Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
109836/11.0YIPRT.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/15/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: O não cumprimento por parte da apelante do disposto no artigo 640, n.º 1 b) e n.º 2 a) do Código de Processo Civil, implica, nos termos desse mesmo artigo, a imediata rejeição do recurso na parte respetiva.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
“P…, Lda.” deduziu requerimento de injunção contra B… com vista ao pagamento da quantia de € 86.956,81, proveniente da prestação de bens e serviços, faturados e não pagos.
O Réu contestou contrapondo que não celebrou com a Autora qualquer contrato, pelo que nada tem a pagar. Referiu que é dono de uma propriedade com a área de cerca de 3,6 hectares, situada na freguesia de Canedo, Celorico de Basto e no ano de 2009 decidiu concorrer ao projeto Vitis para plantar uma vinha; para saber o custo da sua instalação pediu orçamentos, designadamente, para terraplanagem, obtendo valores de € 12.000, € 15.000 e € 18.000, sendo o primeiro dado pela Pa…, Ldª, através de F…, seu sócio gerente, que aceitou. Esta firma iniciou os trabalhos em Junho de 2010, decorrendo durante três meses, com muitas interrupções e paragens. Pagou € 4.000 em Maio e € 6.000 em Julho do referido ano, ficando a dever € 2.000 em virtude de ter ficado cerca de 0,5 hectare por concluir.
A demandante replicou argumentando que tem como legal representante F…, que tem idêntica qualidade relativamente a Pa…, Ldª, mas os contatos foram estabelecidos por aquele na primeira qualidade, sendo que a segunda prestou serviços para si, em regime de subempreitada.
Houve tréplica.
Dispensada a audiência preliminar, foi elaborado despacho saneador e definida a base instrutória, com reclamação do réu, indeferida.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o réu do pedido.

Discordando da sentença, da mesma interpôs recurso a autora, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1– Manifesta-se na sentença recorrida um erro notório na apreciação da prova.
2. Conjugando-se a matéria de facto dada como provada e a prova documental e testemunhal produzida e gravada em audiencia, detecta-se um erro notório na apreciação da prova, ou seja, houve um erro de julgamento da matéria de facto provada.
3- houve erro de julgamento da matéria de facto, por ter sido indevidamente interpretada e valorada a prova documental e testemunhal produzida;
4. Em recurso para reapreciação da matéria de facto obtida em audiência com prova gravada, deve o Tribunal da Relação proceder a uma valoração autónoma dos meios de prova utilizados pelo tribunal “ a quo”, para fundamentar as respostas, devendo servir-se não apenas dos elementos fornecidos pelas partes , mas também de todos os elementos constantes dos autos.
5. Constando dos autos – por transcrição dos depoimentos gravados em audiência de discussão e julgamento - a prova em que se fundamentou a decisão da matéria de facto, pode esta decisão ser alterada pela Relação”- Ac. Relação de Lisboa – 4.10.01- o que doutamente se requer.
6. Se é certo que a percepção dos depoimentos é melhor conseguida com a imediação das provas, também é certo que, caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto, não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo, ou está profundamente desapoiada face ás provas recolhidas, a reapreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação pode, neste caso, abalar a convicção colhida pelo Meritíssimo Juiz “ a quo”, o que se entende ser de Justiça.
7.Acresce que, a falta de força probatória negada aos documentos juntos pelos réus aos autos, difere com os depoimentos das testemunhas inquiridas, que certificaram a existência e veracidade dos mesmos.
8 - Desde logo, o tribunal a quo não poderia ter dado como não provados os factos dos nºs 3 a 8 da base instrutoria, devendo ser alterada a resposta aos mesmos para “provados”.
9. deve igualmente ser alterada a resposta aos pontos nºs 1 da base instrutória (no sentido de ser esclarecido que “ o reu acordou com F…, na qualidade de socio gerente da autora, e que é tambem socio gerente da sociedade Pa…, lda, a realização dos trabalhos referidos no ponto 2 da base instutoria .
10.-Pugna-se assim pela prolação de acórdão que, emanado dos Venerandos Juízes Desembargadores, revogue a decisão recorrida, e, em consequência, determine a alteração das respostas á materia de facto (constante da base instutoria) nos termos sobreditos, julgando procedente a acção e condenado o reu no pedido.
