Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
492/22.7T8VNF.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: REQUERIMENTO EXECUTIVO
INEPTIDÃO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Pode servir de base à execução um documento autenticado por advogado que importe o reconhecimento de uma dívida, em conformidade com o disposto no artigo 703º, nº 1, al. b), do CPC.
2 – A declaração unilateral de reconhecimento de dívida, prevista no artigo 458º, nº 1, do Código Civil, não cria a obrigação mas apenas faz presumir a existência da mesma, cuja fonte será outro acto ou facto. No apontado artigo estabelece-se a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental (1): cabe ao devedor alegar e provar a falta de causa da obrigação assumida.
3 – O credor que beneficia de um reconhecimento de dívida, embora tendo a seu favor a inversão do ónus da prova da causa de pedir, não fica dispensado de a indicar, caso o título a não contenha, nos termos do artigo 724º, nº 1, al. e), do CPC (2), procedendo à alegação dos factos constitutivos da relação causal no requerimento executivo.
4 – A causa deverá ser alegada o suficiente para evitar um indeferimento liminar por falta de aparência mínima do facto constitutivo do direito, como comina o artigo 726º, nº 2, al. c), do CPC
5 – Cumprido pelo exequente o aludido ónus de alegação da relação fundamental, é ao executado que cabe o ónus da prova da inexistência ou invalidade do negócio donde procede a dívida ou a que a prestação se reporta, da excepção de não cumprimento do contrato ou do exercício do direito de resolução.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (3):

I – Relatório

1.1. Na execução para pagamento de quantia certa que J. S. move a N. M., foi proferido despacho a rejeitar «liminarmente o requerimento executivo com fundamento na ineptidão do mesmo. cfr. artigos 186.º, 196.º, 278.º, n.º 1, al. b) e 577.º, al. b) e 726.º, do C.P.C.».
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1.2. Inconformado, o Exequente interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:
«1.º O tribunal “a quo” rejeitou liminarmente o requerimento executivo com fundamento na ineptidão do mesmo.
2.º Alegando que o documento particular autenticado onde alegadamente o executado declara que reconhece uma dívida perante o exequente nada concretiza quanto à causa dessa putativa dívida.
3. Nem o exequente o faz no requerimento executivo.
4. O Documento apresentado como título executivo é um documento particular autenticado, sob a epígrafe “DECLARAÇÃO, CONFISSÃO DE DÍVIDA E ACORDO DE PAGAMENTO”.
5. Consta de tal documento a existência de uma dívida vencida e não paga.
6. Foi assinado pelo punho do executado, na data de 27 de setembro de 2019, onde este reconheceu, em nome pessoal, ser devedor da quantia exequenda ao exequente.
7. Assumiu ainda o executado que a dívida é resultante de um empréstimo particular realizado pelo exequente ao executado.
8. Tal asserção “empréstimo particular” consta, quer do documento particular autenticado apresentado à execução, como do próprio requerimento executivo.
9. Mais assumiu o executado no aludido documento particular autenticado que se comprometia a pagar a divida exequenda até ao dia 31 de dezembro de 2020, não tendo cumprido o acordado.
10. Pelo que obrigou o exequente a intentar o presente processo executivo.
11. O documento particular autenticado dado à execução constitui um título executivo, e, salvo melhor opinião, não enferma de qualquer vício que o torne inelegível para o fim adstrito.
12. Pois resulta à saciedade do mesmo a constituição de uma obrigação entre as partes, cujo vencimento se encontra verificado.
13. O exposto representa um facto jurídico constitutivo do crédito, sendo que consta quer do documento apresentado quer do requerimento executivo qual a causa da divida que se executa, emergindo tal facto do próprio título, já que o mesmo importa a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária determinada por parte do executado.
14. O Tribunal “a quo” deveria, assim, ter admitido o requerimento executivo e deixar prosseguir a execução.
15. A propositura de uma acção executiva implica que o exequente disponha de título executivo, por um lado, e que a obrigação exequenda seja certa, líquida e exigível, por outro.
15. Do título dado à execução resultam tais características.
16. O Tribunal recorrido efectuou uma errada interpretação do Direito por si invocado, violando o disposto nos artigos 703º, nº 1, al. b) do CPC, porquanto o documento dado à execução constitui título executivo bastante.
17. Nestes termos deve o douto despacho de indeferimento liminar ser revogado e substituído por outro de admissão do requerimento executivo, prosseguindo a execução intentada os seus termos até final, com as legais consequências, assim se fazendo Justiça!».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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1.3. Questão a decidir
Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em saber se o requerimento executivo é ou não inepto.
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II – Fundamentação

