Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
88/15.0T8VLN.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: INTERDIÇÃO
FALECIMENTO
PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - Verificando-se o falecimento do requerido na pendência de ação de interdição, quando já havia sido efetuado o interrogatório e exame, pode o requerente pedir que a ação prossiga para o efeito de se verificar se existia e desde quando datava a incapacidade.
2 – De igual faculdade goza o curador provisório do requerido, que acompanhou o processo numa posição paralela à do MP (requerente) e que defende os mesmos interesses atendíveis que a lei pretende salvaguardar com a possibilidade de prosseguimento da ação após a morte do requerido, designadamente tendo em conta que lhe cabe a ele requerer a anulação, nos termos da lei civil, dos atos praticados pelo requerido.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 88/15.0T8VLN.G1
2.ª Secção Cível – Apelação
Relatora: Ana Cristina Duarte (R. n.º 530)
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.RELATÓRIO
O Ministério Público deduziu ação de interdição por anomalia psíquica relativamente a Geraldina D, nascida a 24 de maio de 1932, alegando que a requerida sofre de síndrome demencial, situação que se reportará a maio de 2012, altura em que enviuvou, apresentando discurso escasso, incoerente e com grandes défices de memória. Não tem noção do tempo, não sabe o preço dos bens de consumo essencial, não tem capacidade crítica e de decisão, não é autónoma nas atividades básicas da vida diária, necessitando de apoio e supervisão permanente de terceira pessoa nos cuidados de alimentação, na higiene, na segurança e nos cuidados de saúde, concluindo que se encontra total e definitivamente incapaz de reger a sua pessoa e os seus bens.
Foi dada publicidade à ação, nos termos do artigo 892.º do CPC e, face à impossibilidade de citar a requerida, foi nomeada curadora provisória sua irmã Maria F, indicada para o cargo de tutor.
Citada a curadora, veio esta subscrever integralmente o teor da petição inicial e manifestar a vontade de acolher imediatamente a sua irmã e exercer as funções de tutora provisória.
Nomeada patrona à requerida, veio esta pugnar para que a ação seja julgada em conformidade com a prova que vier a ser produzida.
Teve lugar o interrogatório e exame pericial previstos nos artigos 897.º e 898.º do CPC, com os resultados constantes do auto de fls. 33, tendo a Sra. Perita médica elaborado relatório no qual conclui que a requerida reúne critérios para interdição, não podendo apurar o início da doença (deterioração cognitiva grave de etiologia mista vascular e doença de Alzheimer), mas sabendo-se que, em 2010, estava já presente.
O MP promoveu que se decrete imediatamente a inibição da requerida, devendo seguir-se os critérios legais para a nomeação de tutor e conselho de família (face à divergência entretanto suscitada nos autos, para o lugar de tutor, pela curadora provisória e pela patrona nomeada).
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador e definidos o objeto do litígio e os temas da prova.
Os cuidadores da requerida, Maria C e José F vieram, a 26/02/2016, dar conhecimento do falecimento da requerida a 25/02/2016.
Junta a certidão do assente de óbito, veio Maria F, curadora provisória da requerida, requerer que a ação prossiga para o efeito de se verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada.
O MP, em face do óbito da requerida, promoveu a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
A 30/03/2016 foi proferida a seguinte decisão:
“Resulta da certidão de assento de óbito de fls. 58 (reverso) que a requerida faleceu no passado dia 2.02.2016 (trata-se, certamente de lapso, uma vez que a data da morte que consta do documento, é 25/02/2016).
Em face do exposto julgo extinta a instância por inutilidade superveniente da lide – cfr. artigo 277.º, alínea e), do CPC.
Sem custas – cfr. artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do RCP.
Notifique”.
Maria F veio, então, recordar o seu requerimento para que a ação prossiga para efeito de se averiguar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada, alegando que a sua irmã terá disposto de significativa quantia em dinheiro num período que poderá coincidir com a alegada incapacidade, factualidade que, a provar-se, tornará nulas e de nenhum efeito essas disposições.
Tal requerimento foi indeferido com o argumento de que apenas o requerente tem legitimidade para pedir o prosseguimento da ação.
