Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1261/17.1T8VCT.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: ACIDENTE IN ITINERE
DESCARACTERIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I. Tem-se entendido maioritariamente que a parte final da alínea a) do n.º 1 do art. 14.º da Lei dos Acidentes de Trabalho, numa interpretação literal, histórica e teleológica, conjugada ainda com o n.º 2, não visam os acidentes in itinere mas exclusivamente os ocorridos num contexto de prestação de trabalho.

II. Assim, a descaracterização dos acidentes in itinere ocorre por aplicação da alínea b) do n.º 1 da citada norma, conjugada com o seu n.º 3, com as devidas adaptações, ou seja, na hipótese de o acidente resultar exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, entendendo-se como tal o comportamento temerário em alto e relevante grau.

III. O escopo da responsabilidade civil por acidente de viação não se confunde com o escopo da responsabilidade por acidente de trabalho, pelo que os critérios para aferir da culpa num e noutro domínio não coincidem, designadamente no âmbito dos acidentes rodoviários.

IV. A prova dos factos integrantes da descaracterização do acidente, enquanto impeditivos do direito à reclamada reparação, constitui ónus do responsável, em conformidade com a regra do n.º 2 do art. 342.º do Código Civil.

V. Não é descaracterizável como de trabalho o acidente em que apenas se provou que o embate entre o veículo conduzido pelo sinistrado e o veículo que circulava no sentido oposto se deu na meia faixa de rodagem contrária ao sentido de marcha do primeiro, que tal local, atento este sentido de marcha do sinistrado, é precedido de um sinal vertical indicador da proibição de ultrapassar, sendo a via separada por uma linha contínua, e que o embate ocorreu sem que o veículo que seguia em sentido contrário ao do sinistrado tivesse a oportunidade de o evitar.
Decisão Texto Integral:
APELAÇÃO - PROCESSO N.º 1261/17.1T8VCT.G1

1. Relatório

Nos presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, veio A. P. pedir a condenação de X, Unipessoal, Lda. a pagar-lhe uma pensão anual e vitalícia de € 5. 968,01, subsídio de elevada incapacidade de € 4 802,13, indemnização por incapacidades temporárias no valor de € 11 393,50, despesas com deslocações no valor de € 398,41, despesas médicas e medicamentosas no valor de € 863,82 e juros de mora.

Para tanto alegou, em síntese, que exercia a actividade de carpinteiro sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré, auferindo um salário anual de € 9 800,00, e que no dia 25 de Fevereiro de 2016 sofreu um acidente de viação quando, ao serviço da entidade empregadora, se deslocava da sua residência para o local de trabalho.

A Ré veio contestar, alegando, em síntese, que o Autor era trabalhador por conta própria na arte da carpintaria e foi nessa qualidade que foi contratado para, com autonomia e sem exclusividade, prestar serviços em obras concretas e por determinado período de tempo, deslocando-se àquelas em viatura própria e usando ferramentas de trabalho que eram suas. Mais alegou que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do Autor, que violou de forma gravosa e grosseira as regras estradais.
Foi elaborado despacho saneador e fixadas a matéria de facto assente e a base instrutória, tendo o Autor apresentado reclamação que foi deferida.

Procedeu-se a julgamento, no termo do qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, sem reclamações.

Seguidamente, pelo Mmo. Juiz a quo foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, o Tribunal julga parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, decide;
1 - Condenar a ré “X, Unipessoal, Lda” a pagar ao autor as seguintes prestações reparatórias:
1.1 - a pensão anual e vitalícia de Euros 4 993,64, com início em 8 de Outubro de 2017, sendo actualizada em 2018 para o valor de Euros 5 083,53 e em 2019 para o valor de Euros 5 164,87;
1.2 - a título de subsídio de elevada incapacidade, o valor de Euros 4 778,35;
1.3 - a título de incapacidade temporária absoluta, o valor de Euros 9 549,55;
1.4 - a título de despesas com consultas, medicamentos, exames e internamentos decorrentes do acidente objecto dos autos, o valor de Euros 913,64;
1.5 - a título de despesas com deslocações para a realização de consultas, exames, operações, fisioterapia e outros tratamentos decorrentes do acidente objecto dos autos, o valor de Euros 398,41;
1.6 - aos juros de mora contados à taxa civil legal em vigor sobre:
- a pensão anual e vitalícia nos termos do artigo 72º do RRATDP;
- o montante do subsídio de elevada incapacidade desde a data da alta até à entrega efectiva deste;
- o montante das despesas com consultas médicas, exames, medicamento e deslocações desde a data da citação até à entrega efectiva deste;
Custas pela R. e pelo A. na proporção de 85% para a primeira e 15% para o segundo.»