2.1. Fundamentos de facto

Relevam para a apreciação da apontada questão os seguintes factos:
2.1.1. Em 18.01.2022 J. S. instaurou execução contra N. M., mediante requerimento executivo onde fez constar o seguinte:
«A pedido do executado, o exequente, por empréstimo particular, emprestou àquele a quantia de €6.600,00 (seis mil e seiscentos euros). O executado confessou-se devedor ao exequente dessa mesma quantia mediante a assinatura do documento que se junta sob documento n.º 1 denominado “Confissão de dívida e acordo de pagamento” e cujo teor se considera, para os devidos efeitos, reproduzido. O executado, no mesmo documento, comprometeu-se a pagar a referida quantia de €6.600,00 até ao dia 31 de Dezembro de 2020. Apesar de abordado por diversas vezes para cumprir com o pagamento o certo é que o executado não pagou, não tendo procedido, até à presente data, apesar de interpelado por diversas vezes pelo exequente, ao pagamento de qualquer quantia. É, pois, responsável perante o exequente pelo pagamento da quantia de €6.600,00 (seis mil e seiscentos euros) de capital acrescida da quantia de €277,02 (duzentos e setenta e sete euros e dois cêntimos) de juros de mora, contados à taxa de 4% desde o dia 01.01.2021 até à presente data, mas que se reclamam até efectivo e integral pagamento. A dívida é certa, líquida e exigível. O documento particular dado à execução é título executivo.».
2.1.2. Com o requerimento executivo apresentou documento autenticado com os seguintes dizeres:
«DECLARAÇÃO
CONFISSÃO DE DÍVIDA E ACORDO DE PAGAMENTO
N. M., solteiro, portador do Cartão de cidadão n.º ……. emitido pela República Portuguesa e válido até 06.06.2022, contribuinte fiscal n.º …….., residente na Rua …, Esposende, declara, para os devidos e legais efeitos o seguinte:
1 – Que é devedor a J. S., residente na Avenida …, freguesia de ..., concelho de Esposende, portador do cartão de cidadão n.º ........., válido até 19.04.2028, contribuinte fiscal n.º ........., da quantia total de €6.600,00 (seis mil e seiscentos euros), dívida essa que respeita a empréstimo particular realizado por este ao declarante.
2 - Que, pelo presente documento, o declarante, compromete-se a pagar ao credor aquela quantia de €6.600,00 (seis mil e seiscentos euros) até ao dia 31 de Dezembro de 2020.
3 – Caso não satisfaça o pagamento da quantia antes prevista, considerar-se-á imediatamente vencida, podendo o credor exigir o pagamento integral e de uma só vez, independentemente de interpelação, da totalidade do valor que então esteja em dívida, acrescido de juros à taxa legal desde a data da constituição em mora e até efectivo pagamento.
..., 27 de Setembro de 2019
O Declarante,
[assinatura manuscrita]».
2.1.3. O aludido documento integra “termo de autenticação” com a mesma data, elaborado por Paulo Lopes Oliveira, Advogado, e assinado por N. M., onde consta que este «para fins de autenticação, apresentou o presente documento denominado “Declaração – Confissão de dívida e acordo de pagamento”, que declara haver lido e assinado, que o conteúdo da mesma exprime a sua vontade e vai ser por ele assinado também o presente termo», bem como que «Fiz a leitura deste termo de autenticação e a explicação do seu conteúdo ao outorgante».
2.1.4. Em 24.01.2022, sob a referência 177268416 e a epígrafe «Despacho liminar», foi proferida a seguinte decisão:
«Como ensina o Prof. Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, pág. 63, o título executivo é o documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade da realização coativa da correspondente prestação através de uma ação executiva.
Esse título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de um terceiro para obter a satisfação efetiva do seu direito à prestação.
Como é sabido, a força executiva conferida aos títulos taxativamente enumerados no C. P. Civil encontra o seu fundamento a final na relativa certeza da existência da obrigação que os mesmos documentam ao nível do direito substantivo, e "o risco que representa a possibilidade de ao título executivo não corresponder um direito efetivamente existente é coberto pela defesa que a lei permite ao executado exercer em oposição à execução" - Cfr. Prof. Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e especial, 3º edição, 1977, pág. 46 e 47.

