Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
320/23.6T8GMR.G1
Relator: MARIA GORETE MORAIS
Descritores: INSOLVÊNCIA
REQUISITOS
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Verdadeiramente o que releva para o reconhecimento da insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
II- Essa impossibilidade de incumprimento não tem obrigatoriamente que abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas, estando sim em causa a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, de uma forma objetiva, comprovem ou revelem a incapacidade do devedor de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos, ou seja, a situação de insolvência alude à esfera patrimonial do devedor e consiste na incapacidade do seu património para cumprir a generalidade das obrigações já vencidas.
III- Caso o Tribunal da Relação proceda à revogação da decisão que haja indeferido liminarmente o pedido de declaração de insolvência aduzido pelo requerente/devedor, não tem aplicação o disposto no artigo 665º do Código de Processo Civil, posto que a sentença declaratória da insolvência prevê uma ritologia processual própria que apenas poderá ser cabalmente cumprida no tribunal a quo.
IV- Tal implica, pois, que deverá ser o juiz de 1ª instância a decretar a insolvência do requerente, com o conteúdo e os efeitos legais, apenas passíveis de cumprimento nessa instância (arts. 36º ss e 81º ss do CIRE) e com apreciação dos pedidos conexos (v.g. pedido do requerente de apreciação da exoneração do passivo restante).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

AA veio apresentar-se à insolvência requerendo a exoneração do passivo restante.
Para substanciar tal pretensão alegou, em síntese, que tem 36 anos, está divorciado, é pai de duas filhas menores (nascidas em .../.../2025 e .../.../2020), e que de momento se encontra desempregado, efetuando pequenos trabalhos de reparação de telemóveis, auferindo dessa atividade um rendimento médio mensal de € 400,00 (quatrocentos euros).
Mais alega que foi durante alguns anos empresário em nome individual, detendo uma pequena loja de telecomunicações, reparação de telemóveis e venda de seus acessórios, a qual teve que encerrar ao público no final de 2021, por ter ficado sem clientela a partir do ano de 2020, por força da pandemia Covid-19, que lhe arruinou o negócio. Face a este cenário refere que ficou desempregado e sem rendimentos suficientes para fazer face aos seus compromissos junto dos seus credores, não possuindo qualquer património, vivendo de favor na fração indicada na petição inicial, a qual não possui sequer as mínimas condições de habitabilidade.
Acrescenta que não dispõe de meios para proceder ao pagamento de uma só vez de todas as suas dívidas, cujo montante ascende a € 8.191,83 (oito mil cento e noventa e um euros e oitenta e três cêntimos), razão pela qual se encontra em incumprimento.
Por fim, argumenta que em face do montante da dívida, perante a inexistência de património suficiente para o seu pagamento, sendo o rendimento supra indicado, o seu único rendimento, é manifesta a impossibilidade de solver esses seus compromissos, encontrando-se impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Apresentou a lista dos seus cinco maiores credores comuns.
Aberta conclusão nos autos, o tribunal recorrido proferiu, então, a seguinte decisão:
«AA, N.I.F.:..., divorciado, residente na Rua ..., CC ..., na união freguesia de freguesias ..., ... e ..., no concelho ..., CP ... ..., veio apresentar-se à insolvência alegando não estar em condições de pagar as suas dívidas que elenca em documento anexo à petição inicial no valor global de € 8191,83, onde se incluem dívidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária.
Mais alega o requerente que tem 36 anos de idade, duas filhas menores e que de momento encontra-se desempregado, efetuando pequenos trabalhos de reparação de telemóveis, com os quais consegue auferir um rendimento médio mensal de € 400,00 (quatrocentos euros).
Dispõe o artigo 27º, nº 1 alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que “No próprio dia da distribuição ou, não sendo tal viável, até ao terceiro dia útil subsequente, o juiz indefere liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente (…)”.
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (cfr. artigo 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (cfr. artigo 3, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Por último, encontra-se ainda equiparada à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de ter sido o próprio devedor a apresentar-se à insolvência (cfr. artigo 3º, nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Dentro dos factos índices da insolvência surgem no art. 20º do CIRE, as als. a) e b), suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas e/ou a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou circunstâncias, revelem impossibilidade de satisfação da generalidade das obrigações.
Estas seriam os únicos factos-índice aqui aplicáveis, mas que não resultam evidenciados da factualidade alegada (cfr. a este propósito o Ac. do TRG de 21/09/2017, proferido no âmbito do processo nº 4173/17...., deste ... Juízo desta Secção de Comércio).
