Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1252/16.0T8VNF-C.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
PRESSUPOSTOS
FIADOR
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I) Tendo o apelante co-afiançado dois mútuos (no valor global de 220.000€), contraídos por um casal, em 2006, um deles destinado à aquisição (pelo preço de 190.000€) de um imóvel (para habitação) que deram de hipoteca em garantia de ambos, e tendo sido instaurada (contra mutuários e fiadores) execução judicial para cobrança das prestações em dívida na qual nenhum pagamento foi obtido, não se verifica extinção do crédito remanescente nem abuso de direito nem enriquecimento sem causa se o Banco mutuante invoca tal crédito e pede a declaração de insolvência do fiador, apesar de, numa outra execução (fiscal) paralela (contra os mutuários), aquele ter reclamado o mesmo crédito vencido (223.228,47€) e nela lhe ter sido adjudicado em pagamento o dito imóvel hipotecado (pelo valor aí proposto de 163.510,00€), considerando ele a dívida reduzida apenas para 155.020,02€ (em resultado do valor subtraído para pagamento aos credores graduados à sua frente), ainda que o adjudicado imóvel tenha valor superior ao da dívida ou possa por tal valor vir a ser vendido pelo adjudicatário.
II) Tendo, assim, o credor legitimidade para pedir a declaração de insolvência do fiador; nenhum pagamento mais tendo sido conseguido; apurando-se que os únicos bens conhecidos na execução (pertença daquele) são de valor significativamente inferior ao das dívidas a cuja garantia já estão adstritos; e nenhum outro bem nomeando qualquer dos co-devedores nem o tendo conseguido descobrir o credor – verifica-se a presunção de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas derivada do facto indiciário previsto na alínea b), do nº 1, do artº 20º, do CIRE, pelo que deve ser decretada a insolvência.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

O B. Banco, SA, requereu, em 22-02-2016, no Tribunal Judicial de Braga, a declaração de insolvência de C., divorciado, invocando, como causa de pedir, que este se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artº 3º, nº 1, do CIRE).

Para tanto, alegou, como fundamentos (segundo a petição e os documentos para que nela remeteu) (1):

-o requerido, em 2006, constituiu-se (juntamente com sua esposa) fiador e principal pagador, renunciando expressamente ao benefício de excussão prévia, das obrigações decorrentes de dois contratos de mútuo com hipoteca (sobre imóvel adquirido pelo preço de 190.000€) celebrados em 29-09-2006 mediante os quais o requerente emprestou ao filho daquele (D.) e sua cônjuge as quantias de 150.000€ e 70.000€, respectivamente;
-não tendo sido pagas as prestações em dívida decorrentes de tais contratos, o Banco instaurou execução judicial nº 2135/12.8TJVNF para sua cobrança coerciva contra ambos os mutuários, a co-fiadora e, bem assim, o aqui requerido (co-fiador);
-nesta execução, relativamente ao activo deste (requerido co-fiador C.), apurou-se a existência de quatro fracções autónomas;
-contudo, sucede que tais imóveis já estão onerados com diversas hipotecas e penhoras cujos valores excedem amplamente o seu valor patrimonial e cuja venda não será possível (devido à crise imobiliária) ou, sendo-o, ocorrerá (por essa mesma razão e também face às regras adjectivas) por valor muito inferior ao patrimonial;
-no âmbito dessa mesma execução judicial nº 2135/12.8TJVNF, os executados não pagaram as quantias em dívida nem nomearam outros bens ou direitos à penhora, nem, por seu lado, o ora requerente/exequente conseguiu, apesar de porfiadas diligências, apurar a existência de quaisquer outros bens ou direitos penhoráveis e suficientes para satisfazer o crédito;
-logrou, apenas, numa execução fiscal que, em simultâneo, foi instaurada contra o referido mutuário e dono do imóvel hipotecado e em que foi ao concurso de credores reclamar os seus créditos (então no valor de 223.228,47€, ou seja, o mesmo reclamado naquela petição executiva), obter, por via da adjudicação que lhe foi deferida de tal imóvel pelo valor proposto de 163.510€, a redução do seu crédito em 155.020,02€ (uma vez que à sua frente foram graduados outros no valor de 8.489,98€), só este ficando efectivamente pago;
-deste modo e não obstante, em 11-02-2016, o valor do seu crédito restante, emergente dos ditos dois contratos, cuja responsabilidade o requerido co-afiançou, ascendia ainda a 91.678,75€, não perspectivando recebê-lo;
-mesmo a pensão que o requerido aufere do Centro Nacional de Pensões já se encontra penhorada à ordem de seis processos executivos contra ele em curso até perfazer o montante global de aproximadamente 136.826,29€.

Daí concluiu o requerente que estão preenchidos os factos indiciários da situação de insolvência previstos nas alíneas a) e b), do nº 1, do artº 20º, do CIRE: suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas e falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.

Juntou documentos pertinentes.

Uma vez citado, o requerido deduziu oposição, na qual concluiu que a acção deve ser julgada improcedente e do respectivo pedido absolvido, uma vez que o Banco não tem fundamento para pedir a insolvência e o seu crédito se encontra integralmente pago através da adjudicação do imóvel hipotecado.

Para explicitar a sua defesa, confirmando os factos relativos ao património apurado e garantias a que o mesmo já está afecto, alegou/argumentou, se bem entendemos, que:

-o Banco aceitou como garantia hipotecária dos dois mútuos, cujo montante máximo (registado) poderia ir até um total de 311.300€, o referido imóvel porque sabia e considerou que ele (pelas finanças avaliado, já em 2012, em 234.250,00€) tinha (e tem) um valor de mercado superior ao garantido;
-apesar de a execução 2135/12.8TJVNF ter sido instaurada em 21-06-2012, a respectiva penhora só teve lugar em 27-01-2015 (por motivos que desconhece mas apenas imputáveis ao requerente Banco…), o que possibilitou que as Finanças se antecipassem tendo-o penhorado em 17-04-2014 e adjudicado àquele credor (conforme acima descrito);
-se tal tivesse ocorrido antes naquele outro processo, a adjudicação não poderia ter sido feita, como foi, ao requerente, por menos de 199.112,50€ (85% do valor patrimonial base, ou seja, de 234.250,00€);
-por isso, o requerido ficou prejudicado na diferença: 199.112,50€ - 163.510€ (valor por ele proposto) = 35.602,50€;
-daí que “a posição ora assumida pelo requerente consubstancia, assim, um abuso de direito”;
-acresce que o imóvel adjudicado ao requerente pode por ele ser vendido pelo valor de cerca de 250.000€, que é o de mercado, ou, pelo menos, pelo valor patrimonial referido (234.250€), suficiente para cobrir o valor em dívida pelo requerido;
-não sendo assim, os mutuários continuam devedores de parte do empréstimo contraído para sua aquisição, apesar de da respectiva propriedade já não disporem e o mutuante permanecer ainda como correspectivo credor, embora sendo já dono do imóvel;
-tal implica enriquecimento sem causa;
-não é, pois, verdade que se verifique uma situação de o Banco estar impossibilitado de recuperar um seu crédito (ou de o requerido lho pagar).

Tendo o contestante requerido a realização de uma perícia incidente sobre o valor do imóvel, que foi indeferida, foi-lhe, no entanto, deferida, já em audiência de julgamento, a junção de um documento que constitui um relatório da avaliação por ele particularmente mandada realizar ao mesmo (2), tendo aquela prosseguido com a inquirição de duas testemunhas.

Por fim, foi proferida sentença que, com fundamento na alínea b), do nº 1, do artº 20º, do CIRE, declarou a insolvência do requerido.

Este, porém, não se conformou e dela interpôs recurso para esta Relação, instruído com as respectivas alegações que rematou com as seguintes conclusões:

“a. Perante a prova produzida nos autos, deveriam ser dados como provados os factos constantes das alíneas N e R da matéria de facto não provada.
b. Assim, o facto da alínea N deveria constar dos factos provados com a seguinte redação: “O imóvel dado como garantia ao contrato referido em A. tem o valor patrimonial de € 234.250,00 e o valor de mercado de € 274.774,10”.
c. O facto da alínea R deveria constar dos factos provados.
d. Devem ser aditados aos factos provados, os seguintes (alegados pelo recorrente e por ele provados):
“O requerente, B. Banco, S.A., aceitou o imóvel, que lhe veio a ser adjudicado, como garantia do pagamento de um valor que poderia ascender a € 311.300,00, constituindo sobre ele duas hipotecas”;
“Os imóveis que se situam na zona do que foi adjudicado pelo recorrido e semelhantes a este estão a ser vendidos por valores semelhantes”;
“Trata-se de uma casa para habitação tipologia T3, com dois pisos, área total do terreno de 606 m2, área de implantação do edifício de 232,79 m2, área bruta de construção de 359,57 m2, área bruta privativa de 309,88 m2, com piscina e acabamentos de luxo”.
e. A alteração supra referida (quer a passagem dos factos não provados para os provados, quer o aditamento à matéria de facto provada), fundamentam-se na seguinte prova produzida:
Depoimentos das duas testemunhas ouvidas, supra transcritos;
Os documentos 02, 03 e 04 juntos à contestação;
O documento junto pelo recorrente na audiência de julgamento (relatório de avaliação do imóvel).
f. Este último documento foi junto sem oposição do recorrido e sem que este o impugnasse, pelo que, e seguindo a nossa orientação jurisprudencial, os factos nele contantes, e em especial, o valor do imóvel, devem ser considerados admitidos por acordo,
g. E, sendo assim, a sua prova está excluída da livre apreciação do Mmo. Juiz, conforme previsto no nº 5 do Art. 607º do CPC.
h. Peca, também, a sentença, por ter omitido totalmente a referência à prova documental, não se pronunciando o Mmo. Juiz sobre os documentos juntos, nem sobre a razão por que lhes terá retirado força probatória,
i. Violando, assim, o dever, previsto no nº 4 daquele mesmo artigo do CPC, de analisar criticamente as provas.
j. Retirou, também, relevância ao depoimento da testemunha do recorrente, Carla, alegando, para o efeito, que o mesmo “não foi relevante para a descoberta da verdade, dado que esta não demonstrou conhecimento de causa em relação aos factos que afirmou, designadamente, não mostrou conhecimentos que justifiquem valorar-se o seu depoimento quanto ao valor do imóvel em causa nos autos”.
l. Salvo o devido respeito, foi errada esta apreciação do julgador porquanto esta testemunha revelou ter conhecimento direto dos factos, por conhecer o imóvel em questão (é irmã do mutuário e filha do recorrente) e por ser proprietária de um muito semelhante, que se situa duas casas acima,
m. Tendo afirmado, de forma perentória que não venderia a sua casa por menos de € 275.000,00 (cfr. depoimento supra transcrito).
n. Quanto à fundamentação de direito da douta sentença recorrida, ficou, a mesma, comprometida, desde logo, porque não se encontra devidamente fundamentada a decisão de inexistência de abuso do direito e de enriquecimento sem causa.
o. Ora, nos termos do disposto nos Arts. 608º - 2 e 154º - 1 e 2 ambos do CPC, o julgador não só deve resolver todas as questões que lhe tenham sido submetidas pelas partes, como devem fazê-lo de forma fundamentada, não podendo simplesmente, e salvo raras exceções, aderir aos fundamentos alegados pelas partes.
p. Não o tendo feito, a sentença é nula.
q. Ficou também comprometida pelo facto de o Mmo. Juiz não ter dado como provados factos que, na opinião do recorrente, o deveriam ter sido, conforme supra alegado, designadamente, o valor do imóvel.
r. A prova deste facto necessariamente terá que nos levar a concluir pela verificação do abuso do direito e do enriquecimento sem causa.
s. Com efeito, o recorrido, aquando a celebração dos contratos de mútuo aceitou como garantia do seu cumprimento a constituição de duas hipotecas sobre o imóvel,
t. As quais garantiam um montante máximo de € 311.300,00
u. Ora, se tal imóvel foi considerado idóneo, pelo recorrido, para garantia do cumprimento de uma obrigação que poderia ascender aos € 311.300,00, é porque foi por este avaliado num valor, senão superior, pelo menos equivalente ao montante garantido.
v. Conforme foi, de resto, confirmado pela testemunha do próprio recorrido, Jorge (cfr. depoimento supra transcrito).
x. Se assim, é, como, efetivamente, foi, constitui abuso do direito vir, agora, invocar que o dito imóvel que, recorde-se, foi adquirido pelo recorrido, não é suficiente para pagamento do valor de que o recorrente alegadamente é devedor.
z. Trata-se de um “venire contra factum proprium” enquadrável na figura do abuso do direito.
aa. Conforme o disposto no Art. 334º do CC “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”,
ab. E tem vindo a ser entendido, de forma unânime pela nossa jurisprudência, que configura tal situação o “venire contra factum proprium”, que existe sempre que alguém exerça uma posição jurídica em contradição com um comportamento assumido anteriormente.
ac. Também na doutrina o “venire contra factum proprium” tem sido entendido como uma forma de abuso do direito por se traduzir na quebra da confiança que uma das partes, com o seu comportamento anterior, criou na outra, defraudando-a, posteriormente, com a adoção de um comportamento contraditório.
ad. Ora, no presente caso, o recorrido, ao constituir, a seu favor, as duas hipotecas sobre o imóvel, como garantia do cumprimento dos contratos de mútuo, criou, no recorrente, a séria e legítima convicção de que em caso de incumprimento dos mesmos, aquele (fosse através da sua venda judicial, fosse através da sua adjudicação ao credor hipotecário), seria suficiente para pagamento das quantias em dívida,
ae. Pelo que a sua confiança nessa solução foi defraudada quando, mesmo depois de ter adquirido o imóvel, o recorrido continuou a exigir o pagamento das quantias em dívida.
af. Configura, por isso, a atuação do recorrido, um claro abuso do direito traduzido no “venire contra factum proprium”.
ag. Por outro lado, e também tendo em conta a matéria de facto que se pretende, com o presente recurso, que seja dada como provada (cfr. art. 20, supra), estão preenchidos os pressupostos do enriquecimento sem causa.
ah. Com efeito, ao ser-lhe adjudicado o imóvel, o recorrido passou a ser titular de um bem de valor superior ao montante em dívida, pelo que este deverá considerar-se liquidado.
ai. Se assim não for entendido, permitir-se-á que o recorrido, obtenha duas vezes o pagamento da mesma dívida: através da aquisição da casa e através do património do recorrido.
aj. Ora, estabelece o Art. 473º - 1 do CC que “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
al. No presente caso, o recorrido, ao adquirir o imóvel cujo valor, como se alegou e provou, é superior ao montante em dívida, deveria considerar o seu crédito extinto, abstendo-se de executar o património do recorrido e, pior, de pedir a declaração da sua insolvência quando este já nada lhe deve.
am. Além do mais, os contratos de mútuo celebrados tinham como objetivo a entrega, pelo recorrido, de uma certa quantia em dinheiro, necessária à aquisição, pelos mutuários, do imóvel,
an. A qual lhe deveria ser restituída ao longo de um certo período de tempo mediante o pagamento de quantias mensais.
ao. Ora, ao ser adjudicado, ao recorrido, o imóvel para cuja aquisição foram concedidos os empréstimos, os mutuários e o recorrente (na qualidade de fiador) continuam devedores de uma quantia para aquisição de um bem do qual aqueles primeiros já não dispõem e que reverteu para o credor da dívida por um valor substancialmente inferior àquele que realmente vale.
ap. Ou seja, deixou de existir fundamento para a prestação a efetuar pelos mutuários (e pelo recorrente), uma vez que ficaram sem a casa, para aquisição da qual lhes haviam sido concedidos os empréstimos.
aq. Situação que integra a previsão do art. 473º-2 do CC: “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.
a.r. Ao decidir conforme decidiu, o Mmo. Juiz “a quo” violou as normas dos Arts. 154º - 1 e 2, 607º - 4 e 5 e 608º - 2 todos do CPC e os Arts. 334º e 473º ambos do CC.”

O Banco recorrido contra-alegou, por sua vez concluindo:

“1. Por douta sentença proferida em 1ª Instância, o Tribunal a quo declarou a insolvência do Recorrente.
2. No entanto, o Recorrente recorre da aludida sentença, fundamentando a sua posição na alegada inexistência do crédito do Recorrido sobre o Recorrente, pelo facto de ter sido adjudicado ao Recorrido o imóvel que lhe foi dado de hipoteca para garantia de 2 contratos de mútuo.
3. Antes de mais importa mencionar que ainda que o imóvel tivesse sido adjudicado ao Recorrido pelos € 199.112,50, que o Recorrente refere na al. d) do ponto 2 das alegações como sendo 85% do valor patrimonial, mesmo assim o Recorrido manter-se-ia credor do Recorrente.
4. Para além disso, o Recorrente não logrou provar que o valor do imóvel adjudicado ao Recorrido fosse superior ao crédito deste sobre o Recorrente.
5. E também não demonstrou que estivéssemos perante um caso de abuso de direito ou enriquecimento sem causa por parte do Recorrido.
6. Ainda que se entenda que o valor do imóvel é superior ao crédito do Recorrido, o que apenas se admite por mero exercício de raciocínio, então sempre devemos ter em atenção que a adjudicação do imóvel ao Recorrido ocorreu por decisão judicial transitada em julgada, a qual não pode ser posta em causa sem mais.
7. Muito menos pelo Recorrente, que se constituiu fiador com renúncia ao benefício da excussão prévia, conforme aliás decorre do art. 640º do Código Civil e da jurisprudência maioritária.
8. Ora, atento tudo o exposto, não podia ter sido outra a decisão do Tribunal a quo, tendo de concluir pela existência do crédito do Recorrido sobre o Recorrente e consequentemente pela declaração de insolvência do Recorrente!
Termos em que, e nos mais que Vossas Excelências doutamente se dignarem suprir, dentro do Vosso Mais Alto Saber e Critério, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se na íntegra a douta sentença recorrida. Assim se fará JUSTIÇA.”

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.

Uma vez distribuídos os autos, foram os mesmos mandados baixar para pronúncia sobre as nulidades arguidas e para ser completada a instrução.

Corridos agora os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

É pelas conclusões que, sem prejuízo dos poderes oficiosos, se fixa o thema decidendum e se definem os limites cognitivos deste tribunal – como era e continua a ser de lei e pacificamente entendido na jurisprudência (artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC).

No caso, compulsadas as prolixas e desordenadas conclusões apresentadas, importará apreciar e decidir, pela ordem que se nos apresentar juridicamente mais lógica e caso alguma(s) não fique(m) prejudicada(s) pela solução dada a outra(s), se:

A. Relativamente à decisão da matéria de facto:

a) Por omissão, na fundamentação respectiva, de referência à prova documental produzida, foi violado o disposto no nº 4, do artº 607º, CPC, e quais as consequências.
b) O valor do imóvel deve considerar-se admitido por acordo, uma vez que os factos constantes do relatório junto (e este próprio documento) não foram impugnados, estando a prova daqueles excluída da livre apreciação do julgador.
c) Por existir erro de julgamento (na valoração da prova testemunhal), devem ser alterados para provados os factos constantes como não provados das alíneas N) e R) da sentença.
d) Devem ser aditados aos provados os factos indicados.

B. Relativamente à matéria de direito:

a) A sentença é nula por não estar “devidamente fundamentada” a decisão quanto às questões do abuso de direito e do enriquecimento sem causa.
b) Estão preenchidos os pressupostos fáticos desses institutos jurídicos.
c) Por o valor do prédio adjudicado ao Banco ser superior ao do seu crédito, deve este considerar-se extinto.

