Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
312/17.4T8CHV.G1
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: DIREITOS REAIS
MUDANÇA DE SERVIDÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

1- Alegando o Autor um direito, a cujo exercício a parte contrária se opõe, e pedindo a sua declaração e condenação desta a respeitá-lo, a ação é de mera declaração e condenatória. Afirmando o Autor factos concretos justificativos do seu direito potestativo à mudança de servidão e pretendendo que o tribunal opere a mudança, provocando, através da sentença, uma alteração na ordem jurídica pré-existente, com criação ex novo de tal encargo (autorização, através da prolação de uma decisão judicial com efeitos constitutivos, modificativos ou extintivos) sobre o prédio vizinho em proveito do seu, a ação é constitutiva.

2- Se o pedido formulado é a declaração da existência de um direito de que o Autor se arroga e a decisão constitui o direito, condena em objeto diverso do pedido, sendo a sentença nula por violação do princípio da vinculação do juiz ao pedido formulado, vício consagrado na al. e), do nº1, do art. 615º, do CPC, ocorrendo violação do princípio do dispositivo (nº 1, do art. 3º, do CPC,) estruturante do processo civil, na vertente relativa à conformação objetiva da instância, pois que não observa os limites impostos pelo nº1, do art. 609º, do CPC, sempre tendo de ser respeitada a formulação dada ao pedido e de ser dele conhecido, na sua totalidade, sem o que incorre a sentença no vício de omissão de pronúncia (al.d), do nº1, do art. 615º, do CPC);

3- O Tribunal da Relação só deve alterar a decisão da matéria de facto se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados. Se a decisão da matéria de facto foi bem decidida na 1ª instância, a mesma deve ser mantida.

4- O proprietário do prédio serviente pode exigir a mudança de servidão de passagem para outro local do mesmo prédio (para outro prédio seu, ou para prédio de terceiro, com consentimento deste), suportando o respetivo custo, desde que preenchidos os seguintes requisitos: a) ser ela conveniente ao dono do prédio serviente; e b) não se prejudicarem os interesses do proprietário do prédio dominante.

5- A ponderação de tais interesses, a efetuar-se segundo o critério da proporcionalidade, não tem de corresponder a absoluta paridade entre os proprietários dos prédios serviente e dominante, não relevando, para o efeito, caprichos, insignificante conveniência ou mera comodidade do titular da servidão;

6- A circunstância de os donos do prédio dominante terem de percorrer mais cerca de 30 metros e de realizar mais uma ou duas curvas e de, por vezes, terem de seguir em terreno um pouco mais inclinado e menos calcado do que faziam anteriormente, para aceder ao seu prédio, não impede a mudança de servidão de passagem, conveniente ao Autor para conseguir mais privacidade e menos poluição (inclusive sonora) junto da casa de habitação e um terreno mais fértil para cultivo.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1º recurso - Recurso Principal
Recorrentes: MARIA (…) e marido, JOSÉ (…) e MANUEL (…) e mulher, ELISA (…)
Recorrido: SILVANO (…)

2º recurso - Recurso Subordinado
Recorrente: SILVANO (…)
Recorridos: MARIA (…) e marido, JOSÉ (…) e MANUEL (..) e mulher, ELISA (…)

SILVANO (…) residente na Rua (…), lugar do (…), freguesia de …, do concelho de (…), propôs ação declarativa de condenação, com processo comum, contra MARIA (…) e marido, JOSÉ (…), residentes na Rua (…), do concelho de (…), e MANUEL (…) e mulher, ELISA (…), residentes na Rua (…), do concelho de (…) pedindo:

a) Seja declarado que ao A. assiste o direito de, à sua custa, mudar a servidão de passagem existente no seu prédio identificado no artigo 5º, da p. i., em favor do prédio dos RR., identificado na al. a) do art. 1º da PI, para poente da servidão atual, com início no caminho que, a sul, confronta com o dito prédio do A., seguindo de forma quase retilínea e com a largura de cerca de 3 metros, para norte, sempre pelo prédio do A. até ao referido prédio dos RR.;
b) Sejam os RR. condenados a reconhecer tal declaração, a absterem-se de continuar a passar pela servidão atual e a passarem a usar a servidão supra descrita;
c) Seja ordenado o cancelamento de qualquer registo da servidão atual na C. R. Predial a favor dos RR.
d) Seja declarado que aos RR. não assiste o direito de acederem aos seus prédios identificados nas al. b) e c) do art. 1º da PI e a deles saírem pelo dito prédio misto do A., identificado no artigo 5º, da petição inicial.
e) Sejam os RR. condenados a reconhecerem a referida declaração e a absterem-se de passar pelo dito prédio.
f) Serem os Réus condenados a pagar ao A. da importância de 100,00€ por cada vez que façam uso do dito prédio, para acederem aos referidos dois prédios deles ou deles saírem, devendo aquela quantia ascender a 300,00€ por cada reincidência.

Alega, para tanto, que é dono e possuidor do prédio misto, inscrito quanto à parte rústica sob os artigos (…) e (…), da União de Freguesias de (…) e Póvoa de (…) e a parte urbana sob o art. (…) da referida União de Freguesias, sendo que este prédio está onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio rústico inscrito sob o art. (…) da dita União das Freguesias de (…) e Póvoa de (…) e descrito na C. R. P. em nome dos RR.e que tal servidão nos cerca de 60 metros iniciais atravessa o logradouro da casa de habitação do A. e seus anexos, passando entre a casa de habitação e os anexos, o que lhe causa grande transtorno e prejuízos, desde logo porque os RR. e seus representantes por ali passam a pé, a cavalo e com veículos de tração animal e motriz a qualquer hora do dia e da noite; fazem ruídos, largam terra dos tratores, perturbam o sossego, descanso, a tranquilidade e sono de quem ali se encontre, e constituem grave perigo para o A., e seus familiares e inquilinos. Mais refere o A. que, exercendo os RR. a servidão a qualquer hora do dia ou da noite o impedem de ter cães de guarda na sua habitação, que se situa num local isolado, além de que a circulação de veículos motorizados através do logradouro da casa de habitação dos A. e seus anexos deixam o A. e seus inquilinos em constante preocupação com as suas crianças pelo receio de serem atropeladas.

Pretende o A. mudar a dita servidão de passagem para cerca de 30 metros a poente da que hoje existe passando a mesma a exercer-se por um caminho quase retilíneo, com piso mais duro e saibroso que oferece para os RR. maior comodidade e segurança, sendo certo que por outro lado o solo da atual servidão é bom para o cultivo, ali se produzindo 100 vezes mais que no solo da servidão proposta. Por ultimo alega o A. que os RR. têm usado indevidamente a referida servidão para acederem não só ao seu prédio identificado na alínea a) do artigo 1º da PI como também aos seus outros dois prédios rústicos identificados nas alíneas b) e c) daquele artigo 1º, o que vêm fazendo de forma abusiva e não permitida pelo A.

Os Réus, na contestação que apresentaram, defenderam-se por exceção e por impugnação. Invocaram a exceção de litispendência e bem assim que já em 30/01/1974 no âmbito de uma ação judicial instaurada pelos pais e sogros dos aqui RR. contra o A., sob o nº 19/73, se discutiu a referida servidão, sendo que originariamente a mesma era feita por local semelhante ao agora proposto pelo A, de modo que por transação, o A. e os pais dos RR. acordaram que a servidão se faria pelo seu traçado atual, passando pela casa do A. não podendo agora haver mudança por decisão judicial de uma servidão constituída por acordo. No restante, os RR. impugnaram o teor da PI na sua generalidade, afirmando que a nova servidão proposta é mais longa, com mau piso e tem grande inclinação, não oferecendo segurança na circulação, opondo-se, por isso, à referida mudança. Mais alegam os RR, que , ao contrário do alegado pelo A. não acedem ilegitimamente aos seus outros dois prédios rústicos identificados nas alíneas b) e c) do artigo 1º da PI, uma vez que os três prédios ali descritos formam um só prédio, como ficou estabelecido no termo de transacção elaborado no referido processo nº 19/73, da 3ª Secção do Tribunal de Chaves.
Em sede de resposta, a fls. 106 e ss., o A. veio pugnar pela improcedência das exceções alegadas pelos RR.
*
Foi realizada a audiência prévia, na qual se procedeu à elaboração de despacho saneador, se apreciou a exceção de litispendência e se procedeu à identificação do objeto do litígio e à seleção dos temas de prova, não tendo havido reclamações.
*
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância das formalidades legais.
*
Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:

“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência:

a) Autorizo o Autor a proceder à mudança de servidão que onera o seu prédio descrito em 1 dos factos provados em favor dos prédios dos RR. descritos em 11 a 13 passando esta a efectuar-se por uma faixa de terreno existente no prédio do A que, partindo do mesmo caminho da anterior, se inicia num portão sito a cerca de 30 metros do referido em 15 dos factos provados, e a poente deste, seguindo para norte até ao prédio dos RR. identificado em 11.
b) Declaro que este direito de mudança de servidão do A. fica condicionado á sua obrigação de proceder às obras necessárias conservação da nova servidão, incluindo na época de chuvas de modo a assegurar a passagem pelos RR. em segurança no referido caminho.
c) Condeno os RR a reconhecerem este direito do A. e consequentemente a absterem-se de continuar a passar pela servidão actual e a passarem a usar a servidão supra descrita.
g) Ordeno o cancelamento de qualquer registo da servidão actual na C. R. Predial a favor dos RR. e bem assim o registo do local da nova servidão.
h) Absolvo os RR. dos demais pedidos formulados pelo A.

Custas pelo A e pelos RR. na proporção dos respectivos decaimentos que se fixam em 30% e 70% respectivamente (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC)”.
*
Os Réus apresentaram recurso de apelação pugnando por que se considere nula a sentença, se dê como não provado o facto impugnado, se revogue a sentença recorrida e se substitua por decisão que julgue improcedente a pretensão do A com todas as consequências.

