da voz da assistente e demais testemunhas já identificadas no que respeita à segunda.
Não temos dúvidas que a evidente similitude (e a sua proximidade temporal) dos comportamentos e dos actos praticados pelo arguido no caso da testemunha … e no caso da ofendida ... resulta claramente duma idêntica forma de actuar daquele nas duas situações acima identificadas e não de qualquer concertação de versões dos acontecimentos entre as pessoas em causa. De resto, o argumento da ostensiva semelhança dos relatos das vítimas para sustentar a falta de credibilidade das mesmas parece-nos manifestamente falacioso já que, para além de tudo o mais que deixámos dito sobre a fidedignidade das narrações em causa, não vemos que no contexto assinalado – em que alguém apalpa, toca e beija o corpo de outrem sem o seu consentimento e de forma inesperada atendendo à relação de confiança existente entre os envolvidos em função da relação professor/aluno – as coisas possam acontecer de forma tão diferente só porque se tratam de duas pessoas distintas. Ao invés, parece-nos até bastante natural que os actos sejam praticados de forma tão similar, daí que também o sejam os relatos em análise.
Não podemos deixar de fazer referência às circunstâncias que permitiram à assistente ter conhecimento da factualidade ocorrida entre a depoente … e o arguido. Aquela esclareceu que a sua sobrinha – a testemunha Sara R. – lhe referiu a dada altura que tinha ouvido no centro de explicações um grupo de jovens a comentarem os mencionados eventos e que, perante a semelhança dos casos, procurou e acabou por apurar a identidade da visada, tendo-se deslocado à residência da … para com ela conversar, no que aliás veio a ser bem-sucedida. De notar que a testemunha Sara R. confirmou ter sido ela a prestar à assistente a informação respeitante à identidade da .., mas esclareceu que tal informação não chegou ao seu conhecimento do modo como então transmitiu à sua tia mas por intermédio de uma amiga que lhe confidenciou ser familiar da dita … e que, por esse motivo, teve conhecimento dos factos ocorrido durante o mês de Março de 2012 na explicação que aquela teve com o arguido, e que, por lhe ter sido pedido que guardasse segredo estrito sobre as informações que lhe estava a prestar, decidiu, para respeitar o compromisso assumido e preservar a pessoa em causa, inventar a história de que delas tinha tido conhecimento por as ter ouvido numa conversa que teve lugar junto do centro de explicações, argumentos que nos pareceram convincentes perante a delicadeza dos factos em questão, tanto mais que a própria … não quis apresentar queixa contra o arguido para assim ultrapassar e tentar esquecer os acontecimentos de que foi vítima.
A tal propósito ainda, a depoente … explicou que a assistente se deslocou a sua casa em Maio ou Junho de 2012 (e a testemunha disse, em abono do que ficou dito no parágrafo antecedente, não saber como é que aquela conseguiu saber a sua identidade e paradeiro) e que lhe pediu que falasse com a ... porque esta estava muito em baixo e porque podia ser uma boa influência para a filha, dado que tinha conseguido seguir com a sua vida. A testemunha referiu que, posteriormente à dita conversa com a assistente, o seu contacto com a ofendida ... (que nem sequer conhecia, repita-se) se limitou ao envio dum sms perguntando-lhe como é que ela estava e que esta respondeu dizendo que tudo estava “mais ou menos”, não tendo tido com ela qualquer outro contacto.
A circunstância de a testemunha … não ter apresentado queixa contra o arguido pelos factos que relatou não tem qualquer peso no que tange com a credibilidade de que o seu depoimento é merecedor. Não é anormal – bem antes pelo contrário – que vítimas de comportamentos do jaez daqueles que estão em análise tentem seguir a sua vida e esquecer que os mesmos ocorreram, o que na maioria dos casos passa pelo seu afastamento dos agressores e dos locais onde as agressões tiveram lugar. Foi precisamente isso que a depoente fez, pois deixou de frequentar as explicações que há anos frequentava tendo o arguido como deu orientador. E só voltou a ser confrontada com aquele seu passado quando a assistente lhe transmitiu que a filha ... tinha sido alvo de idênticos actos por banda do arguido.
…, mãe da testemunha …, confirmou no essencial o depoimento desta última, tendo o Tribunal verificado que, no essencial, aquilo que aquela reproduziu em sede de audiência de discussão e julgamento condiz com o que comunicou à sua progenitora quanto aos factos de que foi vítima (a inquirida ... revelou que foi ao pai que a ... primeiramente contou o sucedido e que foi por este que tomou inicialmente conhecimento dos factos). Disse ainda que, vendo a filha afectada emocionalmente com o sucedido, quis levá-la a um psicólogo, o que aquela não quis, comportamento que dá conforto à ideia transmitida pela depoente ... de que quis tentar esquecer o assunto. A mãe desta última explicou ainda que ponderou apresentar queixa contra o arguido mas que foi aconselhada a não o fazer dado que seria a palavra da filha contra a do arguido e que o melhor seria tentar ultrapassar o assunto, conselho que acatou, não antes sem confrontar directamente o arguido sobe os acontecimentos em questão, que aquele negou terem sucedido.
Acerca do encontro da assistente com a sua filha, a testemunha ..., que asseverou que até então não a conhecia, referiu que durante o Verão de 2012 viu aquela, conjuntamente com outra pessoa (que se veio a perceber ser a testemunha F…), a tocar à campainha duma vizinha, e que pouco depois se apresentou como sendo mãe duma explicanda do arguido e que a filha tinha tido com este último um problema idêntico àquele que a ... tinha tido com o mesmo explicador de matemática, não tendo então adiantado mais pormenores sobre assunto. Explicou a testemunha ... que entretanto teve de se ausentar e que a assistente ficou na companhia da filha ... e da dita F….
Ora, a testemunha F. – amiga de longa da data dos pais da ... e da família, como referiu para justificar e permitir ao Tribunal perceber a sua relação com a ofendida – confirmou ter acompanhado a assistente naquele périplo a pedido desta última, que lhe deu conhecimento do que pretendia fazer, lhe explicou como tinha chegado à identidade da ... e que suspeitava que esta tinha sido vítima de factos idênticos aos praticados pelo arguido sobre a ... (dos quais a testemunha explicou já ter conhecimento desde o fim de Março de 2012, altura em que a assistente lhos confidenciou). A testemunha revelou que até então – referiu que a deslocação à residência em causa terá ocorrido em finais de Agosto, início de Setembro de 2012 – não conhecia nem a ... nem os seus pais, e confirmou que encontraram a casa daqueles depois de alguma procura, após o que a assistente encetou conversa com a depoente ... dando-lhe conhecimento ao que vinha. Atestou ainda que um pouco depois a dita testemunha foi chamar a filha ... e que ficaram à conversa.