III. MATÉRIA DE FACTO

O Tribunal recorrido apresentou, como factos provados, este rol:

“A. Com o requerente foram celebrados contratos de mútuo com hipoteca, em 29/9/2006, nos quais o requerido figura como fiador, sendo o capital em dívida de € 81.546,02, os juros à taxa de 4,252% (taxa anual de 2,252% acrescida da sobretaxa de 2% conforme estipulado) de € 1.579,57 e o Imposto do Selo à taxa legal de 4% de € 63,18, o que perfaz o total de € 83.188,77.
B. Foram graduados valores à frente do crédito do requerente no âmbito do processo de execução fiscal n.º … e Aps. no valor total de € 8.489,98.
C. Não tendo sido pagas as quantias em dívida, o requerente viu-se obrigado a recorrer à cobrança coerciva do seu crédito, para o que intentou contra o requerido e demais responsáveis (mutuários e co-fiador dos contratos atrás identificados) uma execução judicial para cobrança dos créditos referidos, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Instância Central de Vila Nova de Famalicão – 2ª Secção de Execução – J2 sob o n.º 2135/12.8TJVNF.
D. Simultaneamente, correu termos no Serviço de Finanças de … o processo de execução fiscal n.º … e Aps., em que era executado D., mutuário e proprietário do imóvel dado de hipoteca ao requerente para garantia dos mútuos acima identificados.
E. No âmbito desta execução fiscal, o ora requerente apresentou uma proposta pelo valor de € 163.510,00 com dispensa de pagamento do preço, tendo a mesma sido aceite e o imóvel adjudicado ao ora requerente.
F. No entanto, o crédito do ora requerente só foi reduzido em € 155.020,00, uma vez que foram graduados créditos à sua frente no valor de € 8.489,98.
G. No que diz respeito ao activo do requerido, no processo de execução judicial intentado pelo ora requerente (n.º 2135/12.8TJVNF) foi possível apurar a existência dos seguintes imóveis:
a) Fracção autónoma, designada pela letra “B”, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, da freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, com o valor patrimonial de € 163.070,00;
b) Fracção autónoma, designada pelas letras “AZ”, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …., da freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, com o valor patrimonial de € 91.445,25;
c) Lugar de garagem - Fracção autónoma, designada pela letra “L”, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, da freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, com o valor patrimonial de € 2.739,00;
d) Lugar de garagem - Fracção autónoma, designada pela letra “J”, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, da freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, com o valor patrimonial de € 3.869,88.
H. Sucede que estes imóveis apurados encontram-se onerados com diversas hipotecas e penhoras cujos valores excedem amplamente o seu valor patrimonial.
I. Foi também possível apurar que o requerido aufere uma pensão do Centro Nacional de Pensões.
J. No entanto, a referida pensão encontra-se já penhorada à ordem de 6 processos executivos que correm termos contra o requerido, até perfazer um montante total de aproximadamente € 136.826,29, sendo o valor do desconto mensal de € 313,89.
K. No âmbito do processo de execução judicial intentado pelo ora requerente (n.º 2135/12.8TJVNF), os então executados não pagaram nem nomearam outros bens ou direitos à penhora.
L. E o exequente, aqui requerente, não conseguiu apurar quaisquer outros bens ou direitos susceptíveis de penhora para satisfação do remanescente do seu crédito.
M. Isto apesar das inúmeras diligências do requerente na execução em causa.”

Neste mesmo âmbito, indicou como factos não provados:

“N. O valor do imóvel dado como garantia ao contrato referido em A..
O. Por motivos que não podem deixar de ser imputados ao requerente, o supra referido imóvel só foi penhorado em 27.01.2015.
P. Se na ação executiva desencadeada pelo requerente, a penhora tivesse sido concretizada mais cedo, a adjudicação que lhe veio a ser feita, tê-lo-ia sido por um valor superior àquele que o requerente veio a propor na execução fiscal.
Q. A inércia do requerente prejudicou o requerido em, pelo menos, € 35.602,50.
R. O requerente é agora proprietário de um bem que, vendendo, cobrirá e ultrapassará, até, o valor em dívida pelo requerido”

Para assim decidir, expendeu a seguinte

“FUNDAMENTAÇAO DA MATERIA DE FACTO
As alíneas A a M da matéria de facto assente resultam da análise dos documentos juntos com a petição inicial, conjugados com as declarações da testemunha Jorge (empregado bancário na A.) que, de forma clara e peremptória, confirmou os factos em causa.
O depoimento da testemunha Carla não foi relevante para a descoberta da verdade, dado que esta não demonstrou conhecimento de causa em relação aos factos que afirmou, designadamente, não mostrou conhecimentos que justifiquem valorar-se o seu depoimento quanto ao valor do imóvel em causa nos autos.
A matéria de facto não provada resulta de nenhuma prova ter sido feita quanto à mesma.”

IV. APRECIAÇÃO

Relata a sentença recorrida que a oposição deduzida pelo requerido se traduziu – ao que parece, apenas – na impugnação do crédito invocado pelo requerente.

Nessa lógica, fixou como questão a decidir – aparentemente única – saber “se o requerente detém o crédito peticionado sobre o requerido e da sua exigibilidade”.

Passando a apreciá-la, considerou, de seguida, o tribunal a quo:

“Resultou provado que com o requerente foram celebrados contratos de mútuo com hipoteca, em 29/9/2006, nos quais o requerido figura como fiador, sendo o capital em dívida de € 81.546,02, os juros à taxa de 4,252% (taxa anual de 2,252% acrescida da sobretaxa de 2% conforme estipulado) de € 1.579,57 e o Imposto do Selo à taxa legal de 4% de € 63,18, o que perfaz o total de € 83.188,77.
Determina o art. 406º, nº 1 do Código Civil que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, o que significa não só que estes devem ser tempestivamente cumpridos, mas também ponto por ponto, nos termos exactamente acordados.
Tal significa que o cumprimento tem que ser ajustado à prestação devida e que na execução contratual as partes estão adstritas ao cumprimento exacto, no sentido de local, tempo, modo e tipo de prestação que do contrato emerge.
Tendo o requerente logrado provar que cumpriu a sua obrigação decorrente do contrato, competia ao requerido alegar e provar qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito invocado – art. 342º, nº 2 do Código Civil, o que não logrou fazer.
Na verdade, não se provou o valor do referido imóvel, facto em que o devedor baseava a sua defesa, quer alegando abuso de direito (cfr. art. 334º do Código Civil) quer enriquecimento sem causa (cfr. art. 473º do Código Civil).
Aliás, em face da matéria de facto provada, não se vislumbra como enquadrar tais factos em conduta consubstanciadora de abuso de direito ou enriquecimento sem causa do A.. A responsabilidade do R. resulta do disposto no art. 627º e ss. do Código Civil, pois o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.
Resulta assim assente o crédito do A. no valor de € 91.678,75.”

Assim resolvida a questão enunciada, passou depois o tribunal àquela que intitulou como “Da solvabilidade do requerido” e sobre que teceu as seguintes considerações:

“Nos termos do art.º 3º do CIRE, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Por seu turno, o art.º 20º do mesmo diploma legal elenca um conjunto de factos que constituem condições que determinam a insolvência do devedor. Com efeito, mais do que indicar factos que revelam ou indiciam a situação de impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, esta norma aponta os requisitos alternativos para a declaração de insolvência, apresentando-se simultaneamente como condições objectivas e como pressupostos fundadores da legitimidade do requerente da insolvência (neste sentido, v. José Lebre de Freitas, “Pressupostos Objectivos e Subjectivos da Insolvência”, in “Themis” – Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, Almedina, 2005).
Entre os vários factos descritos no n.º 1 do art.º 20º do CIRE, e apontando já para a factualidade que resultou provada em sede de audiência de julgamento, destaca-se a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, demonstre a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente as suas obrigações (alínea b) da citada norma).
Com efeito, tendo em consideração a expressão clara e lapidar do art.º 3º do CIRE, verifica-se que o disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 20º é particularmente importante, tanto pela frequência com que ocorre esta circunstância na realidade empresarial e social, como pelo facto de preencher muito expressivamente a previsão do que o legislador considerou ser a situação de insolvência.
Ora, tendo como horizonte este enquadramento legal e subsumindo a factualidade provada às normas mencionadas, dúvidas não há de que o requerido é devedor perante o requerente do crédito acima explicitado.
O requerente provou o que era do seu ónus, demonstrando que o devedor não cumpriu (pontualmente) as suas obrigações, pois não procedeu ao pagamento do crédito que aquele deveria receber.
Não logrou o requerido, como era sua obrigação, demonstrar que se encontra solvente.
Na verdade, o requerido não alega qualquer facto que permita ao tribunal saber qual a sua capacidade patrimonial, ou seja, qual o seu activo, factos fundamentais em face do ónus de provar a sua solvabilidade – cfr. art. 30º, nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
É certo que a divida em questão se mostra garantida também por uma hipoteca.
Mas qual o valor do imóvel?
Será que é suficiente para pagamento da divida?
Não logrou o requerido prová-lo, como lhe competia.
Nestes termos, a única conclusão a retirar é a de que o devedor se encontra em situação de impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, nos termos do art.º 3º do CIRE, o que determina a declaração da sua insolvência.”

No epílogo, declarou a insolvência do ora apelante “de harmonia com o disposto no artº 20º, nº 1, alínea b), do CIRE”, decisão com que este não se conforma, desde logo quanto à sua validade e, depois, quanto à sua correcção factual e jurídica, como se enunciou.

Indo, então, às questões suscitadas.

1. De entre elas, comecemos por analisar a da validade da sentença, uma vez que o apelante a questiona, dizendo-a nula.

Para o efeito, será útil, sobretudo neste caso e processo concretos, relembrar algumas considerações, sobre a matéria, com enfoque na obrigação de o tribunal se pronunciar sobre todas as questões devidas e de fundamentar a respectiva decisão.

Na decisão de questão controversa do processo, tal como da causa, e na elaboração do respectivo despacho, tal como da sentença, impõe-se ao tribunal a observação de certos requisitos, condições e limites, de índole mais formal uns, ou relativos ao seu conteúdo material outros, definidos pelos princípios e normas da lei adjectiva.

Assim, entre os vícios de uma sentença relativos à sua elaboração, prevê a lei, no artº 615º, CPC, diversos tipos de nulidades.

Trata-se de vícios formais ou de procedimento, essencialmente caracterizados por desvios às regras dos artºs 607º a 609º, CPC, que não podem nem devem ser confundidos com erros de julgamento ao nível da subsunção jurídica (3) e consequente injustiça da decisão, ou seja, com o seu mérito.

