Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
465-I/1998.G1
Relator: PAULO DUARTE BARRETO
Descritores: SENTENÇA CONDENATÓRIA
TRANSACÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
PROCESSO DE REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ALIMENTOS A FILHOS MAIORES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Se, em processo de regulação das responsabilidades parentais, as partes quiseram (mediante transacção) fixar alimentos que entram pela maioridade, a que o tribunal deu força de sentença condenatória (homologatória da transacção), há muito transitada, há que respeitar o caso julgado.
II - Tendo o exequente uma sentença condenatória transitada em julgado a reconhecer-lhe o direito aos alimentos após a maioridade, não se vê como negar-lhe o direito a seguir, desde logo, a via executiva em detrimento de o compelir ao calvário de uma nova lide judicial.
III – A questão da verificação dos pressupostos do art.º 1880.º, do Código Civil, ou seja, se o exequente mantém ou não o direito aos alimentos em função da sua formação profissional, é para apreciar em sede de oposição à execução, com fundamento na al. e), do n.º 1, do art.º 814.º, do CPC, concretamente por ser ou não inexigível a obrigação exequenda.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2.ª) do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório
J…, exequente nos autos, veio recorrer do despacho que, por manifesta falta de título executivo, indeferiu liminarmente o requerimento executivo na parte que respeita a valores referentes ao período posterior a 12.10.2010.
Para tanto, formulou as seguintes conclusões:
“ I. A questão em causa resume-se a saber se a transacção de alimentos, celebrada e homologada no âmbito de uma acção de Alteração da Prestação de Alimentos, em que ficou expressamente acordado que a prestação alimentícia se mantinha para além da menoridade, constitui ou não título executivo com a maioridade do exequente.
II. O argumento com que se defende a extinção da obrigação de alimentos fixados no âmbito da regulação do poder paternal - e em consequência a força executória da sentença que fixe alimentos a menor - reside na invocação de que com a maioridade se extingue o poder paternal e com ele se extingue o integrante dever de prestar alimentos. Todavia, a justificação para o direito de alimentos fixado ao menor não reside tanto na sua menoridade ou na sua situação de incapacidade jurídica, mas antes na sua carência económica, e à partida na sua inexigibilidade de prover pelo seu próprio sustento (1879,º do CC), o que também se verifica no contexto do art, 1880.º do Cc.
III. Não se diga de resto que pode haver necessidade de prova adicional. Pois o Código Processo Civil admite os títulos de formação complexa. Prevendo-se, inclusive, a execução de obrigação condicional onde se tem de fazer toda a prova de verificação da condição, seja ela complexa ou não - cr. 804.º do CPC.
IV. Existem, no entanto, quatro consistentes argumentos no sentido inequívoco de que a obrigação alimentar fixada aos filhos menores é a mesma que a do art. 1880.º para os filhos estudantes maiores, e por isso o título formado na menoridade a esta situação se estende.
V. Em primeiro lugar, o art. 1880.º do CC utiliza a expressão "manter-se-á a obrigação", dando um sinal claro de que se a obrigação alimentícia foi fixada durante a menoridade mantém-se quando chega a maioridade. E se se mantém é porque não se exige uma nova fixação a pedido de quem dela beneficia (o filho) pela razão óbvia de que já se encontra fixada.
VI. Em segundo lugar, se a obrigação se mantém, a sua imposição judicial - e com força executiva - permanece. Pode, por isso, dizer-se que se presumem os respectivos pressupostos, cabendo ao obrigado promover a cessação, ilidindo essa presunção.
VII. Em terceiro lugar, as formas e normas processuais têm por princípio orientador a economia processual. Ora, havendo dúvida metodológica sobre qual a solução processual a adoptar, deverá escolher-se aquela que melhor, de forma mais célere, com menos custos e actos, leva à agilização do direito material. De resto, existe legitimidade activa por parte do filho e a obrigação a executar é indiscutivelmente uma obrigação legal.
VIII. Em quarto lugar, e no que é de todo essencial, a interpretação de que a obrigação fixada judicialmente, com o seu carácter executório, é a mesma e se mantém na maioridade é a que melhor de coaduna com as razões que estiveram na origem do próprio artigo 1880.º do Código Civil. A supressão pura e simples da obrigação de os pais concorrerem para o sustento e educação dos filhos quando estes atingem a maioridade, frustraria os melhores propósitos da lei, beneficiando o progenitor faltoso, com um custo intolerável para o filho que, na maior parte dos casos, perde de forma definitiva a possibilidade de receber total ou parcialmente uma prestação alimentícia a que tinha direito e que era essencial para o término da sua formação. Inadmissivelmente…
IX. Acresce que, sem prescindir, para quem veja na obrigação do art. 1880.º uma obrigação distinta da obrigação de alimentos do filho menor e por isso entenda que' na fixação de alimentos a menor não está prevista aquela outra obrigação, a concreta transacção que se executa previu expressamente que a obrigação do executado pagar à exequente uma prestação alimentar no montante de 140,00€, actualizável anualmente em conformidade com o índice de preços ao consumidor pelo Instituto Nacional de Estatística, mas nunca inferior a 5%, mantinha-se para além da menoridade.
