Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1105/05-1
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: DIREITO DE USO
OBRAS
ÁGUAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE - DECISÃO CONFIRMADA
Sumário: I - Qualquer direito originário sobre água de nascente, em prédio pertencente a titular diverso daquele que se arroga o direito sobre a água, não pode prescindir da construção de obras, no prédio onde exista a nascente, visíveis e permanentes, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio – artº 1390º nº2 C.Civ.
II – Os costumes na divisão de águas (artº 1400º C.Civ.) não constituem, por si, títulos originários de aquisição dessas águas, sem prejuízo de poderem valer contra os co-utentes.
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo comum e forma ordinária nº210/2002, da comarca de Vila Nova de Cerveira.
Autores – I... Turismo Rural, Ldª, e M... Elisa e marido J... António
Réus – H.. e mulher
Pedido
Que se declare que os 2ºs AA. adquiriram por usucapião o direito de propriedade dos prédios rústicos identificados no artº 3º supra, nos termos descritos nos artºs 4ºss da Petição Inicial.
Que se declare que os AA. e seus antecessores adquiriram por usucapião, há mais de dez, vinte, trinta, quarenta e mais anos, a propriedade, nos termos descritos no artº 36º da Petição Inicial, da água que nasce no sítio da Figueira Preta e é direccionada para a Poça de Sá e daí distribuída segundo uso e costume, por roldas, em sistema de rotatividade, entre o dia 1 de Julho e o dia 8 de Setembro de cada ano, para os prédios rústicos sitos no lugar de Pereiras, onde se incluem os pertencentes aos ora AA., bem como todas as construções para a sua captação e condução até aos seus prédios, identificados nos artºs 1º, 2º e 3º da P.I.
Que se declare que, fora da época de regadio, a água é pertença dos consortes, entre os quais os AA., seguindo o seu percurso até ao rego da Igreja, passando por detrás do Parque de Campismo de Covas, não estando no entanto sujeita a horários ou roldas, podendo cada consorte utilizá-la para qualquer fim, sempre que queira, desde que a água não esteja a ser, nesse momento, utilizada por qualquer outro consorte.
Que se condenem os RR. a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre aquela água e sobre as construções feitas para sua captação e condução, até aos prédios rústicos propriedade dos AA. e identificados nos artºs 1º, 2º e 3º supra.
Que se condenem os RR. a se absterem de perturbar aquele direito de propriedade dos AA.

Tese dos Autores
São donos de diversos prédios rústicos, situados no lugar de Pereiro ou Pereiras, da freguesia de Covas, em Vª Nª de Cerveira.
Esses prédios têm direito à água de rega proveniente da Poça de Sá.
Tal poça é abastecida por água que nasce em propriedades particulares e a água que a ela aflui está afecta ao regadio de diversos lugares, regadio feito por rolda, de acordo com o tamanho de cada artigo, em sistema de rotatividade, de 1 de Julho a 8 de Setembro de cada ano.
Fora dessa época, segue o seu curso normal.
Tal água tem sido desviada do seu curso normal pelo Réu marido, que não tem quaisquer direitos sobre a água.
Tese dos Réus
As águas sobrantes de rega da Poça de Sá são encaminhadas, não para o Regato da Igreja, mas para o Rego da Barrosa.
Quem tem vindo a apropriar-se ilegitimamente das águas em causa são os AA.
Sentença
Na sentença proferida pela Mmª Juiz “a quo”, declarou-se que os 2ºs AA. M.. Elisa e J.. António adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade dos seguintes prédios rústicos:
a) terreno de cultura, sito no lugar de Pereiras, freguesia de Covas, concelho de Vª Nª de Cerveira, a confrontar de Norte com Dr. Meireles, do Nascente com F... Silva, do Sul com J... Afonso e do Poente com ribeiro, inscrito na matriz sob o artº 643º da freguesia de Covas e não descrito na Conservatória do Registo Predial de Vª Nª de Cerveira;
b) terreno de mato, sito no lugar de Pereiras, freguesia de Covas, concelho de Vª Nª de Cerveira, a confrontar de Norte com J... Cortinhas , do Nascente com J... Vital, do Sul com Dr. Meireles e do Poente com ribeiro, inscrito na matriz sob o artº 655º da freguesia de Covas e não descrito na Conservatória do Registo Predial de Vª Nª de Cerveira.
