Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1006/17.6T8FAF.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: DIVÓRCIO
TRIBUNAIS PORTUGUESES
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (CE) 2201/2003
CRITÉRIO DA NACIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

1. Para a verificação da competência internacional importa em primeiro lugar indagar se existem normas que vinculem internacionalmente o Estado Português que abarquem a causa.

2. O Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro, relativo à competência, ao reconhecimento, e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental reuniu num único instrumento jurídico as disposições relativas ao divórcio e à responsabilidade parental, estabelecendo no seu artigo 3º os critérios para aferir da competência dos tribunais dos Estados Membros para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento.

3. Um desses critérios consiste na nacionalidade de ambos os cônjuges (sendo os demais a sua residência e o domicilio); estes critérios são alternativos e entre eles não existe qualquer ordem de prevalência.

4. Assim, os tribunais portugueses são competentes para decretar o divórcio do casamento celebrado entre duas pessoas de nacionalidade portuguesa (sem haver que cuidar da verificação dos demais critérios).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

A Autora nos presentes autos peticiona que se decrete o divórcio entre Autora e Réu, fazendo retroagir os efeitos à data de 31 de Agosto de 2014.

Alega, em síntese, que Autora e Réu contraíram, entre si, casamento civil no dia .. de … de 2011, na Conservatória do Registo Civil, sem precedência de qualquer convenção antenupcial. Poucos anos após a celebração do casamento, o relacionamento entre os elementos do casal foi-se deteriorando de forma progressiva, até atingir uma situação irreversível. Encontram-se separados de facto desde Agosto de 2014, não tendo havido qualquer aproximação ou reconciliação após essa data.

Foi proferido despacho liminar, com o seguinte decisório: “Face ao exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 72º, 62º, 96.º al. a), 97.º n.º 1, 99.º, 576.º n.º 1 e 2, 577.º al. a) e 578.º, todos do Código de Processo Civil, julgo este Tribunal internacionalmente incompetente para a preparação e julgamento dos presentes autos, pelo que indefiro liminarmente o requerido.”

Não se conformando com esta decisão, e lutando para que o despacho liminar seja revogado, a Autora apelou, formulando as seguintes conclusões:

I. O Tribunal recorrido entendeu que “a circunstância de a Autora ter nascido em Portugal ou de o casamento ter sido celebrado em Portugal, tal não constitui qualquer facto integrador da causa de pedir do divórcio”, concluindo que “os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a presente causa”, tendo julgado verificada a exceção dilatória de incompetência internacional e, em consequência, indeferido liminarmente o requerido pela Autora.
II. A questão a apreciar no presente recurso é a de saber se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para julgar uma ação de divórcio em que as partes residam ambas no estrangeiro, tendo contudo nascido em Portugal, celebrado matrimónio em território português e tendo nacionalidade portuguesa.
III. Ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, entende a Apelante que, não obstante residir no estrangeiro, assim como o seu marido, mais concretamente em França, nada impede o Mm.º Tribunal de apreciar e julgar a presente ação de divórcio.
IV. Com efeito, tem a Apelante como certo que, sendo a República Portuguesa um Estado-Membro da União Europeia, e, como tal, vinculada ao Direito da União, o Tribunal a quo violou o princípio do Primado do Direito da União Europeia, segundo o qual as disposições comunitárias prevalecem sobre a Lei interna de cada Estado-Membro, delimitando-a negativamente, devendo o direito nacional ser desaplicado quando se mostre incompatível com o Direito da União Europeia.
V. In casu, o Mm.º Juiz a quo fez tábua rasa da vinculação do Estado Português - enquanto Estado- Membro da União Europeia - ao Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental aplicável em matéria matrimonial e responsabilidades parentais, porquanto julgou a sua incompetência deitando mão, única e exclusivamente de disposições processuais nacionais.
VI. O aludido regulamento, no que cabe a questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento que convocam ordens jurídicas distintas, elenca diversos critérios de atribuição de competência internacional, sendo que in casu se mostra axiomático que, se verifica o da nacionalidade de ambos os cônjuges (art. 3.º, n.º 1, al. b)).
VII. Nestes termos, o facto de os cônjuges residirem no estrangeiro não releva para efeitos de aferição de competência internacional: dado que tanto um como outro são portugueses, aplica-se o critério da nacionalidade de ambos, impondo os tribunais portugueses como competentes para o julgamento dos autos.
VIII. Aliás, a Apelante comunga do entendimento sufragado pela douta jurisprudência portuguesa em questões em tudo semelhantes, mormente nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.09.2011 e do Tribunal da Relação de Évora de 15.12.2016, já previamente citados.
IX. Atento o exposto, e por tudo quanto se aduziu, deve considerar-se que os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para apreciar a ação de divórcio, pelo que deve julgar-se improcedente a exceção dilatória que serviu de fundamento ao indeferimento liminar da petição inicial interposta pela aqui Apelante, contrariando-se a decisão recorrida.
Não foi apresentada resposta.

II. Objeto do recurso

Face ao alegado nas conclusões das alegações, a questão que cumpre apreciar é a seguinte:

1- se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para julgar uma ação de divórcio em que as partes, embora com nacionalidade portuguesa e tendo celebrado o casamento também em Portugal, residam ambas no estrangeiro.

III. Fundamentação de Facto

São os seguintes os factos relevantes para a decisão da questão:

1-Quer a Autora quer o Réu nasceram em Portugal e detêm nacionalidade portuguesa.
2-O seu casamento foi celebrado em Portugal.
3- A Autora indica que ambos residem em França (embora em moradas distintas).