Formula, para tanto, as seguintes CONCLUSÕES:

1 - Foi incorretamente julgado e dado como provado o seguinte facto:

“Grande parte do solo hoje destinado à servidão actual é de terreno húmido e rico em húmus e, por isso, de boa qualidade para o cultivo”.
2 - Impõem decisão diversa o depoimento do irmão do A. (13:10 a 19:40) conjugado com as regras da experiência comum.
3 - Em consequência deve esse facto ser julgado como não provado.
4 - Estabelece o nº 1 do artigo 1568º do Código Civil que o proprietário do prédio serviente pode exigir a mudança dela para sítio diferente do primitivamente assinado, se a mudança lhe for conveniente e não prejudicar os interesses do prédio dominante.
5 - Não logrou, a nosso ver, o A., proprietário do prédio serviente fazer prova de factos que evidenciassem essa conveniência ou necessidade e em consequência não demonstrou, como era seu ónus, o arrogado direito à mudança da servidão.
6 - Fez apenas prova de factualidade genérica, vaga ou anódina que não releva minimamente para inferir da existência do indicado requisito de necessidade ou conveniência da mudança de servidão.
7 - Essa ausência de prova acarreta inelutavelmente a improcedência do pedido do A.. e a revogação da sentença.
8 - Foi violado o previsto no artigo 341º e errónea interpretação e aplicação do preceituado nos nºs 1 e 3 do artigo 1568º, ambos do Código Civil.
8 - Sem prejuízo do que antecede: - a sentença é nula porque condenou em objecto diverso do que o A. pediu-cfr. alínea e), do nº 1, do 615 do CPC, ocorrendo infracção ao disposto no artigo 615º do CPC.
- é igualmente nula por ambígua e ininteligível nos alinhados termos, cfr. alínea c) do nº 1 do artigo 615 do CPC.
- nula também por omissão de pronúncia, cfr. alínea d) do citado artigo 615º.
9 - Deve, em qualquer caso, ser revogado o decidido sob a alínea c) na parte em que os RR. foram condenados a passar na nova servidão.
*
O Autor ofereceu contra-alegações, onde são formuladas as seguintes

Conclusões:

I - Não assiste razão aos RR. na sua pretensão de alterar a matéria de facto impugnada, devendo a mesma manter-se integralmente.
II - Alegou o A. e provou matéria de facto mais que suficiente que justifica a mudança da servidão de passagem que onera o seu prédio.
III - Demonstrou o A. que da mudança da servidão nenhum agravo advém aos RR., ficando até beneficiados com a mudança da servidão.
IV - Não mostra a douta sentença omissão de pronúncia sobre qualquer matéria alegada por qualquer das partes.
V - A douta sentença é clara, perceptível a qualquer médio entendedor e sem qualquer ambiguidade.
VI - A douta sentença condenou conforme o pedido formulado pelo A.
VII - Deve ser negado, na totalidade, provimento ao recurso dos RR. por ser de justiça.

Deduziu o Autor Recurso subordinado formulando as seguintes CONCLUSÕES:

I - A matéria da alínea b) da douta sentença não foi alegada nem objeto de pedido por qualquer das partes.
II - Era vedado ao Tribunal tomar conhecimento de tal matéria pelo que é nula nos termos do art. 615º nº 1 al. d) in fine do C. P. C.
III - Também não há lei que sustente a condenação contida nessa al. b) da, aliás, douta sentença, nem, de resto, vem fundamentada em termos de facto e de direito essa decisão, o que gera sua nulidade conforme o prescrito no art. 615º nº 1 al. b) do C. P. C.
IV - Deve, pois, ser revogada essa dita al. b) da sentença recorrida.
*
O Tribunal a quo pronunciou-se, a fls 171 e 173, no sentido de não se verificarem as arguidas nulidades, pelas razões aí apontadas, referindo a existência de preciosismo linguístico entre autorizar a mudança de servidão em vez do pedido declarar o direito a mudar a servidão e não ocorrer omissão nem excesso de pronúncia.
*
Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos as questões objeto dos recursos, tendo presente que os mesmos são balizados pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

I. Recurso principal

1ª – Das arguidas nulidades da sentença, por a mesma ter condenado em objeto diverso do pedido, ser ambígua e ininteligível e ter havido omissão de pronúncia, nos termos das alíneas c), d) e e) do artigo 615º, do Código de Processo Civil;
2ª - Do alegado erro na apreciação da prova e, consequentemente, se é de alterar a decisão da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo quanto ao ponto mencionado pelos recorrentes - Se o facto provado: “25.Grande parte do solo hoje destinado à servidão actual é de terreno húmido e rico em húmus e, por isso, de boa qualidade para o cultivo” deve ser julgado não provado por o depoimento do irmão do A. (13:10 a 19:40), conjugado com as regras da experiência comum, impor decisão diversa;
3ª - Da modificabilidade da fundamentação jurídica.

II. Recurso subordinado

4ª – Da arguida nulidade da sentença quanto à al. b), do dispositivo, por excesso de pronúncia e falta de fundamentação, nos termos das alíneas b) e parte final da d) do nº1, do art. 615º, do CPC.
*
II. A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância, com interesse para a decisão da causa (transcrição):

- Da Petição Inicial

1. O prédio misto composto de terra de cultivo, vinha, oliveiras e casa de habitação de r/c e 1º andar com anexos, com a área total de 40.938 ou 40.939 m2, sendo a área descoberta de 40.500m2 e a coberta de 438 ou 439m2, encontra-se inscrito na sua parte rústica sob os art. (…) e (…), da União de Freguesias de (…) e Póvoa (..), provenientes respetivamente dos art. (…) e (…) da extinta freguesia de (…) e estes do art. (…) da mesma extinta freguesia de (…); extinta freguesia de (..) e este do art. (…) da mesma extinta freguesia de (..) ;
2. Situa-se este prédio misto no lugar da (…) também conhecido por Barreiros do termo do povoado de (…) e está registado na C. R. P. em nome do A., com o nº (…) da extinta freguesia de (…);
3. Foi este prédio adquirido por escritura pública de compra e venda de 1972-08-09 do Cartório Notarial de (…) pelo A. e sua ex-mulher Maria (…) a Lindorfo (…) e mulher;
4. Foi, posteriormente, a parte rústica desse prédio desmembrada nos dois artigos já referidos (…) e (…);
5. Em 1997, foi reconstruída a parte urbana do prédio, vindo a tomar o art. (…) e ficando a constar nos Serviços de Finanças com a área coberta de 438m2 distribuída pela parte principal e pelos seus 2 anexos e com a confrontação a sul com caminho público e restantes lados com o próprio;
6. Por escritura de partilhas de 2010-10-20, complementada pela escritura de partilhas adicional de 2017-01-17, ambas do Cartório Notarial da Srª Drª Natália (…), de Espinho, subsequente ao divórcio do A. com Maria (…) foi o dito prédio misto adjudicado na totalidade ao A.;
7. Desde a mencionada escritura de compra e venda de 1972 até à partilha ocorrida em 2010, complementada em 2017, o A. e sua ex-mulher Maria (…), à vista de todos, sem oposição de ninguém, dia após dia, ano após ano, e, assim, contínua e ininterruptamente, certos de que não ofendiam os direitos de quem quer que fosse, e na convicção firme de que eram os únicos e exclusivos donos do prédios identificados no art. 1º, vinham-no vigiando e pagando por ele os respetivos impostos fiscais e, quanto aos rústicos, vinham-nos arando, adubando, semeando e plantando, neles, árvores e vinha, colhendo-lhes todo o seu fruto para si próprios, sem prestarem contas a ninguém;
8. E, quanto ao urbano, vinham-no usando para nele repousarem, pernoitarem, prepararem e consumirem suas refeições, guardar alfaias e produtos agrícolas, ao mesmo tempo que procediam ao seu restauro e ampliação, quintuplicando sua área, à limpeza dos telhados, substituição de telhas, caibros ou tábuas de que necessitasse ou arrendando-o fazendo suas as rendas sem prestarem contas a quem quer que fosse;
9. Na sequência da mencionada partilha, vem o A. detendo todo o identificado prédio misto, no circunstancialismo descrito nos artigos 7º e 8º que antecede, bem consciente de que só a si pertence;
10. Este prédio confronta do norte com os RR. e do nascente com o Rio (…) (também conhecido por (…)) e não, como por manifesto lapso se escreveu na C. R. P., do nascente, Manuel (…) e norte, rua do (…); também o lugar da situação é (…) e não Rubens, designação que nunca existiu nem existe no termo de (…);
11. O prédio rústico sito no lugar da (…), também conhecido por (…), confronta do Norte com Dr. João (…), nascente os RR., sul o A. e poente João (…), e está inscrito sob o art. (…) da dita União das Freguesias de (…) e Póvoa de (…), provindo do art. (…) da extinta freguesia de (…) e descrito na C. R. P. em nome dos 1ºs e 2ºs RR., sob o nº (…) da extinta freguesia de (…), na proporção de ½ para cada um deles.
12. O prédio rústico sito no lugar da (…), confronta do norte os RR., nascente caminho de consortes, sul Adelino (…) e poente os RR., está inscrito sob o art. (…) da União das Freguesias de (…) e Póvoa de (…), provindo do art. (…) da extinta freguesia de (…) e descrito na C. R. P. em nome dos 1ºs e 2ºs RR., sob o nº (…) da anterior freguesia de (…), na proporção de ½ para cada um deles;
13. O prédio rústico sito no lugar da (…), confronta do norte José (…), nascente caminho de consortes, sul e poente os RR., está inscrito sob o art. (…) da União das Freguesia de (…) e Póvoa de (…), provindo do art. (…) da extinta freguesia de (…) e descrito na C. R. P. em nome dos 1ºs e 2ºs RR., sob o nº (…), na proporção de ½ para cada um deles;
14. O prédio referido em 1 está onerado com uma servidão de passagem a favor dos prédios dos RR. identificados em 11 a 13, os quais materialmente constituem um só prédio;
15. Esta servidão de passagem, partindo do caminho público que, a sul, confronta com o prédio do A. referido em 1, inicia-se no portão sito no canto sudeste do prédio urbano, inflete para nordeste ao longo de cerca de 60 metros e segue para norte, até ao dito prédio dos RR. num percurso de mais de 100 metros, com uma largura de pelo menos 3,5 metros;
16. Nos cerca de 60 metros iniciais, a servidão atravessa o logradouro da casa de habitação do A. e seus anexos, passando entre a casa de habitação e os anexos, também destinados a habitação;
17. Nas alturas em que procediam ou mandavam proceder ao cultivo dos seus prédios referidos em 11 a 13, o que ocorreu até ao ano passado, os RR. e seus representantes passavam na referida servidão a pé, a cavalo, de motorizada e com veículos de tração animal e motriz cerca de duas a três vezes por dia;
18. Na descida e sobretudo na subida, os tratores largavam terra dos pneus no logradouro da casa de habitação do A., que, entretanto calcetou, obrigando este a constante limpeza, assim como levantam algumas poeiras e faziam barulho;
19. Durante cerca de 5 anos e até ao ano passado, o prédio descrito em 11 foi usado por terceiro a mando dos RR. para armazém de lenhas, ali aquele traçando e rachando a referida lenha para a seguir a vender, o que dava lugar a trânsito mais intenso pela servidão sobretudo de viaturas automóveis e provocava maior sujidade na rodeira;
20. Há alguns anos, o A. construiu o piso de uma nova servidão que, partindo do mesmo caminho da anterior, se inicia num portão sito a cerca de 30 metros do referido no artigo 15 que antecede, e a poente deste, seguindo para norte até ao prédio dos RR. identificado em 11;
21. Tem essa servidão cerca de 200 a 230 metros de comprimento e entre 3 a 4 metros de largura;
22. O traçado apresenta uma curva mais acentuada, maior inclinação do que a servidão atual e piso o é saibroso;
23. Por esse caminho de servidão é possível aceder aos prédios rústicos dos RR. a pé, com veículos automóveis e tratores com reboque de modo a proceder ao cultivo daqueles terrenos, em tempo seco ou com chuva;
24. Tal caminho oferece total segurança a quem nele circule a pé, a cavalo e em veículos de tração animal ou motriz;
25. Grande parte do solo hoje destinado à servidão atual é de terreno húmido e rico em húmus, e, por isso, de boa qualidade para o cultivo;
26. A rodeira atual está ladeada com algumas árvores de fruto, sendo necessário cortar os ramos, todos os anos, por mais de uma vez, que crescem sobre o piso da rodeira, o que não acontece na servidão proposta.