Na verdade, as dívidas acumuladas por si só não revelam a impossibilidade de pagar, para alguém com a idade do requerente, que pode ainda encontrar um emprego que permita o cumprimento de obrigações no montante referido aliás como é dever do insolvente singular que requeira a exoneração do passivo restante.
O qual parcialmente aqui é inviabilizado porquanto os créditos à Segurança Social e Autoridade Tributária não são exoneráveis - art. 245º do CIRE.
Pelo exposto, e por estarmos perante um caso de manifesta improcedência indefere-se liminarmente o pedido de declaração de insolvência».
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Inconformado com essa decisão veio o requerente interpor recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, formulando, a final, as seguintes

Conclusões

a) - O presente recurso interposto do Douto Despacho de fls., que entendeu estar perante um caso de manifesta improcedência indeferiu, liminarmente o pedido de declaração de insolvência apresentado pelo Recorrente;
b) - Afigura-se ao Recorrente que, salvo o devido respeito, o Douto Despacho em causa deverá ser alterado, de forma a ser decretada a situação de insolvência do Recorrente;
c) - O despacho de que se recorre viola os artigos 1º, 2º, nº 1 alínea a) do 3º nº1 do 20º e o artigo 28 do CIRE;
d) - Nem tão pouco o mesmo, teve em atenção o sentido da jurisprudência dominante, que em situações semelhantes, entende que a existir alguma falha na petição inicial de declaração de insolvência, deverá o tribunal proferir despacho de aperfeiçoamento da petição sobre os aspetos que julgar em falta (CAc da Relação de Guimarães de 05-05-2022);
e) - Ao contrário do acórdão (Ac. Do TRG de 21/09/2017), que serviu de base ao despacho recorrido, entende o Recorrente que deve ter sido por mero lapso que o mesmo foi indicado, pois a situação aí prevista, não tem qualquer semelhança com a situação “sub judice”, uma vez que no mesmo está-se perante um pedido de insolvência de pessoa singular, em que a requerente, na petição inicial, indica que fez proposta de pagamento das dívidas vencidas em prestações, o que desde logo implica o reconhecimento da possibilidade de pagar;
f) – O que não acontece no presente caso, em que o Recorrente, na petição inicial, alega factos que traduzem a sua situação de incumprimento, e a sua falta de capacidade de efetuar o pagamento das dívidas vencidas;
g) – O Recorrente evidencia manifesta incapacidade económica e justifica por que não tem condições financeiras de satisfazer a generalidade dos seus compromissos, pelo seu valor no seu conjunto, e pelas circunstâncias que levaram ao incumprimento;
g) - Quer pela situação atual que vive o país, de manifesta insuficiência económica da generalidade das pessoas empregadas, que face ao valor da inflação que se verifica, em todo o tipo de bens essenciais, faz com que não consiga o homem médio, com um ordenado médio, conseguir poupar, depois de satisfazer os seus compromissos mensais essenciais (luz, água, gaz, combustível, alimentação e habitação);
i) - O Tribunal “a quo” não observou as regras da normalidade e da experiência na interpretação dos factos levados a juízo pelo Recorrente;
j) - Daí resultando um manifesto erro na apreciação da prova, pois, decorre do
invocado na petição inicial que o recorrente face aos seus rendimentos comprovadamente não pode cumprir com as suas obrigações vencidas, nem o poderá fazer num futuro próximo;
k) – O Recorrente é divorciado, vive sozinho e tem duas filhas menores, estando obrigado a contribuir para o seu sustento;
l) – Com o pouco que consegue auferir, mal consegue sobreviver condignamente;
m) – O Recorrente contraiu em seu nome pessoal um crédito que se encontra vencido junto do Banco 1... S.A., no valor de € 4.427,70; contraiu em seu nome pessoal um crédito que se encontra vencido junto da Banco 2..., S.A no valor € 866,47; tem dívidas vencidas à ... Comunicações, S.A., no valor de € 303,28, para além disso ainda tem dívidas ao Instituto de Segurança Social IP, no valor de 1.315,57 e à Autoridade Tributária e Aduaneira, no montante de 1.278,81, ascendendo no total as suas dívidas a € 8.191,83;
n) - O recorrente, encontra-se desempregado, efetuando pequenos reparos de telemóveis com os quais consegue auferir uma média mensal de € 400,00 (quatrocentos euros), não possui património ou ativos, vive de favor na fração autónoma, sem as mínimas condições de habitabilidade necessárias para uma habitação;
o) – É com esse rendimento e com a ajuda de familiares e amigos que consegue fazer face às mais elementares básicas;
p) - Tendo em atenção os montantes em dívida e face ao quadro atual de vida do Recorrente, as suas dívidas reconhecidas não são suscetíveis de regularização dada a sua frágil situação económica;
