Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
353/11.5GDGMR.G1
Relator: FILIPE MELO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RCURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – O crime de violência doméstica requere a prática de atos, isolados ou reiterados, que possam de modo relevante colocar em risco a saúde do ofendido, tornando-o vítima de um comportamento incompatível com a sua dignidade e liberdade dentro do espaço de intimidade da vida em comum.
II – Não é suficiente para integrar tal crime a prova de que o arguido, em determinado dia, praticou uma ofensa corporal e uma injúria sobre a sua mulher e que, cerca de cinco meses depois, cometeu outra injúria, não se tendo provado, nomeadamente, que “pouco tempo depois do casamento começaram a ser constantes as cenas de violência perpetradas pelo arguido”, que este “consumia bebidas alcoólicas em excesso” e que “sempre que tal acontecia insultava, ameaçava e agredia fisicamente a queixosa”.
III – O crime de violência doméstica está numa relação de especialidade com o crime de ofensas corporais, pelo que a condenação por este crime, relativamente a factos que constavam da acusação, não importa qualquer alteração de factos, substancial ou não substancial.
Decisão Texto Integral: Após conferência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

No 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, após julgamento, foi decidido:
1. Condeno o arguido Agostinho M... pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois anos) de prisão, cuja execução se suspende pelo mesmo período, com a condição, no prazo de 12 meses a contar do trânsito em julgado da presente decisão, entregar à Delegação de Braga da APAV a quantia de € 750,00, devendo comprovar no processo e naquele prazo tal entrega.

Inconformado, o arguido Agostinho M... recorre desta decisão, pugnando pela sua absolvição, pois “os factos provados – e as circunstâncias em que foram praticados – não são reveladores de qualquer especial gravidade ou crueldade por parte do arguido, sendo certo que não ficou demonstrado sequer que este tivesse especial ascendente sobre a ofendida, que à data da audiência de discussão e julgamento, como decorre da motivação, já residia novamente com o arguido há cerca de 6 meses, sem acusar quaisquer desentendimentos após o reenlace”.
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A decisão recorrida assentou na seguinte matéria de facto:
1) O arguido é casado com Maria M... há cerca de três anos;
2) O casal residia na Rua D..., em Moreira de Cónegos, Guimarães, tendo a ofendida saído de casa em 05/08/2011, devido aos insultos que ele lhe dirigia;
3) No dia 19 de Agosto de 2011, cerca das 15h00m, quando a Maria M... se deslocou à residência do casal para ir buscar os seus bens pessoais, o arguido começou a gritar e a discutir com ela, apodando-a repetidamente de “puta, vaca, parola”;
4) No decurso dessa discussão, o arguido aproximou-se da ofendida, que naquele momento transportava um faqueiro, e atirou-o para o chão;
5) De seguida, o arguido agarrou a ofendida por um braço e empurrou-a, caindo ao chão, tendo sido separados por Sérgio P... e Sandra D..., genro e filha da ofendida;
6) Submetida a ofendida a perícia médico-legal, em 25/08/11, apresentava as seguintes lesões: equimose extensa na região malar esquerda e edema local, e uma ligeira escoriação na face lateral esquerda da cervical, para além de dores, que demandaram 15 dias para a sua cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional;
7) No dia 06/09/11, submetida a ofendida a perícia médico-legal apresentava no olho direito, com uma pequena equimose e edema malar; no braço direito, com uma equimose larga, circular, com dimensão de 4cmx1cm na face anterior do terço médio, uma equimose localizada na face interna com dimensão de 10cmx4cm; no braço esquerdo, com três equimoses com cerca de 2cm cada uma na face póstero-interna dos terços médio e inferior e também na face anterior interna do cotovelo, esta com 4cm;
