Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
667/18.3T8GMR-B.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DEFERIMENTO INICIAL
NÃO ABERTURA DO INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
CULPA DO DEVEDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1. A exoneração do passivo não contempla um gracioso perdão generalizado de dívidas. Visa premiar um sério respeito e responsável esforço pela satisfação dos interesses dos credores.

2. Subjaz à intenção do legislador a boa ideia de recuperar economicamente o agente e humanamente a pessoa. Porém, ela é perpassada pela preocupação de que tal apenas se viabilize estando garantida a licitude, seriedade, honestidade, confiança, transparência, lealdade e boa-fé na conduta do devedor ínsitos ao procedimento e aos fins específicos do processo.

3. É critério de merecimento da exoneração do passivo restante que se perspective a possibilidade de a dívida ser, pelo menos em parte, paga no processo de insolvência e, depois, durante o período de cessão de rendimentos.

4. A remissão feita na parte final da alínea e), do nº 1, do artº 238º, do CIRE, para os “termos do artº 186º” significa que a actuação culposa deve inserir-se no período de três anos aí referido.

5. Apenas a qualificação da insolvência, em sentença transitada, como fortuita, obsta a que a conduta do devedor possa ser depois considerada culposa para efeitos de integração dos pressupostos da alínea e), do nº 1, do artº 238º. Não a simples omissão da declaração de abertura daquele incidente.

6. Enquanto que ali (artº 186º) os factos têm de ser julgados e demonstrados por sentença, uns efectivamente e outros presumidamente, aqui no despacho liminar (artº 238º) que deve recair sobre o pedido de exoneração do passivo restante, bastam “elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor”.

7. A apreciação desta, quando não presumida, deve fazer-se nos termos gerais.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Nos autos em que foi declarado insolvente José, pediu este que lhe fosse concedida a exoneração do passivo restante.

Sobre tal questão, o Administrador Judicial, bem como diversos credores, pronunciaram-se negativamente, nos termos do relatório e requerimentos juntos para que se remete, destacando-se daquele a conclusão de que “…o devedor se desfez de forma «leviana» com o único objectivo de afastar dos seus credores os bens de que era proprietário”.

Por decisão de 24-09-2018, indeferiu-se liminarmente o requerimento.

O devedor não se conformou e apelou a que esta Relação a revogue, alegando e concluindo:

A. A questão que se coloca no presente recurso é a verificação - ou não – de fundamento legal para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo do Recorrente, com fundamento no art. 238º, 1, e) do CIRE.
B. Dos factos constantes dos autos não constam elementos que indiciem, com toda a probabilidade, a existência de culpa do Insolvente na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º do CIRE
C. Junto o relatório do artigo ...5.º do CIRE, o Juiz a quo não decidiu declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes, como previsto no art. 188º, nº 1 do referido diploma, isto é, aventou não existirem nos autos factos ou informações que importassem declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência.
D. Não tendo sido proferida decisão a qualificar a insolvência como culposa tal deve, de per si, obstar a que se indefira liminarmente o pedido de exoneração justamente com o fundamento (para poder considerar-se a insolvência culposa) que, no próprio processo, até à data, se julgou inexistir ou, pelo menos, existir ao ponto de se justificar a abertura do incidente de qualificação da insolvência – cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 29.02.2012 e de 24.04.2012.
E. O pedido de exoneração do passivo restante não pode ser indeferido nos termos do art.º 238.°, n.º 1, al. e), do CIRE, quando não haja decisão judicial a declarar, face aos elementos carreados para os autos, sequer aberto o incidente de qualificação da insolvência,
F. A admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante apenas assegura o prosseguimento desta instância, sem constituir efeito de caso julgado quanto à consistência substancial do mérito da pretensão, que culminará na prolação da decisão de cessação antecipada do procedimento ou do despacho final de exoneração.
G. Pelo que, ao decidir como decidiu, fez o Mmo Juiz a quo errada interpretação e aplicação do disposto no art. 238°, nº1, al. e) do CIRE. Sem prescindir,
H. A preocupação do Recorrente sempre foi a de pagar, todos os meses, os salários das centenas de trabalhadores. E note-se que na insolvência da sociedade insolvente “X, SA” não havia créditos dos Trabalhadores, o que foi reconhecido por todos os Trabalhadores. Trata-se de uma insolvência colectiva que embora com um passivo elevado, apresentava um activo elevado em que os trabalhadores foram sempre pagos, e NADA foi alienado!!!
I. Tal só foi possível porque o Recorrente decidiu alienar os seus bens, de outra forma não existiria dinheiro para pagamento dos salários.
J. A doutrina e jurisprudência têm sido unânimes em afirmar que não é qualquer incumprimento, nem qualquer irregularidade que configura a definição prevista no art. 186º do CIRE; é necessário que tenha havido uma conduta do devedor que: a) tenha criado ou agravado a situação de insolvência; b) essa conduta seja dolosa ou com culpa grave; c) tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo.
K. Para a insolvência ser qualificada como culposa impõe-se ainda que tal actuação (ou omissão) tida como dolosa ou com culpa grave do devedor seja causal na criação ou no agravamento da situação de insolvência – o que não se verifica nestes autos!
L. A situação sócio-económica do Recorrente não se agravou ou alterou antes ou depois do pedido de insolvência, porquanto as restantes dívidas que são apenas a título pessoal, são irrisórias.

TERMOS EM QUE deve o despacho recorrido ser revogado substituindo-se por outro que receba liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, assim se fazendo JUSTIÇA!!”

Foi admitido o recurso como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, importa apreciar e decidir se não se verificam os pressupostos da alínea e), do nº 1, do artº 238º, do CIRE – culpa – e, por isso, deve ser revogada a decisão e deferido liminarmente o pedido.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido, nesta sede, decidiu, dar como provados, considerando-se desde já fixados, uma vez que não impugnados, os seguintes factos, além dos supra relatados:

O Requerente contraiu matrimónio com E. S. em 26 de Março de 1988 com convenção antenupcial, no regime de comunhão geral de bens.
Vindo a existir o decretamento do divórcio por mútuo consentimento a 4 de Novembro de 2008.
Após o decretamento do divórcio, os menores ficaram aos cuidados da mãe, passando a residir apenas com ela.
O Requerente pagava aos menores a quantia mensal de 500,00€ (quinhentos euros) a título de pensão de alimentos.
Actualmente, todos os filhos do Requerente são maiores.
Contudo, a filha Maria, não obstante se encontrar aos cuidados da mãe, sofre de incapacidade de 90%, necessitando de cadeira de rodas para se deslocar, pelo que, apesar de já ter atingido a maior idade (23 anos), continua a necessitar de cuidados acrescidos, nomeadamente, fraldas e acompanhamento permanente de um terceiro.
o requerente contribui todos os meses com aproximadamente 300,00€ (trezentos euros) mensais para ajuda das despesas da filha, nomeadamente, para a compra de fraldas, medicamentos e outras despesas que esta possa ter.
O Requerente como Sócio-gerente da sociedade “X de Lopes &
Filhos, S.A”, com sede no Lugar …, e com o NIPC …, que se dedicava à extracção de saibro, areia e pedra britada, auferia mensalmente a quantia de €1.000,00 (mil euros).
O Requerente vive, actualmente, nuns anexos de um imóvel pertencente à
Insolvente X.
10º No entanto, todos os imóveis pertencentes à Insolvente X estão a ser vendidos no âmbito do processo de Insolvência, pelo que terá o Requerente de arrendar em breve um local para viver.
11º O devedor foi accionista desta sociedade, tendo assumido também as funções de Presidente do Concelho de Administração;
12. Em 2012 esta empresa deu início a um Processo Especial de Revitalização (PER), que correu termos sob o nº 5699/12.2TBBRG do Tribunal Judicial de Guimarães, 5º Juízo Cível de Guimarães;
13. Em Janeiro de 2013 foi aprovado um Plano de Recuperação com vista à revitalização desta sociedade;
14. Contudo, por sentença datada de 6 de Março de 2017, foi proferida a sentença de insolvência, no âmbito do processo com o nº 820/17.7T8GMR3, que corre termos na Comarca de Braga, Juízo de Comércio de Guimarães - Juiz 1;
.... Tendo já sido deliberado o encerramento e liquidação da sociedade;
16. A favor desta sociedade o devedor avalizou diversos contractos de crédito celebrados com entidades bancárias e financeiras e cujo valor em dívida ascende actualmente a mais de 2,4 MILHÕES de Euros;
17. Na sua qualidade de administrador e responsável subsidiário, o devedor encontra-se igualmente demandado pela Fazenda Nacional num passivo que ascende a mais de Euros 340.000,00 por dividas de IUC, IMI, IRC, IRS e IVA dos anos de 2009 a 20...;
18. Granitos Y, Lda. – NIPC ...: Esta sociedade foi constituída em Dezembro de 2002 e tem por objecto social a exploração de pedreira, comércio de pedra e de outras massas minerais extraídas, transformação de pedra e afins;
19. Tem a sua sede no Ed. ..., freguesia e concelho de Vila Pouca de Aguiar;
20. O devedor detém três quotas nesta sociedade, uma no valor de Euros 1.000,00, outra no valor de Euros 500,004 e uma terceira no valor de euros 23.500,005;
21. Após consulta efectuada no Portal da Finanças, foi possível verificar que esta sociedade cessou a actividade para efeitos de IVA em 28 de Fevereiro de 20....
22. W-Granito Natural, Lda. – NIPC …: Esta sociedade foi constituída em Junho de 1988 e tem por objecto social a indústria e comércio de granitos e rochas naturais;
23. Tem a sua sede na Rua …, freguesia de …, e concelho de Guimarães;
24. O devedor foi sócio e gerente desta sociedade, tendo renunciado à gerência em 9 de Janeiro de 20... e vendido as quotas de que era titular em 19 de Janeiro de 2013;
25. Actualmente a gerente desta sociedade é a filha do devedor, “S. L.”;
26. Na sua qualidade de gerente e responsável subsidiário, o devedor encontra-se igualmente demandado pela Segurança Social num passivo que ascende a mais de Euros 84.000,00 e reporta-se a contribuições em dívida vencidos entre os anos de 2007 e 2014
27. Na sociedade F. N., S.A. – NIPC ... (anteriormente designada A. L. & Filhos S.A.), a qual se encontra sediada na Rua …, freguesia de ..., concelho da Maia, o devedor foi Presidente do Concelho de Administração entre, pelo menos 04 de Setembro de 2009 e 29 de Setembro de 2016. Por ser uma sociedade anónima, desconhece-se se o devedor detém alguma participação social nesta sociedade.
28. Face ao cargo desempenhado nas sociedades acima melhor identificadas, o insolvente responde como devedor solidário ou subsidiário perante diversas entidades bancárias e financeiras, bem como perante a Fazenda Nacional e a Segurança Social por um passivo que ascende, actualmente, a mais de 2,5 MILHÕES de Euros.
29. O insolvente é ainda devedor, a título pessoal, pelo passivo constituído junto das seguintes entidades:

- Junto da Fazenda Nacional, no valor total de Euros 5.448,20, resultante do apuramento em sede de IRS referente aos exercícios dos anos de 2011 e 2012.
- Junto do Banco A, S.A., pelo incumprimento do contrato de mútuo outorgado em 22 de Abril de 2005, pelo valor de Euros 200.000,00, para aquisição da casa de morada de família;
- Como garantia pelo bom cumprimento, foi dada em hipoteca a casa de morada de família, prédio misto descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o nº ... da freguesia de ..., concelho de Guimarães e inscrito na matriz urbana sob o artigo ... e na matriz rustica sob o artigo ... da freguesia de ..., a qual foi posteriormente vendida à sociedade P. – Investimentos Imobiliários, S.A.;
- Contudo, deixou este contrato de ser cumprido em Fevereiro de 2018.
30. Fruto do incumprimento de inúmeras obrigações, o devedor foi demandado em diversas acções de carácter executivo, que resultaram na penhora de vários bens de que era proprietário:
- Processo executivo nº 3649/11.2TBGMR da Comarca de Braga – Juízo de Execução de Guimarães – Juiz 1:
a. O exequente deste processo é o Banco A, S.A.;
b. O devedor foi citado deste processo em 11 de Outubro de 2011 na pessoa de I. B.;
- Processo executivo nº 4262/11.0TBGMR da Comarca de Braga – Juízo de Execução de Guimarães – Juiz 2:
a. É exequente o Banco B, S.A.;
b. O devedor foi citado para este processo, pessoalmente, em 20 de Janeiro de 2012;
c. Em Novembro de 2011 tinha sito tentada a citação postal, contudo a mesma saiu frustrada;

d. Este processo encontra-se extinto desde 6 de Fevereiro de 2018 por inexistência de bens;
- Processo executivo nº 4264/11.6TBGDM da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto– Juiz 8:
a. É exequente o Banco C;
b. O devedor foi citado para este processo em 11 de Setembro de 2012;
- Processo executivo nº 4392/11.8TBGMR da Comarca de Braga – Juízo de Execução de Guimarães – Juiz 2:
a. O exequente deste processo é o Banco D, S.A.;
b. O devedor foi citado deste processo em 26 de Janeiro de 2012;
c. Foram penhoradas as quotas que o devedor detém na sociedade Granitos Y, Lda. no valor de Euros 1.000,00, de Euros 500,00 e de Euros 23.500,00, em Maio de 20...;
- Processo executivo nº 3669/12.0TBGMR-A da Comarca de Braga – Juízo de Execução de Guimarães – Juiz 1:
a. O exequente é a empresa Z - Centro De Equipamentos Mecânicos, S.A.;
b. O devedor foi citado para este processo em 25 de Fevereiro de 2014;
c. Este processo encontra-se extinto por inutilidade superveniente da lide, face à declaração de insolvência dos executados.
- Processo executivo nº 3518/13.1TBGMR-A da Comarca de Braga – Juízo de Execução de Guimarães – Juiz 2:
a. Em que é exequente a Credora S.A.;
b. O devedor foi citado para este processo em 28 de Novembro de 2013;
- Processo executivo nº 3622/14.9TBGMR da Comarca de Braga – Juízo de Execução de Guimarães – Juiz 2:
a. Em que é exequente a PV, S.A.;
b. O devedor foi citado para este processo em 14 de Janeiro de 20...;
- Processo executivo nº 1699/17.4T8GMR da Comarca de Braga – Juízo de Execução de Guimarães – Juiz 2:
a. Em que é exequente o Banco E, S.A.;
b. O devedor foi citado para este processo em 26 de Abril de 2017;
31. O devedor alienou todo o seu património, mobiliário e imobiliário, tendo obtido receitas no valor de mais de Euros 487.000,00,nestes termos:

Os imóveis:

1. Em 27 de Dezembro de 2011 o devedor (conjuntamente com a sua ex-mulher) vende à sociedade P. – Investimentos Imobiliários, S.A. os seguintes imóveis, pelo valor total de Euros 380.000,00:
a. Prédio urbano composto por casa de rés-do-chão, destinada a habitação, dependência para garagem e arrumos, com logradouro, sito no Lugar ..., freguesia de ..., concelho de Guimarães, inscrito na matriz respectiva sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ......;
b. Parcela de terreno destinada a construção designada por lote ..., sita no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Guimarães, inscrita na matriz urbana sob o artigo ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ......;
c. Parcela de terreno destinada a construção designada por lote 9, sita no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Guimarães, inscrita na matriz urbana sob o artigo ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ......;
d. Um terço indiviso de uma parcela de terreno destinada a construção urbana sita no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Paredes, inscrita sob o artigo ...16º e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ......;
e. Um terço indiviso de uma parcela de terreno destinada a construção urbana sita no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Paredes, inscrita sob o artigo ......º e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ......;
2. Sobre os imóveis referidos nas alíneas d) e e) o devedor (conjuntamente com os restantes comproprietários, irmãos M. L. e M. B.) constituíram uma hipoteca a favor do Banco E, S.A. como garantia das responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade X Lda., provenientes de várias operações bancárias;
3. Do produto da venda apenas Euros 190.000,00 deve ser imputado ao devedor;
4. Em 29 de Dezembro de 2011 o devedor cede á sociedade P. – Investimentos Imobiliários, S.A. pelo valor total de Euros 297.124,28, a sua meação nos bens do dissolvido casal constituído, à data, pelo prédio misto composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com logradouro e terreno de mato, sito na Rua ..., ex-lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Guimarães, inscrita na matriz urbana sob o artigo ... e na matriz rústica sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... - ...;
5. Sobre este imóvel foi constituída uma hipoteca a favor do Banco A, S.A. como garantia pelo bom cumprimento do contrato de mútuo que outorgou (conjuntamente com a sua ex-mulher) para construção da casa de morada de família em Abril de 2005.
6. Nesta data desconhece-se qual o destino dado ao produto da venda.

