Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
965/17.3PBBRG.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
EXPRESSÃO “MATO-TE”
NULIDADE DA SENTENÇA DO ART. 379º
N.º 1
AL. A)
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A impugnação da matéria de facto dirige-se a sindicar o juízo probatório feito pela primeira instância, expresso na decisão sobre os factos provados e não provados, cabendo ao tribunal da relação confrontar esse juízo com a sua própria convicção.

II - Daí que não possa abranger factos que, no entender do recorrente, tenham resultado da discussão da causa e sejam relevantes para a mesma, mas sobre os quais o tribunal a quo não se pronunciou, não os dando nem como provados nem como não provados.

III – O mecanismo processual adequado a alcançar tal desiderato é a invocação da nulidade da sentença, prevista no art. 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, que é de conhecimento oficioso.

IV - Ainda que a doutrina e a jurisprudência estejam de acordo em que uma das características essenciais do crime de ameaça reside em vaticinar-se um mal futuro, sobre a interpretação desta expressão é de aderir ao entendimento de que haverá ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante uma execução iminente, pelo que o mal anunciado terá a característica de mal futuro desde que não se trate já duma tentativa criminosa.

V - Sempre que alguém dirija a outrem uma expressão, verbal ou de outra natureza, de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa ação com os atos de execução correspondentes, permanecendo inativo em relação à execução do mal anunciado, todo o tempo que durar essa inação e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é futuro, em termos de interpretação da expressão em causa.

VI - Assim, integra o anúncio de um mal futuro a expressão "mato-te", por não encerrar uma qualquer ameaça de morte imediata, isto é, na iminência de acontecer, nem ser acompanhada de qualquer ato de execução do mal ameaçado integrante da tentativa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum com intervenção de juiz singular que, com o NUIPC 965/17.3PBBRG, corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Braga (Juiz 2), realizado o julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (transcrição[1]):

«Pelo exposto, julgo a ação penal parcialmente provada e procedente e, em consequência:

A)- Condeno o arguido I. F. como autor material e em concurso real de:
- Um crime de ameaça agravada, praticado no dia 23/06/2017, p. e p.p. artº 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
- Um crime de injúria, praticado no dia 23/06/2017, p. e p.p. artº 181º, nº 1 do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
- Em cúmulo jurídico, na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo a multa de €600,00 (seiscentos euros).
B)- Absolvo o arguido de um crime ameaça agravada, p. e p.p. artº 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a) do Código Penal, que lhe vem imputado, relativo ao dia 27/06/2017.
C)- Condeno o arguido nas custas do processo, com 3 (três) UC de taxa de justiça e encargos legais, sem prejuízo do apoio judiciário concedido – artº 513º, nº 1 do CPP e tabela III do RCP.
D)- Fixo a taxa de justiça pela constituição de assistente em 1 (uma) UC e 1 (uma) UC pela acusação particular, sem prejuízo do apoio judiciário concedido – artº 8º, nº 1 e tabela III do RCP.
E)- Julgo provado e parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido, condenando o arguido a pagar à demandante, a quantia de €900,00 (novecentos euros), acrescida de juros de mora, desde a data da sentença até integral pagamento, a título de indemnização por danos não patrimoniais; absolvendo o arguido do mais peticionado.
Isento de taxa de justiça cível – artº 4º, nº 1, al. n) do RCP.»

2. Não se conformando com essa condenação, o arguido recorreu da sentença, formulando no termo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

«I – Ao não considerar provada a circunstância de o arguido ser ter dirigido à assistente dizendo-lhe “…eu mato-vos…”, imediatamente antes da expressão “…apareceis mortas aqui dentro …”, esta última relevada e considerada provada, não obstante da primeira ainda assim ter sido depois acolhida como pronunciada para efeitos de motivação da decisão de facto e mais concretamente para atribuir credibilidade, seriedade e até mesmo isenção às declarações da assistente, existe contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, com violação da al. b), nº2, art.º410 do Código Processo Penal;
II – Ao não fixar tal facto que depois vem admitir como pronunciado na motivação daquela decisão, torna patente uma apreciação manifestamente incorreta, baseada em juízos ilógicos porquanto exclui dos factos assentes uma circunstância essencial, com violação da al. c), nº2, do art.º 410 do Código Processo Penal.
III – Ainda que se entenda inverificados os vícios consagrados nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.ºdo CPP, o texto da decisão, a prova concretamente aí elencada e aquela que especificadamente se discorreu supra, permitem concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas;
IV – A expressão demonstrada “…eu mato-vos, apareceis mortas dentro de casa…” pronunciada no presente do indicativo e num quadro de discussão e exaltação não preenche os elementos objetivos típicos do crime de ameaça designadamente por não integrar a ameaça com um mal futuro pelo que a douta sentença violou o artigo 153.º/1, 155.º,n.º 1 a) e 127.º, todos do Código Processo Penal.
V – O tribunal “a quo”, julgou provado e parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido, condenando o arguido a pagar à demandante, a quantia de €900,00 (novecentos euros), €600,00 euros relativos à ameaça e €300,00 euros relativos à injúria, pelo que indemonstrado que foi a prática pelo demandado de factos ilícitos consistentes na violação do direito à segurança e liberdade da demandante, concretamente por não subsistirem quaisquer dos crimes de ameaça que vinha acusado, impõe-se subsequentemente, a este nível, a supressão da parcela correspondente.

Termos em que deve o recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta decisão recorrida, substituindo-se por outra que:

a)- Absolva o arguido do crime de ameaça agravada em que foi condenado e, bem assim, da respetiva parcela do pedido cível fixado, com o consequente abatimento naquele pedido no montante de € 600,00 euros, mantendo-se o demais.»