Da Contestação:

27. A .. de .. de 1973, Manuel (…) e mulher (pais e sogros dos aqui RR.) instauraram ação declarativa de condenação contra o aqui A. (que correu termos na Comarca de Chaves, com o nº (…)) alegando que:

“Os AA. são donos e possuidores do imóvel rústico, composto de vinha e mato, sito no lugar de (…), freguesia de (…) desta comarca, que confronta de norte com herdeiros do Dr. João (…), nascente Dr. M. (…), sul com os Rr. e poente com João (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…)º”
(…)
“Os RR. possuem no mesmo local um prédio rústico a confrontar do norte com os AA. e José (…), do nascente com o Rio (…), do sul com Horácio (…) e caminho público, inscrito na matriz com o artigo (…)º”
(…)
“O acesso para ele fazia-se, até há cerca de cinco anos, por uma rodeira que ligava, através do prédio dos RR. o prédio dos AA. ao caminho público.”
“Era uma rodeira com mais de três metros de largura, de terra batida, visível a todos, sempre a mesma, com mais de 30, 50 e 80 anos de existência, traçada a poente do mesmo prédio e com a direcção sul-norte”.
(…)
“Os AA. adquiriram por prescrição o direito a passar a pé e de carro pelo falado prédio dos RR. e em beneficio do seu descrito prédio (art. 529, 2267º e 2309º do Código Civil de 1867).”
“Porém, há cerca de cinco anos, com a utilização dos tractores e reboques que o dito acesso se fazia não só pela mencionada rodeira aberta pelos RR. pelo meio do seu prédio, por ser mais cómoda e mais segura para os tractores.”
“No decurso destes últimos cinco anos foram os AA. utilizando as duas rodeiras, acabando mesmo por utilizar só a segunda”.
“Os RR. então, talvez em Novembro último, não só destruíram completamente a primeira rodeira, como plantaram vinho no lugar dela”.
“Seguidamente, há cerca de quatro meses, os RR. opuseram-se e vêm-se opondo a que o acesso para o prédio dos AA. se efectuasse e se continue a efectuar pelo prédio deles RR.”
(…)

E concluíram, pedindo a condenação dos RR. (agora AA:)

- a reconhecerem que os AA. são donos e possuidores do prédio descrito no artigo 1º; a reconhecerem que os AA. adquiriram por prescrição, uma servidão de passagem de pé e carro; a reconstruirem a rodeira citada nos artigos 5, 6 e 7, que destruíram, deixando-a completamente livre. (doc. 4)
28. Os aí RR. apresentaram a seguinte contestação:
(…)
“Apesar de os dois prédios terem dois artigos diferentes na respectiva matriz são, na verdade, um só constituído por monte, vinha e terra de semeadura.”
“Acontece que, até à junção dos dois prédios com o casamento do Dr. M. (…) e de D. Amélia (…), há mais de 50 anos, o prédio descrito pelos AA. no artigo 1º da petição era servido por uma rodeira de terra batida a que aludem os AA. nos artigos 6º e 7º da sua petição. Porém,”
“A partir do dito casamento e da consequente junção dos dois prédios, como se referiu nos artigos 2º e 3º desta contestação, essa rodeira deixou de ser utilizada”.

(…)
“Há mais de 30 anos que a dita rodeira que, anteriormente ao casamento aludido era utilizada pelos donos do prédio descrito no artigo 1º da petição, já não é utilizada, tendo caído, portanto, em completo desuso, pelo espaço de tempo superior a 30 anos, ruindo em muitos pontos e tornando-se inutilizável. Portanto,” “Não é verdade que os AA. a tenham alguma vez utilizado como falsamente o afirma no artigo 6º da petição, já porque os AA. ainda não haviam comprado as propriedades ao Dr. M. (…), já porque nem este a utilizava já havia mais de trinta anos.”

“Não é verdade que os AA. tivessem alguma vez utilizado a primitiva rodeira que, como se disse, deixou de ser utilizada durante mais de 30 anos, tendo, portanto, acabado, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 2.279 do Código Civil de 1867, reproduzido pela alínea b) do artigo 1.569 do Código Civil de 1966”.

“Para utilizarem a dita rodeira que atravessa o prédio dos RR., somente nos últimos cinco anos, como os próprios AA. o afirmam no artigo 11º da sua petição, estes, ou melhor, os seus antepossuidores, uma vez pediam autorização ao proprietário do prédio que vendeu aos RR., outras vezes, por este residir na aldeia de Vila do Conde, passavam abusivamente”;

29. No decurso do processo, as partes alcançaram um acordo, vertido em termo de transação, de 30 de Janeiro de 1974, pelo qual:

“Os réus reconhecem aos autores o direito de passagem pelo seu prédio identificado na alínea d) da especificação para o prédio dos autores identificados nas alíneas a) e e) da especificação, que na realidade constituem já um só prédio.”
“Esta servidão será pelo local referido na alínea j) da especificação e que se encontra assinalada a vermelho no croquis de fls. Vinte e oito, tendo o comprimento de cerca de trezentos metros e a largura de cerca de quatro metros, permitindo a passagem de tractores agrícolas, isto é, pela rodeira que já desde há cinco anos vinha sendo utilizada.”
“Que os autores se dispõem a contribuir na medida do seu benefício para a reparação de que já foi objecto a dita rodeira”
“Os autores renunciam ao discutido direito de passar pela rodeira identificada na alinea g) da especificação”;
30. Os RR. usam a passagem atual quando é necessário, designadamente para lavrar, cultivar, plantar, retirar os frutos e tudo o mais e nunca durante a noite;
31. Os trabalhos com máquinas realizados pelos ora RR. são feitos na mesma altura que os trabalhos agrícolas feitos pelo A. nas suas propriedades, nas quais utiliza igualmente os seu trato.
*
Foram os seguintes os factos considerados não provados pelo Tribunal de 1ª instância:

1. Usando a atual servidão, os RR. passam abusivamente do prédio descrito em 11 para os outros 2 prédios descritos em 12 e 13 dos factos provados.
2. Nas circunstâncias descritas em 18 dos factos provados, os RR. passam a qualquer hora do dia e da noite.
3. Com a passagem pela servidão atual, os RR. ou os seus representantes perturbam o sossego, o descanso, a tranquilidade e sono de quem se encontre na habitação do A. e constituem grave perigo para o A., e seus familiares e inquilinos e animais domésticos. 4. As poeiras e anidrido carbónico das alfaias agrícolas e “motorizadas” impedem que a casa de habitação e anexos se mantenham devidamente limpos e tornam nocivo o ar puro e saudável daquele local.
5. O barulho torna-se mais incomodativo pelo maior esforço do motor dos tratores agrícolas para subirem e até para descerem e também pela velocidade exagerada que por vezes é dada aos veículos a motor, inclusive a “motorizadas”.
6. Também a passagem de animais de carga se torna por vezes demasiado importunante por evacuarem no dito logradouro, sem que os representantes dos RR. cuidem de o limpar.
7. A faculdade de poder ser exercida a servidão a qualquer hora do dia e da noite impede que o A. possa ter cães de guarda à solta o que este pretendia, pelo facto de a casa de habitação e anexos se situarem num lugarejo que dista mais de um quilómetro da aldeia e onde, com a do A., há apenas 4 casas de habitação, estando a do A. a mais de 60 metros da mais próxima.
8. A circulação de veículos motorizados através do logradouro da casa de habitação dos A. e seus anexos deixam o A. e seus inquilinos em constante preocupação com as suas crianças pelo receio de serem atropeladas.
9. Também a circulação de viaturas automóveis durante a noite, o que é frequente, não permite o repouso e sono de quem no prédio urbano do A. se encontre.
10. Nos primeiros 30 metros tem a servidão actual inclinação superior a 12%.
11. A nova servidão tem cerca de 140 metros de comprimento, traçado quase retilíneo, com piso duro e sem qualquer subida ou descida acentuada.
12. No piso da servidão atual, nasce erva abundante, exigindo, por vezes, limpeza e também é necessário desviar a água que ali escorre, amolecendo o piso e dificultando a circulação dos tractores agrícolas e outras viaturas.
13. Já piso da servidão proposta a erva é escassa, não há necessidade de limpeza, e as águas pluviais ali não permanecem e não amolecem o piso.
14. Amanhado o piso de ambas as servidões, o da atual produz 100 vezes mais que o da servidão proposta.
15. O piso da servidão no local pretendido pelo A. é mole, arenoso, menos consistente, muito permeável às águas pluviais o que dificultaria a circulação de tratores agrícolas e outras viaturas.
16. Para acederem à servidão proposta os RR. têm de percorrer parte do caminho público com subida muito acentuada, cheio de pedras, um caminho rural sem qualquer manutenção ou conservação.
17. A rodeira agora pretendida pelo A. possui a mesma configuração e localiza-se no mesmo local da servidão à qual Manuel ... e mulher (pais e sogros dos aqui RR.) renunciaram a passar e referida em 30 dos factos provados.
*
II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1º recurso - Recurso Principal

1ª. Da nulidade da sentença

Arguem os Apelantes a nulidade da sentença por ter condenado em objeto diverso do que o A. pediu, ser ambígua e ininteligível e ocorrer omissão de pronúncia, padecendo dos vícios previstos nas alíneas c), d) e e) do artigo 615º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência.

O Tribunal a quo pronunciou-se, a fls 171, no sentido de não se verificarem as arguidas nulidades, pelas razões aí apontadas, referindo a existência de preciosismo linguístico entre autorizar a mudança de servidão em vez do pedido declarar o direito a mudar a servidão e não ocorrer omissão nem excesso de pronúncia.

Cumpre decidir.

O nº1, do art.º 615º, do Código de Processo Civil, sendo deste diploma todos os preceitos citados sem outra referência, que consagra as “Causas de nulidade da sentença”, estabelece que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades de decisão são vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade) da peça processual que é a própria decisão (trata-se, pois, de um error in procedendo), nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in iudicando) seja em matéria de facto seja em matéria de direito.

As nulidades da sentença são vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, taxativamente consagrados no nº1, do art. 615º, sendo tipificados vícios do silogismo judiciário, inerentes à sua formação e à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito (1).

Assim, as nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito.

Há nulidade da sentença quando a sua parte dispositiva está em contradição com as premissas efetivamente adotadas pelo juiz e não com as premissas que ele poderia ter adotado, no entender de uma das partes, mas não adotou.

Os referidos vícios respeitam “à estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)” (2).

Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (3).

Tais vícios não se confundem com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa.

Efetivamente as causas de nulidade da decisão, taxativamente enumeradas nesse artigo 615º, conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017, “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei. Como tal, a nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608º e 609º, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada”.

Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, mas o mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso (4).

Analisemos os referidos vícios que respeitam à estrutura ou aos limites da sentença:

1. O vício consagrado na al. a) reporta-se à falta de assinatura do juiz.
2. Quanto ao vício consagrado na al. b): falta de fundamentação de facto ou/e direito, cumpre referir que “ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607-3). Há nulidade (no sentido de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (ac. do STJ de 17.10.90, Roberto Valente, AJ, 12, p. 20: constitui nulidade a falta de discriminação dos factos provados). Não a constitui a mera deficiência de fundamentação (ac. do TRP de 6.1.94, CJ, 1994, I. p 197: a simples indicação do preceito legal aplicável constitui fundamentação suficiente da decisão (5).

Relativamente à falta de fundamentação de facto, diga-se que, integrando a sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto como a fundamentação dessa decisão (art. 607º, nº3 e 4), “deve considerar-se que a nulidade consagrada na alínea b), do nº1 (falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão) apenas se reporta à primeira, sendo à segunda, diversamente, aplicável o regime do art. 662, nºs 2-d e 3, alíneas b) e d) (ac. do TRP de 5.3.15, Aristides Rodrigues de Almeida, www.dgsi.pt.proc.1644/11, e ac. do TRP de 29.6.15, Paula Leal de Carvalho, www.dgsi.pt, proc 839/13)” (6).

Relativamente à falta de fundamentação de direito, que é indispensável para se saber em que se fundou a sentença, não pode “ser feita por simples adesão genérica aos fundamentos invocados pelas partes (art. 154-2; mesmo ac. de 19.1.84); mas é admitida em recurso, quando a questão a decidir é simples e foi já objeto de decisão jurisdicional, a remissão para o precedente acórdão (art. 656 e 663-5 (…). Este vício da sentença tem a falta da causa de pedir como seu correspondente na petição inicial (art. 186-2-a) (7).

3. Quanto ao vício consagrado na al. c): os fundamentos estarem em oposição com a decisão ou ocorrer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, cumpre referir que “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial (art. 186-2-b) (8).

4. Quanto ao vício consagrado na al. d) : omissão ou excesso de pronúncia, cumpre referir, quanto à omissão de pronúncia, que “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado” (9).

Refere-se no Acórdão desta Relação e secção, em que a ora relatora foi adjunta, proferido na apelação Nº 1799/13.0TBGMR-B, “Devendo o tribunal conhecer de todas as questões que lhe são submetidas (art. 608º, n.º 2 do CPC), isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção (desde que suscitada/arguida pelas partes) cuja conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade por omissão de pronúncia, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado, uma vez que o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, n.º 3 do CPC) (10).

Acresce que como já referia Alberto dos Reis (11), impõe-se distinguir, por um lado entre “questões” e, por outro, “razões ou argumentos”. “…. Uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões”.

Apenas a não pronúncia pelo tribunal quanto a questões que lhe são submetidas determina a nulidade da sentença, mas já não a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.

Acresce que a jurisprudência é uniforme no sentido de que a nulidade por omissão de pronúncia supõe o silenciar, em absoluto, por parte do tribunal sobre qualquer questão de cognição obrigatória, isto é, que a questão tenha passado despercebida ao tribunal, já não preenchendo esta concreta nulidade a decisão sintética e escassamente fundamentada a propósito dessa questão (12).

Significa isto, que caso o tribunal se pronuncie quanto às questões que lhe foram submetidas, isto é, sobre todos os pedidos, causas de pedir e exceções que foram suscitadas, ainda que o faça genericamente, não ocorre o vício da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, mas o que poderá existir é um mero erro de julgamento, atacável em via de recurso, onde caso assista razão ao recorrente, se impõe alterar o decidido, tornando-o conforme ao direito aplicável”.

A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Mas, a resolução das questões suscitadas pelas partes não pode confundir-se com os factos alegados, os argumentos suscitados ou as considerações tecidas.

A questão a decidir está diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita apreciando-a e decidindo-a segundo a solução de direito que julga correta.

Se eventualmente não faz referência a todos os argumentos invocados pela parte tal não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sendo certo que a decisão por si tomada quanto à resolução da questão poderá muitas vezes tornar inútil o conhecimento dos mesmos, designadamente por opostos à solução adotada.

Face ao que dispõe o nº2, do art. 608º, do CPC, “O juiz resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” (13).

E, na verdade, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras (14) e o dever de pronúncia obrigatória é delimitado pelo pedido e causa de pedir e pela matéria de exceção (15).

O dever imposto no nº2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz (16).

A sentença deve, pois, “começar pelo conhecimento das questões processuais que podem conduzir à absolvição da instância, devendo nela ser consideradas todas as que as partes tenham deduzido, a menos que prejudicadas pela solução dada a questão anterior de que a absolvição tenha já resultado. Se, porém, puder ter lugar uma decisão de mérito inteiramente favorável à parte cujo interesse a exceção dilatória vise tutelar, o juiz deve proferi-la em vez de absolver o Réu da instância (nº5, do art. 278).

Não havendo lugar à absolvição da instância, segue-se a apreciação do mérito da causa.

O juiz vai agora respondendo aos pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte, a todos devendo sucessivamente considerar, a menos que, dependendo algum deles da solução dada a outro, a sua apreciação esteja prejudicada pela decisão deste, assim acontecendo quando procede o pedido principal, não havendo lugar à apreciação do pedido subsidiário (ver o nº2, do art. 554), quando, ao invés, não é atendido um pedido prejudicial relativamente a outro cumulativamente deduzido (ver o nº3 do art. 555) e quando identicamente, a procedência ou, ao invés, a improcedência do pedido principal acarreta a não apreciação do pedido reconvencional (…) O mesmo fará relativamente às várias causas de pedir invocadas, se mais do que uma subsidiariamente fundar o pedido, bem como quanto às exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo Réu ou pelo autor reconvindo e àquelas de que deva tomar conhecimento oficioso. (…)“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 5-3) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas (Alberto dos Réis. CPC anotado cit., V. p. 143)” (17), até porque a sentença não é uma “obra doutrinária: o juiz tem de resolver um litígio concreto e não deve perder de vista que o deve fazer com economia processual” (18).

Relativamente ao excesso de pronúncia, diga-se que “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art. 608-2), é nula a sentença em que o faça” (19).

5. Quanto ao vício consagrado na al. e) : condene em quantidade superior ou objeto diverso do pedido diga-se que “É também nula a sentença que, violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância (…), não observe os limites impostos pelo art. 609-1, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido” (20).
Vejamos o caso, em que a nulidade da sentença é arguida com fundamento em ter condenado em objeto diverso do pedido, ser ambígua e ininteligível e ter havido omissão de pronúncia.

Da condenação em objeto diverso do pedido e da ambiguidade e ininteligibilidade da decisão

Sustentam os apelantes, no corpo das alegações, que o Autor peticionou que fosse declarado que lhe assiste o direito de mudar a servidão de passagem existente em favor do prédio dos RR. e que foi proferida sentença que autorizou o A. a proceder à mudança de servidão sendo que “autorizar a mudança de servidão não é a mesma coisa que declarar o direito a mudar a servidão”, pelo que, condenando em objeto diverso do pedido, a sentença é nula, à luz da alínea e), do nº 1, do artigo 615º, do CPC.

O Autor respondeu dizer o art. 1568º nº 1 que o proprietário do prédio serviente pode, a todo o tempo, exigir a mudança da servidão pelo que o vocábulo adequado é, efetivamente, o verbo autorizar.

Apreciando, cumpre referir que não está em causa a adequação nem a correção, sequer a conformidade com a lei, mas tão só o que foi pedido e se observado se mostra o princípio do dispositivo.

Este princípio, estruturante do processo civil, consagrado no artigo 3º e materializado em inúmeras disposições ao longo da lei adjetiva, consagra que, podendo as partes dispor dos direitos de natureza privada, tem o tribunal de se cingir ao que lhe é pedido e aos termos em que o é – “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida” (cfr. nº1, do referido artigo) e o mesmo princípio estende-se à configuração do objeto do processo, através da formulação do pedido e da alegação da matéria de facto que serve de fundamento à ação ou à defesa (art. 5º, nº1) (21).

Vejamos quanto à questão suscitada o que foi pedido e o que resulta decidido.

Pede o Autor:

- que seja declarado que lhe assiste o direito de, à sua custa, mudar a servidão de passagem existente no seu prédio identificado no artigo 5º, da p. i., em favor do prédio dos RR., identificado na al. a) do art. 1º da PI, para poente da servidão atual, com início no caminho que, a sul, confronta com o dito prédio do A., seguindo de forma quase retilínea e com a largura de cerca de 3 metros, para norte, sempre pelo prédio do A. até ao referido prédio dos RR
- que sejam os RR. condenados a reconhecer tal declaração, a absterem-se de continuar a passar pela servidão atual e a passarem a usar a servidão supra descrita.

E foi decidido, quanto a tal pretensão:

“a) Autorizo o Autor a proceder à mudança de servidão que onera o seu prédio descrito em 1 dos factos provados em favor dos prédios dos RR. descritos em 11 a 13 passando esta a efectuar-se por uma faixa de terreno existente no prédio do A que, partindo do mesmo caminho da anterior, se inicia num portão sito a cerca de 30 metros do referido em 15 dos factos provados, e a poente deste, seguindo para norte até ao prédio dos RR. identificado em 1.
b) Declaro que este direito de mudança de servidão do A. fica condicionado á sua obrigação de proceder às obras necessárias conservação da nova servidão, incluindo na época de chuvas de modo a assegurar a passagem pelos RR. em segurança no referido caminho.
c) Condeno os RR a reconhecerem este direito do A. e consequentemente a absterem-se de continuar a passar pela servidão actual e a passarem a usar a servidão supra descrita”( negrito nosso).