O depoimento em causa afigurou-se-nos coerente com o que foi prestado pela testemunha ..., sendo aliás de notar que a referida F… inicialmente referiu que durante a conversa que foi mantida em casa dos pais da ... ninguém se ausentou do local onde se encontravam (a testemunha ... havia dito o inverso) mas um pouco mais adiante recordou que, de facto, assim não tinha sucedido, e que a dado momento o pai ou a mãe da dita ... (não soube recordar) se ausentou por casa duma encomenda de flores – note-se que a testemunha ... explicitou no seu depoimento que a mãe produz flores –, o que também a testemunha ... havia mencionado a dado passo nas suas declarações. Apesar de se tratar de um pormenor de somenos, a verdade é que nos permitiu reforçar a convicção formada no sentido de que a testemunha F… esteve efectivamente presente na casa dos pais da .. na data assinalada e assistiu à conversa que a assistente teve com aquela última, circunstância que, por sua vez, cimenta a credibilidade das declarações que prestou sobre o assunto.
Por sua vez, o arguido, que negou a prática dos factos, não soube dar uma explicação plausível que permitisse alvitrar os motivos que pudessem ter levado a ofendida ... (e a depoente ...) a assacar-lhe a prática de factos tão sérios. O impetrado reconheceu inclusivamente que até àquele dia mantinha um bom relacionamento com a sua explicanda, apesar de esta ser uma pessoa tímida e algo distante. Também não apresentou uma justificação plausível para o facto de a ... nunca mais ter comparecido nas suas explicações a partir daquele dia 28 de Março (comportamento que o próprio confirmou, mencionando mesmo que a jovem tinha necessidade de ter explicações já que tinha nota negativa a matemática, pormenor que, somado ao resto, menos ainda permite perceber por que razão a ... deixou de comparecer nas explicações a partir daquela data, se não a de ter sido molestada pelo arguido nos termos descritos nos factos provados) e de não ter tido a preocupação de a contactar – a ela ou à sua mãe, uma vez que, segundo referiu o arguido, tinha na sua posse o contacto telefónico de uma e outra – para apurar das razões dum tal comportamento.
O arguido para tal efeito justificou que desde sempre vem adoptando tal postura nas situações em que algum dos seus alunos deixa de comparecer nas suas explicações sem motivo aparente, o que, se nos parece razoável quando os explicandos não têm muito tempo de trabalho junto daquele, já nos parece inadmissível no caso concreto. Com efeito, o próprio arguido reconheceu que já dava explicações à ofendida ... há alguns anos à data dos factos, pelo que, conjugando tal circunstância com o facto de – como aquele também reconheceu – ter um bom relacionamento com aquela – que até disse tratar-se de uma pessoa muito educada –, a sua explicação é tudo menos razoável à luz das mais elementares regras de experiência comum. Note-se, além do mais, que o arguido é uma pessoa instruída e educada, montou um negócio de explicações florescente, como referiu nas suas declarações (dá explicações há 22 anos), pelo que não é verosímil que não tenha tido a preocupação de saber por que é que a ofendida, sem mais nem menos (ou seja, no pressuposto de que não praticou os factos por que vem pronunciado), deixou de frequentar as aulas que vinha frequentando há cerca de 4 ou 5 anos. No contexto apontado, tal justificação contraria de forma flagrante – reiteramos – a lógica e as regras da experiência comum, e tal comportamento só se compreende à luz dos acontecimentos ocorridos durante a tarde do dia 28 de Março de 2012 no centro de explicações onde o arguido leccionava e que se deram como provados.
Sobre os acontecimentos em análise prestou também depoimento O…, sendo que sobre a sua ligação com o arguido elucidou viver maritalmente com o mesmo há cerca de 7 anos a esta parte e dar explicações no mesmo centro onde aquele o faz, pelo que nessa medida conhecia a ofendida ... apesar de nunca ter sido sua explicanda, como frisou. O depoimento em causa afigurou-se-nos claramente interessado em função da ligação que une a testemunha ao arguido (o que de resto não é de todo anormal neste tipo de situações). A testemunha declarou, ter a ideia de que no dia em questão – 28 de Março de 2012 – se recorda de ter visto a ... no centro de explicações e que se tratava de uma semana normal de trabalho. Todavia, logo de seguida deu nota de ter ficado surpreendida por ver o arguido no dito centro de explicações, já que este último lhe havia dito que durante aquela semana não iria trabalhar por causa de um projecto para uma obra que tinha em mãos (o arguido e a testemunha referiram ser sócios de uma empresa de construção civil). Ora, se era uma semana normal de trabalho não se compreende que tivesse ficado tão surpresa por ver o arguido no centro de explicações. Por outro lado, a depoente não deu qualquer justificação plausível para a circunstância de se recordar de ter estado no centro de explicações naquele concreto dia 28 de Março de 2012 – “ficou-me na ideia”, explicou sem mais – e disse também nem sequer ter memória do que lá foi fazer concretamente, o que permite concluir que não esteve a dar explicações na data em questão – e era uma semana normal de trabalho, como referiu –, como o arguido havia asseverado nas suas declarações.
Em suma, a testemunha não apresentou qualquer motivo – plausível – que permitisse perceber a razão de ter uma lembrança tão concreta da data em causa. E note-se que o arguido referiu que só teve conhecimento da pendência dos autos através dum telefonema duma Sr.ª Inspectora da Polícia Judiciária convocando-o para uma diligência no posto local da GNR, sendo que a diligência em questão – o interrogatório do arguido – teve lugar em 27 de Julho de 2012 conforme resulta do auto de fls. 36, e que só apenas depois do dito interrogatório é que contou à companheira da existência do processo, ou seja, podemos concluir com segurança, a fazer fé nas palavras do arguido, que a depoente O… só teve conhecimento dos factos imputados ao arguido muito depois do dia 28 de Março de 2012 quando este lhos transmitiu após o interrogatório (e o arguido disse também que só depois da morte da ofendida foi directamente confrontado com os pais), pelo que não havia razão alguma para se recordar de tal data com tamanha precisão.
Analisado o depoimento de José P., irmão do arguido (e também ele explicador no centro em causa à data dos factos), do mesmo nada resultou de relevante que possa infirmar a convicção que formámos sobre os factos. O depoente afirmou de forma peremptória que no dia 28 de Março de 2012 esteve no centro de explicações porque assim constatou por consulta à sua agenda pessoal, onde estavam marcadas explicações entre as 15 e as 20 horas com onze alunos. Ora, o próprio arguido reconheceu que o dia 28 de Março de 2012 correspondeu a um dia da semana anterior às férias escolares da Páscoa (que decorreram entre 4 e 10 de Abril de 2012), altura em que habitualmente, e por esse mesmo motivo, o movimento no centro de explicações decresce significativamente (e tanto assim é que a companheira do arguido referiu no seu depoimento que naquela semana não era suposto o arguido sequer deslocar-se ao seu local de trabalho). O facto de o depoente ter o registo das explicações que agendou para a data em causa nada releva no contexto assinalado, já que não é possível garantir a fidedignidade de tal registo (não se pode esquecer que o depoente é irmão do arguido), ao que acresce que, voltamos a insistir, numa semana como aquela em que o movimento de explicandos era substancialmente reduzido nos parece inverosímil que a testemunha tivesse uma agenda tão preenchida como invocou.