As quotas da empresa W - Granito Natural, Lda.:

1. Em 19 de Janeiro de 2013 o devedor vende, pelo preço de Euros 30.000,00, as duas quotas que deteve nesta sociedade, uma no valor de Euros 24.939,89, outra no valor de Euros 12.469,95, a S. M.;
2. No contrato de cessão de quotas assume o devedor que necessita de “…liquidez de forma premente…”;
3. Pela falta de experiência do cessionário, o devedor/cedente obrigou-se a exercer a função de gerente por mais dois anos contados do contrato de cessão de créditos;
4. Pelo apurado pelo signatário, as IES – Informação Empresarial Simplificada relativa aos anos de 2011 e 2012 apenas foram apresentadas em Junho de 20...;
5. Nesta data desconhece-se ainda qual o destino dado ao produto da venda.
32. Desde o ano de 2011, o devedor entrou numa espiral negativa, quer pelo início das acções executivas que contra o mesmo pendem e a consequente citação das mesmas, quer, em especial, pela alienação da quase totalidade do seu património, mobiliário e imobiliário.
33. O momento determinante para definir a situação de irreversibilidade é a declaração da insolvência da sociedade X Lda. e a consequente situação de desemprego que vive desde Fevereiro de 2017;
34. Apenas em Fevereiro de 2018, um ano depois, o devedor se apresentou a tribunal e requereu que fosse declarada a sua insolvência
35. Ao requerente não lhe são conhecidos antecedentes criminais, relevantes para este incidente; ”.

IV. APRECIAÇÃO

Nos artºs 235º a 248º, componentes do capítulo I do título XII do CIRE (aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei nº 200/2004, de 18 de Agosto, Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março, Decreto-Lei nº 282/2007, de 07 de Agosto, Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho, Decreto-Lei nº 185/2009, de 12 de Agosto, Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei nº 26/20..., de 06 de Fevereiro, Decreto-Lei nº 79/2017, de 30 de Junho, rectificado, Lei nº 114/2017, de 29 de Dezembro, e Lei nº 8/2008, de 2 de Março), relativo às disposições específicas da insolvência de pessoas singulares, prevê-se a possibilidade de o devedor insolvente se ver livre dos seus débitos (créditos sobre a insolvência) que não forem integralmente pagos no respectivo processo ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, e os termos em que tal lhe pode ser concedido.

Trata-se do chamado mecanismo da exoneração do passivo restante.

A sua novidade e importância mereceram no (nº 45) preâmbulo do referido diploma longa justificação:

“O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».

O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo a insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado por período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.

A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.” (1)

Pressuposto básico da concessão de tal benefício é, desde logo, como parece óbvio e resulta claro do artº 235º, que, não obstante a apreensão dos bens e sua subsequente liquidação, os créditos sobre a insolvência não tenham sido integralmente pagos (ou nos cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência) mas, concomitantemente, que, quer no caminho que conduziu à insolvência quer no desenvolvimento do respectivo processo, a conduta do devedor se tenha sempre pautado pela “licitude, honestidade, transparência e boa-fé”. (2)

Assim, de acordo com o artº 236º, nº 1, o pedido de exoneração é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência, com observância dos requisitos e condições aí previstos.

A sua efectiva concessão (em decisão a proferir a final) pressupõe, à partida, de acordo com o artº 237º, que:

i) não exista qualquer dos motivos de indeferimento liminar previstos no artº 238º;
ii) seja proferido despacho inicial declarando que a exoneração será concedida se o devedor observar as condições estabelecidas no artº 239º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência;
iii) não seja aprovado e homologado um plano de insolvência;
iv) após o período legal de 5 anos, caso sejam cumpridas as condições, o juiz emita o despacho a que alude o artº 244º.

Embora reconhecendo-se como, em geral, subjacente ao Código uma ideia de realização de um certo interesse público materializado na já referida atribuição à primazia da vontade dos credores na escolha da melhor solução quanto à satisfação, o mais eficiente possível e em condições de igualdade, dos seus créditos e, assim, quanto ao destino do insolvente e seu património, em vista da repercussão que o incumprimento acarreta para o regular e sadio funcionamento do mercado, não deixa ele de contemplar, apesar disso, uma atenção especial às pessoas singulares, reflectida em mecanismos facilitadores da sua reabilitação ou reintegração plena na vida económica – olhando a que à situação de agente de relações dessa natureza sobrevém sempre a de uma pessoa humana – na mira de que, aprendida a lição e caso se tenha portado bem lhe seja oferecida nova e merecida oportunidade de começar de novo e retomar o exercício da sua actividade económica. (3)

No limite, portanto, de acordo com o artº 245º, o devedor pode ver-se livre dos créditos ainda não satisfeitos à data da concessão da exoneração e os credores verem-nos extintos, quiçá na sua totalidade se nada entretanto tiver sido pago, sem apelo (salvo os aí excepcionados). (4)

Tal concessão passa por dois momentos fundamentais: o do chamado despacho inicial (ou liminar) previsto nos artigos 237º, alínea b), e 239º; e o da decisão final de exoneração, aludido no artº 244º.

Desta disposição resulta que a exoneração é recusada, após o termo do período de cessão, além de outros (incumprimento, nos termos da alínea a), do nº 1, das obrigações impostas pelo artº 239º, ou em função do resultado do incidente de qualificação da insolvência, como decorre da alínea c), do mesmo número), também pelos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente – requisitos estes que, conforme artº 243º, se aproximam dos substantivos previstos no artº 238º a avaliar liminarmente.

Logo do trecho do preâmbulo acima transcrito e da própria letra do artº 235º se extrai que o princípio geral nesta matéria é o de que pode ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência.

Daí que, a propósito do pedido, mais não exige o artº 236º, nº 3, num claro e franco apelo à confiança, lealdade e boa-fé, senão que do requerimento conste expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos (e se dispõe a observar todas as demais condições exigíveis). (5)

Isto sem embargo de aos credores e ao administrador dever ser dada a possibilidade de, quiçá contraditoriamente, se pronunciarem, conforme nº 4, do mesmo artigo, e 238º, nº 2.

O próprio artigo 237º, alínea a), refere que a concessão pressupõe que não exista motivo para indeferimento liminar.

Por seu turno, o artº 238º, estabelece que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se ocorrerem as circunstâncias descritas nas alíneas a) a g), do seu nº 1.

Entre elas, a da alínea e):

“Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º.”

Não se descrevem, portanto, naquele artigo, pressupostos ou requisitos positivos do deferimento da pretensão do devedor, como se deles dependesse o nascimento ou existência e correspondente exercício do respectivo direito. Antes se indicam circunstâncias que, a verificarem-se, levam a negá-lo, mesmo liminarmente.

Tal inculca a ideia de que a regra é o deferimento liminar do pedido de exoneração, sendo o requerimento como que uma manifestação de um direito potestativo.

Excepção é o indeferimento, dependendo esta da verificação de alguma das situações referidas nas diversas alíneas.