8) No dia 10/11/11, submetida a ofendida a perícia médico-legal apresentava um edema ligeiro e equimose na face anterior da articulação metacarpofalângica do segundo dedo e dor à imobilização na mão esquerda;
9) No dia 04 de Janeiro de 2012, o arguido dirigiu-se à residência onde a Maria M... passou a viver a partir de 05/08/2011, sita na Rua C..., Aves, e do exterior da habitação, em tom alto e irado, começou a insultar a ofendida, apodando-a repetidamente de “vaca” e “puta”;
10) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, conseguido e reiterado, de molestar a integridade física da sua esposa, produzindo-lhe as lesões e dores do tipo dos verificados, bem como de a afectar no seu bem-estar psíquico, designadamente, quando lhe dirigiu as expressões acima referidas, não obstante saber que o seu comportamento desencadeava medo na assistente, limitava a sua auto-determinação pessoal e afectava a sua dignidade pessoal;
11) Apesar de estar bem ciente disso, o arguido não se absteve de o fazer, tendo querido agir da forma como o fez, consciente de que violava os deveres conjugais a que estava obrigado pelo matrimónio, designadamente o dever de respeito;
12) Ao proceder da forma acima descrita, com carácter de regularidade, bem sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
1) O arguido já sofreu uma condenação, no âmbito do Proc. 332/01.0GDGMR – 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, pelo crime de detenção ilegal de arma, praticado em 16/09/01, condenado, por decisão de 15/07/08, transitada em 15/09/08, na pena de 70 dias de multa.
2.2. Factos não provados
Não se provou:
a) Que o casamento do arguido e da ofendida sempre foi marcado por desentendimentos entre o casal, e pouco tempo depois do casamento, começaram a ser constantes as cenas de violência perpetradas pelo arguido, que o arguido consumia bebidas alcoólicas em excesso, pelo que, sempre que tal acontecia, insultava, ameaçava e agredia fisicamente a ofendida;
b) Que o arguido, no dia 19 de Agosto de 2011, cerca das 15h00m, quando a Maria M... se deslocou à residência do casal, pegou numa faca e apontou-a na direcção da ofendida, ao mesmo tempo que lhe deitou as mãos ao pescoço, apertando-o com força, só tendo parado mercê da intervenção de Sandra D... e Sérgio P..., filha e genro da ofendida;
c) Que no dia 10 de Setembro de 2011, cerca das 10h00m, quando a ofendida seguia a pé na Avenida dos Podrais, em Lordelo, nesta comarca, de repente e sem que nada o fizesse esperar, surgiu o arguido conduzindo o seu veículo automóvel que, de imediato, o atravessou e imobilizou à frente da ofendida, dizendo-lhe que tinha de o acompanhar até à residência do casal;
d) Que perante a recusa da ofendida, o arguido saiu do veículo e, com o intuito de a obrigar a entrar na viatura, agarrou na bolsa que aquela levava no braço e puxou-a com força, acabando por rebentar as alças;
e) Que o arguido, persistindo naquele seu propósito de obrigar a Maria M... a acompanhá-lo e face à resistência por ela oferecida, a agarrou pelos braços e lhe desferiu várias bofetadas e murros na face, ao mesmo tempo que lhe exigia, aos berros, que fosse com ele para casa, só tendo parado graças à intervenção de alguns transeuntes que por ali passavam e se aproximaram em auxílio da ofendida;
f) Que no dia 09 de Novembro de 2011, cerca das 17h30m, quando a ofendida seguia a pé na cidade de Guimarães, de repente e sem que nada o fizesse esperar, surgiu o arguido que, de imediato, se aproximou dela e lhe desferiu vários murros, atingindo-a na cabeça e na mão esquerda;
g) Que no dia 04 de Janeiro de 2012, quando o arguido se dirigiu à residência onde a Maria M... passou a viver a partir de 05/08/2011, sita na Rua C..., entrada 14, 1.º esquerdo, Aves, o arguido se colocou em fuga ao aperceber-se da chegada do veículo da polícia ao local.