q) - Resulta do exposto na petição inicial, que o Recorrente não tem rendimento, património ou expetativas de vir a ter, suficientes para fazer face às dívidas contraídas, encontrando-se impossibilitado de pagar as suas responsabilidades já vencidas;
r) – As obrigações do Recorrente já se venceram, sem que este as tenha pago ou tenha perspetivas de o poder vir a fazer;
s) - Pelos motivos apontados, incumbe ao Recorrente a obrigação de se apresentar à Insolvência, uma vez que não tem perspetivas da sua viabilidade económica, nº 1 do art. 3 do CIRE;
t) – Sendo que as causas determinantes da situação de insolvência do Recorrente, se encontram explanadas no presente recurso e na petição inicial apresentada do tribunal “a quo”, assim se cumprindo a alínea c), do n.º 1 do artigo 24º do CIRE;
u) – Não se juntou relação de bens, por o Recorrente não ter bens próprios;
v) – O Recorrente solicitou também na mesma petição a exoneração do passivo restante;
x) – Verifica-se uma situação de inexistência de bens do Recorrente e, consequentemente, a impossibilidade generalizada do devedor de efetuar o pagamento de todas as suas obrigações vencidas;
y) - Situação que não sofrerá qualquer alteração face as atuais, circunstâncias económicas do país, se o recorrente conseguir emprego estável;
z) – Pelo que, estão preenchidos os pressupostos a que alude o nº 1 do artigo 20º do CIRE, nomeadamente quanto à sua alínea b), sendo manifesta a alegada insolvência;
aa) - A decisão recorrida não atendeu nem considerou o disposto nos artigos 1º, 2º, nº 1 alínea a) do 3º, nº1 do 20º e o artigo 28º do CIRE, CFR. AC. Relação de Guimarães de 10/11/2016 e de 05/05/2022);
ab) – Pelo exposto, salvo melhor douta opinião, não se concebe que o presente despacho de indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência de que se recorre declare que “…as dívidas acumuladas por si só não revelam a impossibilidade de pagar, para além com a idade do requerente, que pode ainda encontrar um emprego que permita o cumprimento de obrigações no montante referido aliás como é dever do insolvente singular que requeira a exoneração do passivo restante. O qual parcialmente aqui é inviabilizado porquanto os créditos à Segurança Social e Autoridade Tributária não são exoneráveis – art, 245º do CIRE.”.
ac) – Uma vez que o valor total indicado de passivo do Recorrente de € 8.191,83, é comprovadamente, um valor insustentável para o mesmo suportar e
ad) – Encontrando-se preenchidos todos os preceitos e requisitos legais para que seja declarada a sua insolvência e deferido o seu pedido de exoneração do passivo restante.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC) ex vi do art. 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, a única questão solvenda é a de saber se se verificam, ou não, os pressupostos para a declaração de insolvência do requerente.
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2. FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos a considerar, por se mostrarem provados quer por confissão quer por documentos, são os seguintes:
1. O requerente tem 36 anos e está divorciado.
2. É pai de duas filhas menores, nascidas em .../.../2025 e .../.../2020, estando obrigado a contribuir para o seu sustento.
3. O requerente de momento encontra-se desempregado, efetuando pequenos trabalhos de reparação de telemóveis, com os quais consegue auferir um rendimento médio mensal de € 400,00 (quatrocentos euros).
4. O requerente foi empresário em nome individual, detinha uma pequena loja de telecomunicações, reparação de telemóveis e venda de seus acessórios, sendo que com a pandemia Covid-19, no inicio do ano de 2020, deixou de ter clientela, tendo estado também fechado por imposição legal.
5. A situação relatada anteriormente acabou por lhe arruinar o negócio, que o obrigou ao encerramento do estabelecimento ao público no final de 2021.
6. O requerente não possui património ou ativos, vive de favor na fração indicada na p.i., sem as mínimas condições de habitabilidade necessárias para uma habitação.
7. O Recorrente contraiu em seu nome pessoal um crédito que se encontra vencido junto do Banco 1... S.A., no valor de € 4.427,70; contraiu em seu nome pessoal um crédito que se encontra vencido junto da Banco 2..., S.A no valor € 866,47; tem dívidas vencidas à ... Comunicações, S.A., no valor de € 303,28, para além disso ainda tem dívidas ao Instituto de Segurança Social IP, no valor de 1.315,57 e à Autoridade Tributária e Aduaneira, no montante de 1.278,81, ascendendo no total as suas dívidas a € 8.191,83.
8. As obrigações do requerente já se venceram, sem que este as tenha pago.
9. É com o rendimento referido em 3. e com a ajuda de familiares e amigos que o requerente consegue fazer face às mais elementares necessidades básicas.