Um deles é o da omissão de pronúncia.

Nos termos do nº 1, alínea d), do artº 615º, do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (4).

Com efeito, atenta a função e competência dos Tribunais e dos Juízes decorrentes da Constituição, das demais Leis, designadamente orgânicas, estatutárias e processuais, deve a sentença resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

A omissão de pronúncia, ensinava A. Varela (5), “consiste no facto de a sentença não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer, por força do artº 660º, nº 2”, norma precedente do actual artº 608º, nº 2, ou seja, questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.

Tais questões são as que ressaltam do objecto do processo definido pela causa de pedir e pelo pedido.

Para tal efeito, as questões aludidas no artº 660º, nº 2, agora no aludido artº 608º, nº 2, são “... todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes …”. (6)

Não se confundem “... as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão …”. (7)

Segundo M. Teixeira de Sousa, trata-se do “... corolário do princípio da disponibilidade objectiva …”, antes vertido nos artºs 264º e 664º, e agora condensado no artº 5º, do actual Código, o qual “… significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. (...) Também a falta de apreciação de matéria de conhecimento oficioso constitui omissão de pronúncia …”. (8)

E, explicando melhor, acrescenta que o “... tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa. (...) Verifica-se, pelo contrário, uma omissão de pronúncia e a consequente nulidade se na sentença, contrariando o disposto no art. 659.º, n.º 2, o tribunal não discriminar os factos que considera provados (...) ou se abstiver de apreciar a procedência da acção com fundamento numa das causas de pedir invocadas pelo autor (...). … Se o autor alegar vários objectos concorrentes ou o réu invocar vários fundamentos de improcedência da acção, o tribunal não tem de apreciar todos esses objectos ou fundamentos se qualquer deles puder basear uma decisão favorável à parte que os invocou. (...) Em contrapartida, o tribunal não pode proferir uma decisão desfavorável à parte sem apreciar todos os objectos e fundamentos por ela alegados, dado que a acção ou a excepção só pode ser julgada improcedente se nenhum dos objectos ou dos fundamentos puder proceder …”. (9)

Também sobre o conceito se pronunciam Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto (10). Segundo eles, são “questões” “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer”, o que não implica “considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (artigo 511-1) as partes tenham deduzido…” (11).

Respiga-se, ainda, da jurisprudência do nosso STJ:

- “São coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que deva conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. O que importa é que o tribunal decida da questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão, pois a expressão «questões» … não abrange argumentos ou razões jurídicas invocadas pelas partes”. (12)

- “Não há omissão de pronúncia, mesmo que se não tome conhecimento de todos os argumentos apresentados, ou que não se pronuncie expressamente quanto aos pedidos formulados, desde que se apreciem, como o fez o Tribunal “a quo”, os problemas fundamentais e necessários à justa decisão da lide e, em consequência, se confirme a improcedibilidade da acção.” (13)

Mais recentemente:

“A nulidade duma sentença ou dum acórdão por omissão de pronúncia só tem lugar quando o juiz deixe de conhecer, sem prejudicialidade, de algum dos pedidos deduzidos, de alguma das causas de pedir, de alguma das excepções invocadas ou de alguma das excepções de que oficiosamente lhe cumpra conhecer.” (14).

Este último não deixou de lembrar que “a nulidade se verifica apenas nos casos em que há omissão absoluta de conhecimento relativamente a cada questão não prejudicada” e que “A fundamentação deficiente pode dar azo a, entre outras, situações de insuficiência factual ou má construção de direito, mas não atinge a validade formal da peça processual.” (15)

Como também se sintetiza no Acórdão do STJ, de 20-11-2014 (16), “I - É jurisprudência consensual dos tribunais portugueses que importa não confundir questões (cuja omissão de pronúncia desencadeia nulidade da decisão nos termos da alínea d) do nº 1 do artº 615º do actual CPC) com argumentos, razões ou motivos que são aduzidos pelas partes em defesa ou reforço das suas posições. II - Esta é também a lição da generalidade da doutrina, como ensinou, além do eminente processualista que foi Alberto dos Reis, também Antunes Varela, de cuja lição permitimo-nos transcrever a seguinte passagem: «Não pode confundir-se de modo nenhum, na boa interpretação da alínea d) do artº 668º do CPC, as questões que são colocadas que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto e de direito), os argumentos e pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão» (A. Varela, Rev. Leg. Jur., ano 122º, pg. 112). III - De igual sorte, esta também é a orientação consensual da nossa jurisprudência, como se pode ver, inter alia, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 27- 03-2014 (Pº 555/2002.E2.S1, disponível em www.dgsi.pt) assim sumariado na parte que ora interessa: «Para efeitos de nulidade de sentença/acórdão há que não confundir «questões» com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes nos seus articulados, e aos quais o tribunal não tem obrigação de dar resposta especificada ou individualizada». IV - Com efeito, as nulidades não são, em regra, vícios que inquinem a generalidade das decisões judiciais nem correspondem, em regra, ao que as partes, com muito maior frequência do que seria de desejar, consideram como tal, pois o legislador português foi deveras cauteloso em não fulminar com nulidade toda e qualquer omissão ou insuficiência da decisão que a parte entenda haver ou possa mesmo ter ocorrido, aliás em consonância com a orientação perfilhada por vários ordenamentos jurídicos tendo, como trave mestra, o vetusto princípio francês «pas de nulité sans texte». Elas estão devidamente fixadas em «numerus clausus» na lei, presentemente no artº 615º no NCPC/2013. V - Por outro lado, de há muito que a nossa jurisprudência, designadamente a deste Supremo Tribunal, tem densificado o conceito de todas as nulidades legalmente previstas, sendo incontestável que em matéria de sentenças/acórdãos a lei teve o cuidado de criar um regime tipológico ou taxativo (numerus clausus) que é o consagrado no actual 615º no NCPC/2013 (artº 668º do CPC revogado).”

Outro dos vícios, concerne à fundamentação.

O artº 205º, nº 1, da Constituição da República, estabelece que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

O artigo 154º, do actual CPC, no seu nº 1, dispõe que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, e, no nº 2, que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.

Com o objectivo de simplificar, excepciona desta proibição (adesão) o caso de despacho interlocutório que seja de manifesta simplicidade e se a contraparte não tiver apresentado oposição.

Concretamente em relação à sentença, dispõe o artº 607º que, depois de enunciadas as questões que ao tribunal cumpre solucionar (nº 2), seguem-se os fundamentos (nº 3). Nestes compreendem-se, por um lado, os factos considerados provados e, por outro, a subsunção jurídica (indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas àqueles correspondentes).

Consequentemente, nos termos da alínea b), do nº 1, do artº 615º, CPC, é nula a sentença que não especifique os fundamentos, de facto e de direito, justificativos da decisão.

A fundamentação das decisões judiciais (incluindo despachos que não sejam de mero expediente ou proferidos no uso de um poder discricionário (17)) é, pois, uma exigência constitucional e legal.(18)

Além disso, é nela que o tribunal colhe legitimidade e autoridade para dirimir, como lhe compete, qualquer pedido controverso ou dúvida suscitada no processo, maxime o conflito entre as partes, e lhes impor a sua decisão.

A fundamentação é imprescindível ao processo equitativo e contraditório e constitui uma garantia deste.

A sua concretização depende das exigências traçadas pelo legislador em cada área do direito, designadamente processual.

O nível de densificação exigido varia de acordo com a natureza e efeitos da decisão, não podendo nem devendo ser o mesmo no simples despacho relativo à relação processual ou na complexa sentença que decide sobre o mérito de uma causa.

Já a redacção e apresentação da peça – coisa de que aqui não se cuida – naturalmente dependem de critérios, atributos e gostos pessoais do Juiz no exercício profissional do seu múnus, que vão desde o grau de domínio da língua portuguesa e suas regras, passam por um maior ou menor culto literário ou de técnica expositiva, dependem da sua capacidade e auto-exigência metódicas e culminam no seu sentido e brio estéticos.

Critério intransponível, na medida em que definidor do limite de conformidade com aquele princípio básico, é o de a fundamentação se expressar em termos que permitam apreciar e compreender as razões, motivos e sentido da decisão por forma a promover a sua aceitação e acatamento pacíficos ou a possibilitar a sua crítica e impugnação, mormente por via de recurso.

Como, por exemplo, se recordou em Acórdão do STJ, de 21-06-2011 (19), e sucessivamente se tem reafirmado, tanto a doutrina como a jurisprudência têm unanimemente entendido que só a falta absoluta de fundamentação é causa de nulidade da sentença, mas já não aquela que, existindo, porventura seja mais displicente ou incompleta, insuficiente, medíocre, errada ou não convincente, ocorrência que apenas afecta o valor doutrinário desejável, o apreço e respeito devidos e o carácter persuasivo e justo da decisão, tornando-a mais vulnerável e, por isso, mais contestável e sujeita ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em sede de recurso.

Só implicará, portanto, o vício de nulidade a deficiência que não possibilitar minimamente a percepção dos termos em que se baseia a decisão e de maneira a que os seus destinatários a apreciem de modo a convencer-se da sua solidez e bondade, conformando-se com ela, ou a acreditar na sua fragilidade e demérito, atacando-a.

Como, em suma, também se observa em aresto da Relação de Coimbra, “A sentença só é nula por falta de fundamentação quando seja de todo omissa relativamente à fundamentação de facto ou de direito e ainda quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial.” (20)

Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 16-11-2010 (21), “É, assim, manifesta a existência de um dever de fundamentação das decisões judiciais, dever esse com consagração constitucional e que se justifica pela necessidade das partes, com vista a apurar do seu acerto ou desacerto e a decidir da sua eventual impugnação, precisarem de conhecer a sua base fáctico-jurídica.
Com efeito, para que não só as partes, como a própria sociedade, entendam as decisões judiciais, e não as sintam como um acto autoritário, importa que tais decisões se articulem de forma lógica. Uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. E, embora a força obrigatória da sentença ou despacho esteja na decisão, sempre essa força se deve apoiar na justiça. Ora os fundamentos destinam-se precisamente a formar a convicção de que a decisão é conforme à justiça.
A decisão surge assim como um resultado, como a conclusão de um raciocínio, e não se compreenderia que se enunciasse unicamente o resultado ou a conclusão, omitindo-se as premissas de que ela emerge.
Por isso, o princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito contra o arbítrio do poder judiciário.
Além do mais, a fundamentação da sentença revela-se indispensável em caso de recurso, pois na reapreciação da causa, a Relação tem de saber em que se fundou a decisão recorrida.”

