Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
154/14.9GBGMR.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
OMISSÃO
FACTOS
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) Independentemente da qualificação jurídica de determinados eventos, o tribunal competente para a instrução em primeira instância tem de fazer a fundamentação fáctica, enunciando com clareza os factos que julga indiciados e os motivos dessa convicção.
II) A narração dos factos indiciados constitui um elemento essencial para garantir a certeza e os limites da matéria abrangida pelo trânsito em julgado da decisão instrutória e, nessa medida, corresponde à definição de um direito e de uma garantia de defesa do arguido.
II) Esta exigência decorre do cumprimento do dever de fundamentação das decisões judiciais e especificamente da conjugação das normas contidas nos artigos 308º, nº 2 e 283º, nº 3, al. b), do CPP.
III) No caso dos autos, o tribunal recorrido não definiu o quadro fático que julgou como indiciariamente provado, apesar de terem sido ouvidas em instrução duas testemunhas que terão apresentado uma narração dos acontecimentos bem distinta da que consta da acusação pública e, por isso, ocorre a nulidade da decisão instrutória.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Guimarães formulou acusação contra José A., imputando-lhe o cometimento em autoria material de um crime de ameaça, previsto e punido no artigo 153.º do Código Penal, porquanto considerou suficientemente indiciado que (transcrição),

No dia 14.03.2014, pelas 13.15 horas, o ofendido Orlando L. acompanhou a sua esposa Maria C. ao local de trabalho desta, sito na Rua …, em Serzedo, nesta comarca, a fim da mesma receber um cheque.

Uma vez naquele local o ofendido aguardou no interior do seu veículo acompanhado pelo seu irmão Arnaldo S. enquanto a esposa se deslocou ao interior das instalações do seu local de trabalho.

De repente, o arguido em voz alta e exaltado dirigindo-se à esposa do ofendido disse-lhe: “ Ó C. avisa o teu marido, avisa-o mesmo, um dia passo-me dos carretos, ando com dois objetos debaixo da carrinha e onde o encontrar algo vai-lhe acontecer, porque já estou saturado de receber cartas e telefonemas dele... Hoje ainda vou fazer das minhas a duas pessoas com os objetos que trago debaixo da carrinha.”

Com estas palavras o arguido pretendeu afirmar que quando encontrasse o ofendido atentaria contra a integridade física do mesmo.

O ofendido ouviu estas expressões proferidas pelo arguido e ficou com medo e receio que o arguido concretize o seu objetivo atentando contra a sua integridade física.

O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente com intenção de provocar no ofendido medo, receio e prejudicar a sua liberdade de determinação, o que conseguiu.

O arguido tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Realizada a instrução a requerimento do arguido e após o debate instrutório, o Mm.° juiz de instrução do Tribunal Judicial da Comarca de Braga proferiu a seguinte decisão (transcrição parcial):

“ (…)

Feito este excurso pelo tipo legal de crime pelo qual o arguido foi acusado, apreciemos se os factos constantes da acusação pública constituem crime de ameaça.

Tendo em conta a acusação delimita os poderes de cognição do tribunal, vejamos se as expressões “O C. avisa o teu marido, avisa-o mesmo, um dia passo-me dos carretos, ando com dois objectos debaixo da carrinha e onde o encontrar algo vai aconteceri, porque já estou saturado de receber cartas e telefonemas dele. . . Hoje ainda vou fazer das minhas a duas pessoas com objectos que trago debaixo da carrinha”, constituem elemento objectivo do crime de ameaça.

O tipo legal de crime de ameaça está inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal e visa sancionar, inequivocamente os ataques ou afectações ilícitas da liberdade individual, pretendendo tutelar a liberdade de decisão e de acção. Ameaçar, etimologicamente, significa prometer ou pronunciar um mal futuro, anunciar a intenção de praticar, no futuro, um acto maléfico, donde, são 3 as características essenciais do conceito de ameaça:

-mal,

-futuro,

-cuja ocorrência dependa da vontade o agente.

o crime de ameaça, hoje em dia após a revisão do C Penal operada em 1995, passou de crime material ou de resultado, a crime de mera actividade, como o era, aliás, no Código Penal de 1886.