O Ministério Público, na 1ª instância, defende o julgado e, nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto entende em sentido contrário, ou seja, aderindo, em parte, ao recurso do arguido, pois entende que não se verificam maus-tratos que integrem o crime imputado, devendo convolar-se para os crimes autónomos praticados e com condenação apenas pelas ofensas, para as quais o Ministério Público tem legitimidade.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
A fundamentação jurídica levada a cabo pela 1ª instância foi a seguinte:
Ao arguido vem imputada a prática do crime de violência doméstica, nos termos previstos pelo art.º 152.º, n.º. 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal, que dispõe que quem infligir ao cônjuge maus tratos físicos ou psíquicos é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
Acompanhando a progressiva consciencialização ético-social da gravidade individual e social dos comportamentos violentos perpetrados no seio da família e abandonando a concepção tradicionalmente prevalecente do lar conjugal como um espaço tendencialmente auto-regulador da actuação dos seus membros e subtraído, por natureza, à intervenção do direito penal, o legislador assumiu o inequívoco propósito de prevenir e reprimir as formas da chamada violência doméstica através da especial tutela que o direito penal tem por função dispensar.
Na génese da incriminação da conduta supra descrita, está, assim, não tanto uma preocupação de preservação da comunidade, familiar ou conjugal, mas sim, e decisivamente, de tutela da pessoa humana na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade.
Daí que, directamente abrangida pelo âmbito de protecção dispensada se encontre, mais do que a integridade física propriamente dita, a saúde de cada pessoa em si mesma e enquanto tal, abrangendo o bem estar físico, psíquico e mental do indivíduo, enquanto elemento essencial e indispensável à “mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade” (Figueiredo Dias, Direito Penal, questões fundamentais e doutrina geral do crime, 1996, pg.63).
Esta mais valia axiológica inerente ao bem jurídico tutelado explica, de resto, que a respectiva relevância penal encontre, desde logo, referência expressa na ordem constitucional dos direitos e deveres fundamentais.
Com efeito, no art.º 26.º da Const. Rep. Portuguesa a todos os cidadãos é reconhecido o direito à respectiva integridade pessoal, tanto num plano físico como numa dimensão moral. Trata-se da tutela constitucional de um direito organicamente ligado à defesa da pessoa individualmente considerada, cuja proclamação faz resultar para cada um de nós a legítima expectativa de, ao conformar-se e dispor de si mesmo nas múltiplas formas de interacção social, não vir a ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CPR anotada, pg.177).
Este direito não é limitado, nem limitável, pelos vínculos resultantes das relações familiares, maxime das que advêm para os cônjuges do casamento, bem como da união de facto.
E é a evidência do que ficou dito, por demais sublinhada no contexto das sociedades modernas, que converte em objecto de consensual reprovação quaisquer actos, omissões ou condutas que sirvam para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, directa ou indirectamente, por meio de enganos, ameaças, coacção ou qualquer outro meio, a qualquer mulher, tendo por objectivo e como efeito intimidá-la, puni-la, humilhá-la ou simplesmente mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental ou moral ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais.
Não obstante a possível existência de uma zona de incidência comum, o crime de violência doméstica distingue-se, com autonomia, dos crimes de ofensas à integridade física, ameaça e de injúrias, em qualquer uma das diversas tipificações consagradas na lei penal.
São essencialmente os seguintes os elementos diferenciadores a considerar:
O crime de violência doméstica é, desde logo, um crime específico, no sentido em que só pode ser levado a cabo por pessoa que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo: no caso, uma relação de coabitação conjugal, na qual, apesar de teoricamente igualitária, poderá surpreender-se uma efectiva subordinação existencial.
No que toca ao elemento subjectivo do tipo legal de crime, importa salientar que se trata de um delito doloso, uma vez que se exige que o agente tenha actuado com dolo, enquanto elemento subjectivo geral da ilicitude (conhecimento da factualidade típica e da vontade de realização do tipo legal de crime), em qualquer das suas formas (directo, necessário ou eventual), em conformidade com o disposto no art.º 14.º do Cód. Penal.