Porém, os demais pedidos formulados, cerne da acção, relativos à propriedade das águas reivindicadas, foram julgados improcedentes e os RR. absolvidos dos mesmos.

Conclusões do Recurso de Apelação dos AA.
1ª - Os recorrentes perfilham o entendimento, salvo melhor opinião, de que a douta sentença não terá decidido de forma acertada, atendendo a todos os factos que foram transpostos para os autos e submetidos a julgamento, assim como, ainda aos normativos legais aplicáveis neste caso.
2ª - Antes de mais, e desde logo, impugnando os recorrentes a decisão proferida sobre a matéria de facto, como previsto, aliás no artº 690º-A/1 do CPC, porquanto existe nos autos gravação da prova testemunhal em causa.
3ª - De facto, pelo que resultou do depoimento das testemunhas dos ora recorrentes, na discussão da causa, em sede de julgamento, R... FERNANDA (Cassete 1, lado A, com início em 030 até 1903), M.. DE LURDES (Cassete 1, Lado A, com início em 1904 até 2481 e Lado B, com início em 000 até 543), L... (Cassete 1, Lado B, com início em 0543 até 1892), M... EMÍLIA (Cassete 2, Lado A, com início em 161 até 1021) e M... DA CONCEICÃO (Cassete 1, Lado B, desde 1893 até 2495 e Cassete 2, Lado A, com início em 000 até 160), a água de Sá, que rega Pereiras de Baixo, nasce no sítio da Figueira Preta e nos lagos de Lagartão, numa propriedade privada pertencente a Vítor Manuel da Silva Carvalho e Herculano da Silva Carvalho, devendo assim ser considerado integralmente provado o Quesito 7º da Base Instrutória (BI).
4ª - Assim como resulta do depoimento das mesmas testemunhas que, desde a nascente, a água de Sá é logo encaminhada, por rego subterrâneo, caindo na presa de Sá e que rega os lugares de Manga, Bouça Fria e Pereiras de Baixo.
5ª - Existe também uma presa e um presão, ou seja, construção humana, que é utilizado quando o regadio se encontra afecto aos lugares de Sá, Bouçó, Pereiras de Cima, Coselo e Beçada (cfr. respostas aos Quesitos 8° a 18°).
6ª - Parte do trajecto do rego é feito a céu aberto, existindo também locais onde o mesmo é subterrâneo e em pedra por necessidade de ponto para possibilitar a rega, facto constatado na inspecção ao local, pois parte dos prédios dos autores, ora recorrentes, dependem desse trajecto subterrâneo para que a água possa chegar aos seus prédios.
7ª - Salvo melhor opinião, todas estas construções não se compadecem com a presunção de possibilidade de escoamento natural da água, como invocado na douta sentença de que se recorre.
8ª - Conclui-se pois que existem construções humanas, quer para a captação da água no prédio onde se encontra a nascente, quer para a sua condução até aos prédios dos recorrentes e dos demais consortes da água de Sá, aliás como resulta desde logo da resposta ao Quesito 26º da BI: "Em época de regadio, logo que um consorte "deite abaixo", logo outro a direcciona, querendo, para o seu prédio".
9ª - Por outro lado, conforme a resposta aos quesitos 29°, 30°, 31 ° e 32°, a água de Sá sempre pertenceu aos proprietários de prédios sitos nos lugares identificados no giro da água sendo assim há várias gerações ("há mais de 50 anos...").
10ª - Essas mesmas obras perpetuaram-se ao longo do tempo e ainda hoje se mantêm (a nascente, a presa, o presão, os regos a descoberto e os regos subterrâneos mantêm-se, sendo limpos e refeitos anualmente, por altura do início do regadio), como resulta do depoimento das referidas testemunhas dos autores, aqui recorrentes.
11ª - Pelo que entendem os recorrentes estarem preenchidos os pressupostos legais para invocarem a aquisição prescritiva da água de Sá, segundo uso e costume, em relação a cada prédio de que são proprietários e que se encontram identificados nos factos provados.
12ª - Por outro lado, a resposta ao quesito 39º deveria ter sido provado, porquanto, conforme resulta do transcrito depoimento das mencionadas testemunhas arroladas pelos recorrentes, pertencendo a água aos recorrentes (e demais consortes) não poderão terceiros interferir com esse seu direito, nem em época de regadio nem na chamada época de lima, porquanto a água sempre pertenceu e pertence aos consortes.