X. Portanto, na transacção que serve de arrimo à presente execução, é iniludível ter sido vontade das partes em prolongar a obrigação da prestação alimentar para além da menoridade da exequente (note-se, a propósito que, o executado continuou a pagar as prestações alimentares ao exequente muito para além da sua menoridade ... ). Donde, era lícito às partes - sem que a tal se opusesse qualquer obstáculo jurídico ou outro - definir, desde logo, que as prestações alimentares se manteriam para além da menoridade do exequente. Tanto mais que, a obrigação alimentar pode ter por fonte um negócio jurídico - cr. art. 2014 do Código Civil”.
O executado Ministério Público veio responder, em contra alegações, embora sem conclusões, pugnando pela manutenção do decido.
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II – Fundamentação
Fundamentação de direito
O objeto de recurso afere-se do conteúdo das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente.
Isso significa que a sua apreciação deve centrar-se na única questão de direito nele sintetizada e que é a seguinte: a de saber se uma sentença que homologa uma transacção, no âmbito de uma alteração de regulação do exercício das responsabilidades parentais, que fixa uma pensão de alimentos que se estende à maioridade, pode constituir título executivo na parte relativa aos alimentos devidos já na maioridade?
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É a seguinte a decisão impugnada:
“ Devidamente compulsados os autos, mormente o apenso C, cuja sentença de alteração de regulação das responsabilidades parentais funda a presente execução, somos a proferir despacho liminar, nos termos dos artigos 809º e 812º do CPC (a que correspondem os atuais artigos 723° e 726°).
J… intentou a presente execução contra J…, um e outro com os demais sinais dos autos.
Funda a exequente a presente execução no que intitula de "auto de conciliação", por, em 20.10.2005, no âmbito do apenso processo de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais, ter sido estabelecida a obrigação de o executado "pagar ao seu filho, ora exequente, uma prestação alimentar mensal no montante de € 140,00, com início no mês de novembro de 2005, prestação essa a atualizar anualmente e "mantendo-se para lá da menoridade se verificados os pressupostos do artigo 1880.º do C. Civil."
Alegando "encontrar-se em formação académica" e "sem auferir quaisquer rendimentos", o exequente reclama o pagamento coercivo da quantia total que computa em € 5.793,92.
É título executivo da presente execução a sentença proferida no aludido apenso C que assim homologou o acordo de alteração do exercício das responsabilidades parentais dos então filhos menores do aqui executado.
Ora, a sentença homologatória que funda a presente execução foi proferida no âmbito do processo de alteração de regulação do exercício das responsabilidades parentais de menores, regulação de exercício assa que delimitou o objeto do processo - e da sentença que a ele pôs termo.
Apesar de os progenitores terem consignado que o não guardião permanecerá vinculado a tal prestação alimentícia "se verificados os pressupostos do artigo 1880° do C. Civil", facto é que a sentença que homologou o acordo circunscreveu-se ao objeto daquela lide: os termos da regulação do exercício das responsabilidades parentais na menoridade.
Com efeito, a obrigação alimentícia na maioridade está dependente não só de requisitos (que têm de ser verificados in casu, não se admitindo sentenças/condenações condicionais) como de forma processual própria (regulada pelo Decreto Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro).
Nesta conformidade, sendo o exequente nascida em 13.10.1992 - cfr. fls. 6 dos autos principais -, e tendo por isso cessado o poder paternal sobre o aqui exequente em 12.10.2010 e com ele a obrigação alimentícia imposta ao executado com base na menoridade daquele, a obrigação cujo cumprimento é reclamado por via da presente execução carece de título executivo (que sempre teria de ser uma sentença proferida no âmbito do competente processo de atribuição de alimentos a maiores, com verificação e comprovação dos respetivos requisitos, de que está condicionada - como aliás decorre da expressão ~ verificados os pressupostos do artigo 1880° do C Civil).
Pelo exposto, resultando manifesta a falta de título para que J… funde a presente execução contra o executado na parte em que reclama pagamentos devidos por pensões ou comparticipação em despesas na sua maioridade, nos termos do artigo 812°, n.º 3, do CPC, indefiro liminarmente o requerimento executivo, na parte que respeita a valores referentes ao período posterior a 12.10.2010.
Em conformidade, determino o prosseguimento da execução para cobrança apenas da quantia de € 1.530,57, valor para que se corrige a quantia exequenda.
Notifique”.
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A primeira questão a precisar é a de que o título executivo não é a transacção, mas a sentença que a homologa.
Sentença que, por ser condenatória, pode constituir título executivo – cfr. art.º 46.º, n.º 1, al. a), do anterior CPC (aplicável porque a execução foi interposta antes de 15.09.2013 - art.º 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
A sentença constitui título executivo depois do trânsito em julgado, salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo – art.º 47.º, n.º 1, do CPC.