O arguido, posteriormente respaldado pelo irmão, pretendeu fazer crer que no centro de explicações estas eram ministradas aos alunos pelos diversos explicadores (o arguido, a sua companheira e o seu irmão) com as portas de cada uma das salas onde decorriam sempre abertas. Ao que nos parece, a defesa pretendeu pôr em evidência que os factos imputados ao arguido nunca podem ter tido lugar caso contrário qualquer pessoa presente no centro de explicações tê-los-ia presenciado e, nessa medida, ninguém dotado do mínimo bom senso arriscaria praticá-los. Ficou bem patente que as três salas de explicações – o arguido referiu que o centro tem cinco gabinetes e que estavam em uso apenas três – são contíguas entre si (fazem a forma de um “U”, no fundo do corredor, ou seja, duas delas estão uma em frente à outra), mas nada se apurou no sentido proclamado de que as portas das mesmas estavam sempre abertas, designadamente enquanto as explicações decorriam. Assim o disse a testemunha Maria T., proprietária de uma … no rés-do-chão do edifício onde se encontra o centro de explicações, mencionado que a porta do arguido, quando lhe ia dar recados, estava habitualmente fechada ou encostada. .., explicanda do arguido desde 2013, referiu contrariamente que as portas das salas estão habitualmente abertas, mas neste conspecto não foi despicienda a circunstância de a depoente apenas ser explicanda do arguido desde 2013, ou seja, desde o ano seguinte aos factos. S…, estudante universitária e explicanda do arguido entre o 8.º e o 12.º ano (tem 22 anos de idade) referiu que as portas das salas estavam habitualmente encostadas ou abertas.
Em resumo, para além do que ficou dito, parece-nos perfeitamente inverosímil que as portas das salas de explicações do centro estivessem abertas em permanência enquanto as explicações decorriam como se pretendeu fazer crer, tanto mais que os gabinetes são contíguos e o isolamento acústico é fraco – assim o atestou o arguido –, o que levaria a que se ouvissem dumas salas para as outras as vozes de explicadores e explicandos e que o barulho daí naturalmente decorrente incomodasse e perturbasse as actividades em curso, pelo que o mais normal e lógico seria, evidentemente, que as portas ou estivessem fechadas ou estivessem no mínimo encostadas, apesar de se afigurar óbvio que não pomos de parte a hipótese de ocasionalmente se encontrarem abertas: o que pomos de parte é que estivessem permanentemente abertas, designadamente quando as explicações decorriam.
Não obstante, a verdade é que a questão foi levantada pela defesa no pressuposto de que no centro de explicações se encontravam, no dia em causa, para além do arguido e da ofendida, a companheira e o irmão daquele. Acontece que os depoimentos que aqueles prestaram nesse sentido não nos convenceram, pelo que, assim sendo, a questão perde o fulgor que a defesa do arguido lhe pretendeu imprimir. Por outro lado, a assistente foi clara quando explicou que, tendo perguntado à filha porque não reagiu às investidas do arguido (porventura dando um grito ou afastando o arguido), ela lhe disse que ficou em choque, que nem conseguia respirar, e a testemunha Sara R. esclareceu que quando falou pela primeira vez (ou seja, logo no dia 28 de Março) com a ... sobre os acontecimentos em análise, ela lhe transmitiu que não conseguiu reagir de que forma fosse às investidas do arguido.
A (falta) de reacção da ofendida perante os actos do arguido é consonante com a sua maneira de ser e com a sua personalidade. Das declarações da mãe e dos diversos depoimentos prestados pelas pessoas que melhor a conheciam (mormente a irmã e a prima) ficou bem patente que a ... era uma jovem assaz introvertida e tímida, com uma natureza recatada e pouco dada ao convívio social (envergonhada com as pessoas que não conhecia), mas bastante próxima da família. Era uma pessoa que não se tinha em grande conta, achava-se gorda e feia (como chegou a comentar com a prima S…), o que atesta a sua baixa auto-estima. Tais traços de personalidade ajudam também a perceber a alteração comportamental sensível que evidenciou após o dia em que os factos ocorreram.
Tratava-se de uma pessoa sem qualquer experiência de natureza sexual ou de contactos mais íntimos com pessoas do sexo oposto, o que ficou bem perceptível dos depoimentos/declarações das pessoas que a conheciam melhor, que disseram nunca lhe terem conhecido qualquer namorado.
A natureza reservada e tímida da ofendida não é compatível com a hipótese de ter efabulado os acontecimentos denunciados. Da análise que fizemos da prova produzida não verificámos a existência de qualquer circunstância indiciadora duma tal propensão. O relacionamento que mantinha com os pais – designadamente com o pai, e fazemos esta referência particular uma vez que foi aventada a hipótese de existir um comportamento menos próprio entre aquele e a filha ..., que esta tivesse reflectido na pessoa do arguido – foi descrito como saudável e normal. Que a ... tenha repudiado os beijos do pai nos tempos que se seguiram aos factos sob escrutínio é apenas natural (e é consabido que tal reacção é muito comum em vítimas de comportamentos que bolem com a sua intimidade sexual), isto atendendo a que tais factos, praticados por um homem, tiveram naturalmente um impacto profundo sobre a sua estabilidade emocional, sendo certo que da prova produzida resultou claro que esse comportamento da menor para com o pai só veio à tona após os acontecimentos de que foi vítima, pois antes dos mesmos a ... tinha um relacionamento com o pai igual ao que qualquer filha deve ter com o pai (a assistente revelou inclusivamente que a filha deixou de frequentar as aulas de matemática na escola porque eram lecionadas por um professor do sexo masculino, o que permite perceber que aquela reacção não foi especificamente dirigida ao seu pai).
Também não existe qualquer indício de que a menor tivesse qualquer problema de índole psiquiátrica antes da data dos factos sob avaliação. A assistente referiu que a ..., durante alguns meses, entre os 13 e os 14 anos, frequentou duas ou três consultas de pedopsiquiatria em … uma vez que se suspeitava que padecesse de algum distúrbio alimentar (bulimia), mas nada mais do que isso, o que é coerente com a imagem que a jovem tinha de si mesma (feia e gorda, como disse à prima). As respostas às solicitações que o Tribunal fez junto do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de … (respostas a fls. 525, 527, reverso, 528, 529, 536, 543,) e do Departamento de Pedopsiquiatria do Centro Hospitalar … (respostas a fls. 531, reverso, 545 e 552) para apurar se a menor fora utente desses serviços foi, no que releva para a descoberta da verdade material (ou seja, perceber se a jovem tinha algum problema de índole psiquiátrico que pudesse pôr em causa a veracidade do seu relato), foi negativa. As informações prestadas a fls. 525, 527 (reverso), 531 (reverso) e 545 reportam-se a dois momentos posteriores aos factos constantes da pronúncia, quando a menor fez intoxicação medicamentosa voluntária que os familiares associaram a uma primeira e segunda tentativas de suicídio na sequência do impacto