Pode, assim, dizer-se que o título executivo exerce uma tripla função:
- uma função delimitadora, por ser por ele que se determinam o fim e os limites, objetivos e subjetivos (neste caso também se diz que tem uma função de legitimação, por determinar quem tem legitimidade ativa e passiva), da ação executiva;
- uma função probatória, por se tratar de um (ou vários) documento(s) com uma determinada eficácia probatória.
- e uma função constitutiva, por atribuir exequibilidade a uma pretensão, permitindo a sua realização coerciva [Acórdão da Relação do Porto de 02-02-2010 in www.dgsi.pt].

Nos casos em que é dado à execução um título executivo donde não conste a causa da obrigação, “há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emirja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (arts. 221.º-1 CC e 223º-1 CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º nº1 CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo da causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado” (cfr. José Lebre de Freitas in “A Acção Executiva, depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., Coimbra Editora 2009, págs. 62 e 63).
Neste contexto, nos casos em que é apresentado à execução um “documento particular em que o devedor limita-se a confessar a dívida, sem menção do respetivo negócio causal, o qual se presume, o exequente fica dispensado de provar tal causa, mas não fica dispensado de a alegar, designadamente no requerimento executivo, quando do título executivo não consta a causa da obrigação”.- cfr. neste sentido douto Ac. STJ datado de 27-04-2017, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/6278DB020E0E8A488025811C0034762E.
Sobre a mesma questão afirmou-se no douto Ac. V.T.R.C., datado de 20-02-2019, disponível inhttp://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/e38223d d2868f11b802583ba00391ba5?OpenDocument, que (…).
Ainda sobre esta questão pronunciou-se doutamente o V.T.R.P., no douto Ac. datado de 14-05-2013, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/E20DEFD8CEBD4A4A80257B9600292F1D, nos seguintes termos: (…).
Neste contexto doutrinal e jurisprudencial, apresentando o/a (s) exequente(s) “um documento particular autenticado onde alegadamente os Executado(a)(s) declaram que reconhecem uma dívida perante o Exequente”, nada concretizando o título executivo nem o exequente no requerimento executivo quanto à causa dessa putativa dívida, é manifesta a ineptidão do requerimento executivo.
Pelo exposto, rejeito liminarmente o requerimento executivo com fundamento na ineptidão do mesmo. cfr. artigos 186.º, 196.º, 278.º, n.º 1, al. b) e 577.º, al. b) e 726.º, do C.P.C.».
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2.2. Do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no artigo 703º, nº 1, al. b), do CPC, à execução podem servir de base «os documentos autênticos ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação».
Constituem documentos autenticados, para efeitos da al. b) do nº 1 do artigo 703º do CPC, os documentos particulares cujo teor foi confirmado pelas partes perante notário ou similar, por termo de autenticação, conforme o artigo 363º, nº 3, do Código Civil e os artigos 150º a 152º do Código do Notariado. Os advogados podem proceder à autenticação de documentos, em conformidade com o disposto no artigo 38º do Decreto-Lei nº 76º-A/2006, de 29 de Março.