13ª - Assim, atento o sistema de regadio por rotatividade (provado) bem como o curso regular e normal da água de Sá (pelo rego da Igreja), a invocação por parte dos réus do direito a águas sobrantes não tem qualquer cabimento, pois as águas de Sá nunca engrossaram o caudal do rego da Barrosa, daí dever ter a resposta de provado o referido quesito 39°.
14ª - Primeiro, porque esse comportamento por parte dos réus é recente, sensivelmente há cerca de três anos; em segundo lugar, porque se arrogam o direito de desviar a água do seu trajecto normal quando esta se encontra no lugar de Pereiras (pelo rego da igreja), quer em época de regadio quer fora dela.
15ª - Por outro lado, no que toca ao alegado trajecto normal da água de Sá, pelo rego da Igreja, deveriam ter sido considerados provados os quesitos 27º e 28º da BI.
16ª - Com efeito, foram juntos documentos aos autos que, devidamente conjugados entre si, bem como com o depoimento das testemunhas dos recorrentes (cópia de uma carta militar de 1949, onde se identifica nesse local uma linha de água e documentos prediais dos prédios dos recorrentes, onde se pode verificar que confinam com ribeiro), levam a conclusão diversa à da sentença, isto é, provam que tal curso é pelo rego da igreja (ribeiro), que passa por detrás do parque de campismo de Covas.
17ª - Devendo, em consequência, como peticionado, serem os réus condenados a absterem-se de praticar actos que interfiram e violem o curso normal da água de Sá, objecto de discussão nestes autos, em época de regadio e fora dela.
18ª - Violou, pois, no entender dos recorrentes, a douta sentença o disposto nos artigos 1390-1 e 2, 204-1,b), 1316, 1387 e 1400-1 e 2, todos do Código Civil.

Em contra-alegações, os Apelados pugnam pela confirmação da sentença recorrida.

Factos Julgados Provados em 1ª Instância
A) - Por escritura pública de compra e venda, datada de 4 de Fevereiro de 2002, a 1ª Autora adquiriu o prédio rústico, sito no lugar de Pereiras, freguesia de Covas, Vila Nova de Cerveira, composto por terreno de cultura e vinha, com a área de 1 100 m2, a confrontar do norte com José de Sousa, do sul com José Franco Lima, do nascente com caminho público e do poente com ribeiro, inscrito na matriz sob o art. 499º, com o valor patrimonial de € 36,63, omisso na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Cerveira.
B) - O referido prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Cerveira sob o nº02222/060202, da freguesia de Covas, e inscrito a favor da 1ª Autora, por compra a Emília da Conceição Fernandes Barbosa e Aires António Fernandes Barbosa, casado com Irene de Fátima Calé da Silva, em comunhão de adquiridos.
C) - Por escritura pública datada de 26 de Julho de 1998, celebrada no Cartório Notarial de Caminha, os 2ºs. Autores venderam à 1ª Autora os seguintes prédios rústicos, sitos na freguesia de Covas, concelho de Vila Nova de Cerveira:
1. terreno de cultivo, em Pereiro, descrito na Conservatória sob o nº292, inscrito na matriz sob o art. 502º, com o valor patrimonial de 1 898$00, vendido por 20 000$00;
2. terreno de cultivo, em Pereiro, descrito na Conservatória sob o nº293, inscrito na matriz sob o art. 503º, com o valor patrimonial de 2 061$00, vendido por 20 000$00;
3. terreno de cultivo, em Pereiro, descrito na Conservatória sob o nº294, inscrito na matriz sob o art. 504º, com o valor patrimonial de 2 061$00, vendido por 20 000$00;
4. terreno de cultivo e mato, em Pereiras, descrito na Conservatória sob o nº297, inscrito na matriz sob o art. 505º, com o valor patrimonial de 225$00, vendido por 30 000$00;
5. terreno de cultivo, em Pereiras, descrito na Conservatória sob o nº295, inscrito na matriz sob o art. 506º, com o valor patrimonial de 1 326$00, vendido por 20 000$00;
6. terreno de cultivo, em Pereiras, descrito na Conservatória sob o nº173, inscrito na matriz sob o art. 641º, com o valor patrimonial de 3 183$00, vendido por 60 000$00;
7. terreno de cultivo, em Pereiras, descrito na Conservatória sob o nº1 067, inscrito na matriz sob o art. 642º, com o valor patrimonial de 3 815$00, vendido por 35 000$00;
8. terreno de cultivo, em Pereiras, descrito na Conservatória sob o nº1 234, inscrito na matriz sob o art. 644º, com o valor patrimonial de 1 857$00, vendido por 200 000$00;
9. terreno de cultura e mato, em Pereiras, descrito na Conservatória sob o nº1 066, inscrito na matriz sob o art. 645º, com o valor patrimonial de 1 326$00, vendido por 30 000$00;
10. terreno de cultivo e mato, em Pereiras, descrito na Conservatória sob o nº1 327, inscrito na matriz sob o art. 646º, com o valor patrimonial de 653$00, vendido por 30 000$00;
11. terreno de cultura, em Pereiras, descrito na Conservatória sob o nº1 065, inscrito na matriz sob o art. 647º, com o valor patrimonial de 2 510$00, vendido por 30 000$00.