Situações que, portanto, não são apresentadas como elementos constitutivos do direito à exoneração, mas antes como elementos impeditivos da sua admissão (logo, da concessão).

Umas, como as das alíneas a), c) e f), pela sua natureza e forma de se revelarem, são certamente de mais fácil controlo imediato pelo juiz em função do que ao processo seja aportado pelos interessados ou ele oficiosamente indague.

Outras, como as relativas à culpa e ao prejuízo referidos nas b), d), e) ou g), que contendem com aspectos materiais ou substantivos, de apuramento efectivo mais difícil de conseguir nas circunstâncias fácticas escassas em que é proferido o mero despacho liminar, tendo em conta os normais critérios de distribuição das regras do ónus da prova. (6)

Relevando, pois, na indagação e na indicação de elementos e provas, o papel dos credores e do administrador da insolvência (no que poderão ser adjuvantes os poderes inquisitórios do juiz aludidos o artº 11º), é evidente que a tarefa do devedor requerente se apresenta facilitada.

Ainda que, porém, o pensamento legislativo nesse sentido condescendente se mostre norteado pela boa ideia de recuperar economicamente o agente e humanamente a pessoa, ele não deixa de se mostrar perpassado pela preocupação de que tal apenas se viabilize estando garantida a seriedade, confiança, lealdade e boa-fé ínsitos ao procedimento e aos fins específicos do processo.

Neste, com efeito, não têm lugar e devem mesmo ser barradas, se detectadas, quaisquer intenções fraudatórias ou desejos caritativos (7).

O próprio mecanismo da exoneração não contempla um gracioso perdão generalizado de dívidas. Visa premiar um sério respeito e responsável esforço pela satisfação dos interesses dos credores.

Modo eficazmente revelador da ausência daqueles e da presença destes e, assim, do merecimento de tal benefício (excepcional), será a persistência e apresentação, perante os credores, do acervo patrimonial que, não obstante, a situação, o devedor, espontânea e zelosamente, cuidou de conservar tendo em conta a sua primordial função de garantia genérica das responsabilidades contraídas pressupondo a sua existência, bem como a perspectiva real de, durante os cinco anos, obter ou continuar a auferir rendimentos susceptíveis de lhes serem ainda cedidos em satisfação parcial da dívida, deste modo atenuando o sacrifício dos lesados mas concomitantemente reafirmando, com tal esforço e persistência, a sua seriedade e honradez justamente de premiar com a extinção de todos os créditos que, apesar de tudo, entretanto, “não forem integralmente pagos” e “ainda subsistam”.

Ora, na decisão recorrida, entendeu-se que nenhuma circunstância de entre as legalmente previstas como impeditivas do deferimento liminar se verificam, salvo a da alínea e), do artº 238º, do CIRE, considerada preenchida.

Com fundamento nesta norma – mas só nesta – se indeferiu o pedido liminarmente.

Com efeito, depois de largamente se justificar o não preenchimento da alínea d), e de sobre o caso concreto se salientar que “resulta dos autos e dos factos que se fez constar, que a situação de insolvência adveio apenas e tão somente dos factos praticados pelo insolvente enquanto gerente/administrador de várias sociedades, as quais cessaram funções ou ficaram insolventes e da venda do seu património pessoal e quotas das mencionadas sociedades“, que “Efectivamente a sua situação sócio-económica não se agravou ou alterou antes ou depois do pedido de insolvência, porquanto as restantes dívidas que são apenas a título pessoal, são irrisórias.” e ainda que “delas tinha conhecimento há muito tempo, conforme se pode aferir das datas das execuções contra si interpostas e das datas das citações para os mencionados processos.”, quanto à alínea e), referiu-se:

“E neste caso concreto, o insolvente, com culpa grave, colocou-se em situação de insolvência, com a alienação dos bens, de valor elevado e a manutenção das dívidas, com o avolumar da situação, até chegar a uma responsabilidade pelo passivo de 2,5 milhões de euros.

[…]
Ora há muito que o insolvente tinha perfeita noção da sua situação de insolvência, mormente quando decidiu alienar todos os seus bens, de forma a que, não seria possível ser executado quanto aos vários créditos que já possuía. E quando a empresa principal que possuía é declarada insolvente e deixa de ter qualquer rendimento, não se apresenta à insolvência, mas continua a declarar entregar €300 por mês para ajudar nas despesas com a filha portadora de deficiência, não se entendendo a proveniência dessa quantia. Afigura-se-nos, que com os comportamentos relatados e que saem fora da esfera temporal para a qualificação da insolvência e para a resolução, mas já não para a apreciação em termos de exoneração do passivo restante, o insolvente agravou a situação da insolvência, ficando sem meios de pagar, ainda que parte, dos seus créditos.”

E seguindo Jurisprudência, inclusive desta Relação, na qual se salientou que “o incidente de exoneração do passivo restante não pode redundar num instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social prosseguido”, é necessário prevenir os “abusos”, “sendo por isso que logo na fase liminar de apreciação do pedido se instituem os requisitos mais apertados a preencher e a provar, devendo a conduta do devedor ser analisada através da ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta”, dependendo o deferimento inicial de se “poder concluir ter tido o devedor um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé, no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência”, concluiu que: “No caso presente, ponderando os factos apurados, verificámos que existem elementos que indiciam com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.”

Quanto a isto, contrapõe o apelante, apenas, que:

-uma vez junto o relatório a que se refere o artº ...5º, do CIRE, o tribunal “aventou não existirem nos autos factos ou informações que importassem declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência” e o Juiz do processo não o declarou aberto, pelo que, tratando-se do mesmo fundamento, tal abstenção impede o indeferimento liminar do pedido de exoneração.
-o deferimento liminar depende, apenas, da existência de “condições mínimas”, é provisório e só no final do período de cinco anos a exoneração é concedida ou não.
-foi feita errada interpretação e aplicação da norma em apreço.
-foi sempre preocupação do recorrente pagar pontualmente os salários das centenas de trabalhadores e tal só foi possível porque decidiu alienar os seus bens, tanto que na insolvência da “X” não foram reclamados créditos dessa natureza.
-devendo a culpa, para os efeitos da alínea e), do artº 238º, corresponder às exigências do artº 186º, na situação dos autos tal não se configura.

Haverá, pois, neste caso, resultantes do processo ou fornecidos pelos credores ou pelo administrador e conforme alínea e), do artº 238º, do CIRE, indícios prováveis de existência de culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artº 186º?

No nº 1 desta norma prevê-se que – por contraposição a “insolvência fortuita” – “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (nº 1).

No seu nº 2, estabelece-se que a insolvência é “sempre culposa” quando o devedor que não seja pessoa singular, tenha praticado ou omitido certos factos e, entre eles, conforme aí referido, eliminado do seu património parte considerável dos bens ou disposto destes em proveito pessoal ou de terceiros (alíneas a) e d).

Ao dizer-se, no nº 1, que “a insolvência é culposa …” a conjunção “quando” não visa, logo nem apenas, a inserção temporal da “situação” a seguir traçada como a necessária ao preenchimento daquela noção. Ela destina-se, antes, a definir os pressupostos condicionadores da mesma. Tal situação releva, para o efeito, se for originada ou resultar agravada por uma (qualquer) actuação censurável do devedor.

Só no fim a relação entre a situação condicionante definida e a situação de insolvência culposa em função dela considerada se apresenta temporalmente balizada por referência aos “três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

Ao dizer-se, no nº 2, que é ou se considera “sempre” culposa a insolvência “quando” ocorram os factos a seguir objectivados, tal advérbio não visa modificar aquela relação temporal, antes referida no nº 1 como a relevante (os três últimos anos anteriores…).

A conjunção aposta pretende, isso sim, modificar o núcleo dos aludidos pressupostos ou condições exigíveis, dispensando a verificação dos antes em geral enunciados e bastando-se com os de seguida tipificados nas suas diferentes alíneas (presumindo a sua ocorrência e dispensando a sua demonstração). Não pretende alterar o período temporal em que, para relevarem, eles devem acontecer.