Neste caso, vem pelo recorrente alegado que a sentença é nula por não estar “devidamente fundamentada” a decisão quanto às questões do abuso de direito e do enriquecimento sem causa.

Na verdade, como se colhe do nosso relatório inicial para que ora se remete, na oposição que deduziu, o apelante invocou, nos termos que ali detalhámos, tais institutos jurídicos, deles extraindo a conclusão de que o Banco apelado não tem fundamento para pedir que a insolvência seja declarada e que o seu crédito se encontra integralmente pago (logo, extinto) por via da adjudicação que lhe foi feita do imóvel hipotecado.

Como também se viu, a construção assim arquitectada assenta na alegação de que, apesar de tal adjudicação ter sido feita pelo valor proposto de 163.510,00€, o imóvel tinha um valor de mercado e patrimonial fiscal muito superior; o apelante foi prejudicado pelo facto de o apelado não ter promovido a penhora e venda do mesmo na execução judicial antes das efectuadas na execução fiscal; se este o vender, o preço cobrirá o valor da dívida; a exigência do crédito pelo Banco agora já no pleno domínio do imóvel para cuja aquisição aquele foi contraído, implicaria um enriquecimento injustificado.

Assim, estaria extinto ou seria inexigível o crédito.

Toda esta argumentação gira, pois, em torno do valor do prédio.

Ora, depois de ter julgado não provado o facto respectivo (o referido valor), o tribunal a quo exarou na sentença, em sede de “fundamentação de direito”, o seguinte:

“… competia ao requerido alegar e provar qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito invocado – art. 342º, nº 2 do Código Civil, o que não logrou fazer.
Na verdade, não se provou o valor do referido imóvel, facto em que o devedor baseava a sua defesa, quer alegando abuso de direito (cfr. art. 334º do Código Civil) quer enriquecimento sem causa (cfr. art. 473º do Código Civil).
Aliás, em face da matéria de facto provada, não se vislumbra como enquadrar tais factos em conduta consubstanciadora de abuso de direito ou enriquecimento sem causa do A.. A responsabilidade do R. resulta do disposto no art. 627º e ss. do Código Civil, pois o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.
Resulta assim assente o crédito do A. no valor de € 91.678,75.”

Embora o apelante não explicite, clara e concretamente, em que consiste a propalada falta da devida fundamentação da sentença a que alude e que, segundo ele, a compromete, tornando-a nula, maxime por referência às diversas causas de invalidade tipificadas no artº 615º, CPC, tal teoricamente poderia analisar-se na pura e simples omissão de pronúncia ou na não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Limita-se, com efeito, o apelante, confusamente, por um lado, a alegar (item 31) que “não se encontra fundamentada a decisão de inexistência de abuso de direito e do enriquecimento sem causa” e, por outro (item 35), equivocando-se sobre realidades obviamente diversas quer do ponto de vista jurídico quer em perspectiva vulgar, a acrescentar que “ao não fundamentar a sua decisão sobre a inexistência de abuso de direito e do enriquecimento sem causa, o Mmo. Juiz «a quo» não se pronunciou sobre questões que deveria ter apreciado, o que, nos termos da alínea d), do nº 1 do artº 615º do CPC, é causa de nulidade da sentença”.

Não devendo ser necessário, em face do já atrás exposto, enfatizar a diferença entre a omissão de pronúncia e a falta de fundamentação (alíneas b) e d), do nº 1, do artº 615º), saliente-se o óbvio: o próprio apelante reconhece que o tribunal se pronunciou e decidiu as referidas questões. Simplesmente, entende que a decisão não está fundamentada. É, pois, patente contradição sua invocar a alínea d), dizendo que “não se pronunciou sobre questões que deveria ter apreciado” e, depois, brandir com a pretensa falta de fundamentação da mesma (decisão).

O tribunal pronunciou-se, pois, como se viu. E fê-lo expressamente. Não há omissão, ao contrário do alegado.

Também não há falta de fundamentação – afinal de contas, o único vício levado às conclusões do recurso.

A sentença especifica os fundamentos de facto, dizendo que a alegação das referidas excepções se baseava no valor do imóvel mas que este não se provou. E, citando as normas jurídicas convocáveis, refere que, em face disso e da demais matéria de facto apurada, “não se vislumbra” como enquadrar a conduta do apelado em qualquer dos referidos institutos, ou seja, não sendo aqueles suficientes para preencher a previsão normativa de cada um, tal inviabiliza a pretendida subsunção jurídica e a extracção de qualquer dos efeitos requeridos, quanto à persistência do crédito do apelado e responsabilidade do apelante por ele.

Claro que, num quadro de mais paciente, detida e exaustiva análise do processo e respectivo objecto, dos factos alegados e apurados e dos fundamentos e razões esgrimidos pelas partes, poderia a sentença ser mais incisiva e completa ao enfrentar e decidir as questões e mais exímia e brilhante na respectiva fundamentação, cuidando até da polémica recente em torno dos temas suscitados.

Parece, aliás, que é mais nesse modo que o apelante se foca ao dizer que a sentença não se encontra “devidamente” fundamentada, embora não dê mostras de conhecer a problemática envolvida.

Todavia, como se viu, para ser formalmente válida quanto à pronúncia e fundamentação, a sentença não tem que ser brilhante, excelente. Tal não constitui critério de validade. Basta que suficientemente cumpra os requisitos legais: decidir e especificar os fundamentos de facto e de direito justificativos. Se a sua deficiência culminar em erro de julgamento, então tal contenderá já com o mérito substantivo e não com a validade formal.

Não ocorre, pois, a nulidade arguida.

2. Posto isto, importaria apreciar as questões recursivas supra enunciadas relativas à decisão da matéria de facto.

Constituindo estas, em princípio, um prius em relação às questões de direito propriamente ditas, obviamente a respectiva análise e decisão só tem sentido e utilidade na medida em que a destas dependa ou possa ser por elas influenciada, mormente da sua procedência possa resultar o provimento do recurso com a consequente alteração da decisão sentenciada.

Ora, perspectivamos que mesmo que, quanto aos factos não provados ou não seleccionados e que, segundo o apelante, deviam ser melhor fundamentados, correctamente decididos em função do valor das provas produzidas e, assim, julgados provados ou aditados, o recurso procedesse, sempre tal resultaria indiferente em relação às questões de direito elencadas: extinção do crédito pelo pagamento; sua inexigibilidade por preenchidos os requisitos do abuso de direito e do enriquecimento sem causa.

Vejamos.

É fundamento constitutivo da situação de insolvência e justificativo da respectiva declaração a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas – artº 3º, nº 1, do CIRE.

A declaração de insolvência pode ser promovida pelo próprio devedor ou por qualquer terceiro legitimado, nas condições legais exigidas – artºs 18º e 20º.

Devendo, na petição, ser expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida – artº 23º, nº 1 – a própria lei prevê, quando a apresentação for feita pelo próprio devedor, uma particular espécie de confissão: tal implica, de acordo com o artº 28º, o reconhecimento por ele da sua situação insolvente.

Dispensa-se, portanto, a prova da impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas.

Sendo requerida por terceiro, designadamente por qualquer credor, tem este, antes de mais, de alegar e demonstrar, para justificar a sua legitimidade, tal condição, ou seja, que é titular de um crédito sobre o requerido, justificando a sua origem, natureza e montante – artºs 20º e 25º.

Além disso, em clara facilitação da prova da situação de insolvência, basta-lhe alegar (e provar) algum dos factos indiciários da impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas (facto essencial ou fundamental) – artºs 20º e 23º, nº 1 – e oferecer com a petição os elementos que possua relativamente ao seu activo e passivo – artº 25º, nº 1.

Nesta situação, poderá o devedor, caso entenda deduzir oposição, alegar nesta:

-a inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado (ilidindo, assim, a presunção derivada do citado artº 20º acerca do facto fundamental); ou
-a inexistência da própria situação de insolvência (artº 30º, nº 3).

Cabe-lhe, conforme dispõe o nº 4, provar a sua solvência.

Ora bem.

O apelado Banco, nos termos expostos, alegou que, pelas razões que descreveu e apesar da adjudicação que lhe foi deferida do imóvel, permaneceu ainda credor do apelante pelo valor de 91.678,75€.

Além disso, quanto ao facto constitutivo (causa de pedir), alegou factos que concluiu preencherem os indícios ou presunções dele (ou seja, da impossibilidade de o requerido cumprir as obrigações vencidas), previstos nas alíneas a) e b), do nº 1, do artº 20º.

O tribunal recorrido entendeu e decidiu não só que efectivamente o Banco apelado é titular do crédito invocado (91.678,75€) e, concomitantemente, que da factualidade apurada não resulta qualquer das excepções invocadas (abuso de direito, enriquecimento e extinção daquele pelo pagamento) mas também que a respectiva falta de pagamento, pelo seu montante e circunstâncias em que ocorreu, revela a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas demais obrigações – presunção não ilidida –, assim se preenchendo a segunda das referidas alíneas e, portanto, que se verifica o aludido facto fundamental, declarando a insolvência.