traumático que os factos praticados pelo arguido provocaram na ofendida, pelo que não dizem respeito a qualquer conduta relevante antes daquela data; a fls. 536 o Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da … informa que não consta qualquer registo de observação da jovem em consulta de psiquiatria de infância e adolescência naqueles serviços, mais tarde tendo vindo acrescentar que houve um pedido de consulta para os seus serviços de pedopsiquiatria em 10 de Outubro de 2007 mas que a mesma surge no sistema informático como “desmarcada” (cfr. fls. 543); e a fls. 552 o Departamento de Pedopsiquiatria do Centro Hospitalar do … (Hospital de …) vem esclarecer a desconformidade que resulta das declarações da assistente e das informações juntas aos autos, ali se explicando que a ofendida foi de facto acompanhada em consulta de pedopsiquiatria em … mas a título particular, informação que foi veiculada por familiares da ..., daí que a que foi inicialmente prestada por aquele Departamento (do Centro Hospitalar …, e que consta de fls. 545) é claramente errónea na parte em que menciona que a menor foi seguida durante três anos no Departamento de Pedopsiquiatria do Hospital ….
Assim sendo, temos que antes do dia 28 de Março, com excepção das consultas que a menor frequentou em … por força do invocado distúrbio alimentar, nada mais se apurou que pudesse dar nota de algum desequilíbrio na saúde mental da ofendida .... E os acontecimentos posteriores àquela data – a ingestão voluntária de medicamentos, que as pessoas inquiridas associaram a tentativas de suicídio, o que é natural uma vez que, infelizmente, a menor acabou por conseguir pôr termo à vida, e fê-lo de uma forma que não pode deixar de chocar quem quer que seja – não podem ser relevados para sustentar um raciocínio distinto, pois que não podem ser dissociados dos factos em análise, ainda que seja evidente não ser possível estabelecer um nexo de causalidade entre um evento e outro.
Acrescente-se ainda que o facto de o relatório médico-legal de fls. 17 a 19 nada evidenciar em termos da existência de vestígios dos actos em análise é perfeitamente irrelevante dada a natureza de tais actos. O único vestígio que poderia ser observável seria a ruborização da pele à volta dos lábios da ofendida, mas assim não sucedeu porque ficou bem explicado – quer pela assistente quer pela testemunha Sara R. – que tal lesão era ligeira e desapareceu nas horas que se seguiram aos factos e por isso não seria visível quando o exame foi realizado, ou seja, no dia 30 de Março de 2012.
Em síntese, da conjugação da prova produzida e que vimos de escalpelizar resultou a firme convicção de que o arguido praticou os factos por que veio pronunciado. Os relatos que a menor fez à assistente e às diversas testemunhas que com ela tiveram oportunidade de conversar (e de a ouvir) sobre os acontecimentos ocorridos no dia 28 de Agosto de 2012 no centro de explicações do arguido e que as referidas pessoas reproduziram na audiência mostraram-se no essencial idênticos entre si, o que denota que a ofendida não alterou o seu discurso à medida que o tempo ia correndo. O arguido não apresentou qualquer justificação que permitisse entrever algum motivo que pudesse ter animado a ofendida a assacar-lhe factos tão torpes, tendo aliás sublinhado o bom relacionamento que sempre existiu entre ambos (e não conseguiu também explicar porque é que no dia em questão a explicação foi, ao contrário do que era habitual, como de resto o arguido reconheceu, ministrada unicamente à ofendida ..., aliás como tinha sucedido outrossim no caso da depoente ..., o que é demonstrador da premeditação dos actos praticados). O mesmo se diga quanto ao depoimento prestado por ..., que lhe imputa em período temporal muito próximo a prática de factos muito semelhantes àqueles que visaram a ofendida ..., sendo certo que a testemunha nem sequer conhecia a jovem nem nunca havia tido contacto com ela aquando dos acontecimentos em crise, tratando-se de eventos quase concomitantes que apenas têm como denominador comum o arguido, circunstância que conferiu credibilidade acrescida ao relato que a ofendida fez sobre os eventos em causa junto das diversas pessoas a quem confidenciou o sucedido.
Os factos relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernentes à conduta do arguido foram considerados assentes a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
No que tange com a personalidade do arguido e com a consideração pessoal e profissional de que goza junto de explicandos, amigos e familiares, relevou-se o teor do relatório social junto a fls. 440 a 442 em conjugação com os depoimentos prestados por … (seu amigo de infância, explicou que tem uma filha que foi explicanda daquele entre 2010 e 2011 – e também uma sobrinha –, referindo ainda que aconselhou os serviços do arguido a uma cliente sua que posteriormente lhe transmitiu a sua satisfação relativamente a tais serviços), C… (amiga do arguido, referiu pertencer à associação de pais da escola secundária de … e atestou que dos pais dos alunos que frequentam as explicações do arguido nunca ouviu qualquer comentário negativo sobre as competências profissionais daquele, e que inclusivamente o seu filho foi explicando do arguido durante 5 anos e que tem deste a melhor ideia), L…, (estudante e explicanda do arguido desde 2013, dele tendo dado uma imagem profissional positiva), S… (estudante universitária e antiga explicanda do arguido entre o 8.º e o 12.º ano, abonou muito positivamente o arguido e as suas qualidades e competências profissionais), M… (estudante universitária e explicanda do arguido, afinou o seu diapasão pelo das testemunhas L.).
No que respeita à situação económico-financeira do arguido, relevaram-se as suas declarações em conjugação com o citado relatório social, sendo que no que tange com o seu registo criminal levámos em consideração o certificado de fls. 397.
A testemunha C… não trouxe nada de relevante à discussão, sendo que apenas interveio naquela qualidade dado que foi identificada no auto de notícia respeitante ao momento do falecimento da ofendida ... em 7 de Maio de 2013.
A filha da predita testemunha, P…, também ela identificada naquele auto, estudante, explicou ter sido colega de escola da ... em … e que esta lhe contou o que lhe havia sucedido no dia 28 de Março de 2012 no centro de explicações do arguido. Diga-se que o depoimento da testemunha foi prestado de forma muito atabalhoada, mormente porque referiu não ter a certeza se a ofendida lhe relatou os factos em análise por sms ou por contacto telefónico, dúvida essa que, obviamente, não é compreensível. Ficou a sensação de que não teve conhecimento dos factos por intermédio da ..., pelo que o seu depoimento, nessa parte, não nos mereceu credibilidade. Dizemos “nessa parte” dado que no que tange com a personalidade da ... a testemunha foi bastante mais assertiva, tendo caracterizado a ofendida como uma pessoa reservada mas que se abria depois de ganhar confiança com as pessoas, mais tendo asseverado que nunca lhe conheceu qualquer namorado enquanto foram colegas de escola.
Os factos não provados – que vêm alegados na contestação – estão em oposição com aqueles que se deram como assentes, daí que façam parte daquele elenco.”