3. Respondendo à motivação do recorrente, o Exmo. Procurador-Adjunto na primeira instância pronunciou-se pela improcedência do recurso, por entender que não se verifica o apontado vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão nem a existência de qualquer erro de julgamento da matéria de facto e que a expressão dada como provada contém o anúncio de um mal futuro, o qual, para efeitos do crime de ameaça, é aquele que se dirige não só ao futuro mais longínquo mas também ao imediato, conquanto não se confunda com atos de execução (tentativa) do crime ameaçado, o que no caso não sucedeu, e que seja suscetível de causar medo e inquietação na pessoa visada.
4. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, entendendo que a sentença é nula, por falta de análise crítica da prova, pelo que deve ser declarada a sua nulidade nos termos do disposto nos arts. 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, com o reenvio dos autos à 1ª instância para que aí se elabore nova sentença que supra aquela nulidade.
5. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta a esse parecer.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR

Dispondo o art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido", são, pois, as conclusões que constituem o limite do objeto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.

Assim, balizadas pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:

a) - A existência, na sentença recorrida, dos vícios decisórios de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova.
b) - A impugnação da matéria de facto por erro de julgamento.
c) - O não preenchimento dos elementos típicos do crime de ameaça.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

2.1 – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):

«1- No - de Junho de 2017, pelas 20h30, na Rua …, lote …º, Braga, residência comum, o arguido disse à assistente L. G., depois de discutir com a mesma, que esta, bem assim a filha de ambos, ia “aparecer morta dentro de casa”.
2- As supra referidas expressões foram proferidas em tom sério e convicto, causando à assistente L. G. medo e perturbação, temendo pela sua integridade física e pela sua vida.
3- Com a atuação descrita o arguido pretendeu transmitir a L. G. que estava na disposição de atentar contra a sua integridade física e vida em momento que escolhesse, com o intuito, concretizado, de a deixar com medo e perturbada.
4- No contexto de tempo e de lugar supra descrito, o arguido dirigiu à assistente as expressões “puta” e “vaca”, na presença do seu amigo e de sua filha menor.
5- Ao proferir as palavras referidos no ponto 4., o arguido pretendeu e conseguiu ofender e humilhar a assistente na sua honra, dignidade e consideração.
6- O Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, apesar de a sua capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação se encontrasse diminuída, por força da sua dependência alcoólica.
7- A assistente foi companheira do arguido, tendo uma filha menor em comum.
8- No dia 23 de Junho de 2017, quando a assistente chegou a casa vinda do trabalho na companhia de sua filha menor, o arguido encontrava-se acompanhado por um amigo e influenciado pela ingestão de bebidas alcoólicas.
9- Arguido e assistente encontram-se separados desde os factos apurados no ponto 1 dos factos provados, tendo a assistente abandonado, nesse próprio dia, a residência comum, acompanhada de sua filha.
10- No dia -/06/2017, pelas 12H30M, o arguido deslocou-se ao local de trabalho da assistente, em Braga, ficando esta com medo e perturbada.
11- Em consequência das condutas do arguido em apreço nos autos e supra descritas, a demandante receou permanecer dentro da sua própria casa, temendo que o arguido concretizasse o mal anunciado.
12- Sentiu-se também desassossegada, com medo de voltar a ser humilhada na frente de quem quer que fosse, designadamente no dia -/06/2017.
13- O que se repercutiu num estado de mal-estar físico e psicológico, desalento e exaustão.
14- Perdeu o apetite e mergulhou num estado de angústia e ansiedade.
15- A demandante é pessoa calma, séria e honrada.
16- Trabalha como empregada doméstica e vive com sua filha menor.
17- O arguido encontra-se desempregado, recebendo €180,00 mensais de RSI.
18- Vive num quarto arrendado, beneficia de apoio alimentar da Cruz Vermelha.
19- O arguido não possui antecedentes criminais.»

2.2 – Por seu lado, o tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos (transcrição):

«- No dia - de Junho de 2017, pelas 12h30, no local de trabalho de L. G., em Braga, o arguido disse para a mesma “Vou-te partir um braço, dou-te com uma na cabeça que te mato!”, pretendendo transmitir a L. G. que estava na disposição de atentar contra a sua vida em momento que escolhesse.»

2.3 – A Mm.ª Juíza motivou assim a decisão de facto (transcrição):

«O Tribunal baseou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência, à luz do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do Código de Processo Penal e na estrita observância do princípio da legalidade (artº 125º), do princípio da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo que vigora em direito penal, com acolhimento na Lei Fundamental (artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa), designadamente:

- Auto de denúncia (por violência doméstica) de fls 3-5, com declaração da ofendida de pretender procedimento criminal;
- Aditamento de fls 50 (20/07/2017);
- Assentos de nascimento de fls 63-64; 65-66; 67-68.
- Doc.s de fls 74 e 76 – Procº de Promoção e Proteção e Procº Administrativo de Regulação das Responsabilidades Parentais, quanto à filha menor.
- Informação clínica referente ao arguido – fls 85 e 91.
- Relatório de perícia médico-legal de fls 108-111, prova de natureza pericial que, por conter juízo técnico e científico, se encontra subtraída à livre apreciação do tribunal, nos termos do artº 163º, nº 1 do Código Penal, o que determinou o apuramento dos factos do ponto 6., em concretização, em termos mais restritos do que os imputados, da factualidade que, do ponto de vista subjetivo, vem ao arguido imputada na douta acusação.
- Certificado de registo criminal de fls 190.
- Declarações prestadas pelo arguido, apenas e tão-só, quanto à sua situação socioeconómica, que não foram contrariadas por qualquer meio de prova e se revelam plausíveis.
- No mais, o arguido não prestou declarações em audiência, no uso do direito fundamental ao silêncio, que a lei processual penal lhe confere (artºs 61º, nº 1, al. d) e 343º, nº 1 do Código de Processo Penal), decorrente do princípio da presunção de inocência, constitucionalmente vertido no artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, o que não o pode desfavorecer, mas também não o poderá beneficiar, tal como se refere na Decisão Sumária do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/05/2019, processo nº 520/16.5PAMTJ.L1-9, “O princípio de que o exercício do direito ao silêncio não pode beneficiar o arguido está consagrado na nossa jurisprudência. O arguido não pode esperar que o seu silêncio reforce a presunção de inocência, anulando o valor das outras provas demonstrativas de culpabilidade. Pode manter-se em silêncio sem que tal atitude o desfavoreça, mas não pode pretender que daí surja um agravamento do ónus da prova imposto ao Ministério Público ou um especial direito à absolvição com base no princípio in dubio pro reo”.
- A assistente L. G., num depoimento sério, isento e credível, aludiu de forma espontânea às expressões que o arguido lhe dirigiu, quer no dia 23/06, quer no dia em que se dirigiu ao seu local de trabalho, mais aludindo ao contexto dos factos na duas ocasiões. Com efeito, muito embora, a assistente concretize que as expressões ameaçadoras, do dia 23/06, foram proferidas no plural (para si declarante e para sua filha) – “eu mato-vos”, “apareceis mortas aqui dentro”, ou seja em casa, certo é que tais expressões não deixam de visar inequivocamente a aqui assistente; assim como não deixam de encerrar uma inequívoca ameaça de morte, que se projetava para um futuro, mais ou menos próximo, designadamente para a noite dos factos, estando afastada qualquer hipotética ameaça de morte “imediata”, ou tentativa de execução do mal anunciado. Também a seriedade das expressões proferidas e o temor causado, se mostra justificado, quer pela forma séria e agressiva como foram proferidas; quer pelo contexto de alcoolismo que o arguido apresenta; quer por todo um passado vivenciado entre as partes; justificando mesmo que a assistente e sua filha, pela insegurança que tais palavras lhes causaram, tenham abandonado a residência nessa mesma noite, ficando albergadas em casa de pessoa amiga.
- Já quanto às palavras proferidas pelo arguido no dia 27/06, dia em que se deslocou ao local de trabalho da ofendida, a própria, por um lado, não confirmou com assertividade, as expressões descritas na acusação e a forma como espontaneamente descreveu os factos – o arguido “amarrou-lhe um braço e disse que lhe dava um murro na cabeça” - sendo embora suscetível de causar medo (medo de ser agredida fisicamente na forma descrita), configura o anúncio de um mal imediato e quase em execução (tentativa de agressão física) e não o anúncio de um mal futuro, sendo pois tal factualidade atípica do ponto de vista jurídico penal, desde logo face à não punibilidade da tentativa de agressão física simples.
- A testemunha D. M., amigo do arguido, que muitas vezes foi para casa do arguido beber e até pernoitar, embora não sabendo precisar datas, referiu que, efetivamente o arguido várias vezes ameaçava de morte a companheira (“até com facas de matar porcos”); assim como a insultava por várias vezes, sabendo que a assistente tinha muito medo do arguido.
- A testemunha M. M., amiga da assistente, não assistiu aos factos, mas acolheu a assistente e a filha, nessa noite em sua casa e durante cerca de 15 dias, até a assistente arranjar casa, vindo ambas aterrorizadas e a filha a chorar (afirmando que o arguido lhes tinha dito que nessa noite ficavam as duas mortas/ides ficar as duas mortas aqui). Mais aludiu ao estado emocional da assistente, no período após os factos.
- A testemunha C. C., amigo do arguido, referiu que esteve em casa deste por altura do S. João, quando a ofendida já tinha saído de casa, nunca tendo visto o arguido a ofender a companheira, não tendo pois o declarante presenciado os factos.
- Ora, do correlacionamento de toda a prova produzida, não resultaram dúvidas quanto aos factos acima dados como provados e não provados, pelas razões que se forma expondo, dado que a versão da assistente, se revelou séria, isenta e credível e foi corroborada quer pelo depoimento da testemunha M. M., quer pelo depoimento da testemunha D. M., assumindo os factos plena consistência avaliados à luz das regras da experiência comum.
- Os factos que se deram como não provados, fundam-se também no depoimento isento e espontâneo da assistente, avaliado na forma já referida.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 - Dos vícios de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova

3.1.1 - O recorrente principia por assacar à sentença recorrida os vícios de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova (conclusões I e II), previstos, respetivamente, nas als. b) e c) do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem menção quanto à origem.

Consagrando, a par da impugnação (ampla) a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3 e 4, uma segunda e distinta forma de impugnar a matéria de facto (através da chamada revista alargada), dispõe o citado art. 410º, n.º 2, que "Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova."

Como consta expressamente desse texto legal, qualquer dos vícios aí mencionados, que são de conhecimento oficioso[2], tem que emergir da própria decisão recorrida, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[3]. Tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença, quanto a eles, esta terá que ser autossuficiente, não se podendo recorrer à prova documentada.
No âmbito da revista alargada, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando-se a detetar os vícios que a sentença evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426º, n.º 1).

3.1.2 – A respeito do vício da al. b) do n.º 2 do art. 410º, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2015[4], que «o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
Nas palavras de Simas Santos e Leal-Henriques[5], «por contradição entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade».
Tal vício consiste, pois, numa incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre a fundamentação ou entre esta e a decisão.
A contradição insanável da fundamentação respeita não só à contradição na própria matéria de facto (entre os factos provados ou entre estes e os não provados), mas também à contradição na fundamentação probatória da matéria factual. Assim, há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação probatória da matéria de facto[6].
Assim, a contradição da fundamentação pode consistir basicamente numa incompatibilidade entre a matéria de facto provada (dão-se, por exemplo, como provados dois ou mais factos que estão, entre si, em oposição, sendo, por isso, logicamente incompatíveis, excluindo-se mutuamente), entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada (dá-se, por exemplo, como provado e como não provado o mesmo facto) ou numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto (por exemplo, dá-se como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correta). Tal pode acontecer quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que a fundamentação justifica precisamente decisão oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se considere que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a colisão entre os fundamentos invocados[7].
Por sua vez, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, modalidade em que o recorrente enquadra o vício por si alegado, ocorre quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova indicados na fundamentação probatória como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão[8]. É o que sucede, por exemplo, se a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final e no dispositivo consta decisão de sentido inverso.

Como refere Pereira Madeira[9], «a contradição (…) pode emergir entre (…) a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância de a sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal
Como resulta da letra da al. b) do citado preceito legal, o vício aí previsto só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é suscetível de o integrar, mas apenas a que incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, ou seja, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.

No caso concreto, o recorrente localiza a contradição que invoca, qualificando-a de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, na circunstância de a Mm.ª Juíza, na motivação da decisão de facto, ter admitido e relevado para efeitos de atribuir credibilidade às declarações da assistente, que o arguido, previamente à expressão “apareceis mortas aqui dentro”, também disse “eu mato-vos”, tendo, todavia, na factualidade provada, omitido e desconsiderado este último segmento, limitando-se a dar como provado (no ponto 1º) que o arguido disse à assistente que ia “aparecer morta dentro de casa”. Mais alega o recorrente que tal omissão é relevante para efeitos de preenchimento dos elementos típicos do crime de ameaça, na medida em que na expressão integral “eu mato-vos, apareceis mortas aqui dentro” inexiste um anúncio de um mal com projeção no futuro mais ou menos próximo, mas sim o anúncio de um mal presente.

Sucede que, no confronto entre o referido facto dado como provado e a motivação da decisão de facto, não se vislumbram posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou que não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, o que, todavia, a existir, se traduziria numa contradição da fundamentação e não, como a cataloga o recorrente, entre a fundamentação e a decisão.

Com efeito, o facto dado como provado no ponto 1º, de o arguido ter dito à assistente que ia “aparecer morta dentro de casa”, é inteiramente coerente com o teor do segmento da motivação da decisão de facto em que a Mm.ª Juíza fundamentou essa decisão, ao referir que «(…) muito embora a assistente concretize que as expressões ameaçadoras, do dia 23/6, foram proferidas no plural (para si declarante e para sua filha) – “eu mato-vos”, “apareceis mortas aqui dentro”, ou seja em casa, certo é que tais expressões não deixam de visar inequivocamente a aqui assistente;».

Antes de mais, refira-se, respeitosamente, que não acompanhamos o entendimento expresso pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, no sentido de a sentença recorrida padecer de nulidade por falta de exame crítico da prova, porquanto, ao contrário do que aí refere a dado passo, o tribunal não concluiu que “(…) certo é que tais expressões não deixam de visar unicamente a aqui assistente (…)”, mas sim que não deixam inequivocamente de a visar, como, aliás, já é referido mais adiante no referido parecer (sublinhados nossos).

Daí que não se possa dizer que «(…) ficamos, assim, sem saber, porque considera o tribunal que as expressões ditas pelo arguido segundo as declarações isentas e credíveis da assistente, apenas a visavam a ela, ao contrário, pois, do por ela declarado de forma espontânea, isenta e credível.».

Acrescente-se que a redação, em discurso indireto, da expressão proferida pelo arguido (“que a assistente ia aparecer morta dentro de casa”), se terá seguramente ficado a dever à necessidade sentida pela Mm.ª Juíza de adaptar para o singular, como constava da acusação, o que foi dito por aquele no plural (“apareceis mortas aqui dentro”), sem que isso belisque minimamente que a assistente declarou que o arguido utilizou o plural, por se estar a referir a si e à filha de ambos, igualmente presente. E terá sido pelo facto de na acusação apenas ser descrita a ameaça dirigida à assistente que a Mm.ª Juíza optou pela redação da expressão no singular.
Dito isto.
O teor do facto dado como provado, embora redigido em discurso indireto, não só coincide com o teor da segunda parte da expressão proferida pelo arguido (“apareceis mortas aqui dentro”), como é coerente com a primeira parte da mesma (“eu mato-vos”), segmento este que não terá sido incluída nos factos provados por não estar alegado da acusação.
Na verdade, nenhuma incompatibilidade existe entre o facto, mencionado na motivação, de o arguido também ter proferido a expressão “eu mato-vos”, dirigida à assistente e à filha de ambos, com o facto, dado como provado, de ter dito à primeira que ia “aparecer morta dentro de casa”, antes versando ambos, em sentido convergente, sobre um mesmo acontecimento (morte da assistente).
Aquilo de que o recorrente discorda é de também aquele primeiro facto não ter sido dado como provado, o que se prende com a impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412º, n.ºs 3 e 4, ou com a eventual nulidade da sentença, prevista no art. 379º, n.º 1, al. a), questão que será abordada adiante, e não com o vício de contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão.
Com efeito, os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova. No âmbito do controlo ínsito na identificação desses vícios, o que releva é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
É, pois, manifesta a inexistência da contradição em apreço.

3.1.3 - No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, verifica-se tal vício quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, bem como quando se violam as regras sobre prova vinculada ou as leges artis.
Existe, pois, tal vício quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente[10].
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão e que consiste basicamente em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou em dar-se como provado o que não pode ter acontecido[11]. É um erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Em face do que fica dito, é manifesto que a alegação do recorrente não se adequa à invocação de erro notório na apreciação da prova, antes revelando uma incorreta compreensão do significado deste vício.
Com efeito, o recorrente limita-se a alegar, repisando o mencionado a propósito do vício de contradição insanável, que, ao não dar como provado que o arguido também disse à assistente “eu mato-vos”, conforme admitido na motivação da decisão de facto, a Mm.ª Juíza incorreu numa apreciação manifestamente incorreta, baseada em juízos ilógicos e contraditórios, porquanto excluiu dos factos assentes uma circunstância essencial, por, em seu entender, tal segmento da expressão proferida pelo arguido traduzir o anúncio de um mal presente e não futuro, não preenchendo, por isso, o pertinente elemento objetivo do crime de ameaça.
Todavia, como já referimos, essa questão tem a ver com a impugnação ampla da matéria de facto nos termos do art. 412º, n.ºs 3 e 4, ou com a eventual nulidade da sentença, prevista no art. 379º, n.º 1, al. a), e não com qualquer vício decisório, mormente o erro notório na apreciação da prova, na medida em que a referida omissão é insuscetível de se traduzir, em face do texto da decisão sob escrutínio, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, num qualquer equívoco ostensivo, resultante de factos do conhecimento geral ou do funcionamento da lógica, o que afasta a existência de um vício de raciocínio na apreciação da prova, que se evidencie aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão.

Pelo exposto, improcede a questão relativa aos vícios decisórios invocados pelo recorrente.