Passou a ser crime de perigo e concreto.

Assim, o que se exige, como elemento constitutivo e objectivo, deste tipo legal, é que a acção reúna certas características, não sendo necessário que em concreto, chegue a provocar medo ou inquietação, antes que de forma adequada a conduta do agente, provoque o resultado dos crimes materiais, de medo ou inquietação.

Para o preenchimento deste conceito de adequação, devemos fazer apelo, quer ao ponto de vista do visado, sentido, sensibilidade e personalidade do sujeito passivo, quer ao ponto de vista do que é geralmente reconhecido.

Não basta a simples ameaça para que se verifique o apontado tipo legal de mera acção e de perigo. Torna-se necessário que a ameaça, na situação concreta, seja adequada a provocar medo e inquietação. O critério para ajuizar da adequação da ameaça a provocar medo e inquietação, ou para prejudicar a liberdade de determinação, deverá, ser por um lado objectivo e por outro individual.

Objectivo, desde logo, no sentido de que a ameaça se deve considerar adequada, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida, bem como a personalidade do agente e a susceptibilidade de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa e, individual, no sentido de que devem revelar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada.

Por outro lado, o objecto da ameaça tem de constituir crime “contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”, são os ensinamentos retirados do Comentário Conimbricense, da autoria do Prof. Taipa de Carvalho.

E aqui chegamos ao ponto essencial da questão nos presentes autos. No caso, a objectividade das circunstâncias, do contexto e dos factos em si denunciam que oarguido, em alta voz e exaltado referiu “O C. avisa o teu marido, avisa-o mesmo, um dia passo-me dos carretos, ando com dois objectos debaixo da carrinha e onde o encontrar algo vai acontecer, porque já estou saturado de receber cartas e telefonemas dele. . .Hoje ainda vou fazer das minhas a duas pessoas com objectos que trago debaixo da carrinha’.

Ora, tais expressões não revelam nenhuma das apontadas características que a ameaça deve revestir.

Com efeito, não são concretizadas que tipo de comportamento o arguido, no futuro, iria fazer relativamente ao ofendido, porquanto não concretizou que mal iria fazer.

Não resulta de tais expressões qual o mal em termos de objectividade, muito menos em termos de constituir crime contra os bens, vida, integridade fisica, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.

As palavras do denunciado não denunciam, não exteriorizam qualquer atentado futuro contra bens, vida, integridade fisica, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.

Em conclusão:

Os factos imputados ao arguido, por falta de concretização de qualquer tipo de mal no futuro a infligir, não têm a virtualidade de fazer integrar a previsão do tipo legal de ameaça.

Deste modo e por não se verificar, em qualquer das expressões, todos os elementos objectivos do tipo de ilícito, impõe-se a prolação de despacho de não pronúncia, por inexistência de crime de ameaça.

Em face do exposto, por se entender que os factos indiciados não consubstanciam a prática de crime de ameaça, nem de qualquer outro, decido não pronunciar o arguido José A. e, em consequência, determino o oportuno arquivamento dos autos”.

Inconformado, o assistente Orlando L. interpôs recurso da decisão instrutória e da motivação extraiu as seguintes conclusões (transcrição)

1. Constitui objeto deste recurso o despacho de O3Nov.2014, o qual determinou a não pronúncia do arguido José A., conforme se pode ler a decisão: “Em face do exposto, por se entender que os factos indiciados não consubstanciam a prática de crime de ameaça, nem de qualquer outro, decido não pronunciar o arguido José A., e em consequência, determino o oportuno arquivamento dos autos”.

2. Ora, com o teor de tal decisão não se pode o assistente/recorrente conformar, apresentando o presente recurso.

3. O despacho de não pronúncia aqui recorrido não apresenta a factualidade que considerou provada e não provada, indiciada ou não indiciada, por referência ao libelo acusatório.