Nesse nº 2, elimina-se, pois, a exigência, para que o conceito de insolvência culposa se preencha e opere, de que, comprovadamente, uma certa conduta do devedor seja efectivamente censurável segundo qualquer das modalidades e graus admitidos (dolo – directo, necessário ou eventual – ou negligência grave) e causadora do estado de insolvência ou do agravamento deste, considerando verificados estes elementos e, por isso, dever ser reprovado o devedor sempre que e desde que ocorra qualquer dos factos indicados em qualquer das alíneas.

Sempre não constitui, no contexto, um complemento circunstancial de tempo. A palavra significa que, verificados certos actos com a mesma referidos, a insolvência deve ser qualificada como culposa, independentemente dos requisitos genéricos para tal exigidos no número anterior (modalidade da culpa e resultado). Não se refere ao complemento “nos três anos anteriores ao início do processo” nem o altera, v.g., para “em qualquer momento”.

Mas não prescinde dele.

Sendo este o sentido literal, não diverge o sentido jusnormativo.

Como se explica no preâmbulo do diploma aqui em análise, “entende-se” que a insolvência é culposa “quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” e “indica-se” que “a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos actos”.

Não se diz que o é independentemente de qual tenha sido o momento em que eles tenham ocorrido nem se concebe que tal tenha estado no espírito do legislador, uma vez que normalmente tal género de efeitos previstos para determinadas condutas não se projectam indefinidamente, como sucederia caso se entendesse excluída do nº 2 o segmento “nos três anos anteriores ao início do processo”, antes são temporalmente balizados.

Assim, quando, segundo o nº 1, certa conduta (activa ou omissiva), mas em geral não concretamente tipificada, for imputável, a título de dolo ou negligência grave (segundo o conceito geral desses tipos subjectivos) ao devedor e, em consequência dela (nexo causal), tiver sido criada ou agravada a situação de insolvência, esta considera-se culposa.

Neste conceito, portanto – de insolvência culposa – estão compreendidos:

-o requisito objectivo: qualquer actuação do devedor ou seus administradores; (8);
-o requisito subjectivo: dolo ou culpa grave;
-o resultado: criação da situação de insolvência ou o agravamento dela;
-a relação consequente daquela actuação com este resultadonexo de causalidade. (9)

Nas diversas hipóteses previstas no nº 2, em função de cuja verificação se considera sempre culposa a insolvência (ou seja, sempre preenchido o conceito do nº 1), além de inilidível (jure et jure), por força da parte final daquela norma civilística, tal presunção abarca todos os demais elementos.

Não tem, portanto, sentido, quanto a elas, discutir-se se o nexo de causalidade deve ser provado como requisito autónomo, uma vez que na presunção ele está compreendido. Provados aqueles factos base e, obviamente, a situação de insolvência, a culpa dos administradores da pessoa colectiva e a relação causal entre a sua conduta censurável e aquele resultado presumem-se “sempre”, não podendo ser afastados por prova em contrário.

Neste sentido, e por exaustivo, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 07-02-2012, de cujo sumário destacamos:

“II - A insolvência é culposa quando esse estado tiver criado ou agravado em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 186 nº 1 do CIRE).
III - A qualificação da insolvência como culposa reclama, portanto, uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores.
IV - A ilicitude do comportamento do devedor ou dos seus administradores reparte-se por elementos objectivos e subjectivos.
V - A culpa do devedor ou dos seus administradores decorre de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura.
VI - A censurabilidade da conduta é uma apreciação de desvalor que resulta do reconhecimento de que o devedor, ou os seus administradores, nas circunstâncias concretas em que actuaram, podiam ter conformado a sua conduta de molde a evitar a queda do primeiro na situação de insolvência ou agravamento do estado correspondente.
VII - A censurabilidade do comportamento do devedor ou dos seus administradores é um juízo feito pelo tribunal sobre a atitude ou motivação de um e de outros, segundo o que pode ser deduzido dos factos provados.
VIII - A lei considera sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja pessoa singular, designadamente quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham destruído ou descaminhado, no todo ou em parte, o património do devedor ou tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada (artº 186 nº 2 a) e h), 1ª parte, do CIRE).
IX - Trata-se, nitidamente, de uma presunção absoluta, inilidível ou iuris et de iure, dado que impõe um regime, não admitindo prova em contrário (artº 350 nº 2, in fine, do Código Civil).” (10)

Também no Acórdão daquela mesma Relação do Porto, de 07-07-2016 (11), sobre a matéria se entendeu:

“I - Nos termos do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham praticado qualquer facto enunciado nas suas várias alíneas.
II - Do advérbio “sempre”, retiram a doutrina e a jurisprudência, de forma pacífica, a conclusão de que a presunção estabelecida pela norma, relativamente aos comportamentos enunciados nas suas várias alíneas tem natureza inilidível ou iuris et de iure.“

Semelhantemente se refere no Acórdão também da Relação do Porto, de 07-12-2016 (12):

“I - Para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. Porém, verificada uma das situações do n.º 2 do art. 186.º do CIRE presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa.”

Atentos os valores e interesses que giram em torno do processo de insolvência e a necessidade de prevenir e sancionar comportamentos censuráveis em que tal domínio publicamente é considerado fértil e de modo especial no desfecho de muitas empresas, com graves repercussões na sociedade e na economia, deve salientar-se a importância e rigor requeridos neste tipo de processo e, sobretudo, do papel, ainda que residual, que nele ao Juiz é cometido por via dos poderes inquisitórios cometidos no artº 11, papel este cujo desempenho deve ser motivado, esclarecido e orientado sempre pela preocupação de compreender e ponderar todos os contornos relevantes de cada caso e das suas circunstâncias na perspectiva de alcançar a justa decisão.

Sendo a indagação dos elementos de que depende a qualificação da insolvência complexa e difícil, compreende-se que o legislador tenha estabelecido presunções legais supostamente destinadas a facilitar a qualificação mas cujo preenchimento fáctico, dada a multiplicidade de actuações e resultados diversos contidas nas várias hipóteses normativamente previstas e diversidade de elementos de cada uma, constitui tarefa, ela própria, complexa e requerente de empenho e árduo labor.

Como a tal propósito se refere no Acórdão desta Relação de Guimarães, de ...-10-20... (13):

“2. É uniforme a interpretação de que o n.º 2 do artº 186 do CIRE elenca diversas situações em que o legislador presume, de forma taxativa e inilidível, ou seja, sem possibilidade de prova em contrário, que a insolvência é culposa.
3. E o legislador fê-lo porque a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Fê-lo para facilitar essa qualificação mas concretizou-o a partir de factos graves e de situações que exigem uma ponderação casuística, temporalmente balizadas pelo período correspondente aos três anos anteriores à entrada em juízo do processo de insolvência.
4.Lidando com uma presunção, sabemos que ela vai perdendo sustentação com um tempo excessivo decorrido entre o ato e o processo. Já se o ato ocorre próximo do processo ou durante o mesmo, a sua ligação à criação ou agravamento da insolvência é mais forte, sustentando melhor a presunção de culpa e o nexo de causalidade.”

Além desta preconizada explicação jurídica, é evidente a intenção legislativa, atendendo a vários motivos e objectivos, de restringir no tempo a relevância e as consequências de certas condutas.

Ora, se a “culpa” do insolvente considerada relevante para justificar o desmerecimento e negação do benefício da exoneração do passivo, por força da alínea e), do nº 1, do artº 238º, deve ser apreciada “nos termos do artº 186º” e se, mesmo para a qualificação da insolvência e inerentes consequências sancionatórias, o âmbito destas está em tal norma confinado aos “três anos anteriores ao início do processo”, por maioria ou, pelo menos, por idêntica razão, faz todo o sentido que a este período deve estar limitada a verificação dos pressupostos excludentes do deferimento liminar naquela norma exigidos.