No caso dos autos, a sentença há muito transitou.
Vejamos então qual a condenação que recaiu sobre o executado: "Pagar ao seu filho, ora exequente, uma prestação alimentar mensal no montante de € 140,00, com início no mês de novembro de 2005, prestação essa a atualizar anualmente e "mantendo-se para lá da menoridade se verificados os pressupostos do artigo 1880.º do C. Civil.”
É inquestionável que o executado foi condenado a pagar alimentos para além da maioridade do seu filho, desde que verificados os pressupostos do art.º 1880.º, do Código Civil.
A questão abordada na decisão a quo, salvo o devido respeito, não é relevante para o que aqui se discute.
O tribunal a quo foi para a discussão jurídica da possibilidade de, em processo de regulação das responsabilidades parentais, se fixar alimentos que entram pela maioridade. Questão, que divide a jurisprudência (veja-se, por exemplo, em sentido contrário, o ac. desta Relação de Guimarães, de 19.06.2012, processo n.º 599-D/1998.G1, relatado pela Sr.ª Desembargadora Ana Cristina Duarte).
Contudo, o cerne desta apelação está a montante.
Primeiro, temos uma transacção, legalmente definida como o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões – art.º 1248.º n.º 1, do Código Civil.
Sendo um contrato, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o respectivo conteúdo ou neles incluir as cláusulas que lhes aprouver, bem sabendo que o contrato deve ser cumprido nos seus estritos termos (cfr. art.ºs 405.º, n.º 1 e 406.º, n.º 1, ambos do Código Civil).
Os limites da lei impõem, no caso da transacção, que as partes não possam transigir sobre direitos que lhes não é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos, nestes se incluindo os que sejam contrários à lei ou à ordem pública ou ofensivos dos bons costumes (cfr. art.ºs 1249.º e 280.º, ainda do Código Civil). O que manifestamente não se verifica no caso em apreço.
E, depois, surge a sentença a homologar a transacção. O juiz do processo, ponderando as qualidades dos intervenientes, o conteúdo da transacção e o objecto do processo, deu força de sentença ao que as partes acordaram, condenando e absolvendo nos respectivos termos (art.º 300.º, n.º 3, do CPC).
Ora, o juiz homologou a transacção, certamente porque foi seu entendimento que a extensão dos alimentos à maioridade não extravasava o objecto do processo, o que, como já vimos, é defendido nos tribunais superiores.
Dito isto, ou seja, se as partes quiseram e o tribunal deu força de sentença condenatória, há muito transitada em julgado, não se vê como pôr agora tudo em causa. A não ser que a transacção e a sentença estivessem feridas de vício de conhecimento oficioso, como ser nulo o respectivo objecto por extravasar os limites da lei, o que, como dissemos, não é o caso.
Acresce outro fundamento de natureza, dir-se-á, sistémica. Resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, que procedeu à anterior reforma processual civil, que é geralmente reconhecida a imperiosa necessidade de proceder a uma reformulação substancial do processo executivo que nos rege, com vista a conferir-lhe a eficácia que a realização prática dos direitos já reconhecidos exige, sendo efectivamente numerosos os escolhos que obstam ou dificultam seriamente a que o titular de um direito, mesmo que judicialmente reconhecido, consiga, com brevidade e eficácia, realizá-lo coercivamente. Por conseguinte, face a este pensar do legislador e tendo o exequente uma sentença condenatória transitada em julgado a reconhecer-lhe o direito aos alimentos após a maioridade, não se vê como negar-lhe o direito de seguir, desde logo, a via executiva em detrimento de o compelir ao calvário de uma nova lide judicial.
Nem vale o argumento – utilizado na decisão a quo - da sentença condicional, porque, qualquer sentença a fixar os alimentos a filho maior será sempre condicional, no sentido que todos os anos o direito aos alimentos será reavaliado por quem paga, na medida em que cumpre verificar se continua a formação profissional.
Assim, ao contrário do que decidiu o tribunal a quo, inexiste fundamento para o indeferimento liminar do requerimento executivo na parte que respeita a valores referentes ao período posterior a 12.10.2010, porque o exequente tem título executivo.
Resta dizer que a questão da verificação dos pressupostos do art.º 1880.º, do Código Civil, ou seja, se o exequente mantém ou não o direito aos alimentos em função da sua formação profissional, é para apreciar em sede de oposição à execução, com fundamento na al. e), do n.º 1, do art.º 814.º, do CPC, concretamente por ser ou não inexigível a obrigação exequenda.
Por conseguinte, procedendo a apelação, há que substituir o despacho recorrido por outro que determine o prosseguimento da execução.
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III – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revoga-se o despacho recorrido e determina-se o prosseguimento da execução.
Custas a final.
Guimarães, 29 de Setembro de 2014
Paulo Barreto
Filipe Caroço
António Santos