4. Na verdade, a instrução, conforme vem definida no artigo 286°, do Código de Processo Penal, não é mais do que um meio de impugnação judicial, neste caso, do despacho de acusação.

5. Sendo certo que, de acordo com o disposto no artigo 308°, n° 1, do mesmo Código, dependendo da existência de “ indícios suficientes” o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário,profere despacho de não pronúncia”.

6. Ora, para efeitos de se aferir da existência ou não de “indícios suficientes” sempre seria forçoso apreciar a prova produzida em sede de instrução.

7. Na verdade, o despacho de não pronúncia, como ato decisório, encontra-se obrigado à respetiva fundamentação, sendo o que decorre do art.97.°, n.°5 CPP.

8. Mais premente se mostra esta necessidade de apreciação da prova e respetiva fundamentação da decisão, quando se atenta ao disposto no n°2 do art° 308 do CPP, o qual refere ser aplicável ao despacho de pronúncia, ou de não pronúncia, o disposto no art.° 283 ns°2, 3 e 4 do mesmo diploma.

9. O que faz com que se comine com nulidade a acusação (neste caso, feita a adaptação, o despacho de não pronúncia) que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

10. Desta forma, o presente despacho de não pronúncia ao ser omisso a esta questão, encontra-se claramente ferido de nulidade.

11. Só uma clara definição da factualidade que foi considerada ou não, é que tornaria possível decidir se os factos considerados como indiciados são, ou não, suficientes, para a sujeição do arguido a julgamento pelos crimes imputados.

12. A imposição de fundamentação, de facto e de direito, ao despacho de não pronúncia, por aplicação conjugada das mencionadas disposições ( art. 283 n°3 ex vi art.308 n°2, ambas do CPP ) só deve, por isso, considerar-se cabalmente satisfeita, com a articulação e enumeração, expressa, discriminada e autónoma, de cada um dos factos que se consideram indiciados e não indiciados, uma vez que só assim se permitirá o exercício do direito - de recurso por parte dos sujeitos processuais que se sintam afetados com a decisão, bem como a real sindicância por parte do tribunal ad quem.

13. Ora, não enumerando a decisão instrutória, de forma clara e objetiva, quais os factos que considera indiciariamente provados e não provados faz enfermar o presente despacho do vício de nulidade, a qual não pode deixar de ter-se como insanável.

14. Verificou-se ainda falta de apreciação da prova, pois apesar de o princípio da livre apreciação da prova, ser menos exigente na decisão instrutória do que na sentença, uma vez que nesta última não se pretende a verdade material, mas tão somente da suficiência dos indícios (ou insuficiência), deveria sempre estar presente, para que seja compreensível o raciocínio do julgador.

15. Desta forma, inexistiu uma apreciação da prova produzida em sede de instrução, não se fazendo qualquer referência à sua credibilidade, fiabilidade e consistência.

16. As duas testemunhas ouvidas tratavam-se de familiares do arguido (esposa e cunhado), que sustentaram a tese de que não foi o arguido que proferiu tais expressões, mas sim o assistente, aqui recorrente, que num quadro de alegada “calma e tranquilidade”, sem motivo aparente se exaltou e, sem que nada o justificasse, proferiu em voz alta outros insultos, sendo que a testemunha Sofia P., mostrou uma estranha convicção na versão que sustentava, porém não apresentou qualquer certeza da data da sua ocorrência.

17. Assim, unicamente se baseia o despacho ora recorrido na análise ao tipo legal de crime aqui em causa (de ameaça), e respetivos elementos, pelo contraponto com as expressões concretamente proferidas, concluindo-se pela inexistência de um crime, descurando por completo a prova produzida em sede de instrução.