4. Uma primeira forma de colocar em crise a decisão da matéria de facto em primeira instância consiste na alegação de um dos vícios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro notório na apreciação da prova.

Neste caso, também de conhecimento oficioso, o objecto de apreciação encontra-se bem delimitado: trata-se de analisar apenas a decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras normais de experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos, mesmo que constem do processo, nomeadamente ao conteúdo da prova oralmente produzida e gravada em audiência de julgamento.

Salvo melhor entendimento, o arguido recorrente não distingue os planos ou perspectivas, alude ao disposto no artigo 410.º n.º 2 alínea c) do Código do Processo Penal, invocando a verificação de erro notório na apreciação da prova, mas em nenhum lugar concretiza qualquer raciocínio de onde se possa concluir, com base apenas na leitura do texto da sentença à luz de regras normais de vivencia comum, que se verifica um desacerto ostensivo ou grosseiro na apreciação da prova e analisa sempre o problema como se tratasse de erro de julgamento, decorrente de uma errada apreciação e valoração das declarações da assistente e dos depoimentos das testemunhas Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2011, Rel. Cons. Pires da Graça, proc. nº 7266/08.6TBRG.G1.S1, “A apreciação da prova é um juízo valorativo, de raciocínio objectivo, de ponderação do que é revelado por cada prova produzida, e em conjugação com as demais, e eventual erro que daqui derive é um erro de julgamento na credibilidade de determinada prova, cuja impugnação é feita através do recurso em matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. O erro notório na apreciação da prova, é um conceito jurídico processual, técnico legal, que ao subsumir-se ao disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, apenas tem a ver com o texto da decisão recorrida, perspectivado na matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação (…)..