Discordando desta decisão, dela interpôs recurso a curadora provisória, irmã da requerida, finalizando a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
A) A questão que se coloca no presente recurso é a de saber quem tem legitimidade para requerer o prosseguimento da acção de interdição por anomalia psíquica no caso do falecimento do interdicendo;
B) O douto despacho recorrido enveredou por uma interpretação manifestamente restritiva do disposto no nº 1 do artigo 904º do C.P.C. ao defender que tal legitimidade cabe exclusivamente ao requerente que, no caso em apreciação, é o Ministério Público;
C) Caso fosse sufragada tal interpretação colocaria o requerente da acção de interdição a decidir, de forma irreversível, sobre interesses que envolvem terceiros;
D) Só assim não aconteceria se o requerente da acção de interdição visasse um direito próprio e exclusivamente seu;
E) No caso de falecimento do interdicendo o prosseguimento da acção de interdição desde que feitos o interrogatório e o exame, como sucede no presente caso, tem apenas por finalidade verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada;
F) Factualidade que visa fundamentalmente defender interesses patrimoniais mediante a invocação da incapacidade do interdicendo à data da prática de negócios ou eventuais liberalidades do mesmo;
G) A defesa ou não de tais interesses não poderá ficar dependente da posição do requerente em face do falecimento do requerido;
H) Daí a recorrente ter requerido o prosseguimento da acção de interdição, com inteira legitimidade dada a sua participação activa no processo de interdição desde o seu início, explicando a razão da necessidade do prosseguimento dos autos;
I) A interpretação restritiva do nº 1 do artigo 904º do C.P.C. conduziria a resultados perversos e indesejados;
J) Outrossim, conduziria à derrogação de princípios de direito sucessório;
K) Se porventura for mantido o entendimento restritivo respaldado no nº 1 do artigo 904º do C.P.C. sempre o nº 2 do mesmo artigo permitiria o prosseguimento da acção de interdição mesmo que o requerente não pedisse o prosseguimento dos autos;
L) Da conjugação dos dois números do artigo 904º do C.P.C., conclui-se que haverá que distinguir duas situações perante o falecimento do interdicendo: a primeira a considerar é a do requerente pedir o prosseguimento da acção para o efeito de se verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada, caso em que a acção prosseguiria; e a segunda a considerar é a do requerente não pedir o prosseguimento do processo, caso em que os herdeiros do requerido têm o direito de requerer o prosseguimento da acção;
M) Se não fosse esta a interpretação correcta não cobraria qualquer sentido nem justificação o uso dos termos “… não se procede neste caso a habilitação dos herdeiros do falecido”;
N) A expressão “neste caso” refere-se precisamente quando é requerido o prosseguimento dos autos pelo requerente da acção de interdição;
O) Ao ser utilizada a expressão “neste caso” é porque o legislador admite outros casos ou situações, nomeadamente a possibilidade dos herdeiros do interdicendo requerer o prosseguimento da acção;
P) Ora, a decisão recorrida decidiu pura e simplesmente pela extinção da instância sem conceder a possibilidade de ser admitido o prosseguimento da acção, o que fez errada interpretação da lei, violando o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 904º do C.P.C.
Pelo exposto e com o douto suprimento de V. Exª deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando o douto despacho recorrido, com vista a ser admitido o prosseguimento dos autos por quem de direito, nos quais se incluem a recorrente por ser irmã da interdicenda, assim se fazendo inteira justiça.

O MP pugnou pela manutenção do despacho recorrido.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e feito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver traduz-se em saber se a recorrente tem legitimidade para peticionar o prosseguimento da ação após o falecimento da requerida, sua irmã e da qual havia sido nomeada curadora provisória.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Os factos com interesse para a decisão são os que constam do relatório supra.

Nos termos do disposto no artigo 904.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, “falecendo o requerido no decurso do processo, mas depois de feitos o interrogatório e o exame, pode o requerente pedir que a ação prossiga para o efeito de se verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada”
Sustenta a decisão recorrida que este artigo apenas confere legitimidade para pedir o prosseguimento da ação ao requerente, motivo pelo qual indeferiu o requerimento, nesse sentido, da irmã da falecida, sua curadora provisória.
Invoca, em apoio da sua tese, um Acórdão da Relação de Lisboa de 17/02/2000 do qual, salvo o devido respeito, não pode extrair-se a ilação pretendida.