Resulta evidente que declarar um direito é diverso de autorizar o seu exercício. E, na verdade, declarar que ao A. assiste o direito de, à sua custa, mudar a servidão de passagem nos termos pedidos (para poente da servidão atual, com início no caminho que, a sul, confronta com o dito prédio do A., seguindo de forma quase retilínea e com a largura de cerca de 3 metros, para norte, sempre pelo prédio do A. até ao referido prédio dos RR) é diverso de autorizo o Autor a proceder à mudança de servidão (passando esta a efectuar-se por uma faixa de terreno existente no prédio do A que, partindo do mesmo caminho da anterior, se inicia num portão sito a cerca de 30 metros do referido em 15 dos factos provados, e a poente deste, seguindo para norte até ao prédio dos RR. identificado em 11), sendo o primeiro pedido um pedido declarativo e o segundo correspondendo a pedido formulado numa ação constitutiva.

Se o pedido formulado é a declaração da existência de um direito com um determinado conteúdo e a decisão constitui um direito, com conteúdo, até, algo distinto, condena em objeto diverso do pedido, sendo a sentença nula por violação do princípio da vinculação do juiz ao pedido formulado.

Com efeito, padece do referido vício, consagrado na al. e), do nº1, do art. 615º, a sentença que viola o princípio do dispositivo, consagrado desde logo no art. 3º (cfr. 1ª parte do nº1), estruturante do processo civil, na vertente relativa à conformação objetiva da instância, pois que não observa os limites impostos pelo nº1, do art. 609º, condenando em objeto diverso do pedido, sempre tendo de ser aplicada e respeitada a formulação dada ao mesmo.

Acresce que sustentam os apelantes que foi decidido condicionar o direito à mudança da servidão (al. a), da parte dispositiva) à obrigação de o Autor proceder às obras necessárias à conservação da nova servidão (al. b), da parte dispositiva), incluindo na época das chuvas, de modo a assegurar a passagem, pelos RR., em segurança no referido caminho, sendo a sentença pouco clara, pois, para além de deixar dúvidas quanto a que concreto caminho e obras se refere, não se percebe se o direito de mudança de servidão só existe quando o A. proceder às obras necessárias de conservação da nova servidão ou se se quis dizer que o exercício pelo A. desse direito está onerado com essa obrigação, pelo que, neste segmento, a decisão é ambígua e ininteligível, nos ternos da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC.

O Autor, quanto a tal, refere não poder o sentido ser outro que não o de a mudança da servidão implicar que as obras de conservação ficam a cargo do A..

Ora, na verdade, como bem referem os Réus não é, sequer, isto que é dito mas “Declaro que este direito de mudança de servidão do A. fica condicionado á sua obrigação de proceder às obras necessárias conservação da nova servidão, incluindo na época de chuvas de modo a assegurar a passagem pelos RR. em segurança no referido caminho”.

E parece condicionar-se o reconhecimento que se faz de um direito (al. a)) ao cumprimento de uma obrigação que surge no futuro (v. “época das chuvas”) (al. b)).

O raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e a conclusão extraída na al. b) surge como ambígua e confusa, suscitando dúvidas que a tornam ininteligível, nesta concreta questão, e no confronto com a al. a), que a antecede.

Efetivamente, e sem que na apreciação de vícios da sentença, que estamos a realizar, caiba, como vimos, entrar na análise do mérito da causa, é a mesma ambígua e ininteligível, nesta parte da decisão, não se percebendo, com rigor, o sentido da condenação da al. b), a condicionar, para o futuro, a autorização dada na al. a), pelo que, nesta parte, também a sentença é nula, padecendo do vício consagrado na al. c), do nº1, do art. 615º.

Sustentam, ainda, os apelantes que o A. pediu a declaração de direito de mudança da servidão, referindo o seu comprimento, largura, etc.. e que na sentença se não declarou nem determinou as características, extensão e exercício de tal servidão, sendo a mesma omissa no que toca às utilidades, conteúdo, objeto, características, modo de exercício da servidão, etc.. e, sendo as servidões reguladas no que respeita à sua extensão e exercício pelo seu título, devia o tribunal ter conhecido, e não conheceu, dessas questões que se prendem com as características concretas da servidão de passagem, ficando por fixar o seu conteúdo, objeto, medidas, etc., o que releva decisivamente para o exercício e âmbito da mesma e para definir direitos e deveres de ambos os proprietários, ficando comprometida a segurança e certeza jurídicas, sendo a sentença é nula por omissão de pronúncia, como decorre do disposto na alínea d), do nº 1, do artigo 615º.

O Autor, quanto a tal, refere não existir nulidade por omissão de pronúncia, sendo que os autos têm por objeto a mudança de uma servidão de passagem e que o que a sentença diz (na al. a) da parte decisória) é que autoriza essa mudança, passando a exercer-se noutro local (por uma faixa de terreno existente no prédio do A., com início no mesmo caminho de onde parte a servidão anterior, se inicia num portão a cerca de 30 metros do portão referido em 15 dos factos provados, e a poente deste portão, seguindo para norte até ao prédio dos RR. identificado em 11 dos factos provados), já se especificando qual é a faixa de terreno, onde começa e onde termina pelo que se nos afigura não ser exigível nada mais para os RR. saberem qual é a faixa de terreno e onde se situa para por ela passarem a transitar, no exercício da sua servidão.

Ora, tendo o Tribunal deixado de se pronunciar sobre parte do pedido formulado - as características, mas tão só as que constam expressamente do pedido formulado - padece, efetivamente, a sentença de omissão de pronúncia.

Procede, assim, a arguida nulidade da sentença, sendo de a anular, para que, posteriormente, se aprecie, integralmente, o concreto e específico pedido formulado na petição inicial, na parte que não foi julgada improcedente.

Concluímos, pois, padecer a sentença das arguidas nulidades, previstas nas alíneas e), c) e d), do nº1, do art. 615º, procedendo, por conseguinte, as supra referidas conclusões da apelação. Ocorrendo violação dos normativos anteriormente referidos, invocados pelos apelantes, deve a decisão recorrida ser anulada, nesta parte, e, com isso, fica prejudicada a apreciação do recurso subordinado, que tem como objeto a al. b), do dispositivo, sendo que, com a procedência do recurso dos Réus apelantes desnecessária se torna aquela apreciação, pois que anulada vai já ser a referida parte da decisão.

Atenta a “Regra da substituição ao tribunal recorrido”, consagrada no nº1, do art. 665º, passa, de seguida, a conhecer-se do objeto do recurso.
*
2ª. Da alteração da decisão sobre a matéria de facto

Concluem os recorrentes ter havido deficiente análise da prova, impondo as provas produzidas decisão diferente.

Impugnada a decisão da matéria de facto, cumpre, antes de mais, decidir se os apelantes/impugnantes observaram os ónus legalmente impostos em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, que vêm enunciados nos artºs 639º e 640º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os artigos citados sem outra referência, os quais constituem requisitos habilitadores para que o tribunal ad quem possa conhecer da impugnação e decidi-la, para, uma vez fixada a matéria de facto, apreciar da modificabilidade da fundamentação jurídica.

O nº1, do art. 639º, consagrando o ónus de alegar e formular conclusões, estabelece que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, sendo as conclusões das alegações de recurso que balizam a pronúncia do tribunal.

E o art. 640º, consagra ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo no nº1, que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (negrito nosso).

O n.º 2, do referido artigo, acrescenta que:

a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (negrito nosso).

Como resulta do referido preceito, e seguindo a lição de Abrantes Geraldes, quando o recurso verse a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras:

a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente; (22).

Ora, como resulta do corpo das alegações e das respetivas conclusões, os Recorrentes, que impugnam a decisão da matéria de facto, deram cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c), pois que fazem referência aos concretos pontos da matéria de facto que consideram incorretamente julgados, indicam os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por eles propugnados, a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida e indicam, ainda, as passagens da gravação em que fundam o recurso (nº 2 al. a) do citado normativo).
*
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objeto de recurso, cabe observar que se não vai realizar novo julgamento nesta 2ª Instância, mas tão só reapreciar os concretos meios probatórios relativamente aos pontos de facto impugnados, como a lei impõe.

O art. 662º, nº1, ao estabelecer que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, que vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto.

O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, deve, pois, conter-se dentro dos seguintes parâmetros:

a)- o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b)- sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c)- nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).

Dentro destas balizas, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade.

Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.

A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (23) (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem.

Com efeito, no vigente sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo adquirido no processo. O que é essencial é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado (24).A lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4).

O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis (25)

E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. Impõe-se-lhe, assim, que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação (seja ela a testemunhal seja, também, a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser, também, fundamentada).

Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.

Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados (26) devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.

Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação.

Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos que não transparecem na gravação dos depoimentos.

Em suma, o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.

E o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação/articulação com os demais. O depoimento de cada testemunha tem de ser conjugado com os das outras testemunhas e todos eles com os demais elementos de prova.

Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjetivas – como a prova testemunhal -, a respetiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e o tribunal de 2.ª instância só deve alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando, efetivamente, se convença, com base em elementos lógicos ou objetivos e com uma margem de segurança elevada, que houve erro na 1.ª instância.

Em caso de dúvida, deve, aquele Tribunal, manter o decidido em 1ª Instância, onde os princípios da imediação e oralidade assumem o seu máximo esplendor, dos quais podem resultar elementos decisivos na formação da convicção do julgador, que não passam para a gravação.
*
Tendo presentes os mencionados princípios orientadores, vejamos se assiste razão aos Apelantes, nesta parte do recurso que tem por objeto a impugnação da matéria de facto nos termos por eles pretendidos. Concluem que a sentença proferida nos autos julgou incorretamente o item 25 dos factos dados como provados, que deve ser considerado não provado.

Após análise do depoimento da testemunha indicada pelos impugnantes e visto o despacho que fundamentou a decisão da matéria de facto, ficou-nos a convicção, como supra referido, de que, in casu, não existe qualquer erro de julgamento.

Motivou o tribunal a quo a decisão da matéria de facto referindo que para formar a sua convicção relativamente aos factos dados como provadoem 15, 16, 25 e 26 relativos à configuração da servidão actual resultaram da valoração do croqui junto pelo A. a fls. 137 (original), da inspecção ao local (tendo o Tribunal visualizado e percorrido a referida rodeira) e bem assim dos depoimentos das testemunhas Gracinda (…) (proprietária de terreno vizinho), Ramiro (..) (irmão do A.), Aristides (…) e João (..) (amigos do A. tendo ambos trabalhado no terreno deste e percorrido por diversas vezes a rodeira), João (…) (primo afastado do A. e dos RR.) e Alcina (…) (companheira do A.) que descreveram ao Tribunal as mencionadas características da rodeira. Também o A. Silvano (…) nas suas declarações de parte descreveu a referida rodeira. Considerou igualmente o Tribunal o depoimento prestado pela testemunha Francisco (…), testemunha indicada pelos RR., sendo estes tios da esposa da testemunha, a qual se deslocou dias antes do julgamento ao local e procedeu a medições nas duas rodeiras, sendo igualmente conhecedor dos terrenos desde os seus 6 anos, sendo que apesar de residir na Maia, tem casa em (…) onde se desloca duas ou três vezes por mês” (negrito nosso).

Cada elemento de prova de livre apreciação, designadamente depoimentos de testemunhas e declarações de parte, não podem ser considerados de modo estanque e individualizado. Há que proceder a uma análise crítica, conjunta e conjugada dos aludidos elementos probatórios, para que se forme uma convicção coerente e segura. Fazendo essa análise crítica, conjunta e conjugada, e com base nas regras de experiência comum, não pode este Tribunal, com segurança, divergir do juízo probatório efetuado pelo Tribunal a quo.

E o facto dado como provado nº.25 bem foi considerado provado.

Vejamos.

Tem o referido facto a seguinte redação:

25. Grande parte do solo hoje destinado à servidão actual é de terreno húmido e rico em húmus, e, por isso, de boa qualidade para o cultivo.

Efetuando uma análise crítica de toda a prova produzida e analisando a mesma de modo conjunto e conjugado e com base nas regras da experiência comum outra não pode ser a conclusão do Tribunal.

Na verdade, desde logo, do próprio depoimento da testemunha Ramiro (…) , irmão do Autor, contrariamente ao referido nas conclusões da apelação resulta precisamente o referido - que solo destinado à servidão atual é de terreno húmido e rico em húmus, e, por isso, de boa qualidade para o cultivo.

Assim, ponderando desde logo o referido depoimento, como sobressai da gravação, pode este Tribunal concluir que o juízo fáctico efetuado pelo Tribunal de 1ª Instância, no que concerne a esta matéria de facto, se mostra conforme com a prova, de livre apreciação, produzida, não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, que se mantém, na íntegra.

Na verdade, e não obstante as críticas que são dirigidas pela Recorrente, não se vislumbra, à luz do meio de prova invocado qualquer erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida – sujeita à livre convicção do julgador –, à luz das regras da experiência, da lógica ou da ciência.

Ao invés, a convicção do julgador tem, a nosso ver, apoio nos meios de prova produzidos, inclusive no indicado na impugnação, sendo, portanto, de manter a factualidade provada, tal como decidido pelo tribunal recorrido.

Não resultando o pretenso erro de julgamento, tem de se concluir pela improcedência da apelação, nesta parte.
*
3ª. Da fundamentação jurídica

Cabendo ao autor alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, tem o mesmo de os expor na petição inicial e nela formular o pedido que pretende dirigir ao Tribunal – artºs 5º, nº 1, e 552º, nº 1, alíneas d) e e) - estando este, como vimos, limitado pelo pedido formulado, de que tem de conhecer integralmente.

Decorre do estatuído no nº4, do art. 581º que nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real e nas ações constitutivas é o facto concreto que se invoca para obter o efeito pretendido.

O Autor formula, na presente ação, para além do mais, os seguintes pedidos, que se integram no objeto do recurso:

a) Seja declarado que ao A. assiste o direito de, à sua custa, mudar a servidão de passagem existente no seu prédio identificado no artigo 5º, da p. i., em favor do prédio dos RR., identificado na al. a) do art. 1º da PI, para poente da servidão atual, com início no caminho que, a sul, confronta com o dito prédio do A., seguindo de forma quase retilínea e com a largura de cerca de 3 metros, para norte, sempre pelo prédio do A. até ao referido prédio dos RR.;
b) Sejam os RR. condenados a reconhecer tal declaração, a absterem-se de continuar a passar pela servidão atual e a passarem a usar a servidão supra descrita;

Tendo a sentença, na parte em que apreciou estes pedidos, de ser anulada, necessário se torna proceder à sua apreciação, sendo que a lei adjetiva consagra, no art. 665º, com a epigrafe “Regra da substituição ao tribunal recorrido”, que “1- Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”. Este preceito abarca, como não pode deixar de ser, os vícios supra referidos, do nº1, do art. 615º, que motivam a anulação da sentença, quanto aos pontos aqui em causa. Assim, sendo confirmada a nulidade da sentença, nos termos do nº 1, do art. 665º, deve este Tribunal da Relação conhecer do mérito da apelação, analisando e decidindo as questões suscitadas, exercendo a regra consagrada da substituição ao Tribunal recorrido, dispondo-se de todos os elementos necessários a decidir.

Para tanto, e antes de mais, cumpre estabelecer a devida distinção entre ação declarativa e ação constitutiva, com vista a analisar a ação perante a qual nos encontramos.

Fazendo o art. 10º a distinção entre as espécies de ações, consoante o seu fim, consagra, quanto ao objeto imediato, que as ações podem ser de condenação, constitutivas ou de simples apreciação. As ações de simples apreciação visam obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto (al. a), do nº3); as de condenação visam exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito (al. b), do nº3); e as constitutivas, autorizar uma mudança na ordem jurídica existente (al. c), do nº3).

Muito raramente a classificação se materializa e é apreendida com toda esta pureza.

Ora, se o autor alega um direito seu não reconhecido nem respeitado, pela parte contrária, que se opõe ao respetivo exercício, e pede a sua declaração, a ação é de mera declaração e condenatória. Se apenas invoca os factos concretos justificativos do seu direito potestativo à mudança de servidão e pretende que o tribunal, julgando-os procedentes, opere a mudança, assim provocando, através da sentença, uma alteração na ordem jurídica pré-existente com a criação ex novo de tal encargo sobre o prédio vizinho em proveito do seu, a ação é constitutiva.

As ações constitutivas visam autorizar uma mudança na ordem jurídica existente, através da prolação de uma decisão judicial com efeitos constitutivos, modificativos ou extintivos. Têm na sua base direitos potestativos cujos efeitos se produzem ope judicis na esfera da contraparte, como ocorre, por exemplo, com as ações … de constituição de servidão predial (27)

Bem se refere no Acórdão da RG de 1/2/2018 “A acção real, em primeira linha, é a que visa obter tutela para a ofensa de um direito dessa natureza (propriedade, servidão, etc.). Pressupõe a existência na ordem jurídica do direito respectivo e a sua titularidade pelo autor.

No conceito se inclui geralmente, não obstante, aquela que, ao invés, visa apenas constitui-lo. Não existindo ainda, tal como está ordenado juridicamente o domínio dos bens, o direito real almejado, o autor é titular apenas do direito potestativo a que o tribunal o declare e a obtê-lo.

A diferença espelha-se no tipo de acção adequada: a declarativa de condenação ou a constitutiva – artºs 2º, nº 2, e 10º, nº 2, alíneas b) e c).

E reflecte-se precisamente na causa de pedir: como se viu, na primeira, é o facto jurídico de que deriva o direito real (v. g., contrato, usucapião); na segunda, é o facto concreto invocado para se obter o efeito pretendido (v. g., o encravamento).(…)

Assim, ante a acima referida dicotomia acções declarativas/acções constitutivas especificada no artº 10º, do CPC, se, por um dos modos admissíveis, o autor alega estar já constituída a seu favor, ou melhor, em benefício de prédio dominante de que é dono, uma servidão de passagem e o dono do prédio serviente não a respeita nem reconhece e se opõe mesmo ao respectivo exercício, a acção é de mera declaração ou apreciação e condenatória.

Se, diferentemente, apenas invoca os factos concretos justificativos do seu direito potestativo a constituir tal servidão e pretende que o tribunal, julgando-os procedentes, a declare constituída, assim provocando através da sentença uma alteração na ordem jurídica pré-existente com a criação ex novo de tal encargo sobre o prédio vizinho em proveito do seu, a acção é constitutiva (28).

Refere o Tribunal a quo que, no caso em análise, o Autor pretende, pela presente ação, obter a mudança da servidão de passagem existente no seu prédio em favor do mencionado prédio dos RR. identificado na al. a) do art. 1º da PI para outro local do seu prédio situado mais a poente da servidão atual e analisa se estão preenchidos os requisitos para a mudança da dita servidão, referindo: “A servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia), sendo certo que o dono do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão (artigos 1543º e 1568º, n.º 1 do C. Civil).

O direito de servidão (predial) é um ius in re aliena, um direito real de gozo limitado (menor) - o encargo (sobre o prédio onerado/serviente) é imposto em proveito de outro prédio pertencente a dono diferente (prédio dominante), verificando-se, assim, uma restrição ou limitação ao conteúdo do direito de propriedade sobre o prédio onerado.

O proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, mas pode, a todo o tempo, exigir a mudança dela para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, se a mudança lhe for conveniente e não prejudicar os interesses do proprietário do prédio dominante, contanto que a faça à sua custa; com o consentimento de terceiro pode a servidão ser mudada para o prédio deste (art.º 1568º, n.º 1).

A mudança da servidão feita à custa do proprietário do prédio serviente, fica sempre subordinada a um duplo requisito:

a) é necessário que ela se mostre conveniente ao dono do prédio serviente;
b) é ainda essencial que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante, sendo certo que o que conta para este efeito são os interesses dignos de ponderação (interesses sérios ou relevantes) e não os meros caprichos ou comodidades do titular da servidão. (Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/11/2013, Proc. nº 126/10.2TBSRE.C1, disponível em www.dgsi.pt).

De acordo com o disposto no artigo 1568º nº 4 do C. Civil, trata-se de uma faculdade irrenunciável o direito de alteração do sítio por onde a servidão primitivamente se exercia no prédio serviente, que se deverá basear, principalmente, em razões de equidade.

A justa ponderação dos interesses dos proprietários dos prédios passa obrigatoriamente por um critério de proporcionalidade entre a necessidade ou conveniência da diminuição do encargo sobre o prédio serviente e o prejuízo que a mudança de servidão possa acarretar para prédio encravado, tudo, em nome da supra referida função social da propriedade nas relações entre vizinhos.

Ora, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, até em divergência do pedido formulado, como supra se analisou, verifica-se que a presente ação não é, apenas, constitutiva mas, ainda, declarativa de simples apreciação e de condenação.

E, com efeito, não pediu o Autor, meramente, autorização para proceder à mudança de servidão que onera o seu prédio descrito em 1 dos factos provados em favor dos prédios dos RR. descritos em 11 a 13, passando esta a efetuar-se por uma faixa de terreno existente no prédio do A. que, partindo do mesmo caminho da anterior, se inicia num portão sito a cerca de 30 metros do referido em 15 dos factos provados, e a poente deste, seguindo para norte até ao prédio dos RR. identificado em 11.