3.2 – Da impugnação da matéria de facto por erro de julgamento

Num segundo plano da sua impugnação da matéria de facto, o recorrente invoca a existência de erro de julgamento, traduzido em o tribunal a quo, no ponto 1º da factualidade provada, apenas ter dado como provado que, no circunstancialismo em apreço, «(…) o arguido disse à assistente L. G., depois de discutir com a mesma, que esta, bem assim a filha de ambos, ia “aparecer morta dentro de casa”», omitindo, assim que esta expressão foi imediatamente precedida por outra – “eu mato-vos aqui dentro”, conforme resulta das declarações da própria assistente, nos excertos da respetiva gravação que localiza e transcreve no corpo da motivação, pretendendo, pois, que seja dada como provada a expressão completa por ele dita.

Vejamos se merece acolhimento esta pretensão.

3.2.1 – Nos termos do art. 428º, os tribunais da relação conhecem não só de direito mas também de facto, assim se concretizando a garantia do duplo grau de jurisdição nesta matéria, sendo que uma das vertentes admitida é a da impugnação ampla, visando o chamado erro de julgamento.
Este erro resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Tal erro pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
De acordo com o disposto no n.º 2 do art. 374º, a fundamentação da sentença consta, nomeadamente, da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
Por seu lado, em face do disposto no art. 368º, n.º 2, a enumeração dos factos provados e não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua aprecia­ção e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização, e ainda sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa.
Dispõe expressamente o n.º 4 do art. 339º que a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.
A enumeração dos factos provados e não provados revela aqueles que foram efetivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo de prova.

No caso vertente, o segmento factual impugnado pelo recorrente (“eu mato-vos” ou “que a matava”, alterando a redação para discurso indireto, como sucedeu com a restante parte da expressão dada como provada), não consta do elenco dos factos provados nem dos não provados.
Assim, a pretensão do recorrente não é suscetível de ser alcançada através da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sob pena de se estar a permitir a realização de um novo julgamento pelo tribunal de recurso, face às provas produzidas perante o tribunal a quo.
Não é esse o fundamento do recurso sobre a matéria de facto, o qual, conforme jurisprudência constante[12], não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.
A impugnação da matéria de facto dirige-se, pois, à sindicância do juízo probatório feito pela primeira instância, expresso na decisão sobre os factos provados e não provados, cabendo ao tribunal da relação confrontar esse juízo com a sua própria convicção.
Daí que não possa abranger factos que, no entender do recorrente, tenham resultado da discussão da causa e sejam relevantes para a mesma, mas sobre os quais o tribunal a quo não se pronunciou, não os dando como provados nem como não provados.

Como se entendeu no acórdão da Relação de Évora de 22-11-2011[13]:

«Embora constituam objeto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis e ainda os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil (cf. art. 124.º do CPP) e em julgamento, sem embargo do regime aplicável à alteração dos factos (art. 358.º e 359.º), a discussão da causa tenha por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os art. 368.º e 369.º do CPP, a impugnação da matéria de facto não pode extravasar os limites vertidos na sentença ou acórdão e que, em obediência ao disposto no n.º 2 do art. 374.º do mesmo diploma, hão de ser enumerados na sentença, sob pena de nulidade.

Se a sentença não enumera factos, que eventualmente resultaram da discussão da causa e tinham relevância para a decisão, essa omissão não pode ser suprida por uma reapreciação da prova pelo tribunal de recurso. Não foi essa a solução processual querida pelo legislador. A motivação do recurso não é o meio adequado para introduzir factos novos no objeto da ação penal. (…)

Assim, não se pode dizer que o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento da matéria de facto que o recorrente visa aditar, pois o tribunal só pode incorrer em erro de julgamento nesta matéria, quando julga mal factos concretos invocados por um dos sujeitos processuais e sobre os quais houve deliberação e votação, nos termos do art. 368.º do CPP.

A impugnação da matéria de facto pressupõe, pois, que os factos submetidos à apreciação do tribunal superior tenham sido apreciados na 1.ª instância e, como tal, tenham sido enumerados na decisão de que se recorre, seja nos factos provados, seja nos não provados.»

Este entendimento foi sancionado no recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, em cujo acórdão, de 21-03-2012[14], foi aduzido o seguinte:

«Quando, então, impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto tal impugnação faz-se por referência à matéria de facto efetivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspetiva interessada, não equidistante, com o devido respeito, em relação àquilo que o tribunal tem para si como sendo a boa solução de facto, entende que devia ser provada.

Por isso, segundo os termos da lei, a impugnação é restrita à “decisão proferida“, e realmente prolatada, e não a qualquer realidade virtual, de sobreposição da sua convicção probatória, pessoal, intimista e subjetiva, à convicção desinteressada formada pelo tribunal.»

Assim, também o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que a impugnação ampla da matéria de facto se restringe à matéria vertida na fundamentação factual da sentença, nos termos previstos no art. 374º, n.º 2, só podendo incidir sobre os factos provados ou não provados.

Tendo essa interpretação normativa sido submetida ao crivo do Tribunal Constitucional, com vista a aferir se a mesma punha em causa a garantia do direito de defesa, designadamente do direito ao recurso de uma sentença condenatória, foi proferido o acórdão n.º 312/2012[15], em que se decidiu «a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 410.º, n.º 1, 412.º, n.º 3, e 428.º, conjugados com os artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objeto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objeto da prova produzida na 1ª instância, que o Recorrente-arguido sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida; (…)».
Como se refere neste último aresto, «Isto não quer dizer que a falta de consideração pela sentença recorrida de factos abordados na discussão da causa, não fazendo recair sobre eles um juízo de prova, não deva ser passível de reação pelo arguido, de forma a assegurar na plenitude os seus direitos de defesa (vide sobre a importância do tribunal incluir na lista dos factos provados e não provados os factos relevantes para a decisão da causa, mesmo que apenas tenham sido referidos em julgamento, SÉRGIO POÇAS, em “Da Sentença Penal – fundamentação de facto”, na Revista Julgar, Setembro-Dezembro 2007, págs. 24-25).
Mas o mecanismo processual que possibilite essa reação não passa necessa­riamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de recurso que ajuíze, em primeira mão, se os factos omitidos, face à prova produzida, resultaram demonstrados, sendo suficiente que o arguido tenha a possibilidade de invocar a nulidade resultante da respetiva omissão de pronúncia, cabendo ao tribunal de recurso verificá-la e determinar o seu suprimento pelo tribunal de 1.ª instância.
Esse meio de reação encontra-se, aliás, previsto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal, que no n.º 1, a), sanciona com a nulidade a sentença que não conte­nha as menções referidas no n.º 2, do artigo 374.º, onde consta a enumeração dos factos provados e não provados, o que inclui aqueles que resultaram da discussão da causa (artigo 368.º, n.º 2), devendo essa nulidade ser arguida ou conhecida em recurso, sem prejuízo do tribunal recorrido a poder suprir (n.º 2, do artigo 379.º)».