10. O rendimento indicado em 3., traduz-se no único rendimento do requerente.
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3. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como é consabido, de um modo geral, a insolvência traduz a situação daquele que está impossibilitado de cumprir as suas obrigações, normalmente por ausência da necessária liquidez em momento determinado, ou em certos casos porque o total das suas responsabilidades excede os bens de que pode dispor para as satisfazer.
Isso mesmo resulta do art. 3º do CIRE, que no seu nº 1 preceitua que “[é] considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações”.
Portanto, em consonância com o inciso transcrito, ser insolvente é sinónimo de ser incapaz de cumprir as suas obrigações, sendo que essa incapacidade de cumprimento presume uma avaliação realizada através de dois critérios: o critério do fluxo de caixa (cash flow) e o critério do balanço ou do ativo patrimonial (balance sheet ou asset)[1].
Segundo o critério do fluxo de caixa, o devedor encontra-se numa situação de insolvência quando, por ausência de liquidez para pagar as dívidas no momento em que se vencem, se torna incapaz de o fazer. É irrelevante aqui que o ativo seja superior ao passivo, uma vez que a insolvência ocorre aquando da verificação da impossibilidade de cumprir com as suas obrigações.
Já de acordo com o critério do balanço ou do ativo patrimonial, a situação de insolvência resulta do facto de os bens do devedor serem insuficientes para o cumprimento integral das suas obrigações.
Malgrado a consagração legal dos dois critérios, vem-se considerando que para a definição da situação de insolvência se deverá adotar como critério principal o critério do fluxo de caixa, uma vez que a insolvência é genericamente definida como a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas. Consequentemente o que verdadeiramente releva para o reconhecimento da insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
A este propósito, a jurisprudência[2] e a doutrina pátrias mantêm uma posição unívoca, sustentando que essa impossibilidade de incumprimento não tem obrigatoriamente que abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas, estando sim em causa a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, de uma forma objetiva, comprovem ou revelem a incapacidade do devedor de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos, ou seja, a situação de insolvência alude à esfera patrimonial do devedor e consiste na incapacidade do seu património para cumprir a generalidade das obrigações já vencidas.
Assim, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO refere que a impossibilidade de cumprimento relevante para efeitos de insolvência “não tem que dizer respeito a todas as obrigações do devedor. Pode até tratar-se de uma só ou de poucas dívidas, exigindo-se apenas que a(s) dívida(s) pelo seu montante e pelo seu significado no âmbito do passivo do devedor seja(m) reveladora(s) da impossibilidade de cumprimento da generalidade das suas obrigações.”[3]
Em idêntico sentido milita CATARINA SERRA, advogando que “para a insolvência não releva nem o número nem o valor pecuniário das obrigações vencidas. (…) Tanto está insolvente quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de montante elevado (o montante em causa é demasiado elevado para que o devedor possa cumprir) como quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de pequeno montante ou de montante insignificante (o montante é insignificante e ainda assim ele não consegue cumprir).”[4]
Ainda na mesma senda escreve ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS que: “a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas não significa que se tenha de fazer a prova imediata de que o devedor está impossibilitado de cumprir todas e cada uma dessas obrigações. Basta a prova imediata que o devedor não consegue cumprir as obrigações vencidas que, por sua vez, permitam ao julgador presumir que o devedor também não tem possibilidade de cumprir as restantes[5].
Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio, atendendo à materialidade supra descrita, verifica-se que o requerente/devedor se encontra efetivamente numa situação que evidencia a apontada incapacidade de solver os débitos vencidos.
Com efeito, o requerente encontra-se desempregado, auferindo um valor mensal médio de €400,00 (quantitativo esse muito inferior ao valor do salário mínimo nacional, que se cifra atualmente em 760,00) pela realização de serviços que vem realizando esporadicamente. Trata-se, pois, de uma atribuição patrimonial que sequer assume caráter regular, sendo que é com esse quantitativo que vem (sobre)vivendo, recebendo, neste conspecto, a ajuda de familiares e amigos.
Para além disso não possui qualquer património, vivendo de favor na fração indicada na petição inicial sem as mínimas condições de habitabilidade necessárias para uma habitação.
Já o seu passivo ascende ao valor de €8.191,83, resultante de dívidas todas elas vencidas.
