Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
294/19.8PABCL.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
ASSISTENTE AGENTE DA PSP
EXCESSO DE LINGUAGEM
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/24/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- As palavras dirigidas pelo arguido ao assistente, dizendo-lhe que “ele não prestava, que era um mau profissional e que era um arrogante”, no contexto em que estas palavras foram proferidas, relativo a um caso de estacionamento de veículo automóvel indevido na via pública, visaram direta e essencialmente a ação do assistente, enquanto agente da PSP no exercício da sua atividade de policia, e não a pessoa deste.
II- Quem exerce funções públicas, de que é exemplo os agentes das forças de segurança, encontra-se sujeito à critica objetiva. E, neste contexto, são compreensíveis os exageros na crítica, a animosidade, os excessos de linguagem, a grosseria e a má educação, sendo exigível a quem exerce funções públicas disponha da capacidade de aceitar a crítica, ainda que injusta ou imerecida, a falta de civismo e de pacífica convivência social.
III- O direito penal tutela valores fundamentais da vida em sociedade e deverá promover a pacificação social, sendo um direito de ultima ratio, pelo que fazendo aqui apelo ao princípio da proporcionalidade e à concordância prática entre, por um lado, o direito ao bom nome e à reputação, e o direito à liberdade de expressão e ao direito de critica objetiva por outro, consideramos que as palavras dirigidas pelo arguido ao assistente não têm suficiente dignidade penal para o efeito de integrar o tipo legal de crime de injúria.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo comum singular nº 294/19.8PABCL do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Barcelos, J2, em que é arguido F. A. e assistente A. C., ambos com os demais sinais nos autos, por sentença datada, lida e depositada em 25.06.2020, foi decidido [transcrição]:
“Parte Crime
Julgando-se improcedente a acusação pública, absolve-se o arguido F. A. da prática do crime de injúria que lhe estava imputado.
Sem custas.
Parte Cível
Julga-se totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido A. C. por, dele se absolvendo o demandado F. A..
Sem custas, atento o valor do pedido e o disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea n), do Regulamento das Custas Processuais.”
2. Não se conformando com a mencionada decisão, dela interpôs recurso o assistente, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
1. O presente recurso é da Sentença que absolveu o arguido do crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º, nº1, 184º, 132º, al. I), 188º, alínea a), 14º, nº 1 e 26º todos do CP.
2. O Douto Tribunal “A Quo” decidiu-se pela absolvição do arguido com base, essencialmente, na convicção do Meritíssimo Juiz.
3. Que apenas tem a sustentar a convicção no livre exercício do direito à crítica, manifestação do Princípio da Liberdade de expressão.
4. No entanto, tal direito à crítica não deve afectar o dever de respeito, nem violar o direito ao bom-nome, à reputação e à imagem – consagrado Constitucionalmente no art. 26 da CRP.
5. O Douto Tribunal “A Quo” devia ter condenado o arguido pelo crime de injúria agravada.
6. Já que perante a prova produzida em audiência de discussão e de julgamento e constante do processo, deve o arguido F. A. ser considerado culpado.
7. Há erro na apreciação de toda a prova produzida em audiência de Julgamento.
8. Foram violadas as normas do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa, artigo 70º do Código Civil, artigo 127º do C.P.P. e artigo 10º, nº 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
9. Houve contradição insanável da fundamentação e erro na apreciação dos elementos de prova constantes do processo e que conduziram à absolvição do arguido.
10. Quando em face de toda a prova produzida e constante dos autos dúvidas não restariam que não fosse a condenação do arguido.
11. Assim, deve a Sentença Absolutória ser alterada por outra que condene o arguido pelo qual o mesmo vinha acusado.
12. Deve também o pedido cível deduzido pelo Assistente ser julgado procedente por provado, condenando-se o arguido em montante justo e adequado.
13. Existe, assim, fundamento para recurso, nos termos do artigo 410º, nºs 1 e 2 als. a) b) e c).
TERMOS EM QUE, MERITÍSSIMOS Srs. JUÍZES DESEMBARGADORES, apreciando melhor, decidirão fazendo a habitual JUSTIÇA.