Na decisão recorrida entendeu-se que o requerimento executivo era inepto por falta de indicação da causa de pedir.
O título dado à presente execução é recognitivo de uma dívida. Assim, está-se perante o reconhecimento de dívida do artigo 458º, nº 1, do Código Civil, onde se dispõe: «Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova do contrário».
A declaração unilateral de reconhecimento de dívida não cria a obrigação mas apenas faz presumir a existência da mesma, cuja fonte será outro acto ou facto. Como salienta Inocêncio Galvão Teles (4), «presume-se no entanto que a dívida realmente existe; que há uma causa que a justifica, ou seja, uma relação fundamental em que se integra o acto ou facto que a gerou. Inverte-se o ónus da prova. Aquele que se arroga a posição de credor não precisa de provar a causa da dívida, visto beneficiar da presunção decorrente da declaração feita. À outra parte é que competirá provar, se para isso dispuser dos elementos necessários, que afinal não é devedor». Em suma, o que se estabelece no apontado artigo é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental (5), cabendo ao devedor fazer prova do contrário.
Porém, a obrigação exequenda respectiva não deixa de ter uma causa e, por isso, o credor que beneficia de um reconhecimento de dívida, embora tendo a seu favor a inversão do ónus da prova da causa de pedir, não fica dispensado de a indicar, caso o título a não contenha, nos termos do artigo 724º, nº 1, al. e), do CPC (6).
De harmonia com a jurisprudência e doutrina predominantes, reunindo os requisitos exigidos pelo artigo 703º, nº 1, al. b), do CPC, o reconhecimento de dívida pode servir de base a uma execução, mas, não respeitando a obrigação abstracta, o exequente tem o ónus de alegação dos factos constitutivos da relação causal no requerimento executivo, quando não constem do título executivo (7). Apesar de não ter o ónus da respectiva prova, a causa deverá ser alegada o suficiente para evitar um indeferimento liminar por falta de aparência mínima do facto constitutivo do direito, como comina o artigo 726º, nº 2, al. c), do CPC.
Cumprido pelo exequente o aludido ónus de alegação da relação fundamental, ou seja, do facto constitutivo do direito de crédito, é ao executado que cabe o ónus da prova da inexistência ou invalidade do negócio donde procede a dívida ou a que a prestação se reporta, da excepção de não cumprimento do contrato ou do exercício do direito de resolução; em suma, de todos os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito à prestação alegado pelo exequente.
Daí que a prova da inexistência de relação causal válida e dos demais factos que obstam à exigibilidade da prestação, a cargo do devedor/demandado, se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor, pois este só consegue cumprir adequadamente tal ónus se a obrigação estiver suficientemente individualizada e concretizada no título ou, complementarmente, no requerimento executivo.