Pelo exposto, conclui-se que a impugnação da matéria de facto apenas poderá incidir sobre os factos (provados e não provados) que constam da sentença recorrida e não sobre quaisquer outros.

3.2.2 - No caso dos autos, tendo o recorrente lançado mão da impugnação ampla da matéria de facto, improcede a sua pretensão de, por essa via, ser aditado à matéria provada um facto resultante da discussão da causa, em seu entender relevante para a decisão da mesma, mas sobre o qual o tribunal a quo não se pronunciou, não emitindo um juízo de prova.
Como vimos, o mecanismo processual adequado a alcançar tal desiderato seria a invocação da nulidade da sentença, prevista no art. 379º, n.º 1, al. a), traduzida na omissão das menções referidas no n.º 2 do art. 374º, ou seja, in casu, a inclusão de determinado facto como provado com relevo para a decisão da causa e resultante da discussão desta.
Conquanto o recorrente não tenha invocado tal nulidade, de acordo com a jurisprudência largamente maioritária[16], que seguimos, as nulidades da sentença previstas no art. 379º, n.º 1, são de conhecimento oficioso.
Com efeito, com a alteração do Código de Processo Penal operada em 1998, esse artigo foi reformulado, aditando-se a al. c) do n.º 1, bem como o n.º 2, com o seguinte teor: «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414º».
A expressão inovadora “ou conhecidas em recurso” deve ser entendida no sentido do conhecimento oficioso dessas nulidades, justificando-se o afastamento do regime do processo civil que, diversamente do penal, é enformado pelo princípio da livre disponibilidade das partes.
Esse n.º 2 do art. 379º veio consagrar para as nulidades da sentença um regime específico, sem necessidade de reporte ao art. 119º, que estabelece o elenco das nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento.
Compreende-se essa diferenciação de regimes, porquanto as nulidades da sentença distinguem-se claramente das nulidades do processo, uma vez que estas “são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder - embora não de modo expresso - uma invalidade mais ou menos extensa de atos processuais[17].
Em processo penal, as nulidades da sentença são as que constam do citado art. 379º, n.º 1, ao passo que as nulidades processuais se traduzem na violação ou inobservância das disposições da lei do processo (cf. art. 118º).
Prescrevendo a lei em relação a alguns desses atos processuais o regime das nulidades insanáveis, mal se compreenderia que, em caso de incumprimento do estabelecido para o ato decisório por excelência, que é a sentença, o conhecimento da respetiva nulidade não fosse oficioso.
Acresce que também não se compreenderia a diferença de tratamento entre os vícios da decisão previstos no art. 410º, n.º 2, que são de conhecimento oficioso[18], e as nulidades da sentença previstas no art. 379º, n.º 1, sendo que a justificação para a defesa da posição de cognição oficiosa daqueles se aplica também a estas.
Com efeito, o cerne da fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, que consagrou o entendimento do conhecimento oficioso dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2, é o de o ordenamento jurídico não aceitar, em princípio, que os tribunais criminais se contentem com uma verdade formal, dissociada da realidade, e tenham de, como é imperativo legal e de consciência, procurar, na medida possível, averiguar a verdade material.
Cumpre, pois, averiguar se é de concluir no sentido de a sentença recorrida padecer da referida nulidade, com fundamento na omissão de menção, na factualidade provada, do facto invocado pelo recorrente, por o mesmo dever ser considerado relevante para a decisão da causa, o que nos remete para a análise da terceira questão supra elencada.

3.3 - Do não preenchimento dos elementos típicos do crime de ameaça

Para demonstrar a relevância do mencionado facto que pretende ver aditado à factualidade provada, o recorrente alega que a expressão completa “eu mato-vos, apareceis mortas dentro de casa”, pronunciada no presente do indicativo e num quadro de discussão e exaltação, não permite ter como preenchidos os elementos objetivos típicos do crime de ameaça, designadamente por não integrar, por força da sua primeira parte, a ameaça com um mal futuro, inexistindo, assim, o anúncio de um mal com projeção no futuro mais ou menos próximo.

Recorde-se que a Mm.ª Juíza deu como provado, em discurso indireto, que o arguido disse à assistente que esta ia “aparecer morta dentro de casa”, pretendendo o recorrente que também seja dado como provado que, imediatamente antes daquela expressão, o arguido também disse “eu mato-vos” (referindo-se à assistente e à filha de ambos).

3.3.1 - O art. 153º, n.º 1, do Código Penal pune “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.”

São, pois, elementos constitutivos deste tipo legal de crime:

a) - o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitua crime;
b) - que esse anúncio seja feito de forma adequada a provocar receio, medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado;
c) - e que o agente tenha atuado com dolo genérico, isto é, consciência e vontade de praticar o facto, incluindo a consciência da adequação da ameaça a provocar o medo ou intranquilidade.