Pediu, sim que seja declarado que ao A. assiste o direito de, à sua custa, mudar a servidão de passagem existente no seu prédio identificado no artigo 5º, da p. i., em favor do prédio dos RR., identificado na al. a) do art. 1º da PI, para poente da servidão atual, com início no caminho que, a sul, confronta com o dito prédio do A., seguindo de forma quase retilínea e com a largura de cerca de 3 metros, para norte, sempre pelo prédio do A. até ao referido prédio dos RR. …".

Passemos à apreciação deste pedido.

Concluem os Réus/Apelantes que não logrou o Autor, proprietário do prédio serviente, fazer prova de factos que evidenciem a conveniência ou necessidade a que alude o nº 1, do artigo 1568º, do Código Civil, não demonstrando, como era seu ónus, factos constitutivos do direito à mudança da servidão, apenas tendo feito prova de factualidade genérica, vaga ou anódina que não releva minimamente para inferir da existência do indicado requisito de necessidade ou conveniência da mudança de servidão, a acarretar a improcedência do pedido do A..

A resposta do Autor/Apelado vai no sentido de ter sido provada matéria de facto mais que suficiente que justifica a mudança da servidão de passagem que onera o seu prédio, tendo demonstrado que da mudança da servidão nenhum agravo advém aos RR., ficando, até, com ela beneficiados.

Cumpre apreciar e decidir.

Consagra a lei que o local da servidão podem ser alterados a todo o tempo, quer a requerimento do titular do prédio serviente quer do titular do prédio dominante, tratando-se de um direito potestativo, dependendo a alteração da servidão de uma ponderação entre os interesses do titular do prédio serviente e os interesses do titular do prédio dominante, como decorre do nº1 a 3, do art. 1568º, que estatui, sob a epígrafe “Mudança de Servidão”:

1. O proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, mas pode, a todo o tempo, exigir a mudança dela para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, se a mudança lhe for conveniente e não prejudicar os interesses do proprietário do prédio dominante, contanto que a faça à sua custa; com o consentimento de terceiro pode a servidão ser mudada para o prédio deste.
2. A mudança também pode dar-se a requerimento e à custa do proprietário do prédio dominante, se dela lhe advierem vantagens e com ela não for prejudicado o proprietário do prédio serviente.
3. O modo e o tempo de exercício da servidão serão igualmente alterados, a pedido de qualquer dos proprietários, desde que se verifiquem os requisitos referidos nos números anteriores.
4. As faculdades conferidas neste artigo não são renunciáveis nem podem ser limitadas por negócio jurídico”.

Na verdade, a alteração da servidão apenas poderá ter lugar se for necessária ou útil ao titular do prédio serviente – quedando-se excluída a mudança de servidão fundada em meros caprichos ou comodidade do titular da servidão – e, simultaneamente, não prejudicar a satisfação das necessidades normais e previsíveis que é alcançada através do exercício da servidão. (…) Os encargos com a mudança da servidão são suportados por aquele que dela beneficia, nos termos da 4ª parte do nº1 e da 1ª parte do nº2 (29).

Sendo isso o que resulta da lei e decorre da interpretação que dela é feita pela doutrina, verifica-se que a jurisprudência se orienta no mesmo sentido.

Com efeito, decidiu a Relação de Coimbra que o proprietário do prédio serviente pode, a todo o tempo, exigir a mudança de servidão para outro sítio no mesmo prédio, noutro prédio seu, ou em prédio de terceiro, com consentimento deste, devendo suportar o respectivo custo. A mudança fica sempre subordinada a um duplo requisito: é necessário que ela se mostre conveniente ao dono do prédio serviente; e é, ainda, essencial que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante. A ponderação deve fazer-se segundo o critério da proporcionalidade, sem que implique partir ou pressupor uma situação de paridade entre os proprietários dos prédios serviente e dominante, não relevando, para o efeito, os meros caprichos ou a pura comodidade do titular da servidão. A circunstância de a dona do prédio dominante ter de percorrer mais 47 metros do que fazia anteriormente, para aceder ao seu prédio, não impede a mudança de servidão de passagem (30).

E que emanando duma faculdade irrenunciável, trata-se, na mencionada previsão legal, de uma alteração do sítio por onde a servidão primitivamente se exercia no prédio serviente e que se deverá basear em razões de equidade, considerada a função social da propriedade nas relações entre vizinhos, sendo que a justa ponderação dos interesses em presença passa obrigatoriamente por um critério de proporcionalidade entre a necessidade ou conveniência da diminuição do encargo sobre o prédio serviente e o prejuízo que a mudança de servidão possa acarretar para prédio encravado. O direito de mudança é uma aplicação do princípio segundo o qual o dono do prédio serviente não está inibido de fazer no seu prédio as alterações (que considere convenientes), desde que não prejudique ou só prejudique pouco os interesses do dono do prédio dominante. A mudança da servidão (rectius, mudança do locus servitutis), feita à custa do requerente fica sempre subordinada a um duplo requisito: a) é necessário que ela se mostre conveniente ao dono do prédio serviente; b) é ainda essencial que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante, sendo certo que o que conta para este efeito são os interesses dignos de ponderação (interesses sérios ou relevantes) e não os meros caprichos ou comodidade do titular da servidão. Nada obsta à mudança da servidão envolvendo a utilização de um caminho/trilho preexistente - conhecido por “serventia de inquilinos” e afecto à passagem dos donos dos terrenos confinantes, permissivo de passagens a pé, de carro de bois e tractor há mais de 30 anos -, sem que ninguém se oponha ou tenha interesse em impedir a passagem, incluindo do Réu (proprietário do prédio dominante), quando este já necessariamente percorre 30 m desse caminho/trilho para aceder à servidão primitiva e no qual a autarquia local fez obras de arranjo e alargamento à custa duma faixa de terreno do prédio serviente, implicando a mudança do lugar de exercício da servidão, na ligação do prédio dominante a esse caminho, a utilização de idêntica faixa de terreno daquele prédio (31).

Também a Relação do Porto considerou que a ponderação dos interesses dos donos do prédio serviente e do prédio dominante para o efeito de mudança da servidão passa obrigatoriamente por critério de proporcionalidade entre a necessidade ou conveniência da diminuição do encargo sobre o prédio serviente e o prejuízo que a mudança de servidão possa acarretar para o prédio encravado (32).

E que para que possa haver lugar à mudança da servidão, o art.º 1568 n.º 1 do C.Civil não é muito exigente quanto ao prédio serviente, não estabelecendo como requisito a sua necessidade bastando-se com a mera conveniência para o prédio serviente, sendo por isso suficiente que para o cultivo do terreno seja vantajoso o seu aplainamento; é ainda necessário que a alteração não prejudique os interesses do prédio dominante (33).

Bem ponderou o Tribunal a quo ser a mudança de local da servidão útil e mesmo necessária ao Autor, titular do prédio serviente, e não prejudicar a satisfação das necessidades normais e previsíveis que é alcançada através do exercício da servidão para o titular do prédio beneficiário da servidão, estando preenchidos os pressupostos para operar a referida mudança, bastando, para tal, que a mudança seja apenas conveniente ao A., ao referir:

considerando que a servidão actual nos seus 60 metros iniciais, atravessa o logradouro da casa de habitação do A. e seus anexos, passando mesmo “em frente à sua porta de entrada” e que a passagem de tractores feita pelos RR. ou por terceiros a seu mando causa barulhos, poeiras, sujidades e incómodos e ainda que o A. poderá cultivar o solo relativo à servidão actual uma vez que grande parte do mesmo é de terreno húmido e rico em húmus, e, por isso, de boa qualidade para o cultivo, parece quase evidente que existe toda a conveniência para o A. na mudança da servidão.

Por outro lado, considerando as características da servidão actual (factos provados nºs 15, 16, 25 e 26) e as da servidão proposta (factos provados nºs 20 a 24), cremos que a mudança não prejudica os interesses dos RR., enquanto proprietários do prédio dominante. É verdade que a servidão actual é melhor que a agora proposta, por ser mais curta em termos de distância a percorrer, mais rectilínea, mais plana e com piso mais calcado. Todavia, provou-se que a nova servidão, ainda que um pouco mais longa (com cerca de mais 30 metros), com mais uma ou duas curvas que a outra e em parte do terreno mais inclinada, satisfaz igualmente as necessidades do prédio dominante, sendo certo que este se trata de um prédio rústico, pelo que as necessidades que cumpre satisfazer se prendem com o cultivo e a colheita. Demonstrou-se que por esse caminho de servidão é possível aceder aos prédios rústicos dos RR. a pé, com veículos automóveis e tractores com reboque, de modo a proceder ao cultivo daqueles terrenos, em tempo seco ou com chuva e bem assim que tal caminho oferece total segurança a quem nele circule a pé, a cavalo e em veículos de tração animal ou motriz.

Não podem os RR. impor ao A. a manutenção da servidão actual apenas porque o caminho é melhor e mais cómodo ou simplesmente por mero capricho, como parece ser o caso dos autos, tendo em conta o teor das declarações do próprio R. José ... em audiência de julgamento, o qual referiu nuca ter sequer passado na nova servidão para ver as condições que esta oferece, simplesmente porque “a nossa passagem é a outra”. Isto também à semelhança do referido pela testemunha António ..., irmão dos RR. Cumpre salientar que os RR., assim como os seus antepassados, não têm um direito a passar por aquele caminho em concreto mas apenas um direito de passagem para o seu prédio pelo prédio do A. de modo a que o possam cultivar e fruir das suas utilidades.

O que se compreenderá atentando que a mudança da servidão emerge como aplicação do princípio geral segundo o qual o dono do prédio serviente, por o ser, isto é, como titular, pleno e exclusivo, das faculdades de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, não está inibido de fazer no seu prédio as alterações que julgue convenientes, desde que não prejudique os interesses do dono do prédio dominante – cfr. as actas da comissão revisora do anteprojecto (da autoria de Pires de Lima) sobre servidões prediais, in BMJ-136, págs. 138 e ss”.

Esta mesma ideia inscreve-se na arguta fundamentação do Ac. do STJ de 17.11.72, in BMJ-221, págs. 225 e ss., segundo o qual, sendo as servidões estabelecidas e mantidas por absoluta necessidade (ante, acrescentamos, o princípio geral contido no artº 1305º), com o que o dono do prédio serviente vê cerceado o seu direito de propriedade, “O lógico e justo será…que a ingerência só contenda com o titular do direito de propriedade, na medida indispensável, ou seja, no que for absolutamente preciso para a satisfação das necessidades do prédio dominante” (cfr. pág. 229)”. (…) o A. reconstruiu a sua casa e passou a habitá-la, ainda que não a título permanente, causando agora muito maior incomodo a passagem de servidão no logradouro da habitação e sendo igualmente de realçar que a nova servidão nada tem a ver com a primitiva (existente antes da actual) em termos de local e configuração (facto provado nº 17). (…) A mudança de local da servidão pode ocorrer uma ou mais vezes. Tavarela Lobo, in “Mudança e Alteração de Servidão, 1984, págs. 18 e 19, refere: “ (…) Efectivamente, a servidão de passagem, mesmo que o seu exercício se delimite por um percurso específico, grava todo o prédio serviente: é o que resulta do princípio da indivisibilidade das servidões (art. 1546º do Código Civil). Por isso, a mudança do lugar de exercício não altera o objecto jurídico da servidão, que era e continua a ser o prédio serviente. Por isso ainda, está na disponibilidade dos interessados mudar uma ou mais vezes, consoante entenderem, o local de exercício da servidão. São alterações meramente fácticas, que não se reflectem no conteúdo da servidão apenas no modo de exercício desta. (sublinhado nosso).”