IV. Fundamentação de Direito

A questão em apreço foi já objeto de decisões de todos os Tribunais da Relação (com exceção deste tribunal da Relação de Guimarães, todas publicadas no site da dgsi), sendo unânimes no sentido defendido pela apelante. Não é aduzido na sentença qualquer argumento que afaste a posição tomada naqueles arestos, nem a mesma cita a legislação ali aplicada, recorrendo tão só ao Código de Processo Civil.

De qualquer forma, antes de se citarem os doutos acórdãos que se encontraram sobre a matéria, dá-se também mais uma achega à questão, por se crer que também assim se poderá contribuir para a matéria.

Como é consabido, quando a causa tem conexão com outras ordens jurídicas, o tribunal português, se nele foi intentada a ação, tem que decidir se é competente para a apreciar e decidir, apurando se o poder jurisdicional para aquela ação é atribuído aos tribunais portugueses.

Determina o artigo 59º do Código de Processo Civil que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.

Assim, antes de mais, há que averiguar se existem tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais ratificadas ou aprovadas, que vinculem internacionalmente os tribunais portugueses, porque prevalecem sobre os restantes critérios (o que resulta, além do mais, patente desta norma).

É evidente que neste caso existem diferentes elementos de conexão que se relacionam, quer com Portugal, quer com França, sendo a nacionalidade, naturalidade e lugar do casamento das partes em Portugal e a residência de ambas em França.

Portugal é um Estado-Membro da União Europeia, e, como tal, vinculada ao Direito da União (o mesmo acontecendo, aliás, com a França).

Ora, dúvidas não há então que o litígio cabe no âmbito do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro, relativo à competência, ao reconhecimento, e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental [que revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000], diploma pelo qual a União Europeia pretendeu reunir num único instrumento jurídico as disposições relativas ao divórcio e à responsabilidade parental.

Este é claro na regulação desta matéria, no seu artigo 3º: “ São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:

a) Em cujo território se situe:— a residência habitual dos cônjuges, ou a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou a residência habitual do requerido, ou, em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu «domicílio»;
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do «domicílio» comum.”

Os critérios determinativos da competência internacional neste domínio estão sujeitos a verificação por parte do tribunal, o qual, não sendo competente, deverá declarar oficiosamente a sua incompetência, nos termos do disposto no artigo 17º deste diploma.

Resulta da leitura deste artigo 3º que estes critérios são alternativos (e não hierarquizados), podendo ser escolhidos livremente pelos interessados, sem qualquer regra de precedência (com uma crítica muito interessante sobre esta opção legislativa leia-se o “Livro Verde sobre a lei aplicável e a competência em matéria de divórcio, publicado em https://www.csm.org.pt/ ficheiros/pareceres /2005/ parecer 05_ 02.pdf, afirmando que incentivará o “forum shopping”). De qualquer forma, por força do artigo 6º do Regulamento, esta lista não admite o recurso a outros fatores de conexão.

Considerando que, quer a Autora, quer o Réu são de nacionalidade portuguesa, é indiscutível a competência internacional dos tribunais portugueses, seguindo o critério da nacionalidade, também regente nesta matéria, a par do critério da residência e do domicílio.

Assim, no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 07/01/2014 (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano) sintetizou-se “1- Os tribunais portugueses estão vinculados à aplicação do Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) nº 1347/2000. 2- Estabelecendo o artº 3º, nº1, do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro, três critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para de uma ação de Divórcio poder conhecer, sendo um o da residência habitual, o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges e, finalmente, o terceiro, o do domicílio comum, verificando-se um deles (o da Nacionalidade de ambos os cônjuges ) e apontando ele para Portugal, ter-se-á, forçosamente, que julgar o tribunal português onde a acção foi interposta como o competente (internacionalmente) para a julgar.” No acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no processo 1330/16.5T8FAR.E1 em 12/15/2016 esclareceu-se, no mesmo sentido: “4 – Estabelecendo o artº 3º, nº1, do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro, três critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para de uma ação de Divórcio poder conhecer, a saber: o da residência habitual; o da Nacionalidade de ambos os cônjuges ; o do domicilio comum 5 - Verificando-se um deles (no caso, o da Nacionalidade de ambos os cônjuge ) e apontando ele para Portugal, é competente internacionalmente o tribunal português para julgar a ação de divórcio.” No acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no processo 546/09.5TMLSB.L1-1, de 09/20/2011, reiterou-se tal entendimento, afirmando-se ainda : “III- Caindo determinada situação no âmbito de aplicação v.g. de um concreto Regulamento comunitário, e porque as regras internacionais integram-se no ordenamento jurídico de cada Estado, quando o Tribunal português é chamado a conhecer de uma causa em que haja um elemento de conexão com a ordem jurídica de outro Estado contratante, deverá ignorar as regras de competência internacional da lex fori, antes deve aplicar as regras uniformes do Regulamento.” Também neste sentido e em termos semelhantes se pronunciou o recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07/11/2018, no processo 1933/18.3T8VNG.P1.

Mais não importa dizer, por tão clara ser a solução a dar ao caso, pelo que dúvidas se não podem colocar quanto à necessidade de revogar a decisão em recurso.

V. Decisão

Por todo o exposto, este coletivo delibera:

-- Julgar a apelação procedente e em consequência revogar o despacho liminar, declarando-se o tribunal a quo internacionalmente competente para conhecer da ação e determinam o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Guimarães, 17 de dezembro de 2018

Sandra Melo
Maria da Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves