Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
192/10.0GBBCL.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
REGISTO CRIMINAL
TRANSCRIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – O dever de fundamentação destina-se a permitir perceber porque razão a decisão se orientou num sentido e não noutro. A falta de fundamentação só ocorre quando não forem percetíveis as razões do julgador e não também quando forem incorretas as conclusões a que chegou.
II – O exercício de funções de “segurança” num local de diversão noturna, importa para o agente um especial dever de se abster de comportamentos violentos, pois tais funções destinam-se à vigilância, proteção e controlo de bens e pessoas.
III – Não deve ser determinada a não transcrição no Certificado do Registo Criminal de sentença que condenou o arguido por no exercício de funções de segurança privado ter esmurrado um cliente num local de diversão noturna.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No processo 192/10.0GBBCL do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende, após ter sido condenado por um crime de ofensas à integridade física do art. 143 nº 1 do Cod. Penal, na pena de 160 dias de prisão substituídos pelo mesmo tempo de multa, o arguido Ramiro S... requereu que, “ao abrigo do art. 17 nº 1, e para os efeitos dos arts. 11 e 12, todos da Lei 57/98 de 18-8” fosse ordenada “a não transcrição da sentença no CRC”.

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Sendo indeferida tal pretensão, o arguido Ramiro S... interpôs recurso, suscitando as seguintes questões:

- necessita para o desempenho da sua atividade laboral da não transcrição da sentença nos certificados do registo criminal;

- deve ser determinada a não transcrição da sentença;

- caso assim não se entenda, deve determinar-se o seu cancelamento, nos termos do art. 16 da Lei 57/98 de 18-8.


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Respondendo, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.

Nesta instância a sra. procuradora geral adjunta emitiu parecer no sentido de ser declarada a irregularidade do despacho recorrido, por falta de fundamentação, determinando-se que o tribunal recorrido, em novo despacho, conheça da verificação dos requisitos a que se faz referência nº nº 1 do art. 17 da Lei 57/98 de 18-8.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos cumpre decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