Posto isto, revertendo ao caso dos autos, verifica-se que o título que serve à presente execução é um documento autenticado emitido em 27.09.2019. Nele o ora Executado reconhece «Que é devedor a J. S., residente na Avenida …, freguesia de ..., concelho de Esposende, portador do cartão de cidadão n.º ........., válido até 19.04.2028, contribuinte fiscal n.º ........., da quantia total de €6.600,00 (seis mil e seiscentos euros)». É um título recognitivo de uma dívida ao Exequente no valor de € 6.600,00, que o Executado se compromete a pagar «até ao dia 31 de Dezembro de 2020».
Na decisão recorrida considerou-se que «apresentando o/a (s) exequente(s) “um documento particular autenticado onde alegadamente os Executado(a)(s) declaram que reconhecem uma dívida perante o Exequente”, nada concretizando o título executivo nem o exequente no requerimento executivo quanto à causa dessa putativa dívida, é manifesta a ineptidão do requerimento executivo» (sublinhados nossos).
Não corresponde à realidade que o título executivo ou o requerimento executivo sejam omissos («nada concretizando») quanto à indicação da causa da dívida reconhecida pelo Executado no documento autenticado: no título consta expressamente que o Executado declarou que a «dívida (…) respeita a empréstimo particular realizado por este ao declarante», enquanto no requerimento alegou-se que «a pedido do executado, o exequente, por empréstimo particular, emprestou àquele a quantia de €6.600,00 (seis mil e seiscentos euros)».
Por conseguinte, sabe-se que a relação fundamental consiste num empréstimo (mútuo), qual o montante que foi emprestado, quem emprestou e quem recebeu a quantia emprestada com a obrigação de a restituir.
Isso não se pode qualificar como “nada”; é a alegação da relação fundamental em termos que a identificam minimamente. Foi alegada a causa debendi da obrigação exequenda em termos que traduzem a aparência mínima do facto constitutivo do direito à prestação.
Tendo sido cumprido o ónus que recaía sobre o Exequente, à outra parte é que competirá alegar e provar, se for o caso e para isso dispuser dos elementos necessários, que afinal não é devedor, contrariamente ao que declarou no título executivo.
Ressalvada a devida consideração, não estamos perante uma manifesta falta ou insuficiência do título (que parece, face à epígrafe do despacho – «Despacho liminar – cfr. artigo 726.º, n.º 2, al. a) do C.P.C.» - ter sido o fundamento considerado inicialmente para o indeferimento liminar do requerimento executivo) (8), nem de excepções dilatórias insupríveis de conhecimento oficioso (art. 726º, nº 2, al. b), do CPC) (9), nem sequer de uma manifesta inexistência de factos constitutivos (art. 726º, nº 2, al. c), do CPC) face aos elementos constantes dos autos.
Portanto, não era caso para ser proferido despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo, na medida em que não era aplicável qualquer das hipóteses da previsão normativa do nº 2 do artigo 726º do CPC.
Quando muito, se se entendesse que havia uma insuficiência alegatória, apenas seria equacionável o recurso ao disposto no nº 4 do referido preceito, onde se dispõe que, «fora dos casos previstos no nº 2, o juiz convida o exequente a suprir as irregularidades do requerimento executivo, bem como a sanar a falta de pressupostos, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 2 do artigo 6º». Só, na sequência do convite ao aperfeiçoamento, no caso de o vício/falta não ser corrigido, é que teria aplicação o disposto no nº 5 do artigo 726º do CPC.

Termos em que procede a apelação.
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2.3. Sumário

1 – Pode servir de base à execução um documento autenticado por advogado que importe o reconhecimento de uma dívida, em conformidade com o disposto no artigo 703º, nº 1, al. b), do CPC.
2 – A declaração unilateral de reconhecimento de dívida, prevista no artigo 458º, nº 1, do Código Civil, não cria a obrigação mas apenas faz presumir a existência da mesma, cuja fonte será outro acto ou facto. No apontado artigo estabelece-se a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental (10): cabe ao devedor alegar e provar a falta de causa da obrigação assumida.
3 – O credor que beneficia de um reconhecimento de dívida, embora tendo a seu favor a inversão do ónus da prova da causa de pedir, não fica dispensado de a indicar, caso o título a não contenha, nos termos do artigo 724º, nº 1, al. e), do CPC (11), procedendo à alegação dos factos constitutivos da relação causal no requerimento executivo.
4 – A causa deverá ser alegada o suficiente para evitar um indeferimento liminar por falta de aparência mínima do facto constitutivo do direito, como comina o artigo 726º, nº 2, al. c), do CPC
5 – Cumprido pelo exequente o aludido ónus de alegação da relação fundamental, é ao executado que cabe o ónus da prova da inexistência ou invalidade do negócio donde procede a dívida ou a que a prestação se reporta, da excepção de não cumprimento do contrato ou do exercício do direito de resolução.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
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Guimarães, 09.06.2022
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
Maria Luísa Duarte Ramos



1. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 439.
2. Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, pág. 139.
3. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
4. Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 141.
5. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 439.
6. Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, pág. 139.
7. Rui Pinto, ob. cit., pág. 202.
8. O reconhecimento de dívida constante de documento autenticado constitui inequivocamente título executivo.
9. Que, ao contrário do exposto inicialmente no despacho recorrido, acabou por ser referido na parte final da motivação, quando se alude a ineptidão do requerimento executivo.
10. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 439.
11. Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, pág. 139.