3. O Ministério Público, na primeira instância, respondeu ao recurso interposto pelo assistente, tendo concluído, em síntese, no sentido de que [transcrição]:
I. O assistente não se conformou com a sentença que absolveu o arguido da prática de um crime de injúria agravada, por entender que o direito à crítica não pode violar o direito ao respeito, ao bom nome e à imagem.
II. As expressões proferidas pelo arguido não são, quanto a nós, bastantes para integrarem a prática de um crime de injúria agravada.
III. Tais expressões são a manifestação, por parte do arguido, da opinião negativa ou depreciativa acerca da atuação do assistente.
IV. Não atinjam, porém, o nível de ofensa inadequada ou desproporcional à honra e consideração do assistente.
V. Não foram, em nosso entender, violados quaisquer normativos legais.
Termos em que negando provimento ao recurso, Vossas Excelências farão Justiça.
4. O arguido respondeu ao recurso, tendo concluído no sentido da improcedência do recurso, concluindo aduzindo que [transcrição]:
1º Em síntese, de tudo atrás explanado, a douta sentença recorrida deverá ser mantida na integra, uma vez que não existe qualquer erro notório de apreciação da prova, sendo certo, que tendo em conta o supra exposto, o Mm.º Juiz «a quo», em nosso entender, decidiu de forma correta ao absolver o arguido, pela prática do crime pelo qual vinha acusado, bem como do pedido de indemnização civil contra si deduzido.
2º Exercer o direito de crítica sobre a conduta do assistente numa situação concreta, é uma das formas de manifestação da liberdade de expressão prevista no artigo 37º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
3º As expressões usadas pelo arguido e dirigidas ao assistente neste caso não são ofensivas da sua imagem ou auto-estima, apenas serviram para o arguido criticar a conduta daquele, por ter autuado o arguido, por estacionamento indevido na via pública.
4º A douta sentença recorrida não padece de qualquer erro/vicio de julgamento da matéria de facto, nem qualquer erro no exame critico das provas, e dúvidas não restam que não foi violada qualquer norma jurídica e/ou princípios gerais de direito e/ou direitos constitucionais.
Este é o nosso parecer improcedência do presente recurso, agindo, assim v. exas farão a acostumada justiça.
Pede deferimento.
5. Nesta instância, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, tendo concluído, aduzindo que “…somos de parecer que devem ser considerados como provados os factos dados como não provados e, consequentemente, ser o arguido condenado pela prática dos factos que lhe haviam sido imputados, numa pena que necessariamente terá que ser de multa, a qual não deverá ser inferior a 60 dias de multa à taxa diária de 5,50€, o que perfaz a multa total de 330,00€, sendo certo que assim se decidindo, concedendo-se, por isso, provimento ao recurso interposto pelo Assistente, se fará a habitual Justiça.”
6. Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.
Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso (1) do tribunal.
O nº 1 do artigo 412º do C.P.P. estabelece que “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Nas conclusões do recurso, o recorrente deverá fazer uma síntese das razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida, tal como se encontram delineadas na respetiva motivação.

Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, as questões a decidir reportam-se às seguintes matérias:
- Vícios do nº 2 do artigo 410º do CPP;
- Integração do elemento objetivo do tipo legal de crime de injúria do artigo 181º, nº 1 do C Penal;
- Pedido de indemnização civil

2- A decisão recorrida
1. A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação [transcrição]:

II Fundamentação de Facto

Matéria de facto provada

Discutida a causa e com interesse para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 9 de julho de 2019, cerca das 21h35m, no interior da Esquadra da PSP de …, sita na Av.ª ..., n.º …, em Barcelos, o arguido, dirigindo-se ao A. C., disse-lhe que ele não prestava, que era um mau profissional e que era um arrogante.
2. O A. C. era, à data dos factos, o agente n.º …. da PSP, em serviço na Esquadra de …, e encontrava-se naquele local devidamente uniformizado, no exercício de funções que lhe haviam sido distribuídas e determinadas superiormente no interior da corporação policial de que faz parte.
3. A conduta do arguido provocou mal-estar ao assistente A. C..
4. O arguido, conhecedor da situação fáctica descrita em 2 agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de manifestar o seu desagrado e discordância relativamente ao modo de actuação do assistente quando, em momento anterior, o autuou com coima por infracção ao Código da Estrada.
*
Mais se provou que:

5. O arguido não dispõe de antecedentes criminais.
6. Trabalha numa loja de ferragens auferindo a retribuição mínima mensal garantida.
7. Vive sozinho em casa arrendada pela quantia mensal de € 220,00.
*
Matéria de facto não provada:

Com interesse para a boa decisão da causa não resultou provado que:
1. A conduta do arguido descrita nos factos provados tivesse vexado o assistente A. C., atingindo a sua auto-estima e imagem pública.
2. Ao proferir as expressões descritas nos factos provados o arguido tivesse actuado com o intuito de atingir a auto-estima e imagem pública do assistente.
*
Motivação da decisão:

Cumpre, em obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º2, do Código de Processo Penal, indicar as provas que serviram para fundar a convicção do tribunal.
Os factos provados têm como principal suporte e referência o depoimento prestado em audiência de julgamento por A. C., Agente da Polícia de Segurança Pública, responsável pela elaboração do auto de notícia de fls. 4, o qual, para além do conhecimento que deles dispunha em virtude de ter sido interveniente directo nos mesmos, efectuou um relato isento, credível e, acima de tudo, com clareza e precisão mais do que suficientes para não deixar no espírito do julgador a menor dúvida de se desenrolaram da forma descrita.
Assim, depois de contextualizar a sua intervenção nos factos, ocorrida no decurso de uma acção de patrulhamento na via pública, o assistente descreveu o episódio ocorrido no interior da esquadra da PSP de Barcelos, explicando que esse incidente foi despoletado por uma coima com que, anteriormente, havia autuado o arguido, em virtude do veículo automóvel deste se encontrar estacionado em cima do passeio.
Mais acrescentou que o arguido adoptou desde o início uma atitude “desafiante”, mostrando-se desagradado quando se apercebeu que iria ser autuado, sendo nesse contexto que, depois, quando se deslocou à esquadra da PSP lhe dirigiu as expressões constantes dos factos provados, as quais foram reproduzidas pelo assistente em audiência de julgamento, solicitando ainda o livro de reclamações para formalizar uma reclamação.
As declarações do assistente tinham respaldo nos depoimentos de M. T., J. T. e P. C., todos Agentes da PSP a exercer funções em …, que se encontravam presentes na altura em que o arguido se deslocou à esquadra da PSP, assistindo ao sucedido, reproduzindo as expressões que ouviram o arguido a proferir em direcção ao assistente, de forma absolutamente coincidente com aquilo que, anteriormente, tinha sido referido a esse propósito pelo colega de profissão.
O circunstancialismo dado por provado em 3 foi também confirmado pelo próprio A. C., sublinhando o assistente que ficou desagradado com as expressões que lhe forma dirigidas pelo arguido, tanto mais que, no seu entendimento, aquele não tinha qualquer motivo válido para as proferir.
Repare-se ainda que o próprio arguido, nas declarações que quis prestar, apesar de rejeitar a autoria de duas das expressões que lhe estavam imputadas, assumia ter dito ao assistente que era um mau profissional, justificando esta afirmação com o procedimento por aquele anteriormente adoptado, no momento em que o autuou por ter o seu veículo automóvel estacionado em cima do passeio, episódio no qual centrou o seu discurso, realçando que apenas quis manifestar a sua discordância com essa conduta, que considerou desadequada e imprópria de um agente da autoridade.
Naturalmente que os elementos subjectivos respeitantes à conduta adoptada pelo arguido extraem-se das regras da experiência comum, no contexto da situação que desencadeou esse comportamento e atendendo ao significado das expressões dirigidas ao assistente, que inculcam a ideia que ao proferi-las o arguido visou criticar a actuação daquele, no exercício das suas funções profissionais como agente da PSP, por discordar com o modo como tinha sido autuado, por estacionamento indevido na via pública.
Esta explicação é extensível à matéria de facto dada por inverificada, apenas se acrescentando que o exercício do direito à crítica, reportada à conduta adoptada pelo visado numa situação concreta, pode ser considerada por este como injusta ou até deselegante, mas já não ofensiva da sua imagem ou autoestima, tendo como referência aquilo que é expectável, nestas circunstâncias, do cidadão normal, colocado na posição do destinatário desses reparos.
No que se reporta aos antecedentes criminais o tribunal valorou o Certificado do Registo Criminal junto aos autos.
Finalmente, no que concerne às actuais circunstâncias de vida do arguido teve-se em consideração as declarações que prestou a este respeito.
*
III. Fundamentação de Direito