A Ré, inconformada, interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

«I - Na douta sentença proferida e ora recorrida julgou-se parcialmente procedente a acção, declarando-se que a Ré não logrou provar a descaracterização do acidente.
II – Porém e em conformidade com o ora alegado e provado, deveria aquela sentença ter dado como provada a descaracterização do acidente nos termos do artigo 14.º, n.º1 da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, não cabendo à ora Ré qualquer responsabilidade, julgando-se totalmente improcedente a acção.
III – Resulta da Prova documental, constituída pela Auto de Participação de Acidente de Viação, que não só Autor é o único e exclusivo responsável pelo acidente de que foi vítima, bem como a sua actuação é ilícita, altamente irresponsável e temerária.
IV – Resulta do depoimento prestado pelo condutor do autocarro, que este e os demais condutores tudo fizeram para evitar o sinistro e que o Autor nada fez para o evitar o embate no autocarro.
V – Logo, não foi devidamente valorada a prova pelo tribunal “a quo”, que desvaloriza o grau de culpa do Autor, devendo no mínimo considerar que o Autor, ao actuar como actuou, agiu no mínimo negligência grosseira.
VI - Aliás, a forte imprudência do Autor pôs não só em risco a sua integridade física e a sua vida, como as dos demais utilizadores da via, designadamente a do condutor do autocarro e seus ocupantes. VII – Pelo que a actuação do Autor configura um caso, no mínimo, de negligência grosseira e, por conseguinte, se encontra descaracterizado o acidente de trabalho.
VIII - O Autor sabia, analisada a prova, que o acidente que veio a ocorrer poderia ser uma consequência imediata do seu comportamento, mas conformou-se com essa circunstância e nada fez para a evitar.
IX - Na verdade não se trata de uma simples ultrapassagem mal calculada ou inábil, uma vez que ficou provado o Autor teve tempo e condições bastantes para evitar o acidente.
X – Acresce ainda que o entendimento, como defende PEDRO ROMANO MARTINEZ, que a lei não fez depender tal descaracterização do acidente do grau de culpa do sinistrado, antes optou por considerar que a simples violação, sem causa justificativa, das condições de segurança é razão suficiente para a operar.
XI – Assim, impunha-se a absolvição da Ré, não lhe sendo devida a reparação dos danos emergentes do acidente.»

O Autor respondeu ao recurso da Ré, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos dos Exmos. Desembargadores Adjuntos, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil –, as questões que se colocam a este Tribunal são as seguintes:

- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Descaracterização do acidente de trabalho.

3. Fundamentação de facto

Estão provados os seguintes factos:

1. O Autor nasceu a - de - de 1973.
2. O Autor, para o exercício da sua actividade de carpinteiro, utilizava ferramentas suas: fita métrica, lápis e martelo.
3. No dia 25 de Fevereiro de 2016, pelas 7.40 horas, na EN 13, ao Km 76,00, em …, o Autor quando se deslocava em viatura automóvel embateu noutro veículo que circulava em sentido contrário.
4. O Autor, em resultado do acidente de viação ocorrido em 25 de Fevereiro de 2016, ficou com uma incapacidade permanente parcial de 54,4904% e com incapacidade permanente absoluta para a actividade profissional habitual, sendo que teve alta médica a 8 de Outubro de 2017.
5. O Autor ficou ainda com ITA entre 26 de Fevereiro de 2016 e 8 de Outubro de 2017.
6. O Autor foi admitido ao serviço da Ré X, Unipessoal, Lda., para exercer a actividade de carpinteiro mediante retribuição.
7. O local habitual de trabalho do Autor era nas instalações da Ré, sitas na Estrada …, Lugar do …, Vilar de Mouros, onde se situa a oficina de carpintaria.
8. O Autor trabalhava com um horário fixo entre as 8 e as 12 horas e as 13 e as 17 horas.
9. O Autor, no exercício da sua actividade, utilizava as máquinas industriais fornecidas pela Ré, nomeadamente a máquina de corte de madeira, máquina de furar, topia e máquina de plaina.
10. As ferramentas referidas em 2) eram utilizadas pelo Autor a solicitação da Ré.
11. O Autor, quando a Ré o determinava, também exercia a actividade de carpinteiro noutros locais, como foi o caso dum salão de cabeleireiro sito em …, onde foi para aparafusar a estrutura numa casa pré-fabricada.
12. No dia 25 de Fevereiro de 2016, pelas 7.40 horas, na EN 13, ao Km 76,00, em …, quando se deslocava de viatura automóvel da sua residência, sita na Rua do …, Viana do Castelo, para o seu local de trabalho, sito em Vilar de Mouros, embateu noutro veículo que circulava em sentido contrário.
13. O Autor, em resultado do acidente referido em 12), sofreu as lesões e ferimentos constantes do exame médico do GML.
14. O percurso entre a residência e o local de trabalho, referidos em 6), demora em média 40 minutos.
15. O Autor despendeu € 398,41 em deslocações e transporte de ambulância para estar presente na realização dos exames médicos que tiveram lugar por causa do acidente referido supra.
16. O Autor despendeu € 863,82 em taxas moderadoras e despesas de internamento e € 50,23 em medicamentos decorrentes do acidente referido supra.
17. O embate referido em 3) ocorreu quando o Autor circulava no sentido Viana do Castelo / Caminha e o outro veículo no sentido oposto, sendo que o local onde ocorreu foi na faixa contrária ao sentido de marcha do Autor.
18. O local do embate, atento o sentido Viana do Castelo / Caminha, é precedido de um sinal vertical indicador da proibição de ultrapassar e a via é separada por uma linha contínua.
19. O embate ocorreu sem que o veículo que seguia em sentido contrário ao do Autor tivesse a oportunidade de evitar o embate.

4. Apreciação do recurso

4.1. Aparentemente, a Apelante pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, com as inerentes consequências jurídicas.

Ora, estabelece o art. 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Modificabilidade da decisão de facto», no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Por sua vez, o art. 640.º, que rege sobre os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe do seguinte modo:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)

Do regime constante do Código de Processo Civil acima delineado resulta que, sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões, nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, e acrescendo que há específicos ónus a cumprir no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por força do art. 640.º, o recorrente deve:

- especificar inequivocamente no corpo das alegações os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham uma decisão diversa, e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, bem como, tratando-se de depoimentos, as passagens da gravação respectivas;
- e indicar sinteticamente nas conclusões, pelo menos, os pontos da matéria de facto que pretende ver alterados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os mesmos.

Assim, como conclui António Santos Abrantes Geraldes (1), “[a] rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos.

Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilização das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. (…)

Contudo, insista-se, quando houver motivo para rejeição do recurso, esta apenas poderá abarcar o segmento relativo à matéria de facto, restringindo-se, além disso, aos pontos em relação aos quais tenham sido desrespeitadas as referidas regras.”

Ora, retornando ao caso dos autos – e tendo em conta que no despacho saneador foram enunciados 15 quesitos e que na decisão proferida sobre os mesmos foi considerado parcialmente provado o 1.º, provados os 2.º a 14.º e não provado o 15.º –, verifica-se que a Recorrente não indica, quer na motivação, quer nas conclusões, quais destes pontos da matéria de facto é que deveriam ter sido decididos diferentemente, nem em que termos, e assim, necessariamente, também não especifica os concretos meios probatórios em que baseia a sua pretensão, por referência a cada um daqueles pontos, embora invoque genericamente, isto é, sem concretização das alterações visadas, o auto de participação do acidente de viação e o depoimento da testemunha R. M..

Na verdade, a Apelante impugna a sentença do tribunal a quo na sua globalidade, confundindo questões de facto e questões de direito, pretendendo que, em resultado do documento e do depoimento mencionados, se considere que o acidente ocorreu exclusivamente por negligência grosseira do Autor, com a consequente descaracterização do mesmo como de trabalho.

