Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
395/15.1GAVLP.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: PERDIMENTO ARMAS
OMISSÃO PRONÚNCIA SENTENÇA
MERA IRREGULARIDADE
RESTITUIÇÃO AO DONO/ARGUIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – O facto de o tribunal não se ter pronunciado na sentença sobre o destino a dar às armas e munições apreendidas nos autos, desse modo incumprindo o disposto no art. 374º, nº3, al. c), do CPP, não gera nulidade, mas tão só mera irregularidade, a qual, por não afetar a decisão do objeto do processo, não determina a invalidade da sentença.

II – Por outro lado, aquela omissão de pronúncia não forma caso julgado, porquanto o tribunal não chegou a apreciar o mérito da questão, não se mostrando, dessarte, perante o silêncio, esgotado o seu poder jurisdicional, continuando o processo a reclamar, com caráter de imprescindibilidade, um ato decisório que dê destino aos objetos apreendidos.

III – O sobredito entendimento conforma-se com o preceituado no art. 186º, nº2, do CPP, quando interpretado este no sentido de a sua aplicação de pressupor que tenha sido dado cumprimento ao disposto no art. 374º, nº2, al. c) do mesmo diploma legal, ou seja, que tenha ocorrido anteriormente uma decisão judicial a dar destino aos objetos.

IV – Por conseguinte, a decisão de declarar perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos ou de ordenar a sua restituição a quem de direito pode ser proferida mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde deveria ser tomada, e sem que tal implique qualquer postergamento de direitos constitucionais e/ou processuais dos visados.

V - Se a decisão de declaração de perda em apreço tivesse sido tomada pelo tribunal a quo no momento próprio, ou seja, na sentença, nem sequer se colocaria a possibilidade de restituição das armas de fogo ao arguido. Na verdade, encontrando-se aquelas armas fora das condições legais, por falta de registo ou manifesto (cf. art. 86º, nº2 da Lei nº 5/2006, de 23.02), a sua detenção por particulares é ilícita, e, como tal, não podia ser promovida, propiciada, pelo próprio tribunal.

VI – A partir do momento em que o tribunal, na esteira do que foi sendo promovido nos autos pelo Ministério Público, concedeu ao arguido a possibilidade de legalizar a posse das armas em questão, o que este efetivamente fez, pela lógica que deve imperar nas decisões judiciais e pelo dever de não frustrar injustificadamente as legítimas expectativas do arguido, devia ter extraído as devidas consequências jurídicas desses factos, tanto mais que não se vislumbra perigosidade inerente a esses objetos, quer pela sua natureza quer pelas circunstâncias do caso, suscetível de colocar em risco a segurança das pessoas e/ou de potenciamento do cometimento de novos factos ilícitos típicos.

VII - As espingardas de caça apreendidas, de calibre 12 (e respetivas munições), não constituem, de per si, pela sua intrínseca natureza, num contexto de análise em que se prescinda da sua concreta utilização ou manejamento, um objeto em si mesmo perigoso. Aliás, facilmente se descobrem razões de cariz recreativo (por exemplo, a caça), socialmente toleradas, que podem justificar a sua aquisição e utilização, pelo que nunca se poderia considerar tais objetos como que “predestinados” ao cometimento de crimes.

VIII - Por outro lado, não resulta das circunstâncias do caso concreto o perigo de utilização das mesmas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

VIII – Tudo implicando que as armas e respetivas munições apreendidas devem ser restituídas ao seu legítimo proprietário, o arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Comum Singular nº 395/15.1GAVLP, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real - Juízo de Competência Genérica de Valpaços, no dia 15.01.2019, pela Exma. Juiz foi proferido despacho com o seguinte teor (junto aos autos a fls. 363 a 368 – referência 32920659):

“Requerimento com a referência 1844610 – Visto.
Nos presentes autos e na sequência da denúncia efectuada, foi ordenada e efectuada busca domiciliária na residência e viatura de arguido – M. F., na decorrência da qual foram apreendidas as armas e as munições constantes do auto de apreensão de fls. 120 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
As referidas armas e munições foram entregues ao Comando Distrital da Policia de Segurança Pública de Vila Real – conforme auto de entrega de fls. 145 - para exame, constando os autos de exame de fls. 146 a 156.
Por sentença de 6-12-2017, transitada em julgado em 18-1-2018 e constante dos autos a fls. 271 a 276 e 280, o arguido M. F. foi condenado na pena de 100 (cem) dias à taxa diária de € 8.00 (oito euros), o que perfaz o total de € 800,00, pela prática de um crime de detenção de arma proibida prevista e punida pelo artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro.

Com pertinência para a decisão, na referida sentença, consta a seguinte factualidade assente:

1 - Em 06.04.2016, o arguido tinha na sua posse e no interior da sua residência, sita na Travessa …, Valpaços, concretamente:
A. Na prateleira superior do 1.º roupeiro do lado esquerdo existente no corredor dos quartos: - Uma espingarda de caça, marca Benelli, de calibre 12.
B. Na prateleira superior do 2.º roupeiro do lado esquerdo existente no corredor dos quartos: - Uma espingarda de caça, marca Verney – Carron, de calibre 12.
C. No armazém agrícola de arrumos anexo à habitação: - Três cartuchos de
bala expansiva, de calibre 12, marca Saga.
2 - O arguido apenas possuía a arma de fogo identificada em 1.º a) registada
em seu nome, porém não era, naquela data, titular de qualquer livrete ou licença de detenção de arma no domicílio.
3 - O arguido bem sabia que não podia nem devia possuir, nem deter as aludidas armas e munições, por não ter a necessária licença de uso e porte, nem de detenção de qualquer arma no domicílio.
4 - Agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se absteve de a prosseguir. (…).

Por requerimentos com as referências 1565813 de 12-3-2018 e 1595522 de 18-4-2018 respectivamente o arguido/condenado, alegando e juntando aos autos comprovativo da titularidade das armas e da licença de uso e porte de arma, requereu a restituição das mesmas.
Por despacho proferido em 24-10-2018 foi declarada extinta, por cumprimento, a pena de multa aplicada ao arguido.


Por ofício com a referência 1786815 de 8-11-2018, o Comando Distrital de Vila Real da Polícia de Segurança Pública, prestou a seguinte informação:

- que M. F. é titular de licença de uso e porte de arma da classe C, com o número .../2018, emitida em 1-2-2018 e válida até 31-1-2023;
- em relação à arma de fogo longa, classe D, Benelli, com o nº .../C505921, calibre 12, manifestada com o livrete nº ..., a mesma encontra-se registada/manifestada em nome do visado, M. F.;
- em relação à arma de fogo longa, classe D, Verney Carron, com o nº ..., calibre 12, manifestada com o livrete nº ..., a mesma encontra/manifestada em nome de F. P., nascido a ..-..-1938, titular do BI ..., falecido em ..-7-2012;
- o visado M. F., herdeiro da arma de fogo, anteriormente descrita em nome de seu pai, até à presente data não encetou qualquer diligência para regularizar a situação, conforme estipulado no artigo 37º (aquisição por sucessão mortis causa) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, com a última alteração introduzida pela Lei nº 50/2013 de 24 de Julho;
- as duas armas, anteriormente descritas, encontram-se em depósito neste Núcleo de Armas e Explosivos do Comando Distrital de Vila Real, à ordem do processo NUIPC: 395/15.1GAVLP, dos presentes autos.

Na sequência da informação prestada pelo Comando Distrital de Vila Real da Polícia de Segurança Pública, no ofício supra aludido, e da promoção da Digna Magistrada do Ministério Público, por despacho de 13-11-2018 foi ordenada a notificação do arguido para que se desloque à P.S.P./Comando Distrital de Vila Real - Núcleo de Armas e Explosivos e diligenciar, relativamente à arma de fogo propriedade de seu pai, já falecido, pela regularização documental da situação, conforme o disposto no art.º 37.º da Lei n.º 5/2006, de 23-02, comprovando nos autos, oportunamente, essa regularização, sob pena de, assim não procedendo, poder a mesma ser declarada perdida a favor do Estado.
Por requerimento com a referência 1806080 de 28-11-2018, M. F., informando que se encontrava a diligenciar pela legalização/regularização documental da arma de fogo, registada em nome do seu falecido pai, requereu prazo para juntar aos autos o respectivo comprovativo.