Apurados os factos importa agora proceder ao seu enquadramento jurídico.
Encontra-se o arguido acusado da prática, em autoria singular e com dolo directo, de um crime de injúria agravada, infracção prevista pelas disposições conjugadas dos artigos 181.º, 184.º, 132.º, alínea j), 188.º, alínea a), 14º nº1 e 26º, todos do Código Penal.
Incorre na prática do tipo legal de crime previsto no art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal, “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração”.
O ilícito em análise preenche-se com um comportamento activo do agente que, utilizando a linguagem no seu sentido mais lato, imputa factos a outra pessoa ou dirige-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração.
De acordo com o disposto no artigo 184º do Código Penal, a pena prevista naquele artigo sofrerá uma agravação se a vítima for uma das pessoas previstas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132º, do Código Penal, entre as quais se encontram os agentes das forças públicas ou serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas.
A estes elementos objectivos constitutivos do crime, há-de acrescer o elemento subjectivo, no caso o dolo em qualquer uma das suas modalidades, o qual tem de abranger também as circunstâncias que determinam a agravação – cfr. artigo 14.º do Código Penal.
Expostos que estão os elementos objectivos e subjectivos integrativos do tipo de ilícito, cumpre agora averiguar se a apurada conduta do arguido os preenche.
Quedou provado que no dia 9 de julho de 2019, cerca das 21h35m, no interior da Esquadra da PSP de …, sita na Av.ª ..., n.º …, em Barcelos, o arguido, dirigindo-se ao A. C., disse-lhe que ele não prestava, que era um mau profissional e que era um arrogante.
Será que ao assim actuar o arguido incorreu na prática do crime de injúria que lhe está imputado?
Desde já se adianta que entendemos que não.
Vejamos porquê.
A vida em sociedade propícia o surgimento de conflitos entre os seus membros, explicáveis, por exemplo, pela existência de uma grande diversidade de opiniões e de interesses incompatíveis.
É nesse contexto que surge o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de crítica, como uma das manifestações da liberdade de expressão, consagrada no artigo 37.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que preceitua o seguinte: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.
A liberdade de expressão, para além de constitucionalmente consagrada constituiu, nas palavras repetidamente utilizadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, caracterizada ainda pelo pluralismo, tolerância e espírito de abertura, e uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um.
Por outro lado, como se ensina no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.01.2015, Processo n.º 168/12.TRPRT.S1, relatado pelo Sr. Conselheiro Manuel Braz, publicado em www.dgsi.pt, citando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 12/06/2002, no processo nº 332/02, do mesmo relator, “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”.
Ou seja, a protecção penal conferida à honra só encontra justificação nos casos em que objectivamente as expressões são proferidas de forma gratuita, com o único propósito de atingir a dignidade da pessoa por elas visada, podendo assim uma conduta ser reprovável em termos éticos, mas não o ser em termos penais.
E, portanto, para concluir se uma expressão é ou não ofensiva da honra e consideração, é necessário enquadrá-la no contexto em que foi proferida.
No caso concreto verifica-se que as expressões dirigidas pelo arguido ao agente da PSP A. C. serviram o propósito do mesmo manifestar o seu desagrado e discordância relativamente ao modo de actuação do assistente quando, em momento anterior, o autuou com coima por infracção ao Código da Estrada.
E essas três expressões, apreciadas na sua globalidade, remetem para a ideia de que o arguido pretendeu criticar o comportamento do assistente no exercício das suas funções profissionais e não atingir a sua dignidade ou honra.
Nessa medida, sendo o assistente A. C. agente da PSP, no exercício das suas funções à data dos factos, como se assinala no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc.515/17.1PHSNT.L1, de 17.04.2018, relatado pela Sr.ª Desembargadora Maria Margarida Bacelar, publicado em www.pgdlisboa.pt, deveria ter uma acrescida tolerância a estas formas de expressão, porventura transgressora das regras do civismo exigível na convivência social, e não revelar, como revelou, uma especial sensibilidade e/ou dificuldade em lidar com este tipo de crítica.
Tudo isto para reiterar que, em nossa opinião, as expressões dirigidas pelo arguido ao assistente têm acolhimento no direito à critica constitucionalmente consagrado na constituição da república portuguesa não sendo assim reconduzíveis ao crime de injúria que lhe era imputado na acusação pública.
Consequentemente, deverá o arguido ser absolvido da prática do ilícito pelo qual vem acusado.
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IV. Pedido de indemnização civil
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Na qualidade de demandante A. C. deduziu pedido de indemnização cível contra o arguido/demandado reclamando deste o pagamento do montante de € 2.000,00 a título de danos não patrimoniais por si alegadamente sofridos, valor que pretende ver acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
*
Nos termos do art.º 71.º do Código de Processo Civil, o pedido de indemnização que pode ser deduzido no processo penal é apenas aquele que se funda na prática de um crime.
No entanto, conforme resulta do art.º 377.º, n.º 1, daquele diploma legal, a absolvição da acusação não é impeditiva da condenação do arguido na indemnização civil, “sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado”.
Visando delinear as situações em que, não obstante a sentença absolutória, há fundamento para condenar o arguido em indemnização civil, proferiu o Supremo Tribunal de Justiça, em 17/06/1999, Acórdão de Fixação de Jurisprudência, publicado no Diário da República, I, série – A, de 3/08/1999, onde se decidiu o seguinte: “se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual”.
Daqui se conclui que o facto do arguido/demandado ter sido absolvida da prática do crime que lhe estava imputado não obstaria a que fosse condenado no pedido de indemnização civil que se encontra deduzido uma vez que este tem por fundamento a responsabilidade extracontratual.
Contudo, tal só seria possível se existissem elementos que, apreciados à luz do disposto no artigo 483.º do Código Civil, permitissem concluir no sentido da prática de um facto ilícito gerador de responsabilidade extracontratual.
E quanto a este aspecto, está bom de ver não existem factos que permitam imputar ao arguido qualquer conduta ilícita e culposa susceptível de o responsabilizar extracontratualmente por danos ocorridos na esfera do demandante.
Vai assim o arguido/demandado ainda absolvido do pedido de indemnização civil que se encontra deduzido.