Analisado o tipo legal convocado, detenhamo-nos, agora, com a caracterização das condutas em presença.
Estamos, sem dúvida, perante um actuação continuada do arguido, nomeadamente quanto a palavras injuriosas dirigidas à ofendida, as quais, considerado o respectivo valor de uso, apreciado no contexto situacional e relacional em que foram proferidas, se mostram susceptíveis de amesquinhar a pessoa da visada, humilhando-a perante si própria e rebaixando-a na sua condição de mulher, quer ainda quanto às agressões, valendo-se da sua supremacia de género e física.
Estamos ainda, perante condutas com cariz ofensivo da integridade física e psicológica da ofendida que provocaram na mesma, para além de dores, vergonha e humilhação.
Trata-se, em suma, de sucessivas e formas de maus tratos físicos e, fundamentalmente, psíquicos que, quando globalmente avaliadas, conduzem, nos termos acima expostos, à afirmação da prática de um crime p. e p. pelo art.º 152.º do Cód. Penal, já que, nas referidas ocasiões, agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito conseguido de amedrontar e atingir a ofendida na sua honra e consideração e, desta forma, a humilhar e espezinhar, causando-lhe angústia e sofrimento psicológico, bem como de a atingir na sua integridade física, comportamentos que ocorreram, alguns deles, na residência do casal.

Inconformado, o arguido Agostinho M... recorre desta decisão, pugnando pela sua absolvição, pois “os factos provados – e as circunstâncias em que foram praticados – não são reveladores de qualquer especial gravidade ou crueldade por parte do arguido, sendo certo que não ficou demonstrado sequer que este tivesse especial ascendente sobre a ofendida, que à data da audiência de discussão e julgamento, como decorre da motivação, já residia novamente com o arguido há cerca de 6 meses, sem acusar quaisquer desentendimentos após o reenlace”.

Esta posição do arguido é parcialmente secundada, como também já dito, pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, Ribeiro Soares, cujo parecer, pela sua suficiência e mérito, aqui se transcreve e se seguirá integralmente.
Diz textualmente:
«A nossa posição sobre o mérito do recurso traduz-se em acompanhar, no essencial, a posição jurídica vertida pelo arguido recorrente. Cremos que a factualidade dada como provada e que não foi posta em causa por qualquer dos sujeitos processuais, efectivamente, não pode ser qualificada na previsão do art. 152, n.º1, al. a) e n.º 2 do CPenal.
Dispõe esse normativo revisto pela Lei n.º 59/2007:
“1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. (…)”.
O conceito de maus-tratos físicos ou psíquicos, a que se refere a disposição incriminadora agora referida, é determinado por Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, tomo I, pág. 333, nos seguintes termos: “… maus-tratos físicos (isto é, ofensas corporais simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, etc.)...”.
Antes da Lei nº 59/07 de 4/9, a maior parte da jurisprudência e da doutrina ao relevar a distinção entre o então denominado crime de maus tratos e os outros ilícitos criminais ofensivos de bens jurídicos pessoais – ofensas corporais, injúria e ameaças – evidenciava o carácter reiterado daqueles.
Tal orientação interpretativa deixou de ter consistência perante a nova tipificação do crime de violência doméstica, introduzida pela citada Lei, por via da expressão “de modo reiterado ou não”, que passou a constar da parte inicial do citado nº 1 do art. 152º do CPenal e que não existia no texto legislativo anterior.
O critério distintivo entre o crime de violência doméstica e outros ilícitos criminais atentatórios da integridade física, da honra, da liberdade ou de outros valores atinentes à esfera de outrem deixou, então, se ser aquela sobredita circunstância.
