Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4318/16.2T8VCT.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
RETRIBUIÇÃO
SUBSÍDIO DE REFEIÇÃO
QUESTÃO NOVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário: I – Da conjugação das normas do art. 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal (aplicável por força dos arts. 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do RGCO, por sua vez aplicáveis ex vi art. 60.º do RPCOLSS) e do art. 39.º, n.º 4, do RPCOLSS, resulta que o juiz pode legitimamente fundamentar a sua decisão através de mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa, desde que esta se tenha pronunciado sobre todas as questões suscitadas no recurso de impugnação interposto da mesma.
II – Por força do n.º 2 do art. 260.º do Código do Trabalho, o subsídio de refeição não integra, em regra, o conceito de retribuição, a menos que, na parte que exceda o seu montante normal, tenha sido previsto no contrato de trabalho ou se deva considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
III – Assim, tudo aquilo que for pago acima dos montantes previstos no IRCT aplicável, ao longo dos anos e de forma regular e periódica, tem que se considerar, em regra, como fazendo parte da retribuição, tendo até em conta o princípio da boa fé.
IV – O recurso para o Tribunal da Relação, da sentença que decidiu da impugnação da decisão administrativa de contra-ordenação, porque visa a reapreciação de questões colocadas na impugnação perante o tribunal da 1.ª instância, e não de outras, novas, não pode conhecer de uma questão que não foi presente ao tribunal recorrido.
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL – PROCESSO N.º 4318/16.2T8VCT.G1


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. Relatório

O presente recurso foi interposto por AA…, S.A. e BB…, por não se conformarem com a sentença que julgou improcedente a impugnação judicial e, confirmando a decisão da autoridade administrativa, condenou aquela arguida no pagamento da coima de € 2.244,00 (sendo solidariamente responsável pelo pagamento desta o 2.º Recorrente), pela prática de uma contra-ordenação p.p. no art. 129, n.° 1, al. d) e n.° 2 do Código do Trabalho, condenando-a ainda na sanção acessória de publicidade da decisão condenatória e no pagamento da quantia global de € 27.634,79 aos seus trabalhadores aí identificados.
Formulam as seguintes conclusões:
«1ª. Os recorrentes não se conformam com a sentença que, na sequência do processo de contra-ordenação levantado pela ACT, condenou a sociedade recorrente no pagamento de uma coima pela prática da contra-ordenação prevista e punida no artigo 129º, nº 1, alínea d), e nº 2, do CT, sendo o recorrente particular responsável solidário, na sanção acessória de publicidade da decisão condenatória, e no pagamento da quantia de € 27.634,79 aos seus trabalhadores.
2ª. Sentenciou o Tribunal a quo que a conduta dos recorrentes preenche o tipo de ilícito em causa, pois que, a partir de Janeiro de 2012, procedeu à diminuição do montante que pagava aos seus trabalhadores a título de subsídio de alimentação, sendo que, quando excede o que pode ser considerado o montante normal para aquele sector actividade, assumirá natureza retributiva, nomeadamente para aplicação do princípio da irredutibilidade.
3ª. Determinou ainda o Tribunal a quo que é irrelevante que os trabalhadores tenham dado o seu acordo a essa redução, quer porque se trata de crédito irrenunciável, quer porque não cabe nas previsões legais, acrescendo que, por falta de fundamento legal, não é também de atender à situação económica difícil que na altura os recorrentes atravessavam.
4ª. Por concordar na íntegra com a decisão administrativa, quanto ao Direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção aplicada, e por considerar que todas as questões suscitadas pelos recorrentes foram devidamente apreciadas pela ACT em termos que merecem total concordância, o Tribunal a quo manteve a decisão condenatória, declaração que fez ao abrigo do artigo 39º, nº 4, do COL.
5ª. Entendeu ainda o Tribunal a quo não ser de responder à restante matéria de facto alegada pelos recorrentes por a considerar irrelevante para a decisão da causa.
6ª. A débil situação financeira em que os recorrentes mantinham a sua actividade importou a execução de algumas medidas restritivas, como a redução do valor do subsídio de alimentação, e, por isso, a partir da citada data, efectivamente foi reduzido o valor do subsídio de alimentação dos trabalhadores de € 6,41 para € 2,50, este que era equivalente ao consagrado no CCT.
7ª. Esta redução derivou da prévia auscultação dos trabalhadores, os quais, conhecendo as desfavoráveis condições económico-financeiras e comerciais que a entidade patronal à data atravessava, com isso concordaram, tendo este compromisso sido reduzido a escrito, tal como documentam os autos, pelo que a medida em causa não foi implementada de uma forma prepotente por parte dos recorrentes, conforme também resulta dos depoimentos prestados por trabalhadores.
8ª. Nunca os trabalhadores reclamaram junto dos recorrentes pela reposição do subsídio de alimentação primitivo, quer, bem assim, pelas alegadas diferenças de remuneração cujo pagamento a ACT, e agora o Tribunal a quo vêm obrigar, o que não foi argumentado pela ACT na pendência do processo contra-ordenacional, nem foi invocado na decisão final.
9ª. Esta redução incidiu, unicamente, sobre o subsídio de alimentação, não sobre quaisquer prestações retributivas dos trabalhadores, que não foram, de forma alguma afectadas.
10ª. Uma vez constatada uma ligeira melhoria na facturação, em cumprimento do que tinha sido anunciado aos trabalhadores na altura da redução do valor do subsídio de alimentação (o que vem confirmado por depoimento prestado por trabalhadores), a partir de Janeiro de 2016, os recorrentes conseguiram passar a pagar-lhes o valor diário de € 4,27, equivalente ao previsto para a Função Pública e que quase duplica o determinado no CCT.
11ª. Por não estar sujeito à garantia da irredutibilidade, pode o subsídio de alimentação ser objecto de redução por acordo entre as partes.
12ª. Os recorrentes não tiveram a intenção de diminuir o valor do subsídio de alimentação para o fixado no CCT, como se invoca na decisão da ACT e depois na sentença recorrida, porque considera ser esse o valor normal.
13ª. Resulta, ao invés, comprovado que os recorrentes, em união de esforços com os seus trabalhadores, reduziram o subsídio de alimentação para aquele valor que, perante as dificuldades que atravessavam na sua actividade, conseguiam na ocasião pagar-lhes, tal como estes reconheceram e expressamente aceitaram, o que é critério diferente daquele que a ACT e o Tribunal a quo expressam.
14ª. Tendo, naturalmente, presente que não podia afectar-se o valor instituído no âmbito do CCT vigente, posto o que não foi, então, violada a lei.
15ª. No seguimento da oposição dos recorrentes à prolação da decisão por mero despacho que o Tribunal a quo queria promover, foi realizado o julgamento, com audição de testemunhas arroladas que confirmaram todo o alegado em sede de impugnação judicial.
16ª. Ao basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da ACT, nos termos em que o fez, o Tribunal a quo fere a sentença do vício de omissão de pronúncia, o que determina a sua nulidade (artigo 379º, nº 1, alínea c), do CPP).
17ª. O Tribunal a quo não se pronunciou sobre questões que devia ter apreciado para sustentar a sua decisão, antes se limitou a dar como provado que os recorrentes reduziram o valor do subsídio de alimentação para o previsto no CCT, que os recorrentes e os trabalhadores assinaram um “documento” e que, em consequência, os trabalhadores deixaram de receber o valor diferencial, assim como que o acordo levado a cabo entre as partes não releva, assim como a situação económica vivenciada e determinante para a operada redução.
18ª. A matéria plasmada na impugnação judicial e depois levada ao julgamento do Tribunal a quo foi parcialmente desconsiderada na sentença recorrida, a qual é obviamente importante para se aferir da responsabilidade dos recorrentes, até autonomamente, pela prática da alegada infracção, pois dela até pode depender a afirmação sobre a verificação do elemento subjectivo desssa mesma infracção.
19ª. Ao invés do que consigna o Tribunal a quo, o nº 4 do artigo 39º do COL, para além de atribuir apenas uma mera faculdade ao julgador, não pode ser interpretado ou lido isoladamente, ou seja, esquecendo-se o sistema legal e constitucional onde o mesmo se encontra inserido.
20ª. A declaração de concordância com a decisão condenatória da entidade administrativa apenas será possível quando dessa simples declaração resulte o cumprimento cabal do dever que sobre o julgador impende de fundamentar as suas decisões quanto aos factos e ao Direito.
21ª. Aos recorrentes assiste o direito de defesa, o direito a um processo equitativo que garanta a sua efectiva realização, e, bem assim, que as decisões judiciais sejam fundamentadas (artigos 20º, nºs 1, 3 e 5, e 32º, nºs 1, 5 e 10, da CRP.
22ª. Tendo os recorrentes alegado na sua impugnação e feito prova testemunhal em sede de julgamento de factos novos, não tidos antes em consideração pela ACT, a simples remissão para a decisão administrativa, até como se o próprio julgamento não tivesse ocorrido, viola o direito de defesa dos recorrentes.
23ª. A faculdade concedida pelo artigo 39º, nº 4, do COL, terá aplicação se apenas estiverem em consideração questões de Direito, mas nunca quando esteja em causa a apreciação da matéria de facto que o arguido questionou na impugnação da decisão administrativa ou que tenha invocado em sua defesa e que seja relevante para a decisão por se reportar aos elementos constitutivos da infracção ou a outras questões que tenham a ver com a formulação do juízo sob a sua responsabilidade.
24ª. A sentença recorrida, violando o disposto no artigo 39º, nº 4, do COL, é nula por omissão de pronúncia, a importar a sua revogação e a consequente absolvição dos recorrentes da condenação que sobre os mesmos impende (artigo 379º, nº 1, alínea c), do CPP).
25ª. Se assim não for entendido, deve a douta sentença recorrida ser anulada.
26ª. Nesta sequência, porque a prova produzida em julgamento entretanto perderá a sua eficácia legal, haverá então que ordenar a repetição do julgamento da causa.
27ª. Sem prescindir do exposto, é nosso entendimento que o valor pago acima do actual subsídio de alimentação até ao limite do precedentemente liquidado não pode configurar parte da retribuição dos trabalhadores.
28ª. Em função do artigo 258º, nº 1, do CT, o subsídio de refeição não constitui uma prestação a que o trabalhador tenha direito como contrapartida da sua disponibilidade para o trabalho, antes visa compensá-lo por despesas acrescidas pelo facto de tomar as suas refeições, em virtude da prestação de trabalho, fora do seu domicílio, dada a impossibilidade de se deslocar para aí tomar a refeição durante o intervalo de descanso diário.
29ª. E o subsídio de alimentação apenas é devido por cada dia completo de trabalho.
30ª. Por isso, não se consideram retribuição as importâncias recebidas a título de subsídio de alimentação, salvo quando essas importâncias, na parte em que exceda os respectivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador (nºs 1, alínea a), e nº 2 do artigo 260º do CT), donde pode extrair-se uma presunção legal ilidível sobre o carácter não retributivo do subsídio de alimentação.
31ª. Legitimar a sentença é também, de alguma forma, firmar que se o valor compreendido entre € 6,41/dia e € 2,50/dia (porque este é o “normal”, porque é o fixado no CCT, tudo nas palavras da ACT e do Tribunal a quo) constitui retribuição dos trabalhadores, então o inverso também tinha de ser racionalizado, ou seja, que todos os valores pagos pelos recorrentes aos seus trabalhadores desde o início a título de subsídio de refeição que se mostrassem superiores ao previsto no CCT também tinham de ser considerados como retribuição, o que não é de aceitar.
32ª. Por outra via, evidência do que os recorrentes defendem reside também no facto de, nos “mapas” de apuramento das alegadas diferenças remuneratórias devidas aos trabalhadores, da pena da ACT, só ser ter levado em linha de conta os meses de efectiva prestação de trabalho.
33ª. Dos factos dados como provados não resulta que os montantes pagos pelos recorrentes a título de subsídio de alimentação excedessem o normal, nem que tal subsídio estivesse qualificado como retribuição pelo contrato ou pelos usos, sendo certo que o ónus de alegação e prova impendia sobre a ACT, e depois sobre o Tribunal a quo, já que não foram os trabalhadores alegadamente afectados que se arrogaram ao direito de ver considerado o subsídio de alimentação como fazendo parte da retribuição legal (cfr. artigo 342º, nº 1, do CC).
34ª. O Tribunal a quo não determina o que é ”normal” (e porquê...) pagar-se a título de subsídio de alimentação (e porque não considerar o valor da refeição como referência ao custo de mercado)..., nem sequer contraria a alegação dos recorrentes de que os trabalhadores não tomavam esta prestação reduzida como constituindo parte do seu salário.
35ª. O valor do subsídio de alimentação consta do contrato de trabalho celebrado entre a recorrente sociedade e os seus trabalhadores, ou seja, decorre de acordo estabelecido entre as partes, pelo que também está na sua livre disponiblidade alterarem-no por acordo, sendo certo que os trabalhadores não assumiram a implementação dessa medida como correspondendo a diminuição de retribuição.
36ª. Os recorrentes não tiveram a intenção de diminuir o valor do subsídio de alimentação para o fixado no CCT porque consideram ser esse o valor normal, o que fizeram sim foi reduzi-lo para o valor que, perante as dificuldades que atravessavam na sua actividade, conseguiam na ocasião pagar aos trabalhadores, o que é critério absolutamente distinto daquele que a ACT e o Tribunal a quo invocam, tendo, naturalmente, presente que não podia afectar-se o valor instituído no âmbito do CCT vigente.
37ª. Por violação dos artigos 129º, nº 1, alínea d),258º, nº 1, e 260º, nºs 1, alínea a), e nº 2, do CT, a sentença recorrida enferma de nulidade, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que absolva os recorrentes da prática da contra-ordenação de que vêm responsabilizados e dos pagamentos com que estão penalizados.
38ª. Sempre sem prescindir do que se argumentou, no que toca à condenação do recorrente particular (legal representante da sociedade recorrente), como responsável solidário, no pagamento da coima, ao abrigo do artigo 551º, nº 3, do CT, conjugado com o artigo 20º do COL, há que observar que a responsabildade solidária dos administradores e gerentes pelas coimas aplicadas às pessoas colectivas vem sendo julgada inconstitucional, uma vez que é violadora do princípio da intransmissibilidade das coimas.
39ª. A norma em questão consagra a possibilidade da transmissão da responsabilidade contra-ordenacional, que é equiparável à responsabilidade penal, o que não é permitido pelo artigo 30º, nº 3, da CRP, equivalendo à punição dos administradores, gerentes ou directores em termos de responsabilidade objectiva, ou seja, sem necessidade da verificação da imputação subjectiva a título de culpa.
40ª. O nº 3 do artigo 551º do CT padece de inconstitucionalidade material por violação do nº 3 do artigo 30º CRP, devendo ser recusada a sua aplicação ao caso, com a consequente absolvição do recorrente particular da condenação que sobre si fez recair o Tribunal a quo.»
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Admitido o recurso pelo tribunal recorrido, com efeito suspensivo, atenta a prestação de caução, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

2. Objecto do recurso

De acordo com o art. 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art. 50.º, n.º 4, do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, as questões a decidir são:
- nulidade ou anulabilidade da sentença por omissão de pronúncia;
- não verificação da contra-ordenação imputada aos Recorrentes;
- não aplicação do art. 551.º, n.º 3 do Código do Trabalho por inconstitucionalidade.

3. Fundamentação de facto

Os factos relevantes para a decisão da causa foram fixados na sentença recorrida nos seguintes termos:
1 — No dia 23 de Fevereiro de 2015, a arguida tinha ao seu serviço os seguintes trabalhadores:
- João …;
- Sérgio …;
- Ernesto …;
- José …;
- Manuel …;
- Miguel …;
- Roberto …; e
- Sérgio ….
2 — A arguida, até Janeiro de 2012, pagava a estes trabalhadores a quantia de € 6,4l/dia, a título de subsídio de alimentação.
3 — A partir de Janeiro de 2012 (inclusive), a arguida passou a pagar a esses mesmos trabalhadores a quantia de € 2,50/dia, a título de subsídio de alimentação (o montante previsto no CCT entre a ACAP e a FETESE).
4 — Em consequência do descrito em 3), os citados trabalhadores deixaram de receber, nos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015, a quantia global de € 27.634,79 (cfr. mapas de apuramento de fls. 9 a 16 que aqui se dão por integralmente reproduzidos).
5 — A arguida e os trabalhadores assinaram o documento de fls. 27 a 29, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

4. Apreciação do recurso

4.1. Conforme se disse, a primeira questão suscitada pelos Recorrentes prende-se com a nulidade ou anulabilidade da sentença, por omissão de pronúncia, na medida em que, alegadamente, o tribunal recorrido não conheceu de questões suscitadas no recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa ao ter usado da faculdade prevista no art. 39.º, n.º 4 do regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social (RPCOLSS), aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro.
Nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal, aplicável por força dos arts. 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do regime geral das contra-ordenações (aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro), por sua vez aplicáveis ex vi art. 60.º do RPCOLSS, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Não obstante, o art. 39.º, n.º 4, do RPCOLSS dispõe que o juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, podendo basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa.
Da conjugação das normas em referência resulta que o juiz pode legitimamente usar da faculdade prevista no citado art. 39.º, n.º 4 desde que a decisão administrativa se tenha pronunciado sobre todas as questões suscitadas no recurso de impugnação interposto da mesma.
Ora, compulsado este, constata-se que os Recorrentes apenas suscitaram a questão da não verificação da contra-ordenação que lhes foi imputada, em virtude de o subsídio de refeição não ter carácter retributivo, aceitando como verdadeiros os factos dados como provados e alegando outros atinentes às circunstâncias que conduziram ao acordo com os trabalhadores, descrevendo a situação económica da empresa e as negociações havidas.
Vejamos.
Para além de dar como provados os factos acima enunciados, a sentença recorrida acrescentou, nomeadamente, o seguinte:
«Não se responde à restante matéria de facto alegada por ser irrelevante para a decisão da causa.
FUNDAMENTAÇÃO
A convicção do Tribunal, quanto aos factos que deu como provados, resultou do teor do auto de notícia, em conjugação com a análise dos documentos supra referidos, sendo de realçar que a arguida não punha em causa esta factualidade.
DO DIREITO
A arguida encontra-se acusada da prática de uma contra-ordenação p.p. no art°. 129, n°. 1, d), e n°. 2, do C. Trabalho, por ter procedido à diminuição da retribuição dos seus trabalhadores.
Da matéria de facto provada resulta que a conduta da arguida preenche linearmente o tipo de ilícito em causa, pois que, a partir de Janeiro de 2012 procedeu à diminuição do montante que pagava aos seus trabalhadores a título de subsídio de alimentação.
Assim, e por se concordar na íntegra com a decisão administrativa, quer no que se refere ao direito aplicado, quer no que se refere às circunstâncias que determinaram a medida da sanção aplicada, sendo ainda de realçar que todas as questões suscitadas pela arguida foram já devidamente apreciadas pela autoridade administrativa em termos que merecem total concordância, mantém-se essa decisão condenatória, declaração que é efectuada nos termos do art°. 39, n°. 4, da Lei 107/09, de 14 de Setembro.
Esclareça-se, apenas, que, tal como consta da decisão administrativa, também consideramos que o montante pago a título de subsídio de refeição, quando excede o que pode ser considerado o montante normal para quele sector actividade, assume clara natureza retributiva.
Na realidade, o conceito amplo de retribuição engloba todo o conjunto de vantagens patrimoniais que o trabalhador recebe, como se lê em M do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho Parte II — Situações Laborais Individuais (5 edição, página 666): “A par do conceito de retribuição e tendo em conta o débito remuneratório amplo do empregador, o conceito de remuneração em sentido amplo, ou simplesmente, remuneração engloba o conjunto das vantagens patrimoniais de que o trabalhador beneficia em razão do seu contrato de trabalho e que podem ou não decorrer do trabalho prestado”.
Ora, nos casos em que o subsídio de alimentação é francamente superior ao aplicável ao sector em causa, como acontece na situação sub judice, ele assume a natureza de uma vantagem patrimonial decorrente do contrato de trabalho e tem, por isso, carácter retributivo, nomeadamente para aplicação do princípio da irredutibilidade consagrado no normativo supra citado.
Por outro lado, é de todo irrelevante que os trabalhadores tenham ou não dado o seu acordo a essa redução: em primeiro lugar, porque se trata de um crédito irrenunciável e, em segundo lugar, por só ser permitida a redução da retribuição nos casos expressamente previstos na lei — art°s. 119, 150, 157, 161 e 305 do O. Trabalho.
Por último, também não tem qualquer relevância, por não constituir fundamento legal, que o comportamento da arguida tenha resultado da situação económica difícil que na altura atravessava.»
Posto isto, constata-se, desde logo, que o tribunal recorrido não se limitou a concordar com a fundamentação constante da decisão administrativa, nos termos do mencionado art. 39.º, n.º 4, reforçando com argumentos jurídicos próprios a verificação da contra-ordenação em apreço, em virtude de o subsídio de refeição ter carácter retributivo; e, quanto à factualidade invocada no recurso de impugnação, não se pronunciou sobre a mesma por a ter considerado irrelevante para a decisão da causa, como depois corroborou ao expressamente referir que a situação económica da empresa não constitui fundamento legal da não condenação e que o acordo negociado com os trabalhadores é contrário à lei laboral.
Em face do exposto, entende-se que a sentença recorrida se pronunciou sobre a única questão de direito suscitada e que o mesmo sucede quanto aos factos invocados, na medida em que este tribunal também os considera irrelevantes para a decisão da causa, como de seguida se explicitará.
Improcede, pois, a primeira questão equacionada.
4.2. Relativamente à verificação da contra-ordenação imputada à arguida, resulta do art. 129.º, n.º 1, al. d) do Código do Trabalho que é proibido ao empregador diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos naquele Código ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, acrescentando o n.º 2 que constitui contra-ordenação muito grave a violação do aí disposto.
Ora, resulta da factualidade provada que a arguida, até Janeiro de 2012, pagava aos trabalhadores devidamente identificados a quantia de € 6,4l/dia, a título de subsídio de alimentação, e que a partir daquele mês (inclusive) passou a pagar-lhes a quantia de € 2,50/dia, montante previsto no CCT entre a ACAP e a FETESE.
De acordo com o n.º 2 do art. 260.º do Código do Trabalho, por remissão para a alínea a) do seu n.º 1, não é de considerar como retribuição o subsídio de refeição, a menos que, na parte que exceda o seu montante normal, tenha sido previsto no contrato de trabalho ou se deva considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
Ora, havendo um critério consistente para determinar o que é valor “normal”, no quadro das estipulações contratuais que vinculem as partes, é esse o que deve ser considerado, antes de recorrer a critério prudencial baseado no custo efectivo de uma refeição decente, ainda que moderado (sendo certo que, nesta apreciação, haveria que ter em conta que o montante pago pela arguida antes da redução excedia o posteriormente pago em valor semelhante ao custo de uma refeição completa e de qualidade numa cantina acessível aos seus trabalhadores, como a mesma alega no art. 24.º do seu recurso de impugnação).
Com efeito, quando o empregador assume o pagamento das despesas de alimentação do trabalhador, ou o faz na totalidade da despesa da refeição ou contribui apenas com uma parte, sendo esta a situação mais vulgar, em que o empregador entrega ao trabalhador uma determinada quantia certa, independentemente de aquele gastar mais ou menos ou até nada gastar.
Assim, se tais quantias estão previstas num instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, o valor nele estipulado deve ser considerado o valor normal a pagar pelo empregador. Isto é, existindo uma base contratual determinando o valor que, para as partes, deveria ser considerado como o “normal” no desenvolvimento do contrato de trabalho, tudo aquilo que for pago acima desse valor de referência, ao longo dos anos e de forma regular e periódica, tem que se considerar, em regra, como fazendo parte da retribuição, tendo até em conta o princípio da boa fé.
Neste sentido, vejam-se o Acórdão da Relação do Porto de 10 de Dezembro de 2007 (Relatora Fernanda Soares) e o Acórdão da Relação de Coimbra de 27 de Outubro de 2016 (Relator Azevedo Mendes) Disponíveis em www.dgsi.pt..
Posto isto, estando preenchidos os elementos da infracção, é por demais evidente que a situação económica da arguida não é circunstância que obste à sua verificação ou à condenação, por inexistir fundamento legal que o preveja, sendo certo que a mesma não o indicou.
É também irrelevante, tendo em conta a proibição plasmada no acima aludido art. 129.º, n.º 1, al. d) do Código do Trabalho, que a redução da retribuição tenha decorrido de acordo, e, por maioria de razão, quais as circunstâncias das negociações que a tanto conduziram, por inexistir fundamento legal que o preveja, sendo certo que a arguida também não o indicou.
Finalmente, é irrelevante que a arguida não tenha agido com a intenção de reduzir a retribuição, como diz, pois a contra-ordenação foi-lhe imputada a título de negligência.
Tais circunstâncias relevam, tão somente, para efeitos de fixação da coima concreta, sendo certo que esta foi estabelecida próximo do limite mínimo e os Recorrentes nada aduzem quanto à questão.
Em face do exposto, improcede o recurso nesta parte.
4.3. Finalmente, os Recorrentes suscitam a questão da não aplicação do art. 551.º, n.º 3 do Código do Trabalho, por inconstitucionalidade.
Constata-se, contudo, que, no recurso de impugnação da decisão administrativa os Recorrentes apenas suscitaram a questão da não verificação da contra-ordenação que lhes foi imputada, em virtude de o subsídio de refeição não ter carácter retributivo e de a sua redução ter decorrido de acordo com os trabalhadores, devido à situação económica da empresa.
Ou seja, a questão ora enunciada não foi invocada.
Ora, uma vez que o Tribunal do Trabalho funciona, no âmbito da sua competência em matéria de contra-ordenações laborais e de segurança social, como instância de recurso, e para mais reapreciando a decisão da autoridade administrativa com a maior das amplitudes, quer de facto, quer de direito, o Tribunal da Relação, em conformidade, funciona essencialmente como instância de revista, e, consequentemente, em termos limitados, quer quanto às decisões judiciais que admitem recurso, quer quanto ao âmbito e efeitos do recurso (arts. 49.º e 51.º, n.º 1 do RPCOLSS).
Assim, em conformidade, como é sabido, “os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último.
É, por isso, constante a jurisprudência no sentido de que aos tribunais de recurso não cabe conhecer questões novas (o chamado ius novorum) mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la.” Cfr. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, p. 5. No mesmo sentido, veja-se António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 87-88.
Aplicando este princípio ao processo penal, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2010, (Relator Santos Cabral) Disponível em www.dgsi.pt., em cujo sumário se refere:
“I - Os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas, não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso. Despistam erros in judicando, ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados (quanto à questão de facto), ou com referência à regra de direito respeitante à prova, ou à questão controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. Assim, o julgamento do recurso não é o da causa, mas sim do concreto recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa. Não pode, pois, o Tribunal Superior conhecer de questões que não tenham sido colocadas ao Tribunal de que se recorre.”
E, no que concerne especificamente ao processo de contra-ordenação, veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 4 de Março de 2015, (Relatora Maria Luísa Arantes) Disponível em www.dgsi.pt., cujo sumário enuncia:
“I - O recurso para o Tribunal da Relação, da sentença que decidiu da impugnação da decisão administrativa de contraordenação, porque visa a reapreciação de questões colocadas na impugnação perante o tribunal da 1ª instância, e não de outras novas, não pode conhecer de uma questão que não foi presente ao tribunal recorrido.”
Em suma, o recurso para o Tribunal da Relação visa apenas a reapreciação de questões colocadas anteriormente perante o tribunal de primeira instância, e não a apreciação de questões novas, pelo que não pode aquele conhecer de uma questão que não foi presente ao tribunal de que se recorre.
No caso em apreço, o tribunal de primeira instância não se pronunciou sobre a questão em apreço, uma vez que os Recorrentes não a submeteram à apreciação daquele, pelo que não pode também o Tribunal da Relação conhecer da mesma Ainda assim, vejam-se os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 240/2013 e 201/2014, que decidiram não julgar inconstitucional a norma em apreço uma vez que o que está em causa na previsão do n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho é a solidariedade quanto ao pagamento da coima e não a solidariedade quanto à infracção.
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Em face do exposto, falece o recurso.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente o recurso, e, em consequência, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.

Guimarães, 29 de Junho de 2017
Alda Martins
Eduardo Azevedo

Sumário (elaborado pela Relatora):
I – Da conjugação das normas do art. 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal (aplicável por força dos arts. 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do RGCO, por sua vez aplicáveis ex vi art. 60.º do RPCOLSS) e do art. 39.º, n.º 4, do RPCOLSS, resulta que o juiz pode legitimamente fundamentar a sua decisão através de mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa, desde que esta se tenha pronunciado sobre todas as questões suscitadas no recurso de impugnação interposto da mesma.
II – Por força do n.º 2 do art. 260.º do Código do Trabalho, o subsídio de refeição não integra, em regra, o conceito de retribuição, a menos que, na parte que exceda o seu montante normal, tenha sido previsto no contrato de trabalho ou se deva considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
III – Assim, tudo aquilo que for pago acima dos montantes previstos no IRCT aplicável, ao longo dos anos e de forma regular e periódica, tem que se considerar, em regra, como fazendo parte da retribuição, tendo até em conta o princípio da boa fé.
IV – O recurso para o Tribunal da Relação, da sentença que decidiu da impugnação da decisão administrativa de contra-ordenação, porque visa a reapreciação de questões colocadas na impugnação perante o tribunal da 1.ª instância, e não de outras, novas, não pode conhecer de uma questão que não foi presente ao tribunal recorrido.
(Alda Martins)