Do ponto de vista da conduta descrita e no sentido que interessa ao preenchimento do tipo legal, a ação ou ato de ameaçar traduz-se em prometer ou prenunciar um mal futuro que constitua crime, ou seja, em anunciar, de modo explícito ou implícito, a intenção de causar um facto maléfico injusto e grave, consistente em danos físicos, económicos ou morais, necessariamente futuros, independentemente do concreto prazo eventualmente assinalado para a concretização da ameaça.
Não se exige, porém, que a ameaça provoque medo ou inquietação. Basta que seja adequada a provocar um estado de temor ou medo capaz de limitar ou constranger, de forma reputada relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da pessoa visada.
Para o preenchimento do tipo objetivo do crime exige-se que a ameaça dirigida contra alguém contenha em si uma aptidão mobilizadora adequada a provocar medo ou inquietação, ou seja: a) - que corresponda a um mal, seja de natureza pessoal, seja de natureza patrimonial; b) - que o mal objeto da ameaça seja futuro, não podendo ser um mal atual ou iminente, porque neste caso estar-se-á perante uma tentativa de execução do respetivo mal; c) - e que a sua ocorrência dependa ou apareça como dependente da vontade do agente, devendo o juízo sobre essa dependência ser feito segundo um critério objetivo-individual, isto é, segundo a perspetiva do homem comum, da pessoa adulta e normal, não deixando de se ter em conta como fator corretivo as características individuais da pessoa ameaçada.
Ainda que a doutrina e a jurisprudência estejam de acordo em que uma das características essenciais do crime de ameaça reside em vaticinar-se um mal futuro, muitos equívocos se têm gerado face ao referido por Taipa de Carvalho no Comentário Conimbricense do Código Penal[19], segundo o qual, “o mal ameaçado tem de ser futuro”, logo acrescentando que “isto significa apenas que o mal objeto da ameaça não pode ser iminente, pois neste caso estar-se-á diante duma tentativa de execução do respetivo mal”[20].
Sendo inquestionável que ameaçar é anunciar a alguém um mal, necessariamente futuro, importa apurar o que se deve entender por mal futuro.
Sobre a interpretação dessa expressão, entendemos ser de aderir ao entendimento de que haverá ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante uma execução iminente. Por outras palavras, o mal anunciado terá a característica de mal futuro desde que não se trate já duma tentativa criminosa, nos termos em que o art. 22º do Código Penal a caracteriza.
Assim, será mal futuro tudo o que não seja execução iminente ou em curso (caso de uso de violência). Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal que o seu autor diz que será causado, não acompanhada de atos correspondentes à sua simultânea ou imediata concretização. Ou seja, sempre que alguém dirija a outrem uma expressão, verbal ou de outra natureza, de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa ação com os atos de execução correspondentes, permanecendo inativo em relação à execução do mal anunciado, todo o tempo que durar essa inação e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é futuro, em termos de interpretação da expressão em causa[21].
Que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o este seja curto ou longo é irrelevante[22].
Nessa medida, um “mal iminente” não deixa de ser um “mal futuro”, o que significa que o deslindar do problema não pode passar por questões de rigor terminológico ou fórmulas verbais, relacionadas com a semântica ou com os tempos verbais utilizados[23].
Na dicotomia entre “mal futuro” e “mal iminente”, o que está essencialmente em causa é o destrinçar se uma determinada conduta preenche o crime de ameaça, ou antes uma tentativa de crime do “mal ameaçado”.
O crime de ameaça reside na ameaça em si, ganhando autonomia ao “mal ameaçado”, mal este que, como resulta do preceito legal, tem de consistir na “prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”.
Ora, constituindo ele próprio, o “mal ameaçado”, um crime, há que equacionar as situações em que a ameaça perde relevância, como que ficando subsumida pelo início de concretização do mal ameaçado.
Será o caso em que alguém, em disputa com outrem, refere “eu mato-te” e concomitantemente, ou logo de seguida, dispara uma arma de fogo que, não obstante, não logrou atingir a pessoa. Neste caso (naturalmente, dependendo das demais circunstâncias), o que estaria em causa seria uma tentativa de homicídio e não um concurso entre crime de ameaça e crime de homicídio na forma tentada. Atento o imediatismo da conduta do agente, não se lograria o lapso de tempo suficiente para provocar na vítima o “medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, que constitui outro dos pressupostos do crime de ameaça.

Concorda-se, pois, com a afirmação de que o referido trecho do texto de Taipa de Carvalho tem de ser cuidadosamente ponderado, não podendo as suas palavras ser aplicadas acriticamente, sob pena de intoleráveis atropelos à legalidade democrática, criando áreas de impunidade criminal onde o legislador as não autoriza, para além de se atraiçoar o pensamento daquele autor.

Com efeito, um mal futuro contrapõe-se a um mal passado. Conforme se conclui da consulta a vários dicionários da língua portuguesa, o futuro é o tempo que há de vir, que se segue ao presente, que há de ou que está para ser, acontecer ou suceder, isto é, aquilo que vai ser ou acontecer num tempo depois do presente. E, o mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.

É claro que sendo o mal iminente, poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal, já que, segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.

Mas daí não se segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça. Quando alguém afirma “vou-te matar”, poderemos estar perante uma tentativa de homicídio ou uma tentativa de coação, que consomem naturalmente a ameaça, ou perante um crime de ameaça. Tudo depende da intenção do agente. É que, para haver tentativa não basta a prática de atos de execução, é necessário que esses atos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º 1, do Código Penal).

Aliás, algumas linhas à frente do excerto acima citado e que tantas incompreensões tem gerado, o próprio autor esclareceu que «Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cf. art. 22º-2-c)».

Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um ato de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaça, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da suscetibilidade de provocação de medo ou intranquilidade.

No sentido de integrarem o crime de ameaça expressões com algum imediatismo, se pronunciaram, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 17-06-2004[24], versando sobre uma situação em que o agente, no calor de uma discussão, de natureza familiar, disse para a vítima em tom sério “mato-te”, e da Relação de Coimbra de 10-07-2014[25], em que a conduta do agente consistiu em dizer à vítima, em tom de voz sério, alto e ameaçador, “anda cá filho da puta … anda cá para fora …mato-te … mordo-te as orelhas todas”.
Neste último acórdão entendeu-se que a expressão “mato-te”, pese embora usada no presente do indicativo, não deixa também de ter uma projeção de futuro, em linguagem corrente. Na verdade, comporta um anúncio de um mal futuro, na medida em que não indica o momento exato da ação, podendo ser substituída ou ser sinónimo de “hei de matar-te”.