E) - Por escritura pública datada de 23 de Abril de 2001, celebrada no Cartório Notarial de Vila Nova de Cerveira, a 1ª Autora adquiriu, por compra, a M... Fernandes, M... Emília e marido J... Moreira , M... Vitória e marido J... e M... e marido R... Domingues, o prédio rústico composto por cultura, sito no lugar de Pereiras, freguesia de Covas, Vila Nova de Cerveira, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº01612/Covas.
F) - Por escritura pública datada de 23 de Novembro de 1999, celebrada no Cartório Notarial de Vila Nova de Cerveira, a 1ª Autora adquiriu, por compra, a Z... Carvalho e C... Josefina o prédio rústico, sito no lugar de Pereiras, freguesia de Covas, Vila Nova de Cerveira, composto por cultura, com a área de 3 390 m2, a confrontar de norte e nascente com caminho público, do sul e poente com Manuel Fernandes, não descrito na Conservatória do Registo Predial mas inscrito na matriz sob o art. 654º.
G) - Por escritura pública datada de 7 de Maio de 1997, celebrada no Cartório Notarial de Vila Nova de Cerveira, a 2ª Autora adquiriu por compra a G... Rolando e mulher Z... Carvalho o prédio rústico composto por cultura, com a área de 2 280 m2, sito no lugar de Pereiras.
H) - O regadio da “Poça ou Presa de Sá” começa no dia 1 de Julho de cada ano e acaba no dia 8 de Setembro de cada ano, e processa-se em sistema de rotatividade.
I) - O Réu subscreveu a carta de fls. 40.
1º - Os 2ºs. Autores adquiriram a A... Francisco , por acordo verbal de compra e venda, os prédios a seguir identificados:
a) terreno de cultura, sito no lugar de Pereiras, freguesia de Covas, concelho de Vila Nova de Cerveira, a confrontar de norte com Dr. Meireles, do nascente com F... Silva, do sul com J... Afonso e do poente com ribeiro, inscrito na matriz rústica sob o art. 643º da freguesia de Covas e não descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Cerveira;
b) terreno de mato, sito no lugar de Pereiras, freguesia de Covas, concelho de Vila Nova de Cerveira, a confrontar do norte com J... Cortinhas , do nascente com João Vital Fernandes Barreiros, do sul com Dr. Meireles e do poente com ribeiro, inscrito na matriz rústica sob o art. 655º da freguesia de Covas e não descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Cerveira.
2º, 3º, 4º, 5º, 6º - São os mesmos Autores que, desde há mais de 10, 15 e 20 anos, exploram os prédios em questão, deles retirando todas as utilidades, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de serem donos dos mesmos.
7º - A “presa de Sá” é abastecida por água que nasce no sítio da Figueira Preta, e por outra que nasce no Lagartão. (o quesito mostra-se adiante alterado para a seguinte resposta, que nesta instância adoptamos: A denominada Presa de Sá é abastecida por água que nasce no sítio da Figueira Preta, numa propriedade particular pertencente a V... Silva Carvalho e a H... da Silva Carvalho, e por água que nasce no sítio de Lagos, de Lagartão ou Sá, também terreno particular).
8º - Essa água das referidas nascentes é encaminhada para uma “presa” ou para “presão”, conforme o local de regadio a que está adstrita.
9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º - A água do designado “presão” é utilizada para o regadio do lugar de Sá, que começa no lugar de Bouçó, segue para o lugar de Pereiras de Cima, para Coselo e para Beçada, sendo depois encaminhada para o referido “presão”, para regar os campos de Sá, e seguindo depois de voltar à “presa de Sá”, para os lugares de Manga e Bouça Fria e, de seguida, para Pereiras de Baixo.