3. Apreciação do recurso

Delimitado, nos termos sobreditos, o objeto do presente recurso, é chegado o momento de dele tomar conhecimento.
Assim, vejamos então cada uma das questões acima enunciadas.

3.1- Integração do elemento objetivo do tipo legal de crime de injúria do artigo 181º, nº 1 do C. Penal

3.1.1- Diferentemente do sustentado na sentença recorrida, o recorrente defende que “Do enunciado quadro fáctico e atentos os parâmetros socioculturais da comunidade em que nos inserimos, conclui-se que as palavras proferidas pelo arguido são manifestamente suscetíveis de ofender a honra, dignidade, consideração e bom nome de uma pessoa”.
De forma que é esta a questão essencial que está em causa, sendo que, efetivamente, os crimes contra a honra são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade e do contexto envolvente.
São elementos constitutivos do crime de injúria a imputação a outrem de factos concretos e determinados, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra e consideração.
Sobre o conceito de honra a doutrina (2) distingue a honra interior ou subjetiva, que se refere à opinião ou sentimento de uma pessoa sobre o seu próprio valor e a honra exterior ou objetiva, ou seja, a representação os outros têm sobre o valor de uma pessoa, a chamada reputação ou o bom nome.
Como bem salienta o Prof. Costa Andrade (3), “neste âmbito são claramente prevalecentes as definições de índole exterior ou objetiva por, em geral, se reconhecer que a honra interior está, por princípio, a coberto da agressão por terceiros”.
O direito ao bom nome e reputação e à imagem encontra-se consagrado constitucionalmente, cfr. artigo 26º da C.R.P.. Por sua vez, a tutela geral da personalidade encontra-se prevista nos artigos 25º e 70º do C. Civil.
Segundo a lição do Prof. Beleza dos Santos, in "Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria", R.L.J., Ano 92º, p. 164 e segs. " a honra é aquele mínimo de condições, es­pecialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale".
A honra, segundo a conceção dominante entre nós, consiste num bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. O que se protege “é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade”
O bem jurídico honra traduz uma pretensão de respeito por parte dos outros, que decorre da dignidade humana. O seu conteúdo é constituído basicamente por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros. Sem a observância social desta condição não é possível à pessoa realizar os seus planos de vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos e relações sociais em que intervém. O bem jurídico constitucional assim delineado apresenta um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração) fundidos numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros; é, ao fim e ao cabo, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade, Cfr. Augusto Silva Santos, Alguns aspetos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, A.A.F.D.L., 1989, pp. 17-18.
Mas nem todas as condutas que causam vergonha ou humilhação no visado são susceptíveis de ser enquadradas no artigo 181º do C.Penal. Efetivamente, “aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena”, cfr. Beleza dos Santos, ob. e loc. citado.
Acresce dizer que, como diz Oliveira Mendes “…nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos artigos 180º e 181º, tudo dependendo da “intensidade” da ofensa ou perigo de ofensa.”
O crime de injúria está configurado como um crime de perigo concreto, sendo que o dano (a ofensa da honra ou consideração) não faz parte do tipo, pelo que para a sua consumação basta que o perigo daquele dano se verifique. Nas palavras de Beleza dos Santos, ob. cit. pág. 164 e segs., “Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se”. A lei fala em factos ofensivos, isto é, que ofendam ou possam ofender …e não apenas de factos que tenham na realidade ofendido a honra e consideração”.
As injúrias são infrações dolosas, consistindo este num dolo genérico, como é entendimento pacífico entre nós desde há muito tempo, ou seja, não é necessário para o preenchimento do crime que haja dolo específico, que se traduz na intenção de ofender a honra ou consideração alheias (vide v.g. Ac. STJ de 17.2.1983, p. 36867, citado por M. Gonçalves, C.P. Anotado, 8ª Ed., p. 660).
Não obstante a honra continuar a ser um bem jurídico com dignidade penal, o certo é que, como diz Faria da Costa (4) “…um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - de limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica proteção através do direito penal. Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem - tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização coletiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reação criminal».
3.1.2- No caso em apreço, a questão que nos é colocada é, pois, a de saber se as palavras dirigidas pelo arguido ao assistente têm ou não suficiente dignidade penal para efeitos de integrar o tipo objetivo crime de injúria.
No sentido de dar resposta à referida questão e dada a natureza pessoal do bem jurídico protegido, julgamos dever ter presente, como ponto de partida, a proteção constitucional conferida à dignidade do ser humano, cfr. artigos 1º, 24º, nº 1, 25º da CRP, igualmente objeto de proteção por parte de instrumentos de direito internacional, cfr. artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 3º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os artigos 7º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; e os artigos 1º, 3.º, n.º 1, e 4.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
Outrossim, devermos igualmente ter em conta o princípio constitucional da intervenção mínima, cfr. artigo 18º, nº 2 da CRP. E a natureza fragmentária ou subsidiária do direito penal, que significa que o direito penal não deve intervir quando seja possível proteger o bem jurídico – com idêntica ou superior eficácia - através de distintas e menos onerosas intervenções tutelares.
Acresce dizer também da necessidade de compatibilizar o direito ao bom nome com a liberdade de expressão, sendo que aquele não tem necessariamente de sobrepor-se sempre a este.
“O direito ao bom-nome e reputação, com consagração constitucional [art.26.º da CRP] conflitua, por vezes, com o princípio constitucional da liberdade de expressão [art.37.º da CRP], o qual se traduz no direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento. Este direito tem uma grande amplitude, permitindo que se emitam juízos desfavoráveis, críticas, embora com limites, entre eles o respeito devido à honra e dignidade.
Estes direitos ao bom-nome e reputação e à livre expressão, que têm, em princípio, igual valor não podem ser entendidos em termos absolutos e, em caso de conflito, têm de ser harmonizados nas circunstâncias concretas”, cfr. Acórdão do TRG de 17-02-2014, processo 1500/10.0GBGMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.
A este propósito, como se refere no Ac. RP de 20.06.2012, processo 7132/09.8TAVNG-A.P1, disponível em www.dgsi.pt “conforme refere Costa Andrade (Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal), o exercício do direito de crítica tende a provocar situações de conflito potencial com bens jurídicos como a honra e cuja relevância jurídico-penal está à partida excluída por razões de atipicidade. Tal vale designadamente para os juízos de apreciação e valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espetáculo.
Segundo o entendimento hoje dominante, na medida em que não se ultrapassa o âmbito da crítica objetiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo diretamente à pessoa dos seus autores ou criadores, aqueles juízos caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação: já porque não atingem a honra pessoal do cientista, artista ou desportista, etc., já porque não a atingem com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica. Num caso e noutro, a atipicidade afasta, sem mais e em definitivo, a responsabilidade criminal do crítico, não havendo, por isso, lugar à busca da cobertura de um qualquer dirimente da ilicitude.