Ora, tal afigura-se manifestamente insuficiente e deficiente, como se sublinha no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Dezembro de 2015, proferido no âmbito da Revista n.º 1348/12.7TTBRG.G1.S1, tendo por objecto Acórdão da Secção Social desta Relação de Guimarães, em cujo sumário se diz (2):

“O cumprimento do ónus estabelecido no artigo 640.º do Código de Processo Civil passa pela invocação de que determinado facto foi incorretamente julgado, enunciando-o e explicitando as razões de tal incorreção, isto é, apresentando uma análise crítica dos elementos de prova de que o julgador deveria retirar uma conclusão diferente da que retirou, e ainda pela indicação do facto tal como deveria ter sido dado como provado ou não provado.”

E, dada a integral aplicabilidade à situação dos autos, mutatis mutandis, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Secção Social) de 26 de Setembro de 2018, proferido no processo n.º 141/17.5T8PTM.E1.S1 (3), quando, a propósito do cumprimento, ou incumprimento, dos ónus previstos no art. 640.º, n.º 1, als. a) e c) do CPC, refere que “[e]ste preceito exige, como é sabido, que o Recorrente quando impugna a decisão em matéria de facto especifique, sob pena de rejeição, “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” (alínea a)) e “a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (alínea c)). Trata-se, como observa a propósito ABRANTES GERALDES, de “obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”.

Da leitura do recurso de apelação e das suas conclusões resulta que o Recorrente se insurge contra o reconhecimento como facto provado de que o trabalhador começou a trabalhar em outubro de 2013, quando, em seu entender, só estaria provado que o começo da atividade teria ocorrido em novembro de 2013. Mas a verdade é que nunca especifica quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, sobretudo, nunca especifica quais as soluções alternativas que propõe. Assim, não é seguro se impugna os pontos 10 e/ou o 22, ou porventura também o 21, da matéria de facto dada como provada. E, em relação ao ponto 22 da matéria de facto dada como provada não resulta do recurso, com clareza, sequer qual a solução alternativa que o Recorrente propõe.

O recurso é elaborado de modo tão genérico, que não é possível chegar com certeza a uma conclusão sobre qual é, afinal, a decisão que o Recorrente defende que deveria ter sido tomada sobre a matéria de facto impugnada.”

Ora, repete-se – agora com recurso ao douto parecer do Ministério Público –, «(…) a recorrente não especificou, nas conclusões ou na motivação, ainda que sinteticamente, quais os concretos pontos de facto, que considerou incorrectamente julgados, por referência à base instrutória, fixada no despacho saneador, ou a qualquer ponto da matéria de facto, dada por provada ou não provada na sentença (…) não indica, em sede conclusiva, ou sequer na motivação, qualquer meio de prova, como suporte da modificação de qualquer ponto da matéria de facto (…)

Tão pouco indica o sentido da decisão a proferir, relativamente a qualquer ponto de facto impugnado.

Ao invés, a recorrente, na motivação limitou-se a indicar as passagens de depoimento testemunhal e a existência de documento, terminando por, de forma conclusiva, afirmar que, com base neles, se devia concluir pela culpa e pela negligência grosseira do sinistrado, o que são meros juízos de direito, sem peticionar a modificação de qualquer concreto e especifico ponto da matéria de facto.»

Em face do exposto, impõe-se a imediata rejeição do recurso no que toca à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por incumprimento dos ónus legais que incumbiam à Recorrente.

4.2. Importa, então, apreciar a questão da descaracterização do acidente de trabalho, ou, mais precisamente, do acidente in itinere, tutelado como de trabalho.

Com interesse para a questão dos autos, estabelece o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais (RRATDP), aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, no que respeita ao conceito de acidente de trabalho, conceito de acidente in itinere e situações de descaracterização do acidente:

Artigo 8.º
Conceito
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.

Artigo 9.º
Extensão do conceito
1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
(…)
2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 - No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.

Artigo 14.º
Descaracterização do acidente
1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.

O regime jurídico de acidentes de trabalho está gizado segundo princípios e valores específicos, mormente o da responsabilidade objectiva e excepcionalidade do não ressarcimento, de modo a não excluir realidades sócio-laborais de plausível verificação, sendo os prémios de seguro – obviamente – calculados em função do regime jurídico assim estabelecido.

Em matéria de repartição do ónus de alegação e prova, atenta a opção técnica do legislador na definição de acidente de trabalho, a tarefa do sinistrado ou beneficiário reduz-se à alegação e prova dos elementos constantes do art. 8.º ou do art. 9.º, impendendo sobre o responsável a alegação e prova dos requisitos determinantes da exclusão ou redução da sua responsabilidade, designadamente os do art. 14.º, com todas as vantagens em matéria de tutela e protecção daquele.