Na eventualidade de se poderem e deverem julgar e fixar como provados, nos termos preconizados, os factos N) e R):
-“O imóvel dado como garantia ao contrato referido em A. tem o valor patrimonial de 234.250,00€ e o valor de mercado de 274.774,10€”; e
-“O requerente é agora proprietário de um bem que, vendendo, cobrirá e ultrapassará, até, o valor em dívida pelo requerido”;

E de se virem a aditar os demais, a saber:

-“O requerente, B. Banco, S.A., aceitou o imóvel, que lhe veio a ser adjudicado, como garantia do pagamento de um valor que poderia ascender a € 311.300,00, constituindo sobre ele duas hipotecas”;
-“Os imóveis que se situam na zona do que foi adjudicado pelo recorrido e semelhantes a este estão a ser vendidos por valores semelhantes”;
-“Trata-se de uma casa para habitação tipologia T3, com dois pisos, área total do terreno de 606 m2, área de implantação do edifício de 232,79 m2, área bruta de construção de 359,57 m2, área bruta privativa de 309,88 m2, com piscina e acabamentos de luxo”;

Naquela hipótese, dizíamos, concluir-se-ia pela inexistência do crédito e, em consequência, deveria, absolver-se o recorrente do pedido?

Não nos parece, adiante-se já.

Como expressamente o apelante acaba por reconhecer e salientar logo no princípio das suas alegações de recurso, a sua defesa “fundamentou-se na inexistência do crédito reclamado […] pelo facto de a este ter sido adjudicado o imóvel por ele hipotecado para garantia do cumprimento dos contratos de mútuo celebrados com o recorrente, este, na qualidade de fiador do seu filho (mutuário)”.

No fundo, quer na oposição quer agora no recurso, o apelante nada mais discute sobre a origem e montante do crédito invocado nem sobre as circunstâncias com tal relacionadas, designadamente, as relativas à sua situação patrimonial, inerentes responsabilidades e incapacidade para lhes fazer face, maxime as apuradas na execução judicial referida quanto aos demais devedores, respectivos bens e oneração a que já estão sujeitos (imóveis e pensão de reforma) nem sequer curou de provar ter capacidade para solver as respectivas dívidas.

Referindo-se imprecisamente ora à inexistência ora à extinção mediante liquidação ou pagamento da dívida afiançada emergente dos mútuos alegadamente resultante da adjudicação do imóvel que teria valor real bastante para a cobrir integralmente, sob pena de enriquecimento sem causa, ou, ainda, ao abuso de direito que o impediria de exigir tal crédito e também lhe retiraria fundamento para pedir, com base nele, a declaração de insolvência, no fundo o que ele apenas põe em causa é a legitimidade do Banco para requerer a declaração de insolvência (artº 20º, nº 1) e a verificação do respectivo incumprimento (alínea b), desse número).

Notando-se que foi julgada como não provada a matéria elencada como facto nas alíneas O), P) e Q) – “Por motivos que não podem deixar de ser imputados ao requerente, o supra referido imóvel só foi penhorado em 27.01.2015”; “Se na ação executiva desencadeada pelo requerente, a penhora tivesse sido concretizada mais cedo, a adjudicação que lhe veio a ser feita, tê-lo-ia sido por um valor superior àquele que o requerente veio a propor na execução fiscal”; “A inércia do requerente prejudicou o requerido em, pelo menos, € 35.602,50” – e que tal julgamento não vem impugnado no recurso, suponhamos, no entanto, que, alterando-se a decisão de facto, se dava como provado que o valor do imóvel é superior ao da adjudicação, de 234.500€, de 250.000€ ou de 274.774,10€; que, em caso de o apelado o vender, tal cobriria ou até ultrapassaria o valor da dívida; e que se aditava ter sido aceite a hipoteca do imóvel pelo valor máximo total de 311.300€, que por valores semelhantes estão a ser vendidos na zona imóveis idênticos a este e a natureza, composição, destino, tipologia, áreas e demais características e partes integrantes ou acessórias do imóvel.

Ainda que assim fosse, nem, contudo, perante um tal quadro, concluiríamos pela verificação de qualquer das excepções brandidas (extinção do crédito, abuso de direito, enriquecimento sem causa).

Como resulta da petição que deu origem à execução judicial nº 2135/12 intentada pelo aqui apelado Banco (fls. 77) e da reclamação por ele deduzida na execução fiscal (fls. 44), ascendia então ao montante de 223.228,47€ o valor do seu crédito (referir-nos-emos a factos e documentos que, embora não evidenciados nos articulados nem na sentença resultam claros do processo e são incontroversos).

Apesar disso, nenhum outro pagamento por qualquer forma aquele conseguiu obter em qualquer dos dois processos, a não ser o operado por meio da adjudicação do imóvel hipotecado/penhorado, na sequência de proposta para o efeito pelo Banco apresentada e que lhe foi deferida pelo valor de 163.510,00€, mas ao qual teve de ser subtraído o de 8.489,98€ correspondente ao da soma dos créditos graduados à sua frente a satisfazer, o que, portanto, reduziu para 155.020,02€ a medida da satisfação do seu.

Nesta perspectiva, restou por pagar o crédito de 68.208,45€ que, actualizadamente recalculado pelo apelado em 11-02-2016, conforme documentos (mapas de apuramento de responsabilidades) de fls. 32 e 33 (não questionados), ascende aos 91.678,75€ aqui invocados.

Ora, nenhum fundamento jurídico (de base voluntária ou legal) existe – nem, de resto, o apelante o identifica e aponta certeiramente, limitando-se a argumentar com considerações subjectivas de índole pretensamente ética porventura merecedoras de consideração iure condendo mas por ora sem consagração nos princípios ou regras da ordem jurídico-normativa vigente – para que se considere que, pelo facto de o imóvel adjudicado poder ter ou ter mesmo um valor venal ou de mercado superior ao da adjudicação, quiçá ao da totalidade do crédito então ou agora reclamado, este deve considerar-se pago e, por isso, extinto.

Assente que se trata aqui de um modo de pagamento coercivo (não há notícia de o apelante, ou qualquer dos condevedores, mormente os mutuários e donos do imóvel hipotecado, antes ou durante qualquer dos processos, neles ou fora deles, ter tentado qualquer outra forma voluntária ou consensual), os efeitos deste pautam-se pelas regras aplicáveis.

Sendo certo que o valor patrimonial do imóvel, de acordo com as cadernetas prediais (fls. 74 e 75) era de 252.148,17€, deve salientar-se que nenhuma irregularidade vem apontada à sua penhora e venda.

Nos termos do artº 248º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), a venda pode fazer-se por meio de leilão electrónico ou de propostas em carta fechada. Tomando-se como valor base 70% ou 50% do patrimonial determinado conforme dispõe o artº 250º, pode, no entanto, a adjudicação do bem acabar por ser feita à proposta de maior valor que, independentemente daquele, seja apresentada, nas circunstâncias legalmente ali previstas.

Pode ainda o órgão de execução fiscal determinar que à venda se proceda em qualquer das modalidades previstas no Código de Processo Civil, como dispõe o nº 5, do citado artº 248º, nas circunstâncias previstas no artº 252º, CPPT.

Não resultam esclarecidos dos autos os termos e circunstâncias em que foi determinada e efectuada a adjudicação aludida, designadamente se o foi na sequência de apresentação, pelo exequente apelado, de proposta de compra na sequência de leilão electrónico ou em carta fechada ou de adjudicação propriamente dita, tal como prevista no artº 799º, do actual CPC.

Fosse como fosse, a venda e a adjudicação coercivamente realizadas em processo executivo (fiscal ou civil) constituem um modo de pagamento de dívida não voluntariamente cumprida – artº 795º, CPC.

Naquele caso, entrega-se aos credores (exequente e reclamantes) o produto da venda, ou seja, o preço da coisa vendida. Neste, entrega-se a própria coisa adjudicada. Mas, num e noutro, não pode esquecer-se que o cumprimento visa um direito de crédito, que é pecuniária a prestação exequenda, que, apesar da garantia real, o credor não tem um direito à coisa mas apenas um direito ao valor da coisa. (22) Valor este fixado no processo executivo e mediante um preço.

Na venda por leilão electrónico ou por meio de propostas em carta fechada, efectuadas segundo as regras do processo de execução fiscal, o adquirente, ainda que demonstre a sua qualidade de credor, nunca, sintomaticamente, será dispensado do depósito desse preço – alínea h), do artº 256º, do CPPT.

Na adjudicação ou na venda realizada no âmbito do processo civil, o exequente (adquirente do direito de propriedade sobre a coisa adjudicada ou vendida) é dispensado do depósito do preço que não seja necessário para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber, tal como resulta dos artºs 815º e 802º, CPC.

Tal significa que, numa e noutra hipótese, indiscutivelmente são o preço da venda do bem ou o valor por que a adjudicação dele é feita, processualmente determinados pelas referidas regras e independentemente daquele outro que outras diversas circunstâncias ou condições de transmissão o mercado propiciaria, que balizam a medida do pagamento do crédito ao exequente.

Tanto é assim que a execução só se extingue “quando se mostre satisfeita pelo pagamento coercivo a obrigação exequenda” – artº 849º, nº 1, alínea b), CPC – ou quando “forem arrecadadas importâncias suficientes para solver a execução, e não houver lugar a verificação e graduação de créditos” e uma vez feitos “os pagamentos” – artº 261º, do CPPT.

O cumprimento da obrigação pecuniária assim coercivamente obtido é total ou parcial conforme o valor do preço da venda efectivamente pago ou compensado ou o valor da adjudicação do bem (descontadas as quantias prioritariamente destinadas a custas e a credores preferentes) atinjam ou não o do crédito apurado. Não conforme o valor patrimonial ou de mercado da coisa.

Trata-se de efeito da cobrança coerciva, decorrente do jogo das regras do respectivo procedimento, continente de possíveis desvios ou frustração de expectativas, justamente questionáveis e geradores de sentimentos de injustiça, mas que não divergem muito das vicissitudes a que qualquer similar venda ou equiparável dação em pagamento, livre e voluntariamente acordadas, podem também conduzir.

Na venda, o preço é a contrapartida da transmissão da propriedade e entrega do bem – artºs 874º e 879º, do Código Civil (CC). Legal ou voluntariamente fixado, aquele não depende nem fica sujeito às utilidades ou rentabilidades que quem dele dispôs e em vez dele recebeu a coisa no seu património, desta possa vir a retirar, seja em resultado das circunstâncias mais ou menos favoráveis em que o negócio se consumou, da capacidade dinâmica dos sujeitos ou das vicissitudes do mercado (de cuja aleatoriedade sempre resulta um risco maior ou menor mas que as regras não contemplam nem a vontade das partes acautelou).