Como diz Manuel Carneiro da Frada, “Existe em todo o caso um limite temporal a considerar: só é relevante a causação ou o agravamento da insolvência por condutas ocorridas dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Não está em jogo um prazo de prescrição ou de caducidade de determinado direito. Há é uma modelação temporal da situação de responsabilidade relevante. Ela não carece de ser invocada, sendo, como todo o direito objectivo, de conhecimento oficioso.” (14)

Em tal interpretação, embora não a justificando, alinham Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (...):

“…por força do n º 1, uma actuação com as características e a relevância acima identificadas deixa de ser atendida, para o efeito de qualificar a insolvência como culposa, se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
[…]
Apesar de o nº 2 não estabelecer, em nenhuma das suas alíneas, um limite temporal para a relevância dos factos nela previstos, a sua articulação com o nº 1 leva-nos a sustentar que é de atender, para o efeito, ao prazo neste estatuído.”

Bem como a Jurisprudência que sobre o tema se debruçou.

Assim:

-Acórdão da Relação do Porto, de 25-01-2011 (16)

“O prazo de três anos previsto no artº 186º, nº 1, do CIRE igualmente se aplica às situações previstas no nº 2 do mesmo preceito”.

-Acórdão da Relação de Guimarães, de 16-01-2014 (17):

“A disposição dos bens em proveito de terceiros é irrelevante para a formação do juízo de culpa, se tiver ocorrido fora do limite temporal definido no Artº 186º/1 do CIRE”.

-Acórdão da mesma Relação, de 25-02-2016 (18):

“VI) - Para que se considere culposa a insolvência não basta o preenchimento de algumas das alíneas do nº. 2 do artº. 186º do CIRE, sendo também necessário o preenchimento do limite temporal dos 3 anos previsto no nº. 1 daquele dispositivo legal.
VII) - Deste modo, apenas os actos praticados nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência serão relevantes para efeitos do preenchimento do nº. 2 do mencionado artº. 186º. Só não será assim relativamente à hipótese prevista na alínea i) do nº. 2, que poderá respeitar a período posterior à declaração de insolvência.”

Embora menos incisivamente mas inferindo-se ter perfilhado a mesma orientação, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 18-01-2018: (19)

“I - É de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor quando este, dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tiver doado a favor dos seus filhos menores o único bem imóvel que integrava o seu património.
II - Nessa situação, subsumível à previsão do artigo 186º, n.º 2, alínea d), do CIRE, aplicável por força do artigo 238º, n.º 1, alínea e), do mesmo diploma legal, presume-se, “iuris et de iure”, não só o carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, como o nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência.”

Ora bem. Vejamos este caso.

Comecemos por salientar que o recorrente não pôs em causa a matéria de facto seleccionada como relevante e julgada como provada.

Sem a enfrentar e sem propriamente a valorar juridicamente, também não atacou, directa e fundamentadamente como lhe é exigível para abalar a decisão e eventualmente lograr alterá-la, o juízo de subsunção a partir daquela empreendido pelo tribunal a quo à norma cuja previsão hipotética este acabou por considerar preenchida no caso.

Limitou-se, por um lado, nas suas alegações, a deste resultado discordar e a acrescentar que a situação não se configura.

E, por outro, a escolher e elencar alguns dos pontos de facto dados como provados e a, entre eles, inserir um que nem sequer o foi, procurando relevá-lo.

Com efeito, alegou ter resultado provado nos autos – não na decisão! – que “Ao longo do tempo o Recorrente viu-se forçado a alienar os seus bens para pagar aos credores e trabalhadores”.

Extraiu desse alegado pressuposto que a sua preocupação foi sempre a de pagar salários de centenas de trabalhadores, foi para isso que resolveu alienar os seus próprios bens, pois de outra forma não existiria dinheiro, o que aconteceu com os da “X”, tanto assim que nenhum crédito laboral aí existia, apresentando esta um activo elevado e um passivo elevado mas nada foi alienado.

Ora, como se disse, do elenco fáctico constante da decisão recorrida, não resulta um tal cenário.

De resto, o recorrente não impugnou a matéria dada como provada, nem defendeu a sua insuficiência e necessidade de aditamento.

Pelos elementos de que dispomos no processo, não se vislumbra que aquelas circunstâncias resultem verdadeiramente demonstradas nem, por isso, que, porventura por iniciativa oficiosa, devam ser acrescentadas.

Aliás, a intenção com que actuou, segundo o relatório do administrador, não foi a de favorecer os trabalhadores, mas a de se desfazer – de forma leviana, diz ele – do património, afastando-o dos credores e, portanto, prejudicando-os.

Daí a inconsequência manifesta da argumentação a tal propósito tecida, mormente quanto ao seu relevo para que se possa considerar meritória a actuação do devedor ou, pelo menos, a desculpabilizar.

O mesmo sucede quanto ao outro argumento respeitante à não declaração de abertura do incidente de qualificação da insolvência.

Em primeiro lugar, sendo certo que, na verdade, uma vez junto o relatório e não obstante o nele referido e a posição expressa do Administrador, nenhuma decisão foi proferida quanto a tal matéria, como consta do processo, não significa tal abstenção que o tribunal “aventou não existirem nos autos factos ou informações que importassem declarar aberto” o incidente nem, por decorrência, qualquer impedimento de indeferir o pedido de exoneração com fundamento na alínea e), apesar de esta exigir a culpa do devedor na criação ou no agravamento da situação de insolvência.

Quando muito, a entender-se que, daquela junção e naquela fase, decorria um dever de o tribunal se pronunciar sobre tal questão, estar-se-ia, apenas, perante uma omissão de pronúncia com eventuais consequências no procedimento. Não com o efeito de levar a presumir que o tribunal entendeu, por isso, não existir culpa pela insolvência e que, querendo ser coerente, não poderia agora considerá-la verificada para efeitos de negar a exoneração do passivo.

Não é assim, desde logo porque o nº 1, do artº 188º, faz depender a declaração de o juiz tal “considerar oportuno”, não a impõe. Nenhuma ilação na lei se consagra nem se vê fundamento doutrinário ou jurisprudencial para admitir que, caso tal oportunidade não seja considerada nem aproveitada, daí se deve inferir a inexistência de culpa ou a impossibilidade de a verificar em sede e para efeitos de incidente de exoneração do passivo restante. (20)

Não o é, além disso, porque despropositada e erradamente invocados e interpretados, pelo recorrente, os dois acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra que apontou em abono da sua tese.

É que são realidades jurídicas distintas, do ponto de vista adjectivo e material, nada ter sido dito a propósito da qualificação da insolvência e ter sido proferida decisão judicial a declará-la fortuita.

É disto que tratam os dois arestos, não completamente identificados nem localizados, mas que, por certo, são os de 29-02-2012 e 24-04-2012, proferidos nos processos nºs 170/11.2TMGR-C.C1 e 399/11.3TBSEI-E.C1. (21)

Ambos defendem, é verdade, que tendo sido proferida decisão judicial a declarar fortuita a insolvência no respectivo incidente, não deve o incidente de exoneração do passivo restante ser indeferido, designadamente, com base na alínea e), do nº 1, do artº 238º.

A razão, porém, é óbvia nesse caso: o tribunal fica vinculado ao decidido antes quanto à questão da culpa e não pode desrespeitar o caso julgado assim formado no âmbito do processo a que respeitam tais incidentes, nos termos do artº 185º, do CIRE, por interpretação a contrario, e das regras gerais do processo civil aplicáveis.

Nada mais se colhe de tal jurisprudência, como pretende o apelante.

Enfim, não ocorre, no caso, nenhuma relação de necessária dependência deste em relação à questão da qualificação, muito menos como obstáculo ao indeferimento liminar daquele.

O argumento adrede de que o deferimento liminar depende, apenas, da existência de “condições mínimas”, que ele é provisório e que só no final do período de cinco anos a exoneração é concedida ou não, é falacioso e inconsequente.

Na verdade, as condições são as fixadas nos artºs 236º a 239º. O problema da sua verificação e aplicação não consiste em qualquer graduação relativa nem é de maior ou menor exigência.