Isso significa que, no caso do sinistro dos presentes autos, verificados sem margem para dúvidas os pressupostos do art. 9.º, n.ºs 1, al. a) e 2, al. b), aquele deve ser qualificado como acidente in itinere, tutelado como de trabalho, pelo que cabia à Apelante alegar e provar a factualidade demonstrativa da exclusão da sua responsabilidade nos termos do art. 14.º.

Ora, antes de mais, no que a esta tarefa respeita, importa salientar que, não obstante a aparente recondução da situação à parte final da alínea a) do n.º 1 do citado art. 14.º, tem-se entendido maioritariamente que esta, numa interpretação literal, histórica e teleológica, conjugada ainda com o n.º 2, não visa os acidentes in itinere mas exclusivamente os ocorridos num contexto de prestação de trabalho. (4)

Sobre a temática, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2007, proferidos nos processos n.ºs 07S051 e 07S053 (5), em cujo sumário deste último se diz que “[a] previsão legal constante da referida norma não pretende abarcar todas e quaisquer condições de segurança – onde quer que elas venham previstas e independentemente dos seus destinatários –, antes se reporta às condições de segurança ligadas com a própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua actividade laboral.”

Assim, a descaracterização dos acidentes in itinere ocorre por aplicação da alínea b) do n.º 1 da citada norma, conjugada com o seu n.º 3, com as devidas adaptações, ou seja, na hipótese de o acidente resultar exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, entendendo-se como tal o comportamento temerário em alto e relevante grau.

Ou seja, para que o responsável não tenha que reparar os danos decorrentes do acidente in itinere, exige-se que:

- o sinistrado assuma um comportamento temerário em alto e relevante grau;
- que seja a causa exclusiva do acidente de trabalho.

Isto é, conforme é pacífico na doutrina e na jurisprudência, não basta a culpa leve, traduzida em imprudência, distracção ou imprevidência; exige-se a negligência grosseira, que é a particularmente grave, qualificada, atendendo, designadamente, ao elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, que tem de ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima, e não em função de um padrão geral e abstracto de conduta.

Por outro lado, em situações como a dos autos, levanta-se ainda a questão de saber se a violação das regras de circulação rodoviária, designadamente quando constituam infracções estradais graves ou muito graves, implicam necessária ou automaticamente a existência de negligência grosseira para os efeitos em apreço, devendo a resposta ser negativa: o escopo da responsabilidade civil por acidente de viação não se confunde com o escopo da responsabilidade por acidente de trabalho, pelo que os critérios para aferir da culpa num e noutro domínio não coincidem e factores como o cansaço ou stress decorrentes da organização e condições na execução do trabalho, estabelecidas pelo empregador, não serão em princípio relevantes na apreciação da responsabilidade civil do trabalhador-condutor perante terceiros mas poderão sê-lo para afastar a negligência grosseira no domínio da responsabilidade por acidente de trabalho. (6)

A este propósito, diz-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 1127/08.6TTLRA.C1.S1 (7), “que – como é jurisprudencialmente pacífico, há muito – a gravidade da infracção às regras estradais não é necessariamente sinónimo, por consabidas razões, de negligência grosseira, nos termos e dimensão postulados pelo direito infortunístico, não podendo o critério de gravidade, ínsito na legislação rodoviária, servir para descaracterizar, sem mais, um acidente simultaneamente de viação e de trabalho, como no caso.”

Acresce – sublinha-se – que não basta a negligência grosseira do sinistrado, é indispensável que esta seja condição/causa única do acidente.

Ora, retornando ao caso em apreço, constata-se que apenas se provou com interesse para esta questão que o embate entre o veículo conduzido pelo Autor e o veículo que circulava no sentido oposto se deu na meia faixa de rodagem contrária ao sentido de marcha do Autor, que tal local, atento este sentido de marcha do Autor, é precedido de um sinal vertical indicador da proibição de ultrapassar, sendo a via separada por uma linha contínua, e que o embate ocorreu sem que o veículo que seguia em sentido contrário ao do Autor tivesse a oportunidade de o evitar.

Isto é, em rigor, nem sequer se provou que o evento tenha resultado de qualquer conduta voluntária do Autor, designadamente manobra de ultrapassagem, nem, ainda que tal tenha sido o caso, o procedimento ou mecanismo observado na sua realização e as condições de estado do tempo, piso, tráfego e veículo então verificadas, de forma a se aquilatar se houve, ou houve apenas, falta de cuidado ou destreza do Autor, ou, pelo contrário, ocorrência ou concorrência de outros factores a determinarem a invasão da metade contrária da faixa de rodagem pelo veículo conduzido por aquele.

Ou seja, a factualidade provada, tal como está descrita, indicia que não houve concorrência de conduta culposa do condutor que conduzia o veículo embatido mas não permite concluir se houve inobservância pelo Autor de qualquer regra estradal ou dever geral de cuidado na condução, nomeadamente na realização de manobra de ultrapassagem, ou se o embate se deveu a despiste ou descontrole causado por factores imputáveis a terceiros ou de força maior, estranhos ou não a acção humana.

Em suma, desconhecendo-se em absoluto as razões pelas quais o veículo do Autor invadiu a metade contrária da faixa de rodagem em que o mesmo seguia, ainda que tenha sido na sequência da realização de manobra de ultrapassagem (na verdade não consignada na factualidade provada), não é possível concluir que o embate em que consistiu o acidente de trabalho dos autos resultou, e muito menos com exclusividade, de negligência do sinistrado, e muito menos grosseira.

Como acima se sublinhou, e agora parafraseia com o sumário do já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 2011, “[a] prova dos factos integrantes da descaracterização, enquanto impeditivos do direito à reclamada reparação, constitui ónus do réu, em conformidade com a regra do n.º 2 do art. 342.º do Cód. Civil”, pelo que, na falta de demonstração de factualidade bastante para integrar o disposto na alínea b) do n.º 1, conjugada com o n.º 3, do art. 14.º em referência, só pode concluir-se pela improcedência do recurso.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Guimarães, 26 de Setembro de 2019

Alda Martins
Vera Sottomayor
Maria Leonor Barroso

Sumário (elaborado pela Relatora):

I. Tem-se entendido maioritariamente que a parte final da alínea a) do n.º 1 do art. 14.º da Lei dos Acidentes de Trabalho, numa interpretação literal, histórica e teleológica, conjugada ainda com o n.º 2, não visam os acidentes in itinere mas exclusivamente os ocorridos num contexto de prestação de trabalho.
II. Assim, a descaracterização dos acidentes in itinere ocorre por aplicação da alínea b) do n.º 1 da citada norma, conjugada com o seu n.º 3, com as devidas adaptações, ou seja, na hipótese de o acidente resultar exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, entendendo-se como tal o comportamento temerário em alto e relevante grau.
III. O escopo da responsabilidade civil por acidente de viação não se confunde com o escopo da responsabilidade por acidente de trabalho, pelo que os critérios para aferir da culpa num e noutro domínio não coincidem, designadamente no âmbito dos acidentes rodoviários.
IV. A prova dos factos integrantes da descaracterização do acidente, enquanto impeditivos do direito à reclamada reparação, constitui ónus do responsável, em conformidade com a regra do n.º 2 do art. 342.º do Código Civil.
V. Não é descaracterizável como de trabalho o acidente em que apenas se provou que o embate entre o veículo conduzido pelo sinistrado e o veículo que circulava no sentido oposto se deu na meia faixa de rodagem contrária ao sentido de marcha do primeiro, que tal local, atento este sentido de marcha do sinistrado, é precedido de um sinal vertical indicador da proibição de ultrapassar, sendo a via separada por uma linha contínua, e que o embate ocorreu sem que o veículo que seguia em sentido contrário ao do sinistrado tivesse a oportunidade de o evitar.

Alda Martins


1. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 128-129.
2. Disponível em www.dgsi.pt.
3. Disponível em www.dgsi.pt.
4. Neste sentido, Júlio Gomes, O Acidente de Trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, pp. 251-254. Contra, no que respeita à parte final da alínea a), Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2005, p. 833.
5. Disponíveis em www.dgsi.pt.
6. Cfr. Júlio Gomes, op. cit., pp. 255-260.
7. Disponível em www.dgsi.pt.