Recorde-se o que se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa, de 02/03/2011, proferido no processo nº 938/08.7PCCSS.L1 e relatado pela desembargadora Dra. Conceição Gonçalves, com referência ao tipo de crime de violência doméstica:
“No essencial, o ilícito em causa continua a punir, em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, ainda que sem coabitação, esclarecendo-se agora expressamente que tal actuação pode ser "de modo reiterado ou não", incluindo-se nos maus tratos "castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais".
Conforme entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico, podemos dizer que nada se alterou, sendo os bens jurídicos protegidos a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade humana, podendo este bem jurídico ser lesado por qualquer comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge. Deste modo, e nas palavras de Plácido Conde Fernandes (In "Violência Doméstica", Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1° semestre de 2008, n° 8, p. 305). "O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratastes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos". Também Taipa de Carvalho, em anotação a este artigo (In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 1, Coimbra Editora, pág.132). refere que a ratio do art° 152° do CP não está "na protecção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana", acrescentando que "o bem jurídico protegido por este crime é a saúde -bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental".
Podemos assim dizer que preenche este crime a prática de qualquer acto de violência que afecte a saúde, física, psíquica ou emocional, do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.
Este tem sido o sentido da jurisprudência dos nosso tribunais, considerando que o crime pode realizar-se através de uma pluralidade de actos, ou através de um único acto, que atinja a saúde física, psíquica ou moral do cônjuge e afecte a sua dignidade pessoal. No fundo, não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos, mas sim os actos, isolados ou reiterados, que apreciados á luz da vida em comum possam de modo relevante colocar em risco a saúde do cônjuge, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro daquele espaço de intimidade”.(sublinhado nosso)
Duma forma bem mais precisa, escreveu-se no acórdão desta Relação, de 15/10/2012, proc. 639/08.6GBFLG.G1, sendo dele relator o desembargador Fernando Monterroso:
“III) A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a acção apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.
III) Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima”.
Visto o caso concreto que agora nos preocupa, resulta bem claro que em causa estão 3 precisas e bem demarcadas condutas, demarcação estabelecida com as referências de temporal, de lugar e modo. Há uma ofensa corporal e uma injúria no dia 11/08/2001 (há nítido lapso, pois os factos passaram-se em 19/08/2011) na casa do casal, em Moreira de Cónegos, e há uma injúria, a 04/01/2012, na vila das Aves. É o que decorre da factualidade dada como provada e que, insistindo, não foi posta em causa.
Não há factos provados que, “apreciados à luz da vida em comum” inculquem a verificação de maus tratos infligidos à vítima pelo arguido, que este tenha ao ofender a integridade física e honra de seu cônjuge, agido com humilhação, desprezo ou especial desconsideração desta, afinal factos que revelem uma intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que sejam suficientes para lesar o bem jurídico protegido, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
E assim sendo, porque não há factos que conduzam a esse conclusão, terá de se proceder a uma convolução, fazendo desaparecer a relação de especialidade existente entre os crimes em concurso.
Como ensina Pinto de Albuquerque, “O crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, entre outros, em que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes. Tratando-se de crimes puníveis com pena mais grave do que a prisão até 5 anos, a violência doméstica encontra-se numa relação de subsidiariedade expressa (“se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”) – in Comentário do Código Penal, cit., págs. 406-407, anotações 19 e 20.
Em causa estão, pois, dois crimes de injúrias, mas cuja apreciação não pode ser concretizada porque, sendo eles de natureza particular, a queixosa não se constituiu assistente no processo.
Como em causa está, também, um crime de ofensas à integridade física simples. E aqui a legitimidade para o exercício da acção penal é total porque a queixosa, sendo um crime de natureza semi-pública, apresentou, no tempo legal, a sua denúncia – vs. fls. 84 e verso.
Nada há, pois, que impeça a apreciação pelo tribunal de recurso deste crime cujo bem jurídico já se encontra integrado no de violência doméstica, nos termos atrás referidos.