3.3.2 – O que se vem de expor permite concluir que, ao contrário do defendido pelo recorrente, a expressão por ele proferida “eu mato-vos”, que o mesmo pretende ver acrescentada ao facto, dado como provado, de ter dito à assistente que esta ia “aparecer morta dentro de casa”, não é apta a afastar o preenchimento do elemento típico do crime traduzido na adequação da ameaça a causar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de movimentação da visada, concretamente por não se tratar do anúncio de um mal futuro, mas antes e só de um mal presente e imediato. Isto porque, como vimos, no contexto em que foi proferida, a expressão “mato-te” não encerra uma qualquer ameaça de morte imediata, ou seja, na iminência de acontecer, nem foi acompanhada de qualquer ato de execução do mal ameaçado integrante da tentativa.
Daí que, não obstante tenha resultado da discussão da causa, por ter sido confirmado pela própria assistente nas declarações prestadas em audiência, conforme excertos especificados pelo recorrente, o certo é que o facto em apreço não assume relevância para a discussão da causa, por não ser apto a afastar a ameaça com um mal futuro contida na expressão dada como provada.
Conclui-se, assim, que a não inclusão desse facto no rol da matéria provada não integra a referida nulidade da sentença recorrida.
Donde decorre a improcedência da questão relativa ao não preenchimento dos elementos objetivos típicos do crime de ameaça, uma vez que o recorrente a faz repousar na referida inaptidão das palavras em apreço para excluir a ameaça com um mal futuro, nos termos em que este deve ser entendido, o que, como vimos, não sucede.
Consequentemente, mantêm-se os pressupostos postos em causa pelo recorrente, relativos à sua condenação pelo crime de ameaça e à correspondente responsabilização civil.
Refira-se, outrossim, que as palavras dirigidas pelo arguido à assistente e dadas como provada, ou seja, que esta ia “aparecer morta dentro de casa”, integram inequivocamente o anúncio explícito de um mal, de natureza pessoal, que constitui crime, porquanto no contexto conflituoso e nos termos em que foram proferidas, têm o significado de o arguido atentar contra a vida da assistente, apontando inequivocamente no sentido de, objetivamente, a ameaça nelas contidas, relativa à prática de um crime contra a vida, ser adequada a causar medo e inquietação à visada, apresentando-se como suscetível de ser encarada por esta como séria e razoavelmente credível, como efetivamente sucedeu, causando-lhe medo e perturbação e fazendo-a temer pela sua integridade física e pela sua vida (cf. ponto 2º dos factos provados).

Pelo exposto, improcede igualmente a questão em análise.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, I. F., confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
*
(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
*
Guimarães, 17 de dezembro de 2019

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)


1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes, a formatação e a ortografia utilizadas, que são da responsabilidade do relator.
2. - Conforme jurisprudência uniformizada pelo acórdão n.º 7/95, proferido pelo plenário das secções criminais do STJ em 19-10-1995, publicado no Diário da República – I Série, de 28-12-1995.
3. - Cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª edição, pág. 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª edição, pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, pág. 77 e ss..
4. - Proferido no processo n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3ª Secção, disponível em http://www.dgsi.pt.
5. - In Código de Processo Penal anotado, II volume, 2ª edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, pág. 379.
6. - Cf. o acórdão do STJ de 24-02-2016 (processo n.º 502/08.0GEALR.E1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt.
7. - Cf. os acórdãos do STJ de 13-03-1996 (processo n.º 48932) e de 11-05-1994 (processo n.º 45987), citados por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, 5ª edição, 2002, Rei dos Livros, pág. 65.
8. - Cf. o acórdão do STJ de 24-02-2016 (processo n.º 502/08.0GEALR.E1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, págs. 1074-1075, anotação 124.
9. - In Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 1358-1359.
10. - Vd. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 341.
11. - Vd. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, pág. 74.
12. - Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 18-01-2018 (processo n.º 563/14.3TABRG.S1), de 17-03-2016 (processo n.º 849/12.1JACBR.C1.S1), de 20-01-2010 (processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1), de 14-03-2007 (processo n.º 07P21) e de 23-05-2007 (processo n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (processo n.º 110407), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
13. - Proferido no processo n.º 130/10.0JAFAR.E1, disponível em http//www.dgsi.pt.
14. - Proferido no processo n.º 130/10.0JAFAR.F1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
15. - Proferido em de 20-06-2012, no processo n.º 268/12, 2ª Secção, disponível em http://www. tribunalconstitucional.pt /tc/acordaos/20120312.html.
16. - Cf., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 12-09-2007 (processo n.º 2601/07), de 27-11-2007 (processo n.º 3862/07) e de 03-10-2012 (proc. n.º 900/05.1PRLSB.L1.S1) e o acórdão do TRP de 25-03-2009, todos disponíveis em http//www.dgsi.pt., bem como o acórdão do TRP de 21-01-2002, disponível em http//www.gde.mj.pt, e ainda os acórdãos do STJ de 04-07-2007 (processo n.º 2049/07), 11-01-2012 (proc. n.º 197/08.1GAMLD.C1.S1), e de 10-09-2008 (proc. n.º 1887/08), não publicados.
17. - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, pág. 176.
18. - Conforme jurisprudência uniformizada pelo acórdão n.º 7/95, proferido pelo plenário das secções criminais do STJ em 19-10-1995, publicado no Diário da República – I Série, de 28-12-1995.
19. - Tomo I, pág. 343.
20. - Cf. o acórdão do TRC de 09-09-2009 (processo n.º 363/08.OOGAACB.1), disponível em http//www.dgsi.pt.
21. - Cf. o acórdão do TRG de 07-01-2008 (processo n.º 1798/07-2), disponível em http//www.dgsi.pt.
22. - Vd. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 343.
23. - Cf. o acórdão do TRC de 13-11-2013 (processo n.º 268/11.7TATNV.C1), disponível em http//www.dgsi.pt.
24. - Proferido no processo n.º 3525/04 9ª Secção, pesquisado em http// www.pgdlisboa.pt.
25. - Proferido no processo n.º 162/12.4GAACN.C1, pesquisado em http//www.dgsi.pt.