Com efeito, o que aí se diz é que se compreende que apenas possa pedir o prosseguimento da ação, o requerente que manifestou interesse, através da propositura da mesma, de fazer declarar a incapacidade do requerido para reger a sua pessoa e administrar o seu património, não se compreendendo que a lei admitisse a quem interveio no processo a título de representante do requerido (com o mero escopo de organizar e apresentar a defesa dele) a implementação da continuação da ação depois do seu decesso e independentemente de se haver ou não conformado com a verificação da incapacidade invocada na petição inicial.
Ora, o que acontece no caso de que nos ocupamos é que, tendo a ação sido intentada pelo MP, a verdade é que, a ora recorrente, não intervém no processo a título de representante da requerida.
Conforme se pode ver do despacho proferido a fls. 21 e atos processuais subsequentes, foi nomeada patrona à requerida e foi a mesma citada para contestar, o que a patrona fez, apresentando contestação em que requereu que a ação fosse julgada em conformidade com a prova que viesse a ser produzida em audiência de julgamento (esse foi, aliás, o motivo pelo qual não foi proferida sentença logo após o interrogatório e exame, como havia promovido o MP, tendo os autos seguido os termos do processo comum, conforme determina o n.º 2 do artigo 899.º do CPC).
Como é óbvio, após a morte da requerida, não pode a sua representante requerer que a ação prossiga, desde logo e até porque, nos termos do n.º 2 do artigo 904.º do CPC, a ação prosseguiria contra quem representava a requerida, sem necessidade de habilitação de herdeiros – este é o sentido do Acórdão citado na decisão recorrida.
Situação completamente diferente é a dos autos, em que é a curadora provisória quem vem requerer o prosseguimento da ação para o efeito de se verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada, apresentando razões atendíveis para tal, que se prendem com o facto de a falecida ter disposto de “significativa quantia em dinheiro num período que poderá coincidir com a alegada incapacidade, factualidade que, a provar-se, tornará nulas e de nenhum efeito essas disposições”.
Atente-se que cabe nas funções do curador requerer, após o trânsito da sentença, a anulação nos termos da lei civil (artigos 148.º a 150.º do Código Civil), dos atos praticados pela requerida, nos termos do disposto no artigo 903.º, n.º 2 do CPC.
Ora, a razão de ser da norma em análise, que permite o prosseguimento da ação após a morte da requerida, visa, essencialmente, proteger interesses, de ordem patrimonial, como o que foi alegado pela recorrente, uma vez que, nesse caso, a ação se destina apenas a verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada.
Por outro lado, se é certo que a apelante não foi a requerente do processo, a verdade é que, desde o momento inicial, quando foi nomeada curadora provisória, veio aos autos subscrever integralmente o teor da petição inicial, disponibilizando-se para acolher a sua irmã e dando conta, desde logo, dos alegados atos lesivos do património daquela, colocando-se, assim, num lugar paralelo ao do requerente, manifestando o seu interesse de fazer declarar a incapacidade da requerida, numa postura completamente diferente da da representante da requerida, que se limitou a organizar e apresentar a defesa dela, como lhe competia.
Assiste, assim, à apelante, curadora provisória da requerida, legitimidade para requerer o prosseguimento da ação para o efeito de se verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada.

Nos termos expostos, a apelação será procedente, com a consequente revogação da decisão que indeferiu o seu requerimento para prosseguimento da ação e julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Sumário:
1 - Verificando-se o falecimento do requerido na pendência de ação de interdição, quando já havia sido efetuado o interrogatório e exame, pode o requerente pedir que a ação prossiga para o efeito de se verificar se existia e desde quando datava a incapacidade.
2 – De igual faculdade goza o curador provisório do requerido, que acompanhou o processo numa posição paralela à do MP (requerente) e que defende os mesmos interesses atendíveis que a lei pretende salvaguardar com a possibilidade de prosseguimento da ação após a morte do requerido, designadamente tendo em conta que lhe cabe a ele requerer a anulação, nos termos da lei civil, dos atos praticados pelo requerido.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e ordenando o prosseguimento da ação, nos termos do disposto no artigo 904.º do CPC.
Sem custas.
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Guimarães, 10 de novembro de 2016