Três observações formula Costa Andrade a propósito da referida atipicidade da crítica objetiva:
- por um lado, a mesma não depende do acerto, da adequação material ou da verdade das apreciações subscritas. Os atos praticados serão atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material ou, inversamente, a sua impertinência;
- em segundo lugar, o direito de crítica com este sentido e alcance não conhece limites quanto ao seu teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas. O seu exercício legitima, por isso, o recurso às expressões mais agressivas e virulentas, mais carregadas de ironia e com os efeitos mais demolidores sobre a obra ou prestação em apreço;
- em terceiro lugar, é hoje igualmente pacífico o entendimento que submete a atuação das instâncias públicas ao escrutínio do direito de crítica (objetiva) com o sentido, alcance e estatuto jurídico-penal que ficam consignados”

Por outro lado, a jurisprudência, em variadíssimos casos, tem vindo a considerar desprovidas de dignidade penal e, por isso, atípicas, “…todos aqueles casos situados naquela margem jurídico-penalmente aceitável do relacionamento social e descarregados de qualquer imputação objetivamente ofensiva da honra ou consideração de terceiros, que se limitam a expressar, ainda que em termos mais acutilantes, uma consideração crítica ou mesmo qualificativa da pessoa visada”, cfr. v.g. Ac RP de 14.11.2012, proc.15722/10.0TDPRT.P1, disponível em ww.dgsi.pt