Tal quadro factual aponta, sob um ponto de vista objetivo, no sentido de que o requerente se encontra presentemente impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Não foi esse, no entanto, o sentido decisório sufragado pelo juiz de 1ª instância que considerou que “se estava perante um caso de manifesta improcedência”, tendo, por isso, indeferido liminarmente o pedido de declaração de insolvência, já que “as dívidas acumuladas pelo requerente, por si só, não revelam a impossibilidade de pagar, para alguém com a idade do requerente, que pode ainda encontrar um emprego que permita o cumprimento de obrigações no montante referido, aliás, como é dever do insolvente singular que requeira a exoneração do passivo restante”.
Quid juris?
Nos termos do art. 28º do CIRE, a apresentação à insolvência por parte do devedor implica a declaração imediata da situação de insolvência, sem que haja qualquer discussão sobre a causa e sem que haja lugar à audição de quem quer que seja, devendo, como sublinham CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA[6] a insolvência, em princípio, ser declarada, posto que essa apresentação “implica o reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência” .
Portanto, o reconhecimento da situação de insolvência inerente à apresentação à insolvência constitui uma confissão de um complexo factual que permite firmar essa conclusão. E porque se trata de uma prova, pressupõe a existência de factualidade probanda por meio de tal reconhecimento.
É certo que, mesmo na apresentação à insolvência, não obstante este reconhecimento da situação da insolvência decorrente da simples apresentação, deve o apresentante/devedor, nos termos do nº 1 do art. 23º do CIRE, alegar factos concretos que “integrem os pressupostos da declaração requerida”.
Ora, como se deixou evidenciado, as afirmações de facto articuladas pelo requerente/devedor (e que se mostram discriminadas na fundamentação de facto do presente aresto) são de molde a poder concluir, de forma objetiva, que se encontra efetivamente em situação de insolvência, sendo que, ao invés do que parece ser entendimento do julgador de 1ª instância, não constitui pressuposto legal para ser decretada, ou não, a insolvência a maior ou menor idade do requerente, nem a circunstância de o montante das dívidas revelar-se, ou não, avultado[7]. Por outro lado, também não nos parece ajustado o argumento de que o requerente pode ainda encontrar um emprego que permita o cumprimento das suas obrigações, na medida em que tal facto se traduz numa situação futura e incerta, quer quanto ao momento da sua ocorrência, quer quanto ao montante que virá (eventualmente) auferir, o qual, se se vier a cifrar em valor próximo do salário mínimo nacional, será consumido no pagamento das necessidades básicas do requerente e bem assim na prestação de alimentos às suas filhas menores.
Neste ponto, como se enfatizou, essencial é que o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. E essa situação ocorre no caso vertente, posto que se encontra demonstrada a situação de insolvência do requerente para os efeitos do que postula o artigo 3°, nº 1 do CIRE.
Desta forma, tendo o requerente/recorrente logrado demonstrar factos demonstrativos da sua insolvência, deve a mesma ser decretada, por o incumprimento das suas obrigações vencidas demonstrar a sua impossibilidade de satisfazer a generalidade das suas obrigações.
Assim, impõe-se a revogação do ato decisório sob censura, afigurando-se-nos que o dever de substituição previsto no art. 665º do CPC não tem aplicação na situação em apreço, posto que a sentença declaratória da insolvência prevê uma ritologia própria que apenas poderá ser cabalmente cumprida no tribunal a quo. Tal implica, pois, que deverá ser o juiz de 1ª instância a decretar a insolvência do requerente, com o conteúdo e os efeitos legais, apenas passíveis de cumprimento nessa instância (arts. 36º ss e 81º ss do CIRE) e com apreciação dos pedidos conexos (v.g. pedido do requerente de apreciação da exoneração do passivo restante).
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III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães julgar procedente a apelação, e em consequência:

1. Revogar a decisão recorrida proferida em 20.1.2023;

2. Determinar que o Tribunal a quo decrete a insolvência de AA, em sentença com o conteúdo e os efeitos legais (arts.36º ss e 81º ss do CIRE).
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Custas pela massa insolvente a constituir (art.304º do CIRE).
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Guimarães, 11.5.2023

 


[1] Para maior desenvolvimento, cfr., inter alia, MENEZES LEITÃO, Pressupostos da declaração de insolvência, in I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013, págs. 175 e seguinte.
[2] Cfr., inter alia, na jurisprudência, acórdão da Relação de Lisboa de 24.6.2010 (processo nº 177/10.7YLSB-F.L1-8) e acórdão da Relação do Porto de 9.3.2020 (processo nº 3800/19.4T8VNG.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[3] In Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Almedina, pág.27.
[4] In Lições da Insolvência, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 58.
[5] In Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 3ª Edição revista e atualizada, Almedina, pág. 62.
[6] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Volume I, 2005, pág. 145.
[7] Neste sentido se pronuncia CATARINA SERRA, ob. citada, pág.58.