Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2318/18.7T8BRG-A.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: INCOMPETÊNCIA MATERIAL
COMPETÊNCIA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
CONTRATO ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O contrato de prestação de serviço por via do qual alegadamente a Autora, por solicitação do Réu, se obrigou a contratar um artista, de que era representante exclusiva, para a realização de um espectáculo, em edifício propriedade do Réu, obrigando-se este a pagar à Autora a quantia de €15.999,99, reveste a natureza de contrato administrativo, nos termos conjugados dos artigos 1.º, n.º 6, alínea a), e 450.º e seguintes do Código dos Contratos Públicos (CCP).

II - Tal contrato não se encontra excluído da contratação pública nos termos do n.º 1 do artigo 5º do CCP, antes estando submetido também ao regime dos procedimentos da contratação pública, por força dos artigos 6.º, n.º 1, alínea e), e 16.º, n.º 1 e 2, alínea e), do mesmo Código.

III - O conhecimento dos litígios emergentes desse contrato, nomeadamente em sede da sua execução, concretamente a realização coativa do cumprimento da alegada obrigação de pagamento, é da competência material da jurisdição administrativa, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

TEATRO CIRCO X, EM, SA intentou a presente acção de processo comum contra o MUNICIPIO C. pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de €16.006,41 (correspondendo a €14.714,00 a capital e €1.292,41 a juros moratórios) e juros vincendos.

Alega, para o efeito e em síntese, que Autora e Réu celebraram um contrato por via do qual a Autora por solicitação do Réu se obrigou a contratar a artista Y. N. para a realização de um espectáculo no Convento ..., propriedade do Réu, no dia 27/01/2017 e que o Réu se obrigou a pagar à Autora €15.999,99.

Mais alega que a Autora era representante exclusiva daquela artista em Portugal no 1º trimestre de 2017 e que cumpriu a sua parte do acordado, contratando a artista para o aludido espectáculo, tendo o Réu cancelado o espectáculo no dia 20/01/2017, dizendo que não lhe seria possível acolher a artista na data prevista e sem dar mais explicações.

Citado, veio o Réu deduzir oposição invocando, na parte que agora releva, a excepção da incompetência material do Juízo Local Cível de Braga para conhecer da presente acção pois que, em seu entender, compete aos tribunais administrativos dirimir a presente acção, atendendo à sua qualidade de pessoa colectiva de direito público e bem assim, ao facto do contrato, cuja celebração a Autora alega, estar sujeito ao procedimentos da contratação pública.

A Autora veio responder pugnando pela improcedência da excepção e pela competência do Juízo Local Cível de Braga, chamando à colação, no essencial, o disposto no artigo 5º do Código da Contratação Pública, uma vez que sendo a Autora representante exclusiva em Portugal da artista cuja contratação o Réu pretendia, tal contrato não estava sujeito à concorrência de mercado.

Foi proferida decisão que julgou improcedente a excepção de incompetência material.

Não se conformando com a decisão proferida veio o Réu recorrer concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“CONCLUSÕES:

I – A circunstância de um contrato a celebrar por uma entidade pública
abrangida pelo âmbito subjectivo do Código dos Contratos Públicos ser intuitu personae não afasta esse mesmo contrato da disciplina que emerge daquele Código, nomeadamente no que aos procedimentos pré-contratuais diz respeito;
II – Para as situações em que o objecto do procedimento seja a criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espectáculo artístico, previu o legislador, na alínea e) do n.º 1 do artigo 24.º do CCP, a possibilidade de se lançar mão de um ajuste directo por critérios materiais;
III – O que o referido preceito consagra é a exclusividade de uma certa e determinada entidade para a prestação dos serviços em causa, por só ela ter a aptidão técnica ou artística necessária para os prestar, ou seja, o ajuste directo é admitido, nesses casos, quando no mercado haja uma única entidade detentora de aptidão técnica ou artística capaz de prestar os serviços pretendidos;
IV – Do artigo 5.º, n.º 1, do CCP, não decorre, em momento algum, que à contratação intuitu personae não é aplicável a Parte II do Código, uma vez que, na linha do que sempre se previu, bem como nos termos das directivas, o CCP, estabelece que este caso de “falta de concorrência” não dispensa a aplicação das regras que disciplinam os procedimentos com convite;
V - Aliás, nem faria sentido que o legislador pretendesse excluir os contratos como aquele aqui em questão do âmbito de aplicação da Parte II do CCP e fosse, depois, mais adiante, prever o ajuste directo por critérios materiais para situações de realização de espectáculos artísticos.
VI - A competência contratual da jurisdição administrativa vale quer no caso de o procedimento prévio do contrato ter assumido a forma (fosse ou não obrigatória) de procedimento administrativo pré-contratual, que no caso de a entidade administrativa contratante – por não ser tal norma obrigatória (só permitida) – ter optado legalmente por uma pré-contratação de natureza privatista;
VII - No caso, mais do que admitir, a lei impõe, para a celebração destes contratos intuitu personae para a realização de espectáculos artísticos, um procedimento pré-contratual regulado no CCP, admitindo, justamente mercê da natureza infungível da prestação, o recurso ao (excepcional) ajuste directo por critérios materiais;
VIII - Estamos, no caso, perante litígio emergente de relação jurídica administrativa, razão pela qual, nos termos do disposto nos artigos 1.º e 4.º, n.º 1, alínea e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, cai o mesmo sob a alçada da jurisdição administrativa e fiscal;
IX – O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 1.º e 4.º, n.º 1, alínea e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”.
Pugna o Recorrente pela integral procedência do recurso e consequentemente pela revogação da decisão recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, é a de saber se o Juízo Local Cível de Braga é materialmente incompetente para conhecer da presente acção.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

O Recorrente veio interpor o presente recurso por se não conformar com a decisão proferida pelo tribunal a quo que se julgou materialmente competente para conhecer da presente acção.
A única questão a decidir consiste em saber se a competência se mostra atribuída aos tribunais comuns ou aos tribunais administrativos, sendo os fundamentos de facto a considerar os descritos no relatório.
A competência é um dos pressupostos mais importantes relativo aos tribunais, resultando do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por vários tribunais, tendo depois, cada um, competência para determinadas matérias do direito.

A competência em razão da matéria distribui-se assim por diferentes espécies de tribunais, situados no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia, subordinação ou dependência entre eles, estando na base desta repartição de competência o princípio da especialização, que se traduz na vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito (v. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, página 194, 195 e 207).

Dispõe o n.º 1 do artigo 209º da Constituição da República Portuguesa, nas suas várias alíneas que, “além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas”; e o artigo 211º n.º 1 que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, cabendo, por usa vez, aos tribunais administrativos, segundo o artigo 212º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Em conformidade, decorre também do artigo 64º do Código do Código de Processo Civil que os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para conhecer das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, e em sentido idêntico dispõe o artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26/01) que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

A competência material dos tribunais comuns é assim fixada em termos residuais.

E quanto aos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do artigo 212º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa compete-lhes o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Consta ainda do artigo 4º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (daqui em diante designado por ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/2 (com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10) que lhes compete a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de actos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo acções de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de actos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

Por outro lado, é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que a competência se afere pelo pedido do autor, considerando a pretensão formulada e os fundamentos em que a mesma se baseia, sendo irrelevante qualquer juízo de prognose que se possa fazer relativamente à sua viabilidade (v. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, página 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, página 91) e que não cabendo uma causa na competência de outro tribunal ela será do tribunal comum por uma questão de competência residual (cfr. entre outros, Acórdãos da Relação de Guimarães de 05/03/2009 e de 18/01/2018, da Relação do Porto de 22/02/2011 e de 07/04/2016, da Relação de Lisboa de 13/07/2010 e do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2017, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Analisemos então a questão colocada à luz dos considerandos acabados de enunciar, começando por verificar o pedido formulado na presente acção pela Autora e os fundamentos em que a mesma se baseia uma vez que a determinação da competência em razão da matéria assim deve ser aferida.

No caso em apreço, a Autora alega que celebrou com o Réu um contrato por via do qual a Autora, por solicitação deste, se obrigou a contratar a artista Y. N. para a realização de um espectáculo no Convento ..., propriedade do Réu, no dia 27/01/2017 e que o Réu se obrigou a pagar à Autora €15.999,99.

Mais alega que a Autora era representante exclusiva daquela artista em Portugal no 1º trimestre de 2017 e que cumpriu a sua parte do acordado, contratando a artista para o aludido espectáculo, tendo o Réu cancelado o espectáculo no dia 20/01/2017, dizendo que não lhe seria possível acolher a artista na data prevista e sem dar mais explicações.

No caso dos autos, tal como resulta da alegação constante da petição inicial, estamos no âmbito de uma pretensão da Autora que tem por objeto uma obrigação pecuniária emergente de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a Autora e o Réu, a obrigação daí resultante para este do pagamento do preço devido pelos serviços solicitados.

Releva por isso em particular para a questão em apreciação o disposto na alínea e) do referido n.º 1 do artigo 4º do ETAF.

De salientar que antes da entrada em vigor do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, subsistia ao nível substantivo, alguma dificuldade na delimitação das relações jurídico-administrativas, nomeadamente com vista a determinar a jurisdição competente para apreciar os litígios delas emergentes.

Conforme bem se refere na decisão recorrida, citando Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira (Código de Processo dos Tribunais Administrativos e Ficais e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Anotados, Volume I, 2004, páginas 48 a 53) em comentário a este preceito: “A opção tomada nesta alínea e), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente das qualidades das partes nele intervenientes - de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares - e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja, pela disciplina da própria relação contratual), eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.). (…) O que é relevante (...) para determinar o âmbito “contratual” da jurisdição administrativa, continua a ser a natureza jurídica do procedimento que antecedeu - ou que devia ou podia ter antecedido - a sua celebração, e não a própria natureza do contrato.

Se se trata de um procedimento administrativo, a jurisdição competente para conhecer da interpretação, validade de execução (incluindo a modificação, responsabilidade e extinção) do próprio contrato celebrado na sua sequência - independentemente de ele ser um contrato administrativo ou de direito privado - é a jurisdição administrativa. E independentemente também de se tratar (de actos pré-contratuais ou) de contratos de uma pessoa colectiva de direito público ou de um sujeito privado que esteja submetido, por lei específica, a deveres pré-contratuais de natureza administrativa - como sucede, por exemplo, nomeadamente por força da transposição de normas comunitárias (embora o mesmo possa acontecer em virtude da sua aplicação directa) com: (...) iii) aquelas entidades a que se referem os n°s. 1 e 2 do art. 3° do Decreto-lei n° 197/99 (de 8 de Junho) quanto às aquisições desses mesmos bens e serviços, em geral. (…) Os contratos cuja interpretação, validade ou execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos da citada alínea e), são quaisquer contratos - administrativos ou não, com excepção dos de natureza laboral, por força da alínea d) do art. 4°/3 — que uma lei específica submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado pelas normas de direito administrativo. O que significa que para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que “admita que (ele lhe) seja submetido”.

Como refere também Mário Aroso de Almeida (Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2.ª Edição página 160 e seguintes): “foi nesse contexto que surgiu o ETAF de 2002, e, com ele, a clara assunção da necessidade de se abandonar, no plano processual, a definição de contrato administrativo que decorria do art.º 178.º do CPC, para o efeito de delimitar o âmbito da jurisdição administrativa no que respeita à apreciação de litígios emergentes de contratos”, “a previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF possui, contudo, um alcance mais amplo, pois, […] atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta, ou admita que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público, independentemente da questão de saber se “a prestação do co-contraente pode condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público.”

E para tais efeitos “a delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de se estribar na distinção tradicional entre “atos de gestão pública” e “atos de gestão privada”, para passar a fazer-se com abstração da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, bastando que “a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público”, como se refere no acórdão do Tribunal de Conflitos, de 11/03/2010, proferido no processo n.º 028/09, observando-se ainda que “o acento tónico indiciador da natureza administrativa da relação jurídica é aqui colocado não no conteúdo do contrato nem na qualidade das partes, mas nas regras de procedimento pré-contratuais potencialmente aplicáveis” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2016, relatado pelo Conselheiro Tome Gomes, disponível em www.dgsi.pt).

Entretanto, procedendo à transposição das Directivas nº 2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março, bem como da Directiva nº 2005/51/CE, da Comissão, de 07 de Setembro e ainda da Directiva nº 2005/75/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Novembro, entrou em vigor em 30/07/2008 o Código dos Contratos Públicos (daqui em diante CCP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, e que aqui também releva, designadamente para a qualificação do contrato celebrado pelas partes para efeitos de determinar o tribunal competente (não obstante se encontrar já em vigor a alteração decorrente do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, entrado em vigor a 1 de janeiro de 2018, não a consideraremos aqui aplicável considerando a data alegada para a celebração do contrato dos autos, anterior a Janeiro de 2017 e o disposto no seu artigo 12º n.º 1).

Assim, nos termos do artigo 1º n.º 6º do CCP, sem prejuízo de legislação especial, “reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado ente contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integre em qualquer” das categorias configuradas nas quatro alíneas daquele número:

“a) Contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público;
b) Contratos com objeto passível de ato administrativo e demais contratos sobre o exercício de poderes públicos;
c) Contratos que confiram ao co-contratante direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público;
d) Contratos que a lei submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do co-contratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público”.

Segundo Mário Aroso de Almeida (Ob. Cit. página 163) tais categorias podem ser reconduzidas a três grandes grupos:

“a) O primeiro grupo corresponde aos contratos administrativos por natureza, que são submetidos a um regime de Direito Administrativo em razão da natureza pública do seu objecto ou do seu fim. Pode dizer-se que integram este grupo os contratos a que se referem as alíneas b), c) e d) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP.
b) O segundo grupo corresponde aos contratos administrativos por determinação da lei e abrange os tipos contratuais que, ainda que não sejam contratos administrativos por natureza, a própria lei opta directamente por qualificar como administrativos, submetendo-os a um regime substantivo de direito público (cfr. artigo 1.º, n.º 6, alínea a), do CCP). Integram este grupo: (i) os contratos administrativos típicos previstos no Título II da Parte III do CCP; e (ii) os demais contratos administrativos típicos ou nominados previstos em legislação avulsa.
c) O terceiro grupo corresponde aos contratos administrativos por qualificação das partes e abrange contratos administrativos atípicos que poderiam ser contratos de direito privado (por esse motivo, a doutrina qualifica-os como contratos administrativos com objecto passível de contrato de direito privado), mas são contratos administrativos apenas porque as partes o querem e determinam: trata-se de contratos que, não sendo administrativos por natureza, nem a eli os qualificando como administrativos, só são administrativos na medida em que a lei aceita que as próprias partes, desde que uma delas seja um contraente público, os qualificam como administrativos ou os submetam a um regime substantivo de direito público (cfr. artigo 1.º, n.º 6, alínea a), e artigos 3.º, n.º 1, alínea b), e 8.º do CCP).

Acrescenta ainda este Autor que a partir daqui “(…) deixou de existir qualquer razão para que o ETAF não fizesse referência à figura do contrato administrativo na determinação do âmbito da jurisdição em matéria de contratos. Foi o que, com a revisão de 2015, ele passou a fazer, justificadamente, na nova alínea e) do n.º 1 do art.º 4.º, que veio substituir as diferentes alíneas (b), segunda parte, e) e f) (…)”.

A referida alínea e) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF tem atualmente a seguinte redação (que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10): “e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.

É com base no disposto nesta alínea que o Recorrente sustenta a competência da jurisdição administrativa e fiscal.

E face ao disposto na mesma temos de concluir que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto: questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos administrativos e de quaisquer contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.

Estão aqui em causa os litígios emergentes de contratos administrativos mas também os que emergem de todos os contratos que a lei submeta, ou admita que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público, pois também no que respeita aos contratos que estejam submetidos a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, as questões que deles emergem devem ser objeto de uma ação a propor perante os tribunais administrativos, independentemente da sua qualificação como contrato administrativo (v. Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, ob. cit., pagina 166).

Conforme se vem pronunciando a jurisprudência dos tribunais superiores “para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respetivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que o contrato seja submetido a esse procedimento de formação. Em matéria “contratual” “a jurisdição administrativa vale, portanto, quer no caso de o procedimento prévio do contrato ter assumido a forma (fosse ou não obrigatória) de procedimento administrativo pré-contratual, quer no caso de a entidade administrativa contratante – por não ser tal norma obrigatória (só permitida) – ter optado legalmente por uma forma de pré-contratação de natureza privatista” (Acórdão da Relação do Porto de 09/09/2013, relatado pela Desembargadora Ana Paula Amorim, www.dgsi.pt).

Importa então indagar se no caso concreto estamos perante um litígio que emerge de contrato administrativo ou de contrato que a lei submeta, ou admita que possa ser submetido, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público.

O tribunal a quo entendeu que pretendendo o Réu contratar uma artista específica, que a Autora representava em exclusivo, tal contrato tinha carácter intuito personae pelo que não se encontrava abrangido pelo CCP, por força do disposto no artigo 5º n.º 1 daquele diploma legal.

Prevê este preceito que a parte II do CCP não é aplicável à formação de contratos a celebrar por entidades adjudicantes cujo objecto abranja prestações que não estão nem sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, designadamente em razão da sua natureza ou das suas características, bem como da posição relativa das partes no contrato ou do contexto da sua própria formação.

Porém, este preceito tem de ser lido e interpretado na conjugação com as demais normas constantes do CCP.

Vejamos.

Em face do CCP os contratos de aquisição de serviços celebrados por autarquias locais são não só de qualificar como contratos administrativos como estão sujeitos a um procedimento de formação regulado por normas de direito administrativo.

Em conformidade com o artigo 1º n.º 1 e 2 do CCP este diploma estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo, sendo o regime da contratação pública estabelecido na parte II do presente Código aplicável à formação dos contratos públicos, entendendo-se por tal todos aqueles que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas neste Código.

Ora, segundo o referido n.º 6 do artigo 1º do CCP reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, “que por força do presente Código (…) sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público”.

Os artigos 450º a 454º do CCP, sob a epígrafe Aquisição de Serviços (integrados no Título II, respeitante a Contratos Administrativos em Especial, da Parte III, relativo ao Regime Substantivo dos Contratos) contêm a disciplina específica do contrato administrativo de aquisição de serviços.

Este vem definido no referido artigo 450º como “o contrato pelo qual um contraente público adquire a prestação de um ou vários tipos de serviços mediante o pagamento de um preço”.

Acresce ainda que o artigo 6º n.º 1 do CCP dispõe que “à formação de contratos a celebrar entre quaisquer entidades adjudicantes referidas no n.º 1 do artigo 2.º, a parte II do presente Código só é aplicável quando o objecto de tais contratos abranja prestações típicas dos seguintes contratos: (…) e) Aquisição de serviços.”

E nos termos do n.º 1 alínea c) do artigo 2º as autarquias locais são entidades adjudicantes, as quais se têm também por contraentes públicos (artigo 3º n.º 1, alínea a) do CCP).

Por outro lado, estão sujeitos aos procedimentos de formação dos contratos públicos, os contratos cujo objecto abranja prestações que estão ou sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado (artigo 16º n.º 1 do CCP) e consideram-se submetidas à concorrência de mercado (n.º 2 alínea e) do referido artigo 16º) independentemente da sua designação ou natureza, as prestações típicas abrangidas pelo contrato de aquisição de serviços.

Tais procedimentos previstos no n.º 1 do artigo 16º do mesmo Código são: a) – Ajuste directo; b) – Concurso público; c) – Concurso limitado por prévia qualificação; d) - Procedimento de negociação; e) – Diálogo concorrencial.

O artigo 24º n.º 1 do CCP prevê os casos em que o ajuste directo pode ser escolhido para a formação de quaisquer contratos, relevando aqui a previsão da sua alínea e): “Por motivos técnicos, artísticos ou relacionados com a protecção de direitos exclusivos, a prestação objecto do contrato só possa ser confiada a uma entidade determinada”.

Conforme se escreve no Supremo Tribunal Administrativo de 21/06/2011 (relatado pelo Conselheiro Pires Esteves, disponível em www.dgsi.pt) “(…) os demais procedimentos de formação de contrato [cfr. elenco constante do art. 16.º, n.º 1 do CCP], em particular o que aqui ora releva, o ajuste directo, constituam reais excepções ao regime regra, a demandarem, como tal, cuidados redobrados na aferição dos critérios legais definidos para a sua convocação. (…) Deriva do quadro legal aludido que são três as principais ordens de razões que justificam a opção pelo ajuste directo, ou seja, razões procedimentais [cfr. art. 24.º, n.º 1, als. a), b) e c), 25.º, n.º 1, als. a) e c), 26.º, n.º 1, al. e) e 27.º, n.º 1, als. a) e h) do CCP], razões relativas ao objecto do contrato [cfr. art. 24.º, n.º 1, als. d) a f), 25.º, n.º 1, al. b), 26.º, n.ºs 1, als. a) a d) e f) e 2, e 27.º, n.º 1, als. b) a g) do CCP] e razões de interesse público [cfr. art. 31.º, n.º 3 do CCP] (…) Procurando enquadrar o critério material invocado como justificação/fundamento do procedimento de formação de contrato pelo qual se optou temos que com o mesmo se exige que ocorram motivos técnicos, artísticos ou relacionados com a protecção de direitos exclusivos que conduzam a que a prestação objecto do contrato só possa ser confiada a uma entidade determinada. À luz deste normativo temos que o procedimento de ajuste directo só se mostrará legitimado quando a entidade adjudicante demonstre que só aquele concreto prestador de serviços está técnica ou artisticamente habilitado ou detém direitos exclusivos objecto de protecção para executar o serviço pretendido”.

Daqui decorre em nosso entender que o facto de estar em causa um artista específico ou um prestador de serviços que detém direitos exclusivos para prestar o serviço pretendido não permite, salvo melhor opinião, excluir o contrato do regime da contratação pública estabelecido na parte II do CCP.

Neste sentido Pedro Costa Gonçalves (Direito dos Contratos Públicos, Volume I, 3ª Edição, 2018, página 509) afirma, a propósito da alínea e) do n.º 1 do artigo 24º do CCP e da possibilidade de escolha do ajuste direto que “o fundamento material em análise dirige-se aos casos em que no mercado apenas exista um operador técnica, artística ou juridicamente capaz de realizar as prestações do contrato a celebrar. Neste cenário, poderia pensar-se na não aplicação do CCP em função do disposto no artigo 5.º, n.º 1, que exclui da Parte II a formação de contratos “cujo objeto abranja prestações que não…sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, designadamente em razão da sua natureza ou das suas características”. (…) Mas na linha do que sempre se previu, bem como nos termos das directivas, o CCP estabelece que este caso de “falta de concorrência” não dispensa a aplicação das regras que disciplinam os procedimentos com convite”.

Ora, no caso dos autos, a Autora peticiona o pagamento da quantia global de €16.006,41, correspondente a capital e juros de mora, devida a título de contrapartida pelo serviço que alegadamente lhe foi solicitado pelo Réu de contratar a artista Y. N., de que a Autora era representante exclusiva em Portugal, para a realização de um espectáculo no Convento ..., propriedade do Réu, no dia 27/01/2017.

Estamos por isso perante um contrato de aquisição de serviços alegadamente celebrado pelo Réu, autarquia local, que assume no contrato, face ao critério previsto no CCP, a qualidade de entidade adjudicante, o qual pela sua natureza configura um contrato administrativo sujeito a um procedimento de formação regulado por normas de direito público.

O contrato invocado pela Autora traduz-se por isso num contrato administrativo legalmente tipificado e nominado (cfr. artigos 1º n.º 6, alínea a) e 450º do CCP), não contemplado como contrato excluído da aplicação do CCP ou da contratação pública (cfr. artigos 4º e 5º do CCP); contrato esse sujeito à disciplina da contratação pública dos procedimentos para a formação de contratos previstos nos artigos 16º n.º 1 e seguintes do CCP.

Não resulta dos factos alegados que a celebração do contrato foi precedida de um concreto procedimento de formação, mas o que releva para atribuir a competência (artigo 4º n.º 1 alínea e) do ETAF) não é que o tenha sido mas que a lei imponha esse procedimento.

Impõe-se assim concluir que as questões de interpretação, validade e execução do alegado contrato, aqui se incluindo a realização coativa da prestação imputada ao Réu, se integram na alínea e) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, sendo a jurisdição administrativa a competente para dirimir o litigio.

Nessa conformidade, verifica-se a invocada exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal a quo, em razão da matéria, determinativa da absolvição do réu da instância, nos termos conjugados dos artigos 96º alínea a), 99º n.º 1, 278º n.º 1, alínea a), e 577º alínea a), todos do Código de Processo Civil.

Procede, desta forma, o presente recurso e nessa conformidade deve-se revogar o despacho recorrido e julgar procedente a excepção de incompetência material, absolvendo o Réu da instância; contudo, a incompetência absoluta do Tribunal, no caso de ter sido decretada depois de findos os articulados, determina a remessa dos autos ao Tribunal competente, desde que o autor tal requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão que a decrete, e o réu não ofereça oposição justificada.

As custas são da responsabilidade da Recorrida (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - O contrato de prestação de serviço por via do qual alegadamente a Autora, por solicitação do Réu, se obrigou a contratar um artista, de que era representante exclusiva, para a realização de um espectáculo, em edifício propriedade do Réu, obrigando-se este a pagar à Autora a quantia de €15.999,99, reveste a natureza de contrato administrativo, nos termos conjugados dos artigos 1.º, n.º 6, alínea a), e 450.º e seguintes do Código dos Contratos Públicos (CCP).
II - Tal contrato não se encontra excluído da contratação pública nos termos do n.º 1 do artigo 5º do CCP, antes estando submetido também ao regime dos procedimentos da contratação pública, por força dos artigos 6.º, n.º 1, alínea e), e 16.º, n.º 1 e 2, alínea e), do mesmo Código.
III - O conhecimento dos litígios emergentes desse contrato, nomeadamente em sede da sua execução, concretamente a realização coativa do cumprimento da alegada obrigação de pagamento, é da competência material da jurisdição administrativa, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e consequentemente em revogar a decisão recorrida, julgando o Tribunal recorrido incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção e absolvendo o Réu da instância, sem prejuízo da possibilidade de remessa dos autos ao Tribunal competente, desde que a Autora o requeira, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado do presente acórdão, e o Réu não ofereça oposição justificada.
Custas pela Recorrida.
Guimarães, 14 de fevereiro de 2019
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares
Margarida Almeida Fernandes
Margarida Sousa