19º, 20º - O referido regadio faz-se por “rolda” (24 horas), de acordo com o tamanho de cada prédio.
21º, 22º - A rotatividade referida em H) processa-se por ciclos de 18 dias, da rega beneficiando, entre outros, os prédios aludidos em A), C), E), F) e G).
23º, 24º, 25º - Sempre que cada consorte acaba de regar tem de “deitar abaixo a torna”, fazendo com que a água deixe de estar voltada para o seu prédio, e fazendo-a seguir o seu curso normal.
26º - Em época de regadio, logo que um consorte “deite abaixo”, logo outro a direcciona, querendo, para o seu prédio.
29º, 30º, 31º, 32º - A rega com a água da “Poça de Sá” processa-se nos moldes descritos nas respostas aos quesitos 10º a 26º há mais de 50 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção do exercício de um direito correspondente ao direito de propriedade por todos e cada um dos consortes.
40º - Os terrenos que regam com a água do rego da Barrosa têm normas de giro diversas das da presa de Sá.
44º, 45º - O Réu marido subscreveu a carta junta a fls. 40 na qualidade de sócio gerente da sociedade comercial denominada “Soafos”, conjuntamente com mais 18 consortes das águas do Rego da Barrosa.
47º - Uma das nascentes que abastece o rego da Barrosa é conhecida como nascente de Pereiras.
48º - Os factos referidos nas respostas aos quesitos 44º e 45º eram do conhecimento dos Autores.

Fundamentos
As questões colocadas pela presente apelação poderão ser sumariadas como segue:
- o quesito 7º deveria ter sido integralmente considerado “provado” e os quesitos 27º, 28º e 39º deveriam ter sido julgados “provados”?
- o pedido de reivindicação das águas deveria ter sido julgado procedente?
Vejamos então.
I
A decisão do tribunal da 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, como regra, nas situações descritas no artº 712º nº1 als.a), b) e c) C.P.Civ.
O recurso dos autos coloca esta instância perante a situação descrita na alínea a) do artº 712º C.P.Civ., já que do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto no primeira audiência efectuada no processo, audiência na qual se verificou a gravação dos depoimentos das testemunhas, sendo que o Recorrente impugna a decisão por apelo à citada gravação, e no confronto dessa mesma gravação com os demais elementos de prova ponderados em 1ª instância.
Em causa, para a Recorrente, as respostas aos quesitos 7º, 27º, 28º e 39º, matéria que, ao contrário do julgamento efectuado no tribunal “a quo”, deveria, segundo os Recorrentes, ter sido considerada integralmente “provada”.
Vejamos, quesito a quesito.
No quesito 7º perguntava-se: “A denominada Presa de Sá é abastecida por água que nasce no sítio da Figueira Preta, numa propriedade particular pertencente a Vítor da Silva Carvalho e a Herculano da Silva Carvalho, e por água que nasce no sítio de Lagos, de Lagartão ou Sá, também terreno particular?”
Foi respondido, “provado que a presa de Sá é abastecida por água que nasce no sítio da Figueira Preta e por outra que nasce no Lagartão”.
Divergimos ligeiramente do entendimento da Mmª Juiz “a quo”.
Na realidade, a prova efectuada sobre a matéria consistiu, tão só, no depoimento das testemunhas apresentadas pelos AA., R... Esteves, M... de Lurdes e M... da Conceição , todas conhecedoras, vizinhas do local ou consortes das águas de Sá, depoimentos cuja razão de ciência, nesta parte, se não mostrou abalada.
Acontece que estes depoimentos, conformes e não contraditados por qualquer outro elemento de prova, confirmaram que as águas de Sá (que são represadas em Sá) nascem, nos sítios da Figueira Preta e do Lagartão, em propriedades de V... e de H... da Silva Carvalho (no sítio da Figueira Preta) e noutras propriedades particulares, no sítio do Lagartão.
Tanto basta para que se deva considerar provada integralmente a matéria do quesito 7º.
Já no quesito 27º se perguntava se “fora da época de regadio, a água da Presa de Sá segue o seu curso normal pelo regato da Igreja, que passa por detrás do parque de campismo de Covas?” e (quesito 28º) “podendo cada um dos seus consortes, sem qualquer rolda pré-determinada ou qualquer horário, utilizá-la para qualquer fim, desde que respeite a utilização dos outros consortes?”