Sem necessidade de outros considerandos, improcede o recurso do arguido no plano dos vícios decisórios do artigo 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, devendo as questões suscitadas serem seguidamente apreciadas sob a perspectiva da verificação de erro de julgamento em matéria de facto.

5. Num plano distinto, este já de “verdadeiro recurso da decisão em matéria de facto”, a análise não se limita ao texto da sentença e envolve a apreciação da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento.

Como persistentemente se sublinha na doutrina e na jurisprudência, o recurso da decisão em matéria de facto não consiste num “novo” ou “segundo” julgamento e destina-se a uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, mas circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente. Para isso, o tribunal de recurso irá verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova especificados pelo recorrente e que este considera imporem decisão distinta.

Deve ainda assinalar-se que os fundamentos pelos quais o juiz do tribunal de primeira instância confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem sempre de um juízo de valoração efectuado com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, confere ao julgador em primeira instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.

Com efeito, na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação.

O recorrente impugna a decisão quanto a toda a matéria de facto provada que fundamentou a sua condenação como arguido (pontos 5 a 11 do elenco da matéria de facto provada da sentença recorrida e nas alíneas a), b) c) dos factos não provados) e questiona a apreciação da prova feita pelo tribunal no que diz respeito à valoração das declarações da assistente e dos depoimentos de testemunhas que transcreve parcialmente na motivação.

Os excertos das declarações e dos depoimentos que o recorrente transcreve na motivação do recurso de fls. 539 a 551 são as concretas provas em que o arguido se fundamenta e que este tribunal de recurso deve analisar, sem prejuízo de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (art.º 412.º n.ºs 3, 4 e 6 do Código do Processo Penal).

6. Não houve confissão, testemunho ou outro meio de comprovação imediata e directa dos eventos materiais constantes da pronúncia.

Porém, a prova segura dos factos relevantes pode também resultar de um raciocínio lógico e dedutivo com base em factos ou acontecimentos instrumentais ou circunstanciais, alcançados a partir de provas directas (testemunhais, periciais, documentais, etc.) e sob plena observância dos requisitos de validade do procedimento probatório, mediante a aplicação de regras gerais empíricas ou de máximas da experiência, ou seja de normas de comportamento humano extraídas a partir da generalização de casos semelhantes - ou com base em conhecimentos técnicos ou científicos, comummente aceites (artigos 124º a 127º do Código de Processo Penal e quanto à utilização de presunções como meios lógicos ou mentais para a descoberta dos factos, os artigos 349º e 351º do Código Civil).

A motivação da sentença recorrida, acima transcrita, contém uma pormenorizada explanação dos motivos da formação da convicção do tribunal, assente numa conjugação coerente de indícios seguros e consentâneos, extraídos das declarações da mãe da menor e dos testemunhos das pessoas que directamente contactaram com a vítima nos momentos que se seguiram aos factos em investigação e no depoimento de uma outra pessoa que revelou ter sido vítima de factos semelhantes aos da pronúncia destes autos.

Neste âmbito, o arguido restringe a argumentação da impugnação da decisão em matéria de facto a questões referentes às características do local onde os factos ocorreram, invocando, em síntese, que o centro de explicações ocupava um espaço exíguo, de permanente acesso a explicadores e alunos e onde tudo o que se dizia nas salas era audível no exterior.

Segundo elementares considerações extraídas de situações semelhantes da vida comum, não é possível aceitar que a actividade de ensino e de estudo num centro de explicações decorra normalmente num local onde as vozes de alunos e de explicadores possam ser ouvidas de umas salas para as outras. Todos sabemos que os locais destinados a leitura e estudo, como os “centros de explicações” funcionam normalmente em locais vedados com portas que se fecham no decorrer das aulas. Não é por isso verosímil que as portas da sala onde o arguido dava as explicações se encontrassem sempre abertas, permitindo que todos ouvissem o que era dito nas outras salas, assim dificultando seriamente ou impedindo mesmo o estudo e a aprendizagem pelos alunos.

Os excertos das declarações da assistente … e dos depoimentos das testemunhas …, …, …, …, …, …, permitem concluir que o centro de explicações era um espaço “relativamente pequeno”, com três salas contíguas, que aí circulavam normalmente alunos, explicadores e mesmo outras pessoas, que as portas estavam por vezes fechadas, em outras ocasiões “entreabertas ou mesmo totalmente abertas, que por vezes se ouvia o que se passava na outra sala.

Em nossa apreciação, os excertos transcritos pelos recorrente não infirmam a razoabilidade da argumentação exposta na motivação da sentença, nem de forma alguma impõem a conclusão que o local onde os factos ocorreram constitui um “espaço aberto”, ou que na data dos factos se encontravam no centro de explicações inúmeros alunos e a trabalhar mais dois explicadores ou que a porta da sala onde ocorreram os factos aqui relevantes nunca se encontrava fechada, como pretende ver provado o recorrente.

A circunstância de ser viável a entrada a todo o tempo na sala das explicações não afasta a plausibilidade e a verosimilhança dos factos provados. Tanto mais quanto tudo se passou de forma repentina, num espaço de tempo muito curto. Também serão irrelevantes os argumentos relacionados com o isolamento sonoro, se aceitarmos, como podemos razoavelmente aceitar, que a vitima não ofereceu qualquer resistência, nem esboçou qualquer grito ou choro.

Quanto ao princípio in dubio pro reo:

Segundo este princípio fundamental do direito processual penal, o tribunal deve sempre decidir a favor do arguido se não se encontrar convencido da verdade ou falsidade de um facto, isto é, se permanecer em estado de dúvida sobre a realidade do mesmo (numa situação de non liquet). Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de 2011, “Se a acusação, e em última instância o próprio juiz, não conseguem reunir prova da culpabilidade do arguido, a ponto de o tribunal ficar numa situação de dúvida, então impor-se-á a absolvição. O tribunal não pode decidir-se por um non liquet: ou absolve ou condena. As limitações com que se debateu o funcionamento do ius puniendi não poderão prejudicar o arguido. Só que a situação de dúvida tem que se revelar de algum modo, e designadamente através da sentença. A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido. (processo 117/08.3PEFUN.L1.S1 disponível in www.dgsi.pt )

Ou seja, para que se coloque a questão de eventual aplicação do in dubio pro reo, torna-se necessário que o tribunal se encontre numa situação de dúvida e só existe violação do princípio se, perante uma situação assumidamente de dúvida, se decida sem ser a favor do arguido.

Em lado algum transparece que o tribunal recorrido tenha enfrentado uma situação de dúvida sobre a ocorrência dos factos que julgou provados.