Não se almeja na factualidade provada que os RR., donos do prédio dominante, vejam prejudicados de tal modo os seus interesses que impeçam a mudança da servidão, sendo certo que o A. tem grande conveniência na mudança.

O argumento de que os pais dos RR. contribuíram economicamente para a construção da servidão actual, não retira ao A. o direito de exigir a sua mudança de local, pois que esse pagamento a ter existido, não confere aos RR. o uso ad aeternum do referido caminho, sendo certo que a constituição de uma servidão de passagem, seja por que local for, implica sempre o pagamento de uma indemnização ao proprietário do prédio serviente que sempre sofre um prejuízo com tal limitação do seu direito de propriedade (artigo 1554º do C. Civil).

Na verdade, provou-se que:

- Nos cerca de 60 metros iniciais, a servidão atravessa o logradouro da casa de habitação do A. e seus anexos, passando entre a casa de habitação e os anexos, também destinados a habitação;
- Nas alturas em que procediam ou mandavam proceder ao cultivo dos seus prédios referidos em 11 a 13, o que ocorreu até ao ano passado, os RR. e seus representantes passavam na referida servidão a pé, a cavalo, de motorizada e com veículos de tração animal e motriz cerca de duas a três vezes por dia;
- Na descida e sobretudo na subida, os tratores largavam terra dos pneus no logradouro da casa de habitação do A., que, entretanto calcetou, obrigando este a constante limpeza, assim como levantam algumas poeiras e faziam barulho;
- Durante cerca de 5 anos e até ao ano passado, o prédio descrito em 11 foi usado por terceiro a mando dos RR. para armazém de lenhas, ali aquele traçando e rachando a referida lenha para a seguir a vender, o que dava lugar a trânsito mais intenso pela servidão sobretudo de viaturas automóveis e provocava maior sujidade na rodeira;
- Há alguns anos, o A. construiu o piso de uma nova servidão que, partindo do mesmo caminho da anterior, se inicia num portão sito a cerca de 30 metros do referido no artigo 15 que antecede, e a poente deste, seguindo para norte até ao prédio dos RR. identificado em 11;
- Tem essa servidão cerca de 200 a 230 metros de comprimento e entre 3 a 4 metros de largura;
- O traçado apresenta uma curva mais acentuada, maior inclinação do que a servidão atual e piso o é saibroso;
- Por esse caminho de servidão é possível aceder aos prédios rústicos dos RR. a pé, com veículos automóveis e tratores com reboque de modo a proceder ao cultivo daqueles terrenos, em tempo seco ou com chuva;
-Tal caminho oferece total segurança a quem nele circule a pé, a cavalo e em veículos de tração animal ou motriz;
- Grande parte do solo hoje destinado à servidão atual é de terreno húmido e rico em húmus, e, por isso, de boa qualidade para o cultivo;
- A rodeira atual está ladeada com algumas árvores de fruto, sendo necessário cortar os ramos, todos os anos, por mais de uma vez, que crescem sobre o piso da rodeira, o que não acontece na servidão proposta.

Ora, a servidão de passagem deverá satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, mas a sua satisfação deve ter em conta o menor prejuízo possível para o prédio serviente.

A mudança do leito de servidão para o outro local do mesmo prédio do Autor – mudança do locus servitutis – não implica a constituição de uma nova servidão de passagem.

O novo local, ainda que um pouco mais longo (com cerca de mais 30 metros), com mais uma ou duas curvas que a outra e em parte do terreno mais inclinada e terreno menos calcado, satisfaz igualmente as necessidades do prédio dominante, sendo certo que este se trata de um prédio rústico, pelo que as necessidades a que cumpre fazer face se prendem com o cultivo e a colheita, não prejudicando os interesses dos Réus, proprietários do prédio dominante, que continuam a ter acesso a pé, de carro e com trator (34).

Logrou, pois, o Autor, proprietário do prédio serviente, fazer prova de factos que evidenciam a conveniência/ necessidade a que alude o nº 1, do artigo 1568º, do Código Civil, e o insignificante transtorno ou mero capricho dos Réus, demonstrando, como era seu ónus, os factos constitutivos do direito de que se arroga à mudança da servidão, a acarretar a procedência do pedido que formula.

Assim, procedendo, as conclusões da apelação dos Réus, deve a decisão recorrida, que bem apreciou a matéria de facto e o direito aplicável, de ser anulada e alterada nos termos expostos, apenas e tão só para conformar a decisão ao que concreta e especificamente vem pedido pelo Autor.
*
2º recurso - Recurso Subordinado

Como acima se referiu, anulando-se a sentença, prejudicada fica a apreciação do recurso subordinado, a visar, também, a anulação da alínea b), da parte dispositiva.
*
III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação dos Réus, parcialmente procedente e, em consequência:

a) anulam a sentença recorrida;
b) julgam improcedente a impugnação da matéria de facto;
c) declaram que ao A. assiste o direito de, à sua custa, mudar a servidão de passagem existente no seu prédio identificado no artigo 5º, da petição inicial, em favor do prédio dos RR., identificado na al. a) do art. 1º, da petição inicial, para poente da servidão atual, com início no caminho que, a sul, confronta com o dito prédio do A., seguindo de forma quase retilínea e com a largura de cerca de 3 metros, para norte, sempre pelo prédio do A. até ao referido prédio dos RR., condenam-se os RR. a reconhecer tal declaração, a absterem-se de continuar a passar pela servidão atual e a passarem a usar a servidão supra descrita, ordenando a alteração, no registo, da servidão na Conservatória de Registo Predial.
*
Custas (de ambos os recursos) pelos Réus e Autor, na proporção do vencimento, que se fixa em 90% para os primeiros e 10% para o segundo – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
*
Guimarães, 21 de fevereiro de 2019

(Assinado digitalmente pelos Senhores Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha (relatora), José Flores e Sandra Melo)


1. Cfr., entre muitos, Ac. do STJ de 1/4/2014, Processo 360/09: Sumários, Abril /2014, p1 e Ac. da RE de 3/11/2016, Processo 1070/13: dgsi.Net.
2. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág 735
3. Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
4. Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI.
5. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 735
6. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 736
7. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 736
8. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 736-737
9. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 737
10. Neste sentido Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., págs. 142 e 143, onde pondera: “Esta nulidade está em correspondência direta com o 1º período da 2ª alínea do art. 660º. Impõe-se aí ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” e onde aponta como exemplo de nulidade por omissão de pronúncia, o seguinte caso retirado da prática judiciária: “Deduzidos embargos a posse judicial com o fundamente de posse baseada em usufruto, se o embargado alegar que este não podia produzir efeitos em relação a ele por não estar registado à data em que adquiriu o prédio e a sentença ou acórdão deixar de conhecer desta questão, verifica-se a nulidade (…). O embargado baseara a sua defesa na falta de registo do usufruto; pusera, portanto, ao tribunal esta questão de direito: se a falta de registo do usufruto tinha como consequência a ineficácia, quanto a ele, da posse do usufrutuário, o tribunal estava obrigado, pelo art. 660º, a apreciar e decidir esta questão; desde que a não decidiu, a sentença era nula”. Ac. RC. de 22/07/2010, Proc. 202/08.1TBACN-B.C1, in base de dados da DGSI: “…O juiz deve, antes de tudo, tomar em consideração as conclusões expressas nos articulados, já que a função específica destes é a de fornecer a delimitação nítida da controvérsia. Mas não só; é necessário atender, também aos fundamentos em que essas conclusões assentam, ou, dito de outro modo, às razões e causas de pedir invocadas (…). Em última análise, questão será, pois, tudo o que respeite ao litígio existente entre as partes, no quadro, tanto do pedido e da causa de pedir, como no da defesa por exceção”.
11. Alberto dos Reis, in ob. cit., 5º vol., págs. 55 e 143.
12. Acs. STJ. de 01/03/2007. Proc. 07A091; 14/11/2006, Proc. 06A1986; 20/06/2006, Proc. 06A1443,in base de dados da DGSI.
13. Cfr. Ac. do STJ de 24/6/2014, Processo 125/10: Sumários, Junho de 2014, pag 38, em que se decidiu Não há nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, se o tribunal se limitou a cumprir o preceituado no art. 608º, nº2, do NCPC (2013), considerando prejudicado apreciar o argumento do valor das indemnizações arbitradas por ter decidido não existir fundamento legal para responsabilizar as Rés…
14. Ac. do STJ, de 30/9/2014, Processo 2868/03:Sumários, Setembro 2014,pag 39
15. Ac. da Relação de Lisboa de 17/3/2016, Processo 218/10:dgsi.net
16. Ac. do STJ, de 20/10/2015, Processo 372/10: Sumários, 2015, p.555
17. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 712-713
18. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 714
19. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 737
20. Ibidem, pág 737
21. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de processo civil anotado, vol.I, Almedina, pág 16
22. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Edição, Almedina, págs 155-156
23. Acórdãos RC de 3 de Outubro de 2000 e 3 de Junho de 2003, CJ, anos XXV, 4º, pág. 28 e XXVIII 3º, pág 26
24. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 348.
25. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, vol II, pag.635.
26. Acórdão da Relação do Porto de 19/9/2000, CJ, 2000, 4º, 186 e Apelação Processo nº 5453/06.3
27. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pag 39
28. Ac. da RG de 1/2/2018, processo 621/17.2T8BCL-A.G1, in dgsi.net
29. Ana Prata (Coord), Código Civil Anotado, Volume II, Almedina, pág 443
30. Ac. RC de 12/10/2010, processo 67/09.6TBSPS.C1, in dgsi.net
31. Ac. da RC de 12/11/2013, processo126/10.2TBSRE.C1, in dgsi.net
32. Ac. RP de 19/11/2002, processo 0020168, in dgsi.net
33. Ac. RP de 14/6/2017, processo 1513/10.1TBAMT.P1, in dgsi.net
34. Ac. RC de 4/3/2008, processo 2678/05.0TJCBR.C1, in dgsi.net