Aliás, a prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento – artº 837º, do CC.

Valha, pois, o bem realmente mais ou venda-o o apelado por preço superior ao da adjudicação, quiçá passível de cobrir a dívida então restante ou mesmo a já posteriormente recalculada, como argumenta o apelante, tal não constitui fundamento jurídico para que se considere integralmente cumprida a sua obrigação, muito menos causa típica ou atípica de extinção da mesma.

Por mais apelativa que a sua tese social e politicamente se apresente e não obstante os laivos de justo merecimento que se lhe possam reconhecer, o certo é que as decisões dos tribunais fundamentam-se nas leis vigentes às quais devem obediência incontornável, ainda que injustos ou imorais se lhe apresentem os respectivos preceitos (artº 8º, nº 2, CC), nunca podendo a fronteira entre o legislativo e o judicial ser esquecida muito menos calcada.

Daí que, mesmo provando-se os valores patrimonial e de mercado preconizados ou admitindo-se que o bem pode ser vendido pelo apelado por um preço bastante para contabilisticamente cobrir o seu crédito restante, jamais pode concluir-se juridicamente pela sua alegada inexistência, liquidação, pagamento ou extinção (na terminologia indiferenciada usada pelo recorrente).

Ao contrário do que gratuitamente afirma (cfr, v.g., item 30 das alegações), tal valor do imóvel, ainda que provado, não é “um facto extintivo do direito do recorrido”.

Baseando-se o pedido de revogação da sentença, segundo a expressão do recorrente vertida no epílogo das suas conclusões, na inexistência do crédito fundamentador do pedido, por aqui nos poderíamos ficar e sem mais julgar improcedente o recurso.

No entanto, o apelante suscitou na oposição e reitera agora, nas conclusões, a questão do abuso de direito.

O abuso de direito pressupõe – contraditoriamente com o que o apelante na sua vertiginosa e difusa alegação refere – exactamente a titularidade de um direito: no caso, o de crédito!

Simplesmente, verificando-se as circunstâncias previstas no artº 334º, CC, o seu exercício torna-se ilegítimo e oponível: é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Ora, olhando ao articulado de oposição inicialmente resumido, constata-se que o apelante estriba a alegação desse instituto desde logo na alegação de que, por motivos que ele próprio desconhece mas que, todavia (!), reputa de imputáveis ao Banco, apesar de a execução judicial ter sido instaurada em 21-06-2012, a penhora do imóvel hipotecado só teve lugar em 27-01-2015, circunstância que possibilitou às Finanças antecipar-se e, na execução fiscal, penhorá-lo, em 17-04-2014, e, de seguida, adjudicar-lho nos termos, circunstâncias e com o resultado já referidos. Se a adjudicação – diz ele – tivesse ocorrido antes naquele processo, ela não poderia ter sido feita, como foi, por menos de 199.112,50€, em vez dos 163.510,00€, ou seja, 85% do valor patrimonial (que o apelante refere ser de 234.250,00€, mas que, vistas as Cadernetas Prediais juntas até era de 252.148,17€), assim o prejudicando na medida da diferença (35.602,50€).

Sucede que nem os factos relativos a tal argumentação manifestamente inconsistente se provaram – tratava-se das alíneas O), P) e Q) –, nem o apelante a retoma neste recurso, nem sequer – saliente-se – é certo que, na execução judicial, se enveredaria pela adjudicação ao credor exequente ou que a venda necessariamente se realizaria pelo referido valor de 85% do patrimonial.

De resto, a adjudicação na execução fiscal ultrapassou e em muito o valor base mínimo de 50% do patrimonial (126.074,09€) embora não atingisse o normal de 70% (176.503,72€), conforme legalmente previsto (23), só podendo entender-se a adjudicação com base naquela percentagem na medida em que se frustrou a tentativa de venda (como, aliás, o apelado refere nas suas contra-alegações ter sucedido).

O abuso de direito radicaria, ainda, segundo o apelante, na circunstância de o Banco ter aceitado o imóvel como (boa) garantia dos dois mútuos (um de 150.000,00€ e outro de 70.000,00€, conforme fls. 33 e sgs. e 67 e sgs), garantia essa, aliás, registada pelos montantes máximos de 212.250,00€ + 99.050,00€ = 311.300,00€), certamente crente que o seu valor real suplantava estes montantes, pelo menos esperando que valia mais do que os capitais emprestados, assim ciente de que o seu valor patrimonial (fiscal) era superior à soma destes e, não obstante, apenas propôs e conseguiu a adjudicação por 163.510,00€, assim fazendo ingressar no seu património um bem que teria suposto de valor suficiente para cobrir as dívidas mas permanecendo ainda credor de boa fatia destas, contra as expectativas geradas no apelante.

Ora, o preço de aquisição do imóvel pelos mutuários foi, em 2006, segunda e escritura junta, de, apenas, 190.000,00€. Presumindo-se esta feita a agente do mercado imobiliário em condições económicas normais e concorrenciais é de supor também que aquele era o seu valor real ou de mercado. Logo, atento o decurso do tempo, a evolução dos preços, a crise em que mergulhou o sector e, naturalmente, a vetustez que entretanto desvaloriza qualquer bem, não se vê que, ao propor a adjudicação e ao adquiri-lo pelos 163.510,00€, o Banco frustrasse as expectativas legítimas do apelante, contrariasse a sua própria conduta, e, enfim, abusasse do seu direito.

Naturalmente que, na sua decisão, teve de ponderar os riscos assumidos (a par dos quais por vezes surgem vantagens). Todavia, não deixa de ser sintomático da sua incerteza quanto ao valor real do bem e sua suficiência para garantir e solver em pleno as obrigações contraídas, o facto de, além da garantia real facultada pela hipoteca e garantias gerais dadas pelo património de ambos os mutuários, ter ainda cumulativamente exigido a fiança plural dada pelo apelante bem como pela sua ex-esposa.

De resto, sempre a adjudicação por aquele valor foi potenciada pela circunstância de, pesem embora as diligências efectuadas no processo executivo em ordem a chamar outros potenciais interessados, nenhuma outra mais elevada ter surgido, sendo certo ainda que aquela ocorreu – o que não vem posto em causa – em obediência a critérios legais e por decisão da autoridade respectiva (inquestionada) e não por mera vontade livre do Banco, nenhuma factualidade vindo alegada que aponte para qualquer actuação clamorosamente abusiva deste ou impeditiva de oferecer o valor que reputou adequado, como qualquer outro pretendente, posto que respeitador do mínimo legal, ou que fundamentasse diferente expectativa ou confiança legítimas dos devedores e que juridicamente o vinculasse.

A prestação, aliás, por estes devida é, como se salientou, de natureza pecuniária. O imóvel tem apenas a função de garantir, pela sua venda ou adjudicação, a obtenção de um produto afectado realmente ao cumprimento daquela, mas no seu quantum sujeito a vicissitudes de natureza, origem e com consequências diversas ao nível da medida da solvência. Se fosse, aliás, um terceiro a adquirir pelo mesmo valor o bem, repugnaria que, quanto ao crédito insatisfeito, a execução se extinguisse.

Bem lá no fundo, o sentimento de justiça predominante no conjunto dos cidadãos responsáveis – não na efémera e volátil opinião pública ávida de simpáticas e sonantes soluções satisfatórias de parciais e conjunturais interesses – é o de que, apesar da garantia dada através do bem hipotecado, a adjudicação deste não corresponde ao cumprimento pontual da obrigação e que, portanto, pode subsistir uma parcela da mesma, como subsistiria se o bem, antes, de todo se perdesse. Em contraponto, repugnaria a tal sentimento que, caso ele se hipervalorizasse enquanto no domínio dos devedores mutuários garantidos, a estes não fosse atribuído o benefício de tal valorização, obtido em execução, em medida excedente ao necessário para solver a dívida contraída.

Como se sabe, o risco, nos termos do artº 796º, CC, corre por conta do adquirente. A hipoteca apenas confere ao credor o direito de ser pago pelo valor da coisa, como exprime o artº 686º, nº 1. Esse valor, naturalmente, em caso de cobrança coerciva, é o determinado ou obtido na execução, segundo as regras legais. A própria lei prevê que, entretanto, a coisa hipotecada possa até perecer ou tornar-se insuficiente para assegurar o cumprimento da obrigação e prescreve remédios para tal – artº 701º.

Ao invocar a titularidade do crédito e ao requerer a declaração de insolvência, não toma o apelado “posição” abusiva.

Não se verifica, pois, abuso de direito, como não se perspectiva hipótese de enriquecimento sem causa.

Com efeito, nos termos do artº 473º, do CC, aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

São, pois, pressupostos de aplicação do instituto: o enriquecimento de alguém (obtenção de uma efectiva vantagem de carácter patrimonial) à custa de outrem; o empobrecimento (afectação por uma desvantagem patrimonial) dessa parte, correspectivo à vantagem daquele; falta de causa justificativa.

Como dizem P. Lima e A. Varela (24), o enriquecimento tanto pode dar lugar à obrigação de restituir no caso de a atribuição patrimonial se haver já consumado, podendo assim fundamentar uma acção, como pode obstar à exigência do cumprimento de determinada prestação ou atribuição, caso ainda não tenha sido realizada, podendo justificar que se invoque como excepção.

O apelante justificou o apelo a tal instituto, quer na oposição, quer agora no recurso, dizendo que o imóvel pode pelo apelado ser vendido pelo seu valor de mercado e cobrir toda a dívida e que, caso não se impeça a exigência desta, os mutuários estão sem o bem mas continuando a pagar as prestações restantes dos mútuos contraídos para o adquirir, ao passo que o Banco detém-no agora no seu património e concomitantemente permanece como credor daquelas.

Desde logo, o alegado enriquecimento é tomado como certo a partir de uma mera probabilidade: a de, tenha o imóvel o valor que realmente tiver, ou for calculado, em termos de mercado, o Banco querer e conseguir vendê-lo pelo mesmo – o que é absolutamente incerto, tanto mais que, na execução, nenhum outro pretendente se apresentou, apesar do reduzido valor base.