Por requerimento com a referência 1817634 de 10-12-2018, M. F., nos termos e para os efeitos do artigo 186º, nº 1 do C.P.P., expos e requereu o seguinte:

- Conforme resulta do ofício da Polícia de Segurança Pública, Comando Distrital de Vila Real, datado de 30-10-2018, junto aos autos, o arguido é titular de licença de uso e porte de arma da classe C, com o nº .../2018, emitida em 1-2-2018 e válida até 31-1-2023;
- Constando do mesmo ofício que a arma de fogo, classe D, Benelli, com o nº .../C505921, calibre 12, manifestada com o livrete nº ..., encontra-se registada/manifestada em nome do arguido, tendo já regularizado a arma de fogo longa, classe D, Verney Carron, com o nº ..., calibre 12, que herdou do seu falecido pai – cfr. cópia do livrete nº ..., emitido em 28-11-2018, que se junta sob o documento nº 1;
- Ora, conforme decorre do processo, dele nada resulta que os objectos (armas) apreendidos serviram ou estiveram destinados a servir a prática de um crime;
- Assim como não resulta dos autos que os objectos apreendidos ofereçam sério risco de serem utilizados para o cometimento de factos ilícitos;
- Sendo o arguido titular de uso e porte de armas da classe C;

Face ao exposto e por entender ser desnecessário a manutenção da apreensão dos objectos apreendidos, vem, nos termos e para os efeitos do artigo 186º, nº 1 do CPP, requerer a V. Exa. se digne ordenar a sua restituição ao arguido.
Conclui pelo deferimento.
Com Vista, a Digna Magistrada do Ministério Público, pronunciou-se nos termos e com os fundamentos constante da Vista com a referência 32848498 que aqui se reproduz:

“Ref.ª 1817634:
Vem o arguido requerer a restituição das armas de fogo apreendidas nos autos, alegando, em síntese, que já regularizou a sua detenção e, segundo ele, as mesmas não foram utilizadas para a prática do crime por que foi condenado.
Afigura-se-nos, salvo o devido respeito e melhor entendimento, que não assiste razão ao arguido, de todo.
Atente-se, desde logo e primacialmente, na Sentença condenatória proferida a 06-12-2017, transitada em julgado a 18-01-2018.

Foram dados como provados os seguintes factos, na parte relevante para a questão a apreciar:

“ (…) Em 06.04.2016, o arguido tinha na sua posse e no interior da sua residência, sita na Travessa …, Valpaços, concretamente:

a. Na prateleira superior do 1.º roupeiro do lado esquerdo existente no corredor dos quartos: - Uma espingarda de caça, marca Benelli, de calibre 12.
b. Na prateleira superior do 2.º roupeiro do lado esquerdo existente no corredor dos quartos: - Uma espingarda de caça, marca Verney – Carron, de calibre 12.
c. No armazém agrícola de arrumos anexo à habitação: - Três cartuchos de bala expansiva, de calibre 12, marca Saga.
2. O arguido apenas possuía a arma de fogo identificada em 1.º a) registada em seu nome, porém não era, naquela data, titular de qualquer livrete ou licença de detenção de arma no domicílio.
3. O arguido bem sabia que não podia nem devia possuir, nem deter as aludidas armas e munições, por não ter a necessária licença de uso e porte, nem de detenção de qualquer arma no domicílio.
4. Agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se absteve de a prosseguir.
(…) ”

Com base nesta factualidade, que se consubstancia precisamente na detenção, não autorizada, por ilegal, daquelas mesmas armas de fogo, foi o arguido condenado, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, als. c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23-02 (R.J.A.M.), na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), no total de € 800,00 (oitocentos euros).
Assim sendo, por reporte à data dos autos, o arguido “(…) apenas possuía a arma de fogo identificada em 1.º a) registada em seu nome, porém não era, naquela data, titular de qualquer livrete ou licença de detenção de arma no domicílio. (sublinhado nosso)
3. O arguido bem sabia que não podia nem devia possuir, nem deter as aludidas armas e munições, por não ter a necessária licença de uso e porte, nem de detenção de qualquer arma no domicílio. (sublinhado nosso) (…)”

Pelo exposto, promovo se indefira a requerida restituição e se declarem perdidas a favor do Estado as armas de fogo apreendidas, atento o disposto no art.º 109.º do Código Penal, devendo as mesmas serem entregues à P.S.P., a qual deverá providenciar pelo destino a dar-lhes, de acordo com o preceituado nos art.os 78.º, n.º 1, e 86.º, n.º 1, als. c) e d), do R.J.A.M., o que igualmente se promove.