Esta situação não configura uma efectiva alteração, uma modificação em relação ao thema decidendum.
Inequivocamente, desenha-se, é certo, uma alteração à qualificação jurídica dos factos, havendo que fazer apelo, então, ao disposto no art. 358 do CPPenal. Os factos considerados provados e que integram o crime de ofensas à integridade física simples representam um minus relativamente ao constante da acusação - neste sentido o acórdão da Relação do Porto de 28-3-2007,sendo relatora a desembargadora Élia São Pedro.
Estando-se perante uma alteração não substancial dos factos, urge apurar se foi dado cumprimento, então, ao disposto no citado art. 358.
Não foi dado cumprimento, nem necessitaria de o ser pois que o arguido, quanto a tais factos, já sobre eles se pronunciou, já exerceu plenamente o seu direito de defesa, pois tais factos dados como provados integrarem um todo do qual é então uma parte. E como escreveu na sua contestação – vd. fls. 137, “O arguido não praticou os factos constantes da douta acusação pública produzida”.
Deve, então, o arguido ser absolvido do crime de violência doméstica, mas ser apenas condenado, por via da alteração não substancial dos factos, como autor dum crime de ofensas à integridade física simples».

Como se viu, parte dos factos da acusação não se provaram e seria essencialmente da demonstração da sua verificação, coadjuvada pelos provados, que nos permitiriam concluir pela existência do crime de que o arguido vinha acusado.
Mas não se provou, além do mais, que
-Que o casamento do arguido e da ofendida sempre foi marcado por desentendimentos entre o casal, e pouco tempo depois do casamento, começaram a ser constantes as cenas de violência perpetradas pelo arguido, que o arguido consumia bebidas alcoólicas em excesso, pelo que, sempre que tal acontecia, insultava, ameaçava e agredia fisicamente a ofendida;
-Que o arguido, no dia 19 de Agosto de 2011, cerca das 15h00m, quando a Maria M... se deslocou à residência do casal, pegou numa faca e apontou-a na direcção da ofendida, ao mesmo tempo que lhe deitou as mãos ao pescoço, apertando-o com força, só tendo parado mercê da intervenção de Sandra D... e Sérgio P..., filha e genro da ofendida;
Que no dia 10 de Setembro de 2011, cerca das 10h00m, quando a ofendida seguia a pé na Avenida dos Podrais, em Lordelo, nesta comarca, de repente e sem que nada o fizesse esperar, surgiu o arguido conduzindo o seu veículo automóvel que, de imediato, o atravessou e imobilizou à frente da ofendida, dizendo-lhe que tinha de o acompanhar até à residência do casal;que perante a recusa da ofendida, o arguido saiu do veículo e, com o intuito de a obrigar a entrar na viatura, agarrou na bolsa que aquela levava no braço e puxou-a com força, acabando por rebentar as alças;que o arguido, persistindo naquele seu propósito de obrigar a Maria M... a acompanhá-lo e face à resistência por ela oferecida, a agarrou pelos braços e lhe desferiu várias bofetadas e murros na face, ao mesmo tempo que lhe exigia, aos berros, que fosse com ele para casa, só tendo parado graças à intervenção de alguns transeuntes que por ali passavam e se aproximaram em auxílio da ofendida;
-Que no dia 09 de Novembro de 2011, cerca das 17h30m, quando a ofendida seguia a pé na cidade de Guimarães, de repente e sem que nada o fizesse esperar, surgiu o arguido que, de imediato, se aproximou dela e lhe desferiu vários murros, atingindo-a na cabeça e na mão esquerda;
-Que no dia 04 de Janeiro de 2012, quando o arguido se dirigiu à residência onde a Maria M... passou a viver a partir de 05/08/2011, sita na Rua C..., entrada 14, 1.º esquerdo, Aves, o arguido se colocou em fuga ao aperceber-se da chegada do veículo da polícia ao local.