Aliás, no caso, ao invocar o crédito como condição de legitimidade para requerer a insolvência do apelante, não é ainda possível perspectivar, com mínima segurança, que, na execução universal subsequente, o venha a receber, ainda que em parte, uma vez que – ao contrário do que se diz na sentença infundadamente – tal remanescente não está garantido por qualquer hipoteca.

De resto o preço futuro de eventual venda não deixará de flutuar em razão das condições da oferta e da procura e, portanto, à revelia da entrega efectuada. O risco ou álea que presidirão à fixação daquele, como em qualquer outro negócio aquisitivo, ditarão resultados que nada têm a ver com a prestação efectuada – efectuada, aliás, à custa dos mutuários a quem pertencia o imóvel hipotecado adjudicado, e não do apelante (assim, não empobrecido).

Por isto e pelo que também a propósito já atrás se disse quanto à extinção da dívida e do abuso de direito, não nos parece que aqui possa ser oposto o enriquecimento sem causa.

Embora nada diga o apelante e muito menos refira o tribunal a quo na espartana fundamentação com que decidiu afastar as questões colocadas, apesar de conhecida a polémica por elas suscitada em tempos recentes, o certo é que elas foram discutidas na Doutrina e na Jurisprudência e o que expusemos não se afasta das conclusões a que aí, predominantemente, se chegou.

A aplicação das regras legais conduz a uma “situação anómala”, como diz a Prof. Isabel Menéres Campos, no Comentário abaixo citado, mas tal não legitima que se force a aplicação dos institutos jurídicos para a corrigir criando “insegurança legal” e “abalo da confiança nas instituições e no Direito”.

Vejam-se os termos da discussão, aliás há anos despoletada em Espanha, por exemplo, em (25):

-Gil Teles de Meneses de Moraes Campilho, Dissertação de Mestrado, intitulada Incumprimento do Contrato de Mútuo para Aquisição de Habitação e Adjudicação do Imóvel Hipotecado por Valor Inferior ao da Dívida Exequenda, Escola de Direito da Universidade Católica, Porto, Dezembro de 2011;
-Alexandra Fonseca Martins, Dissertação de Mestrado, intitulada Contrato de Mútuo com Garantia Hipotecária – A Modificação do Contrato de Crédito à Habitação por Alteração das Circunstâncias Ocorrida nos Mercados Financeiro e Imobiliário, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Porto, Julho de 2014; (26)
-Isabel Menéres Campos, Comentário à (muito falada) sentença do Tribunal Judicial de Portalegre de 4 de Janeiro de 2012, in Cadernos de Direito Privado, nº 38, Abril/Junho 2012, página 3 e seguintes;
-Acórdão da Relação de Lisboa, de 11-10-2012, proferido no processo 1417/08.8TCSNT.L1-2, relatado pelo Desembargador Pedro Martins;
-Acórdão da Relação de Lisboa, de 12-12-2013, proferido no processo 23703/09.0T2SNT-B.L1-6;
-Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05-02-2014, proferido no processo nº 722/12.3TBBJA-A.E1, relatado pelo Desembargador Acácio Neves;
-Acórdão da Relação de Coimbra, de 01-03-2016, proferido no processo 133/14.6TBPCV.C1, relatado pelo Desembargador Falcão de Magalhães.

Enfim, subsistindo o crédito; nada obstando à sua exigibilidade, face à improcedência das referidas excepções; não pondo em causa o apelante que, como concluiu a sentença recorrida, se mostra preenchido o facto indiciário, não ilidido, previsto na alínea b), do nº 1, do artº 20º, do CIRE, em nada mais questionado; e não demonstrando aquele a sua solvência – tem de se confirmar o juízo que levou à declaração desta, tanto mais que, não tendo os co-devedores efectuado o pagamento da dívida restante, não indicando eles quaisquer outros bens susceptíveis de penhora (facto K) e não os conseguindo descobrir o apelado (facto L), resulta evidente a impossibilidade de o apelante cumprir as suas obrigações vencidas já que os demais bens que lhe são conhecidos (facto G) e cujo valor patrimonial, contas feitas à luz dos documentos juntos e que suportam a conclusão do facto provado H), rondam os 260.000€ enquanto o valor das obrigações por eles garantidas se acercam dos 430.000€, estando a sua própria pensão de reforma (que, segundo documento junto a fls. 57 é de 987,29€) penhorada para garantia de dívidas no montante global de 136.826,29€ (facto J).

Afastadas as objecções opostas, emerge incumprimento de obrigação que, pelo seu montante elevado e circunstâncias em que ocorre relativas ao património do devedor e sua oneração, bem como dos demais condevedores, evidencia que está impossibilitado de pontualmente, como deveria, satisfazer todas as suas obrigações contraídas.

Nesta medida e como se antecipou, devendo improceder, como improcede, o recurso na parte analisada, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelo apelante, mormente a da patente magreza da fundamentação de facto ou do seu eventual erro quanto ao valor do imóvel.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo apelante – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).

Notifique.

Guimarães, 22 de Setembro de 2016
José Fernando Cardoso Amaral
Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Higina Maria Almeida Orvalho da Silva Castelo

Sumário (artº 663º, nº 7, CPC):

I) Tendo o apelante co-afiançado dois mútuos (no valor global de 220.000€), contraídos por um casal, em 2006, um deles destinado à aquisição (pelo preço de 190.000€) de um imóvel (para habitação) que deram de hipoteca em garantia de ambos, e tendo sido instaurada (contra mutuários e fiadores) execução judicial para cobrança das prestações em dívida na qual nenhum pagamento foi obtido, não se verifica extinção do crédito remanescente nem abuso de direito nem enriquecimento sem causa se o Banco mutuante invoca tal crédito e pede a declaração de insolvência do fiador, apesar de, numa outra execução (fiscal) paralela (contra os mutuários), aquele ter reclamado o mesmo crédito vencido (223.228,47€) e nela lhe ter sido adjudicado em pagamento o dito imóvel hipotecado (pelo valor aí proposto de 163.510,00€), considerando ele a dívida reduzida apenas para 155.020,02€ (em resultado do valor subtraído para pagamento aos credores graduados à sua frente), ainda que o adjudicado imóvel tenha valor superior ao da dívida ou possa por tal valor vir a ser vendido pelo adjudicatário.
II) Tendo, assim, o credor legitimidade para pedir a declaração de insolvência do fiador; nenhum pagamento mais tendo sido conseguido; apurando-se que os únicos bens conhecidos na execução (pertença daquele) são de valor significativamente inferior ao das dívidas a cuja garantia já estão adstritos; e nenhum outro bem nomeando qualquer dos co-devedores nem o tendo conseguido descobrir o credor – verifica-se a presunção de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas derivada do facto indiciário previsto na alínea b), do nº 1, do artº 20º, do CIRE, pelo que deve ser decretada a insolvência.


(1) A fim de melhor se definir e perceber o exacto objecto do processo, as questões a dirimir e o preciso contexto do litígio (e, depois, os do recurso), detalham-se, de seguida, após indispensável exegese dos articulados apresentados pelas partes e em vista dos documentos com eles juntos, os fundamentos da acção e da defesa, nos termos e pela ordem que se nos afiguram ser os mais claros, correctos e relevantes, à luz do artº 607º, nº 2, do CPC, necessidade imposta pela magreza da sentença recorrida na sua exposição e das alegações no seu tratamento preciso e conciso.
(2) Relatório, todavia, tal como outros documentos, ignorado na fundamentação da decisão da matéria de facto, como se queixa o apelante.
(3) Contendo-se hoje na sentença também a decisão da matéria de facto controvertida, os vícios deste julgamento não são contemplados no artº 615º mas no artº 662º.
(4) Definido o conceito de questão à luz do artº 608º, nº 2, CPC.
(5) Manual de Processo Civil, 2ª edição revista, página 690.
(6) A. Varela, na RLJ, Ano 122.º, pág. 112.
(7) J. Alberto dos Reis, no “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, página 143.
(8) Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, 1997, págs. 220 e 221.
(9) Autor e obra citados, páginas 220 a 223.
(10) Código de Processo Civil Anotado, 2.º, 2.ª edição, pág. 704 .
(11) Idem, página 680.
(12) Acórdão de 21-06-2011, supra referido.
(13) Acórdão de 15-11-2012, relatado pelo Consº Orlando Afonso.
(14) Acórdão, de 28-02-2013, relatado pelo Consº João Bernardo (sumário).
(15) Idem, no texto.
(16) Proferido no processo nº 810/04.0TBTVD.L1.S1, relatado pelo Consº Álvaro Rodrigues.
(17) Artigos 152º, nº 4, e 630º, nº 1, do CPC, despachos aqueles equiparados para tal efeito a sentença – artº 613º, nº 3.
(18) Cfr. normas citadas.
(19) Relator: Consº Gregório Silva de Jesus, que cita variada jurisprudência no mesmo sentido (acórdãos do STJ de 13-10-2007, 17-04-2007, 24-01-2008, 10-04-2008 e 08-01-2009, Procs. n.º 07A3570, 07B956, 07B3813, 08B396 e 08B3510, respectivamente, todos disponíveis no ITIJ), e Doutrina (Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, páginas 687 e 688, e Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2000, página 297).
(20) Acórdão de 17-04-2012, relatado pelo Desemb. Carlos Gil.
(21) Relatado pelo Desemb. Rodrigues Pires.
(22) Como esclarecidamente salienta a Prof. Isabel Menéres Campos, no Comentário abaixo citado.
(23) Note-se bem que, em face dos artigos 875º, nº 3, e 889º, nº 2, do Código de Processo Civil anterior, porventura o aplicável à execução judicial, o valor mínimo da venda ou da adjudicação era 70%.
(24) Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, página 458.
(25) Recorde-se que para as situações mais graves o legislador entretanto interveio criando um “regime extraordinário de protecção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil” – Lei nº 58/2012, de 9 de Novembro, alterada pela Lei nº 58/2014, de 25 de Agosto.
(26) Ambos disponíveis na internet e localizáveis através do Google.