Com efeito, o tribunal de primeira instância valorou a prova e decidiu, para lá de uma dúvida razoável, optando pela conjugação de determinados elementos em detrimento de outros, seguindo uma raciocínio lógico e obtendo uma solução perfeitamente plausível.

Examinadas as transcrições feitas na motivação, não encontramos no processo de formação da convicção do tribunal recorrido qualquer erro de racionalidade ou a infracção de regras de experiência comum que nos imponha uma decisão diferente, nem que justifique a aplicação do princípio in dubio pro reo, devendo por isso manter-se a decisão recorrida em matéria de facto.

7. Cumpre seguidamente apreciar o recurso no segmento referente ao enquadramento jurídico-penal dos factos provados.

Afigura-se-nos inquestionável que só pode ocorrer o preenchimento dos elementos objectivos do tipo de crime de actos sexuais com adolescentes do artigo 173.º do Código Penal se a vítima tiver uma idade igual ou superior a 14, mas não superior a 16 anos.

A ofendida ... nasceu em 28 de Outubro de 1995 e já tinha ultrapassado os 16 anos de idade em 28 de Março de 2012, quando foi vítima dos factos destes autos.

Liminarmente afastada a hipótese de subsunção dos factos no tipo de crime de actos sexuais com adolescentes, cumpre apreciar do eventual preenchimento do tipo de crime de coacção sexual.

Na descrição constante do artigo 163.º n .º1 do Código Penal, na redacção então vigente, o tipo objectivo da coacção sexual consiste no constrangimento de uma outra pessoa a sofrer ou a praticar com o agente ou terceiro acto sexual de relevo, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de para esse fim a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.

A doutrina e a jurisprudência coincidem no entendimento de que acto sexual de relevo será o acto dotado de conotação sexual objectiva identificável por um observador externo, que seja abstractamente idóneo à satisfação de instintos sexuais, e que, por isso mesmo, seja susceptível de vir a condicionar a liberdade e autonomia sexual da vítima. Aqui se incluem aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo,, sendo por isso de excluir do âmbito de protecção os actos insignificantes ou bagatelares, e os que não representem entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima, v.g. actos que, embora pesados ou em si significantes por impróprios, desonestos, da mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima ... Ferreira Leite, A tutela Penal da Liberdade Sexual, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 1, Janeiro-Março 2011, pp. 71-73, Simas Santos e Leal Henriques in Código Penal, II, pág. 368, Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense, I, pág. 449, Maria do Carmo Silva Dias, “Repercussões da Lei n.º 59/2007, de 4/9 nos crimes contra a liberdade sexual, Revista do CEJ, 1.º Semestre de 2008, Número 8, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-12-2010 Joaquim Gomes proc. 14/08.2TACDR.P1, na Colectânea de Jurisprudência).

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Como bem se exemplifica no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05-06-2013, acto sexual de relevo, será todo aquele que tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas, como é manifestamente o caso de acariciar ou apalpar os seios, nádegas, coxas e boca (proc 204/10.8TASEI.C1 Maria Pilar de Oliveira, in www.dgsi.pt ).

O comportamento do arguido nos termos descritos nos pontos seis a nove da matéria de facto provada são idóneos à satisfação de instintos sexuais, constituem uma ofensa séria à intimidade e são susceptíveis de condicionarem a liberdade e autonomia sexual da vítima ..., pelo que se devem considerar como actos sexuais de relevo

Resta saber da verificação do requisito referente aos meios típicos de constrangimento da vítima.

Como salienta Figueiredo Dias, é indispensável estabelecer uma concreta relação de meio/fim entre a conduta violenta e o acto sexual. Assim, não basta para o preenchimento do tipo que a vítima tenha sido constrangida a sofrer ou a praticar acto sexual de relevo, mas é indispensável que a coacção ou constrangimento tenham ocorrido através da utilização de um dos meios típicos previstos no preceito incriminador. Segundo escreve este autor, “actos sexuais súbitos e inesperados praticados sem ou contra a vontade da vítima, mas aos quais não preexistiu a utilização de um daqueles meios de coacção, não integram o tipo objectivo de ilícito. (… ) «Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso indispensável que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso nos termos conhecidos da doutrina da adequação, a vencer a resistência efectiva ou esperada da vítima (...). “Decisivo é em todo o caso que a violência tenha afectado de forma relevante a liberdade e determinação sexual da vítima” in Comentário Conimbricense, I, pág. 453-454..

Na situação concreta destes autos, comprova-se a ocorrência de actos súbitos e inesperados do arguido perante a sua explicanda, que se iniciam com o beijo na boca e prosseguem com o passar das mãos nas costas, braços e pernas e o beijo no pescoço da vítima; Seguidamente sabe-se que o arguido encostou a ofendida à parede, tendo voltado a beijá-la na boca, tocado na zona vaginal por cima da roupa, e por fim pegado na mão da ofendida que encostou por cima da roupa aos seus órgãos genitais.

Não há qualquer dúvida que a ofendida sofreu indesejados contactos de natureza sexual.

Porém, não basta a surpresa ou o inusitado cometimento de factos já objecto de censura enquanto actos sexuais de relevo, mas é essencial que se possa concluir pela aptidão do acto ou dos actos também cometidos pelo arguido para constranger, ou seja, para coagir a outra pessoa a sofrer ou a praticar o acto sexual de relevo.

Neste sentido, para que o comportamento do arguido ao “encostar à parede” a ofendida integrasse o conceito de violência como elemento objectivo do crime de coacção sexual, teria de constituir uma atitude que excedesse os movimentos necessários à execução dos actos sexuais de relevo.

Neste caso, não sabemos com que concretos movimentos e intensidade ocorreu essa acção e a dúvida não poderá deixar de beneficiar o arguido, no sentido de afastar a relevância para a incriminação. Assim sendo, não conseguimos descortinar uma forma de comportamento violento do arguido que seja, a um tempo, preexistente ou contemporâneo dos actos sexuais de relevo e idóneo ou apto para vencer a resistência da vítima.