12. A sentença ora recorrida violou entre outros as disposições dos arts 668º, 712º, nº2 do CPC, e 473º e segs. CC.
Termina pedindo que a apelação seja julgada procedente e, consequentemente, seja revogada a sentença recorrida, alterando-se a resposta dada aos quesitos nos termos sobreditos e substituindo-se a mesma por acórdão que julgue procedente a ação e condenado o réu no pedido.

O réu contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a impugnação da matéria de facto e consequências jurídicas de eventual alteração daquela.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foi considerada a seguinte matéria de facto:
Da análise dos documentos juntos, do acordo das partes e da prova produzida emjulgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. A Autora P…, Ldª exerce a atividade de exploração de pedreiras e inertes [resposta ao artigo 1º da base instrutória].
2. O Réu acordou com F…, sócio gerente da Autora, bem como da sociedade Pa…, Ldª, a realização de trabalhos de terraplanagem destinados à construção de uma vinha em Canedo de Basto, Celorico de Basto, que envolviam, igualmente, a destruição de pedra que fosse encontrada com recurso a explosivos [resposta ao artigo 2º da base instrutória].
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Não resultaram provados os factos vertidos nos artigos 3º a 8º da base instrutória.
Os demais apenas foram julgados provados na exata medida do conteúdo da resposta aos artigos 1º e 2º.
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A apelante sustenta o seu recurso na impugnação da matéria de facto. Entende que estão incorretamente julgados todos os pontos da base instrutória que foram considerados não provados, quando deveriam ter obtido resposta de provados e bem assim, o ponto n.º 1 da mesma base instrutória, que deveria ter obtido uma resposta mais completa.
Sustenta a sua discordância na prova testemunhal produzida.
Contudo, a apelante não dá cumprimento ao disposto no artigo 640, n.º 1 b) e n.º 2 a) do Código de Processo Civil, o que implica, nos termos desse mesmo artigo, a imediata rejeição do recurso na parte respetiva.
Não se encontram reunidos os pressupostos legais para se proceder à reapreciação da prova quanto ao conjunto de factos posto em causa.
A autora fundamenta a sua divergência na prova testemunhal que se produziu.
O artigo 685.º-B do anterior Código de Processo Civil estabelecia os requisitos para a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e no seu n.º 2 dizia-se que, tendo havido gravação da prova testemunhal, "incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição."
A mesma solução foi adoptada pelo n.º 2 do artigo 640.º do novo Código de Processo Civil.
Com este n.º 2 "introduziu-se mais rigor no modo como deve ser apresentado o recurso de impugnação da matéria de facto" impondo-se que "se, pelo modo como foi feita a gravação e elaborada a acta, for possível (exigível) ao recorrente identificar precisa e separadamente os depoimentos, o ónus de alegação, no que concerne à impugnação da decisão da matéria de facto apoiada em tais depoimentos, (…) a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda (…)." E "o incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento." – Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pág. 136 e 138.
E acrescenta o mesmo autor, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, pág. 128 e 129: “Pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1.ª instância e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção da prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas. (…) Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente incomformismo”.
Com efeito, "impugnando o recorrente a decisão sobre a matéria de facto, encontra-se sujeito a alguns ónus que deve satisfazer, sob pena de rejeição do recurso", sendo um deles o de "indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda (…) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a indicação precisa e separada dos depoimentos" - Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, pág. 181.
Neste sentido, veja-se Acórdão desta Relação de 30/01/2014 (Processo n.º 273733/11.1YIPRT.G1), in www.dgsi.pt, onde se invoca o preâmbulo do Decreto-Lei 303/2007 de 24 de Agosto no sentido de resolver alguma dúvida que subsistisse a este propósito, pois é claro ao mencionar que "é ainda de referir a alteração das regras que regem o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto, determinando que cabe ao recorrente, sempre que os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas tenham sido gravados, proceder à identificação da passagem da gravação em que funde essa impugnação, sem prejuízo da possibilidade de proceder, se assim o quiser, à respectiva transcrição".
E prossegue: “ Como é sabido, o «texto [da lei] é o ponto de partida da interpretação. Como tal cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer "correspondência" ou ressonância nas palavras da lei. Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, (…) se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma.» (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 18.ª Reimpressão, pág. 182). Sendo assim, a expressão "sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição", que é antecedida pela imposição da obrigação de "indicar com exactidão as passagens da gravação", tem que ser interpretada no sentido de que o legislador, bem ou mal (e, salvo melhor juízo, a solução desenhada não parece ser a que melhor salvaguarda os fins tidos em vista) entendeu que a possibilidade de se "proceder à respectiva transcrição" não era suficiente para se poder ter como feita a indicação "com exactidão [d]as passagens da gravação". E convém não esquecer que "exactidão" significa "observância rigorosa de um (…) dever" (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Cândido Figueiredo, Vol. I, 16.ª Edição, pág. 1143) "cuidado escrupuloso" (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2009, pág. 688), "precisão" (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, www.priberam.pt).