No caso vertente, fazendo intervir aqui os princípios perfilhados pela doutrina e pela jurisprudência a que fizemos alusão, é nosso entendimento que as palavras dirigidas pelo arguido ao assistente, dizendo-lhe que “ele não prestava, que era um mau profissional e que era um arrogante”, no contexto em que estas palavras foram proferidas, visam direta e essencialmente a ação do assistente, enquanto agente da PSP no exercício da sua atividade de policia, e não a pessoa deste.
Efetivamente, na referida situação concreta, ao dirigir as mencionadas palavras ao assistente, o arguido criticou fundamentalmente a ação do assistente, enquanto agente da PSP, pelo facto de este não ter procedido com outros cidadãos de igual forma como agiu para consigo, procedendo ao levantamento do respetivo auto de contraordenação por o seu veículo se encontrar na via pública em cima de um passeio, uma vez que, no local, existiam outros veículos estacionados da mesma forma do que o seu. A ação do arguido visou sobretudo a atuação da polícia, a qual obviamente é objetivada na pessoa do agente que a levou a cabo.
O que vale por dizer que a conduta do arguido se situa no âmbito da critica objetiva relativamente à ação de um agente da PSP no exercício da sua função de segurança pública. Não está em causa saber se a critica é justa ou injusta, se os factos são verdadeiros ou não.
Outrossim, é hoje pacificamente aceite que quem exercer funções públicas, de que é exemplo os agentes das forças de segurança, encontra-se sujeito à critica objetiva nos termos em que ficaram acima assinalados. E, neste contexto, são compreensíveis os exageros na crítica, a animosidade, os excessos de linguagem, a grosseria e a má educação, sendo exigível a quem exerce funções públicas disponha da capacidade de aceitar a crítica, ainda que injusta ou imerecida, a falta de civismo e de pacífica convivência social. Neste sentido, vide, v.g. o Ac. RL de 17.04.2018, processo 515/17.1PHSNT.L1, 5ª Secção, publicado em www.pgdlisboa.pt.
Não se questiona que o arguido incomodou o assistente com as palavras que lhe dirigiu, causando-lhe desconforto e mal estar no exercício da sua atividade profissional, mas a verdade que essas palavras, no contexto em que foram proferidas, não são suscetíveis de ferir a honra e a autoestima do assistente por forma a que terceiros tenham menor respeito e consideração pela sua pessoa.
Ora, “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”, cfr. Ac RP de 12.06.2002, recurso nº 332/02, disponível em www.dgsi.pt
Assim, e porque o direito penal tutela valores fundamentais da vida em sociedade e deverá promover a pacificação social, sendo um direito de ultima ratio, fazendo aqui apelo ao princípio da proporcionalidade e à concordância prática entre, por um lado, o direito ao bom nome e à reputação, e o direito à liberdade de expressão e ao direito de critica objetiva por outro, consideramos que as palavras dirigidas pelo arguido ao assistente não têm suficiente dignidade penal para o efeito de integrar o tipo legal de crime de injúria.
Em consequência, e porque a invocação pelo recorrente dos vícios do nº 2 do artigo 410º do CPP tem por base a diferente valoração que faz das palavras dirigidas pelo arguido ao assistente, a qual não perfilhamos pelas razões que ficaram expostas, julgamos ter ficado prejudicado o seu conhecimento.
Em suma, nesta parte, o recurso improcede.

3.2- Pedido de indemnização civil
Uma vez que irá ser mantida a decisão de absolvição do arguido da prática do crime que lhe foi imputado, não se verifica a previsão do nº 3 do artigo 403º do CPP. Todavia, o recorrente pugna pela procedência do pedido de indemnização civil.
Nos termos do disposto no artigo 400º, nº 2 do C.P.Penal “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.”

O artigo 44º da Lei nº 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), na redação da Lei nº 40-A/2016, de 22.12.2016, estatui:
“1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00.
2 - Em matéria criminal não há alçada, sem prejuízo das disposições processuais relativas à admissibilidade de recurso.
3 - A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação.”

No caso, o assistente formulou pedido de indemnização civil contra o arguido no valor global de mil e quinhentos euros (cfr. fls.61 e segs.), o qual foi julgado totalmente improcedente.
Assim, é manifesto que, quanto ao pedido de indemnização civil, atento o seu valor, a decisão é irrecorrível, razão pela qual não é legalmente possível proceder à apreciação do recurso nesta parte.
Em consequência de tudo quanto fica dito, impõe-se manter integralmente a sentença recorrida.

III- DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

1) rejeitar o recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil formulado pelo assistente, porquanto a decisão é irrecorrível, cfr. artigos 417º, nº 6, al. b) e 420º, nº 1, ambos do CPP; e
2) quanto ao mais, julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas, uma vez que o recorrente está delas isento – artigo 4º, nº1. al. m) do RCP.
Guimarães, 24.05.2021
(Texto integralmente elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários (artigo 94º, nº 2 do C. P. Penal).

(Armando da Rocha Azevedo - Relator)
(Clarisse Machado S. Gonçalves - Adjunta)




1. Entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
2. Vide, entre outros, José Faria da Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 605.
3. Vide Manuel Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, pág. 79.
4. In Direito Penal Especial, Coimbra Editora, 2004, págs 104-105(bolding nosso).