18. Ora, atendendo às palavras concretamente proferidas: “Ó C. avisa o teu marido, avisa-o mesmo, um dia passo-me dos carretos, ando com dois objectos debaixo da carrinha e onde o encontrar algo vai acontecer, porque já estou saturado de receber cartas e telefonemas dele... Hoje ainda vou fazer das minhas a duas pessoas com objectos que trago debaixo da carrinha”. — não se pode concordar que não enquadre o ilícito típico de ameaça.

19. Ora, a expressão concretamente proferida pelo arguido e dirigida à esposa do ofendido, proferida em voz alta e tom exaltado para que este também a ouvisse, constitui claramente uma ameaça do arguido.

20. Apesar de o arguido não ter dito expressamente, por hipótese, “vou dar-te um tiro”, ou “uma acada” ou “vou-te partir a cabeça”, é certo que a expressão “passo-me dos carretos e faço das minhas com dois objectos que tenho debaixo da carrinha”. . . nunca se poderá entender em sentido diverso do anúncio de um mal futuro.

21. Se assim não fosse, o âmbito do crime de ameaça estaria reduzido a um leque de situações onde se concretizasse os tipos de mal futuro, bem como se discriminasse as respetivas formas de atuação.

22. De acordo com a experiência comum, tal expressâo, neste caso concreto, configurou uma ameaça suscetível de ser tomada a sério, como foi, pelo ameaçado.

23. Assim sendo, com a referida conduta, preencheu o arguido os elementos objetivos deste tipo de ilícito.

24. Ao decidir em sentido contrário, o tribunal a quo incorreu num erro notório de apreciação de toda a prova presente nos autos, fazendo uma leitura exclusivamente literal do substrato que foi verbalizado, nào se atendendo às regras da experiencia comum, devendo os factos enquadrar-se como ilícito típico de ameaça.

Termos em que deverá o presente recurso ser considerado procedente, devendo a presente decisão instrutória ser declarada nula, por violação das disposições legais arts° 283 n°3 ex vi 308 n°2, art.97.°, n.°5 e art.127.°todos do CPP, devendo, posteriormente, haver lugar a nova decisão instrutória cujo sentido seja o da PRONÚNCIA do arguido pela prática do crime de ameaça, p.e.p. no art.153.° CP, em conformidade com a Acusação Pública.

Fazendo-se, desta forma, JUSTIÇA!

O Ministério Público, por intermédio do Procurador da República na instância central de Guimarães, formulou resposta concluindo que a decisão de não pronúncia se encontra devidamente fundamentada e não enferma de qualquer nulidade ou irregularidade, pelo que o recurso deve ser rejeitado e confirmada a decisão recorrida.

O arguido José A. apresentou igualmente resposta ao recurso do assistente, concluindo que a decisão de não pronúncia se deve manter.

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público, representado pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado parcialmente procedente porquanto a decisão instrutória encontra-se afectada de nulidade por ausência de fundamentação de facto, não merecem provimento.

O arguido respondeu ao parecer do Ministério Público.

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e do juiz adjunto, cumpre decidir em conferência.

2. Tendo em conta o texto da decisão e teor das conclusões das motivações, que delimitam o âmbito do recurso, naturalmente que sem prejuízo do conhecimento oficioso, as questões a resolver consistem fundamentalmente em saber se a decisão recorrida se encontra afectada de invalidade processual por omissão de apreciação da existência de indícios suficientes dos factos imputados ao arguido e, no caso negativo, se esses factos imputados são susceptíveis de preencherem os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de ameaça.

3. Finda a instrução, o juiz tem de proceder a uma análise objectiva e conjunta da credibilidade e da consistência de todos os meios de prova disponíveis, à luz das regras normais da vivência comum e de critérios de lógica e de razoabilidade. Será com base nessa análise ou valoração que o juiz poderá concluir se aqueles elementos de prova recolhidos até ao momento, uma vez produzidos e/ou examinados (“repetidos”) em audiência de julgamento e sujeitos ao contraditório pleno, oralidade e imediação, permitem um juízo de probabilidade séria de condenação do arguido, para lá de toda a dúvida razoável.