É sim de compreensão e subsunção rigorosas, como acima se viu, dos princípios e regras respectivos, na fase da apreciação liminar, em cuja conformação estão já vertidas as intenções legislativas, designadamente de índole humanista, ligadas à recuperação do devedor.

Não é de entendimento ou concretização mais flexível das normas, como parece ter-se querido sugerir, a pretexto de só no final do período de cinco anos a exoneração ser efectivamente concedida, uma vez que, entretanto, há exigências a cumprir, sérios interesses (de devedor e credores) a acautelar e efeitos a prevenir que poderão ser postos em risco ou mesmo comprometidos se a fasquia inicial erguida pela lei não for transposta de modo peremptório.

Assinale-se também que não discute o recorrente e, por isso, não se nos coloca como questão concreta a reapreciar o problema da inserção temporal dos factos tidos por relevantes para preencher a citada alínea, problema este que acima delineámos.

Remetendo a norma da alínea e), do nº 1, do artº 238º, para os “termos do artº 186º”, em cujo nº 1 se baliza o período – três anos anteriores ao início do processo de insolvência – dentro do qual devem situar-se os factos contribuintes para a criação ou agravamento da situação de insolvência, referiu o tribunal que os comportamentos relatados “saem fora da esfera temporal para a qualificação da insolvência e para a resolução, mas já não para a apreciação em termos de exoneração do passivo restante”. Por isso, os relevou.

Não sendo esta, como se viu e se justificou, a perspectiva que temos sobre isso, o certo é que, estando ou não os factos integrantes da culpa dentro de tal período, não é tema deste recurso pronunciarmo-nos e decidirmos sobre a correcção, quanto a tal segmento, daquele juízo feito pelo tribunal a quo, uma vez que o apelante não o tocou sequer.

Por aqui nos poderíamos, por isso e pelo que já antes se disse, quedar.

Ainda assim, sempre se acrescente, uma vez que o recorrente refere não se verificar a culpa e apesar de não dizer porque entende ser assim e, sobretudo, de não criticar, como é suposto que fizesse, o juízo emitido sobre ela na decisão recorrida, mais o seguinte.

Ao remeter-se, na alínea e), do artº 238º, para os “termos do artº 186º”, não há dúvida, como já atrás se deixou escalpelizado, que nesses “termos” se compreendem as circunstâncias de tempo atendíveis, as diversas hipóteses ou modos de actuação em que a conduta pode manifestar-se e provar-se na sentença e, bem assim, o nexo de causalidade entre aquela actuação e o referido resultado.

Há, porém, uma diferença respeitante ao nível da prova ou da demonstração da realidade fáctica a considerar.

Enquanto que ali (artº 186º) os factos têm de ser julgados demonstrados na sentença de qualificação, uns efectivamente e outros presumidamente (22), aqui no despacho liminar (artº 238º) que deve recair sobre o pedido de exoneração do passivo restante, bastam “elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor”.

Indícios, portanto, da probabilidade. Não demonstração da realidade.

Tal se compreende porque, na qualificação, está em causa um juízo definitivo sobre a responsabilidade pela insolvência, a fazer e a declarar em sentença, com efeitos pessoais e patrimoniais severos, aliás dependentes da modalidade e grau de culpa considerados, no caso de transitar em julgado a declaração de que foi culposa.

Enquanto que, na exoneração, se trata apenas de viabilizar a possibilidade de concessão de um benefício extraordinário ao devedor insolvente, sujeito ainda a prova durante o longo período de cinco anos, com todas as implicações que tal duração acarreta, mas que o legislador entendeu logo de impedir e rejeitar ad limine quando se verifiquem circunstâncias que o indiciem como desmerecido ou façam perspectivar como inconsequente e apenas redundantes num perdão da dívida, como é o caso de se perfilarem indícios de que, com toda a probabilidade, existem indícios de culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência.

Indícios que no caso resultam patentes.

Além disso, como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra de 29-02-2012, invocado pelo recorrente e já atrás referido, “O deferimento inicial do requerimento para exoneração do passivo restante depende não apenas da não verificação dos fundamentos de indeferimento previstos no artigo 238º do CIRE, mas também, numa interpretação teleológica e em conformidade com a Constituição, da verificação da possibilidade de satisfação de um mínimo do passivo existente, mediante a liquidação do activo existente e pela cessão do rendimento disponível durante cinco anos.”

Com efeito, como aí se explica:

“A exoneração do passivo restante, como se expõe no número 45 do preâmbulo do decreto-lei nº 53/2004, de 18 de Março que aprovou o CIRE, constitui o acolhimento entre nós do “princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência”, princípio que “é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».”

Suscita-nos algumas reservas a afirmação contida no mesmo ponto do citado preâmbulo de que o “Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, na medida em que dos requisitos necessários para o deferimento do requerimento para exoneração do passivo restante não consta que seja necessária a satisfação de um valor mínimo dos créditos dos credores do insolvente.

Assim, interpretadas literalmente as referidas normas, a não se relevar a alusão à exoneração do passivo restante, referência que tem ínsita a necessária satisfação de pelo menos algum passivo, permitindo o funcionamento do instituto em análise mesmo em casos em que à partida se sabe que não se logrará qualquer satisfação do passivo, agravando-se o mesmo ainda mais por força das despesas com o fiduciário (artigo 240º do CIRE), afigura-se-nos que tal regime constituirá uma ofensa desproporcionada e injustificada dos direitos dos credores, incurso em inconstitucionalidade material por conjugação dos artigos 18º, nº 2 e 62º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.

Deste modo, entende-se que o deferimento inicial do requerimento para exoneração do passivo restante depende não apenas da não verificação dos fundamentos de indeferimento previstos no artigo 238º do CIRE[8], mas também, pelas razões já antes aduzidas, numa interpretação teleológica e em conformidade com a Constituição, da verificação da possibilidade de satisfação de um mínimo do passivo existente, mediante a liquidação do activo existente e pela cessão do rendimento disponível durante cinco anos. ”

Não resulta dos autos tal possibilidade.

Pelo contrário, tendo em conta que o insolvente se desfez de todo o seu património, não lhe são conhecidos quaisquer rendimentos, nada se sabe sobre o destino dos preços da venda de bens por ele feita, está desempregado e as dívidas atingem quase três milhões de euros, verifica-se impossibilidade de algo vir a ser pago.

De resto, ele requereu a insolvência em Fevereiro de 2018. Considerou-se na decisão recorrida, e o recorrente corroborou, que foi com a declaração de insolvência da “X” – Março de 2017 – e o consequente desemprego desde Fevereiro de 2017 que se tornou irreversível a situação de incapacidade para solver as suas dívidas. Como rendimentos e bens, só se lhe conhecia o salário de 1.000€/mês naquela, as quotas nessa e em mais duas, a meação nos bens comuns do ex-casal, tudo vendido, desconhecendo-se o destino do que recebeu em contrapartida.

Apesar disso e das responsabilidades familiares (primeiro com os filhos menores e depois com a maior, mas esta com elevado grau de incapacidade e necessidades de apoio), de, desde 2011, estar a ser demandado em vários processos executivos (oito), por incumprimento de “inúmeras obrigações”, o último dos quais instaurado em 2017, das vicissitudes das sociedades em que era sócio e que geria ou administrava, foi contraindo dívidas avultadas (a Bancos, ao Estado e à Segurança Social), que atingiram globalmente cerca de 3 milhões de euros, ao mesmo tempo que se foi despojando de todo o património, desligando ou inactivando as sociedades e culminando na, obviamente perspectivada, insolvência da “X” em Março de 2017 (desde 2012 em tentada mas frustrada revitalização) e que constituiu o epílogo da “espiral negativa” em que entrou e da “situação de irreversibilidade a que chegou” e para cujo avolumar contribuiu consciente e censuravelmente, uma vez que lhe era exigível deter-se em momento anterior e em circunstâncias que ainda lhe teriam permitido, se não inverter, pelo menos atenuar, tal desfecho.