Notificado o requerente da aludida Vista para se pronunciar no âmbito do exercício do contraditório, o mesmo, apresentou o requerimento com a referência 1844610 no qual alega diz o seguinte:
“Salvo o devido respeito por melhor opinião, não podemos concordar com a douta Promoção do Ministério Público.
Conforme resulta dos autos, foram apreendidas ao arguido duas armas: um
espingarda de caça de marca Benelli e outra de marca Verney-Carron.
Ambas as armas estavam registadas, uma em nome do arguido, a arma de caça Benelli, desde 20/04/1999, e a outra arma herdou-a do seu falecido pai, em -/07/2012, conforme se pode atestar pelos documentos juntos em audiência de discussão e julgamento, que decorreu no dia 27/11/2017.
Na data em que as armas foram apreendidas, o arguido não possuía a necessária licença de uso e porte, porque a que possuía já estava caducada.
Entretanto, o arguido já é novamente titular de licença de uso e porte de arma - cfr. consta dos autos.
Ambas as armas encontram-se registadas/manifestadas em nome do arguido - cfr. consta dos autos.
É verdade que o arguido foi condenado por um crime de detenção ilegal de arma, mas tal deveu-se ao facto de, naquela altura da apreensão, a licença que possuía estar caducada, situação que presentemente está regularizada, não se afigurando, na nossa modesta opinião, que os objectos apreendidos, in casu as armas que estão manifestadas/registadas, ofereçam sério risco de serem utilizadas para o cometimento de factos ilícitos, sendo certo que o arguido conta com 57 anos de idade e no seu registo criminal não tem averbado qualquer outra condenação.
Aliás, diga-se que em anterior Promoção, o Mº.Pº. promoveu a notificação do
arguido para diligenciar no sentido de regularização documental da situação junto da PSP, o que ele acabou por fazer, sob pena de, assim não procedendo, poder a referida arma ser declarada perdida a favor do Estado – cfr. douta Promoção datada de 09/11/2018, o que, na nossa modesta opinião, está em manifesta contradição com a actual Promoção, criando expectativa no arguido de ver recuperadas as armas que legitimamente adquiriu e herdou, e que com a actual Promoção se desvaneceu.
Deste modo, atento o supra exposto e com o mui douto suprimento de V.Exª, requer se digne ordenar a restituição ao arguido das armas apreendidas, porque as mesmas se encontram manifestadas e o arguido é portador de licença de uso e porte de armas.

Cumpre decidir.

Conforme consta supra, nos presentes autos encontram-se apreendidos – conforme auto de apreensão de fls. 120 – uma arma de fogo longa, classe D, Benelli, com o nº .../C505921, calibre 12, manifestada com o livrete nº ..., uma arma de fogo longa, classe D, Verney Carron, com o nº ..., calibre 12, manifestada com o livrete nº ... e três cartuchos de bala expansiva, de calibre 12, marca Saga.
Foi proferida sentença nos autos, transitada em julgado, tendo sido declarada extinta, por cumprimento, a pena aplicada ao arguido.
O Digno Magistrado do Ministério Público promoveu a declaração da sua perda a favor do Estado e consequente entrega à PSP, conforme consta da Vista supra aludida com a referência 32848498.
O requerente, titular das armas pretende a restituição das armas conforme requerimento supra aludido.
Posto isto, cumpre então aferir da pretensão do arguido, ora requerente.
Para o efeito e no que concerne aos fundamentos e requisitos da perda de objectos, seguiremos de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4-11-2015, in www.dgsi.pt
“(…).
Da verificação ou não dos pressupostos legais do perdimento das armas, acessórios e munições apreendidas nos autos
(…)
2.1 Como já tivemos oportunidade de dizer no acórdão desta Relação de 22-05-2013, proferido no recurso nº 2032/10.1PBAVR.C1 (in, www.dgsi.pt), que aqui seguimos de perto, o perdimento dos instrumentos e produtos do crime encontra-se previsto no art. 109º, nº 1, do C. Penal nos termos do qual, são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Como se vê, o instituto da perda dos instrumenta sceleris e dos producta sceleris funda-se em razões de prevenção de futuros crimes, face à sua perigosidade.

São requisitos legais da declaração de perda:

- Que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico ou; que tenham sido o produto isto é, o efeito do facto ilícito típico;
- A perigosidade dos objectos.