Concluímos assim que não se comprova a verificação da violência enquanto meio típico da coacção sexual.

Porém, o comportamento do arguido preenche todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de importunação sexual, previsto e punido no artigo 170.º do Código Penal.

Tendo havido em tempo comunicação ao arguido de eventual alteração da qualificação jurídica (despacho de fls. 553 e 554), deve este tribunal de recurso decidir em conformidade, prosseguindo-se com a escolha e determinação da medida concreta da pena.

8. Ao crime cometido pelo arguido corresponde uma pena de prisão de um mês a um ano ou uma pena de multa de dez a cento e vinte dias.

As particulares preocupações de defesa do ordenamento jurídico e de protecção dos bens jurídicos neste tipo de crime não permitem a opção por uma pena de multa.

Como se escreveu na decisão recorrida, os elementos com interesse para a escolha e dosimetria da pena são os seguintes (transcrição):

“a) O grau de ilicitude que os factos denunciam é muito elevado, não só pela repugnância objectiva que os actos praticados pelo arguido suscitam mas também porque o arguido se aproveitou da natureza reservada, tímida e inocente da ofendida para prosseguir os seus intentos, ao que acresce que a relação quase pupilar que existia entre aquele e a ofendida ... por força da qualidade em que aquele estava investido (de explicador da disciplina de matemática, o que vinha sucedendo desde há cerca de 5 anos) e, consequentemente, a confiança que constituía a argamassa dessa relação, foram destruídos por mor dos comportamentos inaceitáveis do arguido (relação que aquele tinha o dever de preservar a todo o custo). Não se pode outrossim olvidar que o arguido praticou os factos num local que deveria ser sagrado para si na qualidade de educador especializado.

b) A culpa do agente é elevada – agiu com dolo directo.

c) No plano da prevenção especial, há a assinalar que o arguido não tem antecedentes criminais, está bem inserido socialmente (e tem um relacionamento marital estável) e é pessoa respeitada, sendo-lhe reconhecida competência no âmbito da actividade que desenvolve profissionalmente. Os factos provados evidenciam tratar-se de uma pessoa empreendedora e trabalhadora.

Apesar disso, a sua conduta revela aspectos negativos da sua personalidade e uma falta de noção completa acerca dos seus deveres enquanto educador profissional (podemos classifica-lo dessa forma) e igualmente enquanto pessoa, sendo certo ainda que não assumiu a autoria dos factos e não teve uma postura de colaboração com o Tribunal, isto na medida em que decidiu prestar declarações.

d) As exigências de prevenção geral são muito elevadas tendo em conta o grau de repugnância que este tipo de criminalidade provoca na comunidade, ainda mais tendo em conta que nos encontramos num meio pequeno em que factos do jaez daqueles que estão em crise têm um eco redobrado nessas circunstâncias.

Há que ter em conta as finalidades da prevenção, quer geral, quer especial, incutindo nos cidadãos a convicção que comportamentos deste jaez são punidos, assim como há que dissuadir o arguido para que não volte a prevaricar.

Sopesando em conjunto as enunciadas circunstâncias, entendemos justo e equitativo fixar a pena concreta em dez meses de prisão.

Perante a gravidade dos factos cometidos pelo arguido e a ausência de reconhecimento de censurabilidade da conduta, ter-se-á de concluir que agora confinar a reacção penal a uma medida de prestação de trabalho ou a substituição da pena de prisão não superior a um ano por multa sempre seria manifestamente insuficiente, quer para a protecção dos bens jurídicos, quer para servir de advertência individual.

Os elementos disponíveis referentes ao contexto familiar e inserção social permitem ainda assim ter como plausível que a ameaça de cumprimento efectivo de uma pena de prisão constitua factor suficiente para demover o arguido de voltar a delinquir. Afigura-se-nos perfeitamente ajustada a opção do tribunal recorrido em subordinar a suspensão de execução da pena a regime de prova.

Concluímos assim que o arguido deve ser condenado na pena de dez meses de prisão, de execução suspensa pelo período de um ano mediante regime de prova a delinear oportunamente.

9. Na data da prática dos factos, estabelecia a alínea b) do artigo 179.º do Código Penal que “Quem for condenado por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pela agente, ser: b) Proibido do exercício de profissão, função ou actividade que impliquem ter menores sob sua responsabilidade, educação, tratamento ou vigilância; por um período de dois a quinze anos“.

Na redacção do Código Penal hoje vigente, decorrente da Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto, a norma do artigo 179.º encontra-se revogada e, em substituição, preceitua o artigo 69.º B desse compêndio normativo que “2 – É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.”

Salvo melhor entendimento, a pessoa que de uma forma regular exerce a actividade conhecida vulgarmente como de explicador de uma disciplina ou matéria compreendida no programa oficial de estudo, tem perante o explicando uma responsabilidade de educação muito próxima ou mesmo idêntica à do professor que lecciona a respectiva disciplina. Deve por isso essa actividade subsumir-se na previsão da anterior redacção do artigo 179.º do Código Penal. A disposição hoje vigente implicaria necessariamente uma medida da pena acessória superior, pelo que não se justifica a aplicação da lei nova.

Tendo em conta a gravidade dos factos cometidos, a ausência de reconhecimento de censurabilidade da conduta e o particular risco de cometimento de factos de idêntica natureza, justifica-se a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição do exercício de profissão, função ou actividade que impliquem ter menores sob sua responsabilidade, educação, tratamento ou vigilância, nos termos do artigo 179.º, alínea b), do Código Penal, pelo período fixado na sentença recorrida, ou seja, por três anos.

10. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, em condenar o arguido Nuno D. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de importunação sexual, previsto e punido no artigo 170.º do Código Penal, na pena de dez meses de prisão, de execução suspensa pelo período de um ano, mediante regime de prova e na pena acessória de proibição do exercício de qualquer profissão, função ou actividade que impliquem ter menores sob sua responsabilidade, educação, tratamento ou vigilância, pelo período de três anos.

No mais, mantêm a decisão recorrida.

Sem tributação.

Guimarães, 2 de Maio de 2016.

Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.