I – A questão prévia suscitada nesta relação pela sra. procurador geral adjunta
O arguido José Ramiro foi condenado neste autos, por um crime de ofensas à integridade física do art. 143 nº 1 do Cod. Penal, na pena de 160 dias de prisão substituídos pelo mesmo tempo de multa à razão diária de € 6,00. – sentença de fls. 145 e ss.
Posteriormente, invocando o disposto nos arts. 17 nº 1, 11 e 12 da Lei 57/98 de 18-8, na redação da Lei 114/2009 de 22-9 requereu que fosse ordenada a não transcrição da sentença no Certificado do Registo Criminal.
Tal pretensão foi indeferida pelo despacho de fls. 368, que é o recorrido, que remeteu para “os fundamentos e normas legais citadas na promoção” (do MP).
São as seguintes as razões explanadas em tal promoção (transcreve-se): “o arguido trabalha como segurança e de acordo com o disposto no art. 8 nº 1 al. d) e nº 2 do Dec.-Lei 35/2004, de 21-2, um dos requisitos para o exercício da atividade como segurança é a ausência de antecedentes criminais pela prática de crime doloso contra a integridade física” (fls. 367).
No seu parecer a sra. procuradora geral adjunta considerou que as normas invocadas no despacho recorrido “nada têm a ver com o solicitado, pois o diploma referido regula a atividade de segurança privada”, sendo antes aplicável o art. 17 nº 1 da Lei 57/98, o qual, na sua atual redação, estabelece dois requisitos a que o tribunal da condenação de pessoa singular deve atender, a saber:
- o primeiro, é que a condenação seja em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade;
- o segundo é que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo da prática de novos crimes.
Ora, da análise do despacho recorrido constata-se que a decisão proferida é omissa quanto a estes dois requisitos, pois nem sequer se refere se é admissível legalmente ou não o pedido efetuado pelo arguido e se, sendo, ele preenche ou não o segundo requisito”.
Isso seria causa de falta de fundamentação da decisão, devendo revogar-se o despacho recorrido, determinando-se que o tribunal a quo, “em novo despacho, conheça da verificação dos requisitos a que se faz referência no nº 1 do art. 17 da Lei 57/98 de 18-8”.
Tomou-se conhecimento do acórdão da Relação de Coimbra de 27-2-2013, proferido no Proc. 1562/09.2PCCBR-A.C1, que decidiu no sentido proposto.
No entanto, não se concorda com o mesmo.
Vejamos:
O dever de fundamentação destina-se a permitir perceber porque razão a decisão se orientou num sentido e não noutro. A fundamentação deve explanar os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão – cfr., embora a propósito da sentença, ac. Trib. Constitucional de 2-12-98 DR IIª Série de 5-3-99. Trata-se de uma garantia que tem consagração constitucional – art. 205 nº 1 do CPP.
A decisão recorrida está fundamentada. Lendo-a, todos ficam a perceber as razões do sr. juiz que a proferiu. Repete-se: indeferiu a pretensão, porque “o arguido trabalha como segurança e de acordo com o disposto no art. 8 nº 1 al. d) e nº 2 do Dec.-Lei 35/2004, de 21-2, um dos requisitos para o exercício da atividade como segurança é a ausência de antecedentes criminais pela prática de crime doloso contra a integridade física”.
A falta de fundamentação só ocorre quando não forem percetíveis as razões do julgador e não também quando forem incorretas ou passíveis de censura as conclusões a que chegou. Saber se são outras as normas que regulam o caso, não é questão de «falta de fundamentação», mas de revogação da decisão, por estar errada.
Há, pois, que decidir do objeto do recurso.
II -
a) O âmbito do recurso
A fls. 366 o arguido Ramiro S... requereu que, “ao abrigo do art. 17 nº 1, e para os efeitos dos arts. 11 e 12, todos da Lei 57/98 de 18-8” fosse ordenada “a não transcrição da sentença no CRC”.
Tendo sido indeferida tal pretensão interpôs o presente recurso.
Na motivação e conclusões pede, subsidiariamente, que seja determinado o cancelamento da decisão no CRC, nos termos do art. 16 da mesma Lei 57/98.
São diferentes os requisitos fixados no art. 17 (para a não transcrição) e 16 (para o cancelamento).
Acresce que a decisão de “cancelamento” é do juiz do tribunal de execução das penas, como expressamente decorre da norma do nº 1 do art. 16.
Ora, incidindo este recurso sobre despacho que apenas indeferiu a «não transcrição», não há aqui que tratar da questão do «cancelamento». É que o âmbito do recurso é também dado pelo despacho recorrido. “Os recursos visam somente modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova”. Não tendo o despacho recorrido decidido sobre o «cancelamento», não pode a relação pronunciar-se sobre ele. É pacífica a jurisprudência no sentido de que "a missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pela tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes; o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei" - por todos, acs. STJ de 6-2-87 e de 3-10-89, BMJs 364/714 e 390/408.
b)
Dispõe o art. 17 nº 1 do Regime Jurídico da Identificação Criminal e de Contumazes (Lei 57/98 de 18-8) que “Os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados ao que se referem os arts. 11 e 12”.
Como se refere no parecer da sra. procuradora geral adjunta, são dois os requisitos de que depende a determinação de não transcrição, a saber:
- o primeiro: a condenação ser em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade;
- o segundo: das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo da prática de novos crimes.
É manifesto que se verifica o primeiro requisito: a condenação foi em 160 dias de prisão, substituídos por igual tempo de multa.
Quanto ao segundo:
O arguido foi condenado nestes autos por às 3 horas da madrugada, quando exercia as funções de segurança privativo num local de diversão noturna (o Café Museu, sito na freguesia da Apúlia, Esposende), ter esmurrado um cliente.
No requerimento em que formulou o pedido de que seja determinada a não transcrição da sentença no Certificado do Registo Criminal, refere que “necessita de trabalhar, situação em que se tem confrontado com dificuldades, máxime, quando lhe é exigida a apresentação de CRC”. Não esclarece que funções pretende exercer. Na realidade, a norma acima transcrita nenhuma relação estabelece entre a decisão da não transcrição da sentença e os concretos fins visados por quem a requer. O juízo formulado sobre o perigo da prática de novos crimes há-de resultar unicamente das “circunstâncias que acompanharam o crime”.
Pois bem, sendo “segurança” num local de diversão noturna, o arguido tinha o especial dever de se abster de comportamentos violentos, pois as funções que exercia (de forma legal ou não) destinam-se à vigilância, proteção e controlo de bens e pessoas (cfr. Lei 34/2013 de 16-5). Estão absolutamente excluídos deste tipo de atividade comportamentos de “ação direta” ou de “justiça privada”, o que não podia deixar de ser do conhecimento do arguido.
Ao ter atuado pela forma descrita, o arguido revelou possuir uma personalidade particularmente indiferente ao bem da integridade física alheia que, na concreta situação em causa, competia-lhe proteger, mais do que simplesmente não violar, como acontece em relação à generalidade dos cidadãos.
Não pode, por isso, ser formulado o juízo de que não os factos não permitem “induzir perigo de prática de novos crimes”.
É uma conclusão que decorre igualmente do passado criminal do arguido, com três condenações por condução ilegal, uma das quais por factos praticados menos de dois meses após o trânsito em jugado de anterior condenação – v. CRC de fls. 188 e ss e certidão de fls. 316 e ss. Tudo isto indicia uma personalidade pouco atenta ao cumprimento das normas penais.
O recurso improcede, embora por razões distintas das indicadas na decisão recorrida.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso.
O recorrente pagará 3 UCs de taxa de justiça.