No que respeita ao primeiro requisito, duas notas se impõem.
A primeira, para dizer que a referência a «estivessem destinados a servir» tem o sentido de que o perdimento não depende da consumação do facto.
A segunda, para dizer que a referência a «facto ilícito típico» em vez de «crime» tornou claro que a aplicação do instituto não depende da existência de culpa (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 619 e Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 8ª Ed., Almedina, pág. 474).
No que concerne ao segundo requisito, já sabemos que são razões de ordem preventiva que estão na base da declaração de perda. Por isso que, nos termos da lei, nem todos os instrumenta sceleris e producta sceleris devam ser declarados perdidos, mas apenas aqueles que, atenta a sua natureza intrínseca ou seja, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 621).
A perigosidade deve ser considerada de um ponto de vista objectivo.
Há que atender à perigosidade do objecto em si mesmo, face às suas próprias características, e desligado da pessoa que o detém.
Mas também deve ser avaliada em função das concretas condições em que o objecto pode vir a ser utilizado. E esta relação entre a perigosidade objectiva do objecto e as concretas circunstâncias do caso pode, como alerta Figueiredo Dias, determinar uma referência ao próprio agente implicando, nesta medida, que na avaliação da perigosidade intervenha também um ponto de vista subjectivo (ob. cit., pág. 623). O ponto de partida é sempre a perigosidade objectiva do instrumento, à qual se devem juntar as concretas circunstâncias do caso e a personalidade do agente que através da prática do facto se revela, para, numa análise global, se concluir a final, pela perigosidade ou não e consequente perda ou não, do objecto.

2.2. Revertendo para questão a decidir, é verdade que o arguido, como o próprio afirma – conclusão 9ª – não foi julgado nem condenado por crime de violência doméstica ou por qualquer outro crime para os quais se tenha servido das armas apreendidas.
Porém, cumpre notar que a perda de instrumentos e produtos não depende, como supra se referiu, da verificação de um crime, bastando-se com a existência de um facto ilícito típico, havendo a ela lugar, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto (nº 2 do art. 109º do C. Penal). É pois admissível que o arquivamento de um inquérito, na sequência do decurso do prazo fixado para a suspensão provisória do processo, possa dar lugar à declaração de perdimento de objectos apreendidos, como também pode o mesmo suceder em caso de despacho de não pronúncia e mesmo, de sentença absolutória.
Mas o que a lei não dispensa é a verificação, em cada caso, dos requisitos que fixa para o perdimento.

2.2.1. Desde logo, o art. 109º, nº 1 do C. Penal exige que o agente tenha praticado o facto típico e ilícito com o instrumento [pressuposta a relação de causalidade adequada] ou, pelo menos, que a tanto se dispusesse fazer, o que nos remete para o campo da tentativa. Sucede que os factos suficientemente indiciados nos autos não incluem a utilização, pelo arguido, de qualquer uma das armas de fogo apreendidas, na ameaça que fez à ofendida ou em qualquer outra circunstância, nem existe, por outro lado, o mínimo indício de que fosse propósito do arguido vir a usar qualquer uma das referidas armas para coagir ou ofender a integridade física da ofendida. Em boa verdade, apenas existe o declarado receio desta em que tal aconteça.
Se assim não fosse e, portanto, se existissem suficientes indícios de ter o arguido praticado ou propor-se praticar, factos preenchedores do tipo objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica, usando para o efeito, uma ou mais do que uma das armas de fogo apreendidas, mal se perceberia que, atentos os pressupostos previstos no art. 281º, nº 1, e) e f) do C. Processo Penal, tivesse sido decretada a suspensão provisória. (…).”
Conforme consta supra, resulta do nº 1 do artigo 109º do Código Penal que devem ser declaradas perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizadas para o cometimento de novos ilícitos.
E conforme sustenta Paulo Pinto de Albuquerque, in Cometário do Código Penal à luz da Constituição da Republica e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de Paulo Pinto de Albuquerque, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, anotação ao artigo 109.º do Código Penal, “A perda de objectos é exclusivamente determinada por necessidade de prevenção. Não se trata de uma pena acessória, porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque não depende sequer da existência de uma condenação”.
A análise do preceito invocado permite, ainda, constatar que o pressuposto formal da perda de instrumentos e produtos é o da utilização dos mesmos numa actividade criminosa (não sendo necessário que esse crime tenha sido consumado, ou sequer, que possa ser imputado a qualquer arguido) e o pressuposto material é a perigosidade dos objectos, aferida em face da natureza e utilidade social.