Ambos os quesitos não lograram prova.
Também no quesito 39º, repristinando alegação dos AA., se perguntava se “as águas da Presa de Sá nunca engrossaram o caudal das águas do Rego da Barrosa?”
Tal matéria também resultou “não provada”.
Porém, nada existe a alterar a tais respostas.
As diversas testemunhas apresentadas pelos RR. produziram depoimentos mais ou menos conformes, no sentido de que o trajecto natural da água sobrante de Sá é o rego da Barrosa.
Todavia, mais impressivo se nos mostrou ainda o depoimento das testemunhas apresentadas pelos AA.
É que destes depoimentos resulta que a “tola” ou “torna” que pode fazer divergir as águas sobrantes de Sá para o denominado rego da Igreja é uma obra muito recente – vejam-se os depoimentos de M... Emília, de L... Esteves e de R... Esteves.
De tal prova, conjugada com a unanimidades das testemunhas dos RR., nunca poderia ter resultado a prova dos quesitos 27º e 39º.
Todavia, igualmente não poderia nem pode resultar a prova do quesito 28º, já que desde logo as testemunhas dos AA. foram muito vagas e imprecisas acerca do aproveitamento que os consortes de Sá fazem ou poderiam fazer das águas provenientes da presa, fora da época de regadio: R... Esteves e M... de Lurdes declararam que, nessa época, “os consortes podem ir buscar qualquer água” e que “é para os consortes, falando uns com os outros” – todavia, não lhes mencionaram (às águas) utilidade ou aplicação; e L... Esteves, elucidativamente, declarou que, nesse período “a água está abandonada, mas está a correr”.
Porém, uma vez mais, se deparou o Tribunal com a unanimidade das testemunhas apresentadas pelos RR., declarando que, fora da época de regadio, a água que cai na presa de Sá não é aí represada pelos consortes (pois que, fora do período de Verão, dela não necessitam), logo segue o seu curso normal, dos prédios superiores para os inferiores, designadamente abastecendo, em pequena quantidade (dado que o fio de água contínuo de Sá é reduzido) o rego da Barrosa.
Assim, são inteiramente de confirmar as respostas “não provado” atribuídas aos quesitos 27º, 28º e 39º.
II
Nos termos do artº 1386º nº1 al.a) C.Civ., são particulares “as águas que nascerem em prédio particular e as pluviais que nele caírem, enquanto não transpuserem, abandonadas, os limites do mesmo prédio ou daquele para onde o dono dele as tiver conduzido, e ainda as que, ultrapassando esses limites e correndo por prédios particulares, forem consumidas antes de se lançarem no mar ou em outra água pública”.
Deixe-se assim estabelecido, desde logo, por rigor de raciocínio, que as águas reivindicadas pelos AA. são águas particulares – nascem em prédio particular e, ultrapassando os limites desse prédio, correm por prédios particulares e são consumidas antes de se lançarem no mar ou em outra água pública.
Nos termos do artº 1389º C.Civ., “o dono do prédio onde haja alguma fonte ou nascente de água pode servir-se dela e dispor do seu uso livremente, salvas as restrições previstas na lei e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo”.
Pelo artº 1390º nº1 C.Civ., considera-se título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões; e pois que todas as águas são de considerar coisas imóveis (artº 204º nº1 al.b) C.Civ.), há que concluir que os títulos de aquisição das águas são os meios legítimos de aquisição da propriedade sobre imóveis – artºs 1316ºss. C.Civ. – contrato, usucapião, ocupação, acessão e outros.
Por sua vez, não sofre dúvida que as águas das nascentes podem ser adquiridas por usucapião (artº 1390º C.Civ.), enquanto águas particulares. Pese embora a resposta dada ao quesito 32º, relativo ao “animus” possessório, os factos provados apontariam, em abstracto, apenas para um direito de servidão sobre as águas represadas em Sá, já que deles resulta tão só um aproveitamento das águas, em período temporal restrito e em função das necessidades do prédio dos AA. – como escreveu Pires de Lima, B.M.J. 64º/10, cit. por Varela, Revista Decana, 115º-219, “se se adquire o poder de dispor livremente da água que nasce em prédio alheio, ou o direito de a captar subterraneamente, constitui-se um direito de propriedade ou de compropriedade; se qualquer desses direitos está limitado às necessidades ou a certas necessidades de um outro prédio (dominante), a figura será a da servidão”.