Como, a este respeito, também eloquentemente se considerou no Acórdão da Relação de Coimbra, já referido e que mais uma vez lembramos, citando-o:

“A questão que se coloca é a de saber se a conduta da insolvente deve ser qualificada como culposa e, na afirmativa, qual a modalidade de culpa que lhe corresponde.

Em direito civil, a culpa é aferida de acordo com um padrão objectivo, correspondente à conduta que um bom pai de família adoptaria no caso concreto, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil, também aplicável à responsabilidade contratual por força do disposto no artigo ...º, nº 2, do Código Civil). Além disso, essa culpa é apreciada enquanto deficiência da conduta e não como deficiência da vontade.
A culpa grave, como é sabido, enquanto modalidade da negligência, pressupõe a inobservância dos deveres de cuidado que a generalidade das pessoas observam.
Revertendo ao caso dos autos importa sopesar toda a factualidade provada e perguntar se a conduta da insolvente corresponde àquela que um bom pai de família adoptaria em face das circunstâncias do caso e, além disso, concluindo-se que um bom pai de família não adoptaria a referida conduta, se a mesma envolve ou não a inobservância dos deveres de cuidado que a generalidade das pessoas observam.”

E interrogando-se, na situação ali em análise, que para esta se pode transpor perfeitamente, se um bom pai de família, com os rendimentos e património que possuía, teria contraído tamanhas responsabilidades, umas sobre outras, ao longo de anos, ficando despido e em situação miserável, continuou:

“A resposta a esta interrogação parece-nos claramente negativa, quer porque face às responsabilidades já contraídas, a situação financeira da insolvente já se apresentava consideravelmente degradada, estando sujeita a que o credor da obrigação contraída em […] lhe exigisse o pagamento da totalidade em dívida, quer ainda atenta a própria finalidade da contracção da dívida, porquanto se tratava manifestamente de uma destinação envolta em riscos […].

E porque se trata de aferir da correcção da conduta da insolvente, salvo melhor opinião, não relevam as considerações afectivas subjacentes ao comportamento adoptado pela insolvente. A finalidade visada com a contracção sucessiva de obrigações não retira a essa conduta a patente e grosseira desconformidade com as regras que devem pautar a actuação de quem quer que seja na assunção de responsabilidades financeiras.
Ora, a não ser que a insolvente seja destituída da mínima capacidade de previsão de que qualquer ser humano se acha provido, facto de que não há notícia nos autos, no circunstancialismo supra descrito, ao agir como o fez, a insolvente não podia deixar de representar que estava “a cavar a sua própria sepultura” financeira, a colocar-se numa total impossibilidade de cumprir as suas obrigações e a agravar, progressivamente, essa situação de impossibilidade.

A generalidade das pessoas adoptaria a conduta que a insolvente adoptou ou só alguém particularmente descuidado, imprevidente, quiçá mesmo indiferente a adoptaria?

Na nossa perspectiva, a generalidade das pessoas, na situação em que a insolvente já se achava em […], não contrairia o empréstimo que nesse ano veio a contrair, revelando a contracção dessa obrigação particular descuido e imprevidência por parte da insolvente. ”

Não se encontra razão justificativa para tal postura e procedimento, naturalmente reprovável.

Havendo, como há, com a toda a probabilidade, indícios de culpa, e grave, não se vê razão, nem o recorrente a evidencia como se frisou, para concluir que houve errada interpretação e aplicação pelo tribunal recorrido da norma em apreço (única em causa) ou que se não verifica a respectiva hipótese normativa.

Pelo contrário, olhando à análise pelo administrador judicial feita no citado relatório sobre “como foi possível chegar ao presente momento” outra conclusão se não pode colher senão que, como ele fez e nas suas palavras, o insolvente agiu com “leviandade”.

Deve, assim, improceder a apelação e confirmar-se a decisão recorrida.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.

*
Custas da apelação pelo apelante – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e ..., do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
*
Notifique.
Guimarães, 17 de Dezembro de 2018

José Fernando Cardoso Amaral
Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Pedro Damião e Cunha


1. A novidade do sistema, o relevo do princípio de fresh start e sua correspondência com a discharge da lei norte-americana (Bankruptcy Code) e à Restschuhbefreiung da lei alemã (Insolvenzordnung são assinaladas por Catarina Serra, in O Novo Regime Jurídico Aplicável à Insolvência-Uma Introdução, 2ª edição, página 73, e por Maria do Rosário Epifânio, in Manuel de Direito da Insolvência, páginas 265 e 266.
2. Acórdão da Relação de Guimarães, de 10-07-2014, processo 2503/13.8TBGMR-A.G1 (Manuela Fialho).
3. Na expressão das citadas autoras.
4. Como diz Assunção Cristas, in A Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Thémis, 2005, páginas 165 a 180, o devedor sujeita-se a uma espécie de purgatório para obter o perdão e uma nova oportunidade. Só que, a uma tal redenção assim concedida pelo legislador, segue-se, comentamos nós, o inferno dos credores, em cujo fogo os seus créditos ficam reduzidos a cinzas.
5. Acórdão da Relação do Porto, de 20-12-2011 (M. Pinto dos Santos).
6. Ao devedor, interessado no deferimento do pedido (e, portanto, em que não venham à ribalta motivos impeditivos dele), exige-se, apenas, a fácil, simples e periclitante declaração tabelar a que alude o artº 236º, nº 3.
7. Conforme se refere no preâmbulo do Código, é finalidade do incidente de qualificação da insolvência previsto no artº 185º e sgs, maxime no artº 186º aqui aplicável por remissão - cuja limitação temporal vamos analisar – “evitar insolvências fraudulentas ou dolosas”.
8. Assim, Acórdão desta Relação de Guimarães, de 28-01-20..., proferido no processo 1460/14.8TBGMR-D.G1 (Ana Cristina Duarte: “1 - São requisitos da insolvência culposa: a) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; b) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);c) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.”
9. Assim, Acórdão da Relação do Porto, de 12-10-2009 (Cecília Agante).
10. Relatado pelo Desemb. Henrique Antunes. Ainda: Acórdãos do STJ, de 06-10-2011 (Serra Baptista); da Relação do Porto, de 12-10-2009 (Cecília Agante), de 16-10-2012 (Rui Moreira) e de 16-04-2013 (Rodrigues Pires); e da Relação de Coimbra, de 04-05-2010 (Carlos Moreira), de 05-12-2012 e 21-01-2014 (Moreira do Carmo) e de 06-11-2012 (Fernando Monteiro) e demais Jurisprudência e Doutrina em cada um deles citada.
11. Process0 353/09.5TYVNG-E.P1 (Carlos Querido).
12. Processo nº 262/15.9T8AMT-D.P1 (Aristides Rodrigues de Almeida).
13. Proferido no processo nº 938/14.8TBGMR-D.G1 (Maria da Purificação Carvalho).
14. A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, volume II, Setº/2006.
15. CIRE Anotado, Quid Juris, 2008, páginas 610 e 611.
16. Processo nº 767/10.8T2AVR-B.C1 (José Eusébio Almeida).
17. Processo nº 1409/12.2TBVVD-B.G1 (Manuela Fialho).
18. Processo nº 1857/14.3TBGMR-D.G1 (Cristina Cerdeira).
19. Processo nº ...18/16.9T8BGC-E.G1 (João Peres Coelho).
20. Sobre a oportunidade e pressupostos de abertura do incidente de qualificação da insolvência, cfr. Acórdão desta Relação de Guimarães, de 30-05-2018, proferido no processo nº 1193/13.2TBBGC-A.G1, relatado pelo relator deste.
21. Relatados pelos Desembargadores Carlos Gil e Fonte Ramos (acessíveis na Base de Dados da DGSI).
22. Prova efectiva de quaisquer factos causais da situação de insolvência, ou para esta contribuintes, com dolo ou culpa grave, segundo o nº 1; presunção iure et jure, da existência de culpa, segundo o nº 2; presunção ilidível desse mesmo pressuposto subjectivo, segundo o nº 3, nestas duas hipóteses no caso de se não tratar de pessoas singulares.