E assim, face á singeleza da factualidade aprovada e apenas desta , o douto parecer está pleno de fundamentação e de razão, pois da objectividade apurada apenas se pode ter o arguido como autor material dum crime de ofensas à integridade física simples previsto e punível simples p. e p. pelo art. 143°, n.° 1 do CPenal e dois de injúrias, sendo que quanto a estes últimos, sendo eles de natureza particular, e dado que a queixosa não se constituiu assistente no processo, nos está subtraída a sua apreciação.
Munidos que estamos de todos os elementos necessários passemos então a determinação da sanção aplicável:
As finalidades de aplicação de uma pena assentam na tutela de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade (artigo 40, nº 1 do Código Penal). Logo, a medida da pena há-de ser dada pela medida da tutela dos bens jurídicos postos em causa pela actuação do agente, traduzindo a ideia de prevenção geral positiva, e pelas considerações de prevenção especial, de socialização ou de suficiente advertência.
Contudo, e conforme o disposto no artigo 40°, nº 2 do Código Penal, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sob pena de se postergar o fundamento último da qualquer punição criminal - a dignidade humana.
Nos termos do artigo 71 ° do Código Penal, na determinação da medida concreta da pena há que atender à culpa do agente, às necessidades de prevenção de futuros crimes, considerando todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de ilícito, deponham a favor do agente ou contra ele, abstendo-se de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido (salvo nos casos em que a sua intensidade concreta supere aquela que foi considerada pelo legislador para efeitos da determinação da moldura).
O crime em apreço é punível, em abstracto, com pena de 1 mês a 3 anos de prisão ou multa entre 10 a 360 dias - artigos 41°, nº 1, 47°, n.º 1 e 143°, n.º 1 do Código Penal.
O artigo 70° do Código Penal dá preferência pela aplicação de pena não privativa da liberdade, se esta se mostrar suficiente à realização das finalidades da punição. O dolo é directo e o grau de ilicitude dos factos mostra-se mediano, atenta a gravidade das lesões provocadas.
Quanto às necessidades de prevenção geral, diremos que, face à frequência da prática deste tipo de crime, as mesmas são elevadas.
No que diz respeito à prevenção especial, atenderemos à intensidade do dolo, às circunstâncias do caso, aos laços de parentesco entre o arguido e a vítima, à existência de antecedentes criminais, pelo que estamos em crer que in casu se vislumbra uma necessidade elevada. Por outro lado,o arguido não prestou declarações ,não tendo nós assim elementos que nos permitam concluir ter interiorizado a reprovação social do seu comportamento, ou mesmo estar arrependido .
A culpa do arguido revela-se elevada.
Ponderadas todas as circunstâncias atrás descritas, entende-se, fixar uma pena de multa, que se situe próxima mas ainda abaixo da mediania da respectiva moldura e que constitua suficiente advertência para que o arguido inverta a tendência de desrespeito pela integridade física alheia que tem vindo a evidenciar. Para esse efeito, fixa-se a pena de multa em causa em 100 dias.
Cada dia de multa corresponderá, segundo o artigo 47°, n.º 2 do Código Penal, a uma quantia fixada, entre € 5,00 e € 500,00, de acordo com a situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais.
Considerando as poucas circunstâncias apuradas acerca da vida do arguido, nomeadamente o facto de o arguido e a esposa estarem agora de novo a viver em economia comum e na mesma casa, entende-se que a taxa diária a considerar deverá ser de € 8,00.

DECISÃO:
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se julgar o recurso parcialmente procedente, absolvendo o arguido do imputado crime de violência doméstica e, em seu lugar, condenando-o pelo crime de ofensas à integridade física simples, nos termos acima descritos, sendo fixada a citada pena única de 100 (cem) dias, à taxa diária de € 8,00 (oito euros).
Sem custas.

Guimarães, 21 de Outubro de 2013