Neste contexto, atento o actual sistema de gravação dos depoimentos, terá que se concluir que a indicação "com exactidão [d]as passagens da gravação em que se funda" concretiza-se mencionando, no mínimo, o minuto em que cada uma de tais "passagens" tem o seu início. A parte, se "assim o quiser", para além disso poderá também, não porque esteja obrigada, mas porque nisso vê alguma utilidade, "proceder (…) à (…) transcrição" das "passagens" que considera importantes. Portanto, a "transcrição" das "passagens" não constitui, de todo, uma alternativa à indicação "com exactidão [d]as passagens da gravação". E essa indicação "com exactidão [d]as passagens" também não se pode ter por feita quando somente se menciona a hora de início e do fim de cada depoimento. Esta exigência visa, principalmente no caso dos depoimentos longos, permitir ouvir, fácil e rapidamente, "as passagens da gravação em que se funda" a impugnação de forma a, num primeiro momento, se avaliar se tais "passagens" são, por si só, idóneas a delas se extrair conclusão diversa da extraída pelo tribunal a quo, sem prejuízo de, em caso afirmativo, depois ter que se ir para lá desses trechos, pois só assim se poderá formular um juízo definitivo. E ao obrigar o recorrente a, neste aspecto, melhor fundamentar o seu recurso, pretende-se evitar o uso abusivo e injustificado da faculdade de impugnar a decisão relativa à matéria de facto”.
Veja-se, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/2/2014, Proc. nº 26/10.6TTBRR.L1-4, acessível in www.dgsi.pt.: “A recente posição do legislador do Código de Processo Civil de 2013, mantendo e reforçando tais ónus e cominações no seu art. 640.º, evidencia a desconformidade relativamente à lei, quer no seu elemento literal, quer no sistemático, quer no histórico-actualista, de interpretações complacentes e facilitistas, que degeneram em violação do princípio da igualdade das partes (ao não tratar diferentemente o cumprimento ostensivamente defeituoso da lei adjectiva), do princípio do contraditório (por impor à parte contrária um esforço excessivo e não previsto na tarefa de defesa, imputável ao transgressor) e do princípio da colaboração com o tribunal (por razões análogas, mas reportadas ao julgador).”

Ora, no caso presente, a apelante não indica com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, limitando-se a indicar o princípio e o fim de cada depoimento, o que, como já vimos, é insuficiente.
O incumprimento de tal ónus impõe, portanto, a imediata rejeição do recurso na parte atinente à impugnação da matéria de facto e, como a apelação se restringe à matéria de facto, terá, necessariamente que improceder.
Sempre se dirá, contudo, que, lidas as pequenas passagens dos depoimentos das testemunhas que a apelante inseriu no corpo das suas alegações, se terá que concluir que nunca a sua pretensão poderia ser procedente, uma vez que de nenhuma dessas passagens se retira que a autora tenha provado que o serviço que foi efetuado no terreno do réu lhe tenha sido encomendado a si e que tenha sido por sua conta que o mesmo foi realizado devendo, por isso, ser-lhe pago. Veja-se que as testemunhas que trabalharam na obra, trabalham para a autora, mas também para a Pa…, não tendo esclarecido para quem estavam a trabalhar naquela obra, uma vez que desconheciam qualquer negociação havida entre as partes.
Ora, a decisão da matéria de facto tem, precisamente, a ver, com a falta de prova por parte da autora – a quem incumbia tal ónus – da celebração com o réu de um contrato de prestação de serviços, sendo irrelevantes factos laterais que terão ocorrido (como as horas de serviço de cada uma das máquinas) sem que se tenha provado que o réu encomendou tais serviços à autora e que esta lhos prestou.
Motivo pelo qual a apelação terá que improceder, com a consequente manutenção da sentença recorrida.

Sumário:
O não cumprimento por parte da apelante do disposto no artigo 640, n.º 1 b) e n.º 2 a) do Código de Processo Civil, implica, nos termos desse mesmo artigo, a imediata rejeição do recurso na parte respetiva.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 15 de setembro de 2014
Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Maria Purificação Carvalho