Nestes autos, houve lugar a interrogatório do arguido e a inquirição de duas testemunhas indicadas pela defesa e, findo o debate instrutório o Exmo. juiz de instrução decidiu não pronunciar o arguido por entender que os factos constantes da acusação pública não integravam os elementos do tipo de crime de ameaça. Para tanto, o Exmº juiz considerou desnecessário proceder na mesma peça processual a enunciação dos factos indiciados e não indiciados e da fundamentação da convicção nesse âmbito, apesar de terem sido ouvidas em instrução duas testemunhas que terão apresentado uma narração dos acontecimentos bem distinta da que consta da acusação pública.

Como invocou o Ministério Público neste Tribunal da Relação e tem sido entendimento maioritário na jurisprudência, a imperiosa necessidade de a decisão instrutória – seja ela de pronúncia ou de não pronúncia – conter a narração dos factos indiciados e não indiciados decorre do cumprimento do dever de fundamentação das decisões judiciais e especificamente da conjugação das normas contidas nos artigos 308.º n.º 2 e 283.º, n.º 3 b) do Código do Processo Penal.

Com efeito, se a lei comina com nulidade a acusação que não contenha a narração dos factos indiciados, ter-se-á de entender que será igualmente inquinado de nulidade o despacho de pronúncia ou de não pronúncia que omitir essa narração. Segundo se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 1-03-2005, “Poder-se-ia argumentar que tal imposição apenas respeitaria ao despacho de pronúncia e não ao de não pronúncia já que, colocados os artigos em similitude, não existe para o despacho de arquivamento a exigência semelhante ao de acusação. Duas ordens de razões levam-nos a concluir o contrário. Em primeiro lugar o art.308º nº2 do CPP não distingue. Diz, apenas, que “é correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior”, sendo certo que o despacho referido no número anterior é tanto o de pronúncia como o de não pronúncia. E, “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”.(…) Acresce que o Tribunal superior ao apreciar o recurso não se substitui ao Tribunal “a quo”, ou seja, não pode aquele proferir um despacho de pronúncia ou de não pronúncia. Apenas pode, em face dos elementos constantes da decisão instrutória, (o recurso não é do conjunto processual é de uma decisão específica) decidir se o Tribunal recorrido deve ou não modificar o seu despacho. Para tanto tem a decisão recorrida de fornecer ao Tribunal “ad quem” todos os elementos fácticos que lhe permita apreciar o recurso. Daí que o art.308ºnº2 não tenha e bem feito distinção entre um ou outro dos despachos impondo a ambos as mesmas exigências de narração factual.”Por tudo o exposto, entendemos que a não descrição da matéria fáctica determina a nulidade do acto (uma vez que se encontra expressamente cominada na lei (arts.118º e 283º do CPP), nulidade esta oficiosamente cognoscível em sede de recurso”

Como também tem sido sublinhado, a narração dos factos indiciados constitui um elemento essencial para garantir a certeza e os limites da matéria abrangida pelo trânsito em julgado da decisão instrutória e, nessa medida, corresponde à definição de um direito e de uma garantia de defesa do arguido.

Ou seja, independente da qualificação jurídica de determinados eventos, o tribunal competente para a instrução em primeira instância tem de fazer a fundamentação fáctica, enunciando com clareza os factos que julga indiciados e os motivos dessa convicção. No caso destes autos, a apreciação e eventual procedência do recurso quanto à subsunção dos factos imputados no tipo de crime de ameaça exige que antes tenham sido definidos os factos que o tribunal de primeira instância julga como indiciados.

A não descrição dos factos conduz necessariamente a nulidade da decisão instrutória e assim fica prejudicado o conhecimento das restantes questões controvertidas expostas no recurso em apreciação.

4. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso e em revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra em que se proceda a descrição fundamentada dos factos indiciados e não indiciados.

Sem tributação.

Guimarães, 4 de Maio de 2015.