Da mesma forma Varela, loc. cit., pg.220, “o direito de servidão confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante”.

O presente recurso, porém, sem desdouro do trabalho que reflecte, não trouxe muitos argumentos susceptíveis de contradizer o bem fundado da sentença em crise.
Aí se salientou que (citamos) “o artº 1390º nº2 C.Civ. estabelece uma restrição de monta: “a usucapião, porém, só é atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio”. Tal significa que, antes mesmo de entrar na análise dos requisitos gerais da posse, importas averiguar se os AA. lograram provar ter feito, por si ou seus antecessores, aquelas obras de captação de água”.
Ora, sobre tal matéria, os autos mostram-se in albis, desde logo na alegação. E saliente-se que de outro modo não poderia ser – resultou dos depoimentos testemunhais apresentados pelos AA. que as águas brotam “por baixo” dos terrenos particulares referidos na resposta ao quesito 7º (sugerindo um forte desnível de terreno no local onde nascem) e seguem em regato até à presa de Sá, presa esta situada em local completamente diverso do prédio onde as águas brotam.
Assim, o apelo que os AA. fazem para o disposto no artº 1390º nºs 1 e 2 C.Civ., no final das respectivas alegações de recurso, mostra-se verdadeiramente inconsequente.
Citando Guilherme Moreira, As Águas no Direito Civil Português, II/§37 (apêndice), “o direito de fruição da água que brota num prédio é, compreendido como está no direito de propriedade, facultativo, podendo consequentemente ser exercido ou não pelo proprietário, sem que do seu não exercício resulte a perda desse direito. O facto, pois, de o proprietário abandonar essa água deixando-a seguir o seu curso natural e o aproveitamento, pelos proprietários vizinhos, da água assim abandonada, representam, em princípio, um acto facultativo e de tolerância da parte do proprietário da nascente, não constituindo o aproveitamento por terceiros, por mais largo que seja o prazo durante o qual ele se der, posse de que resulte ou possa resultar o direito à água”.

III
Significa isto que o aproveitamento que os consortes de Sá vêm fazendo da água em causa, desde há mais de cinquenta anos (qq. 29º a 32º), nada vale contra terceiros?
Não – e a questão prende-se com o disposto no artº 1400º nºs 1 e 2 C.Civ. que, significativamente, os AA. também citam.
Nº 1 – As águas fruídas em comum que, por costume seguido há mais de vinte anos, estiverem divididas ou subordinadas a um regime estável e normal de distribuição continuam a ser aproveitadas por essa forma, sem nova divisão.
Nº 2 – A obrigatoriedade do costume impõe-se também aos co-utentes que não sejam donos da água, sem prejuízo dos direitos do proprietário, que pode a todo o tempo desviá-la ou reivindicá-la, se estiver a ser aproveitada por quem não tem nem adquiriu direito a ela.
Assim, o aproveitamento sempre valerá contra os co-utentes.
Todavia, como escreveu P. de Lima (Revista Decana, 92º/63, cit. in P. de Lima e A. Varela, Anotado, artº 1400º, nota 5), importa ter presente que o uso e costume não é um título originário de aquisição; supõe sempre um outro direito, que pode mesmo limitar-se, nada se opõe a isso, a uma situação precária ou de mera tolerância, um mero poder legal.
Ora, aquilo que os AA. pretendiam ver reconhecido na acção era o respectivo direito originário (como comproprietários) sobre as águas de Sá.
Por outro lado, das respostas negativas aos qq. 33º a 38º retira-se que inexiste prova de que os RR., que se reclamam co-utentes da água, se tenham oposto ao uso antigo que os AA. fazem da água de Sá, segundo o costume.
A acção improcedeu, desta forma, como tinha que improceder.

A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I - Qualquer direito originário sobre água de nascente, em prédio pertencente a titular diverso daquele que se arroga o direito sobre a água, não pode prescindir da construção de obras, no prédio onde exista a nascente, visíveis e permanentes, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio – artº 1390º nº2 C.Civ.
II – Os costumes na divisão de águas (artº 1400º C.Civ.) não constituem, por si, títulos originários de aquisição dessas águas, sem prejuízo de poderem valer contra os co-utentes.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar improcedente, por não provado, o recurso interposto, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pelos Apelantes.

Guimarães,

Vieira e Cunha
António Gonçalves
Narciso Machado