No caso em apreço, a primeira das condições indicadas pela lei está verificada, porquanto os objectos em causa – as armas – serviram para a prática do ilícito pelo qual o arguido foi condenado.
Acresce que, estando em causa armas de fogo, não é despiciendo ter presente a potencialidade de as mesmas colocarem em perigo a segurança das pessoas.
Assim sendo, nos termos conjugados do disposto no artigo 109º, nº 1 do Código Penal e por se verificarem os pressupostos legais do perdimento das armas, acessórios e munições, declaram-se perdidas a favor do Estado as armas apreendidas nestes autos e melhor identificadas no auto a fls. 120, quais sejam, uma arma de fogo longa, classe D, Benelli, com o nº .../C505921, calibre 12, manifestada com o livrete nº ..., uma arma de fogo longa, classe D, Verney Carron, com o nº ..., calibre 12, manifestada com o livrete nº ... e três cartuchos de bala expansiva, de calibre 12, marca Saga.
Notifique.”

▪ Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido M. F. interpor o presente recurso, que, após dedução da motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório:

“1ª Por douto despacho foi proferida decisão que declarou como perdidas a favor do Estado as armas apreendidas no processo.
Contudo, a douta Sentença que condenou o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, transitada em julgado em 18-01-2019, não foi indicado o destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime, conforme impõe a alínea c) do nº 3 do art. 374º do CPP;
Assim, salvo melhor entendimento, não tendo sido determinado na Sentença o destino a dar àquelas armas, não pode agora o douto Tribunal “a quo”, depois daquela Sentença ter transitado em julgado, ordenar tal perda, por violação do disposto na alínea c) do citado artigo, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.
Por outro lado, não pode o recorrente concordar com a fundamentação do Despacho recorrido e que determinou a perda daquelas armas a favor do Estado.
Porque o douto Tribunal “a quo”, fundamenta tal decisão no facto de tais armas terem servido para a prática do ilícito em causa e na potencialidade de as armas colocarem em perigo a segurança das pessoas – cfr. artigo 109º, nº 1, do Código Penal;
Contudo, no caso concreto não enuncia expressamente o douto despacho recorrido os motivos de facto e de direito que determinaram a prolação do mesmo.
E a falta de fundamentação inquina o despacho de nulidade insanável, por violação do disposto no artigo 374º, nº 2, do CPP, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.
Sem nada conceder, entendemos que o douto despacho recorrido incorre numa incorrecta interpretação e aplicação do disposto no artigo 109º, nº1 do CP.
Ora, o recorrente primeiramente após o trânsito em julgado da douto Sentença, foi notificado, por douto despacho proferido em 16/04/2018, para juntar aos autos “documentos comprovativos de que as armas de fogo em causa se encontram registadas em seu nome”;
10ª A Polícia de Segurança Pública, por ofício datado de 30/10/2018, remetido aos autos, informa que o recorrente é titular de licença de uso e porte de arma, emitida em 01/02/2018 e as armas encontram-se registadas/manifestadas”
11ª O recorrente tem a idade de 57 anos e não tem averbado no seu registo criminal a prática de qualquer outro crime além daquele que foi condenado nos presentes autos;
12ª O recorrente, como se disse é titular de licença de uso e porte de armas com o n.º .../2018, válida até 31/01/2023.
13ª As armas que lhe foram apreendidas estão registadas/manifestadas em seu nome – cfr. consta dos autos, nomeadamente a licença de uso e porte e cópia dos livretes com os nºs ... e ..., respectivamente.
14ª Nada resulta dos autos que os objectos apreendidos serviram ou estivessem destinados a servir à prática de crimes, uma vez que a arma de caça de marca “Benelli”,
estava registada em nome do arguido desde 20/04/1999 e a outra arma marca “Verney Carron”, herdou-a do seu falecido pai, em -/07/2012;
15ª Assim como não resulta dos autos que os objectos apreendidos ofereçam sério risco ou perigosidade porquanto, as armas estão manifestadas/registadas e o arguido é titular de licença de uso e porte de arma, pois
16ª se assim não fosse, a PSP no uso das competências que lhe foram atribuídas não lhe tinha emitido tal licença.
17ª Destarte se é o próprio Estado, representado através da PSP a quem atribuiu competência exclusiva nesta matéria que permite ao Recorrente a detenção ou uso e porte de arma, através da emissão da respectiva licença, responsabilizando-o e exigindo-lhe um especial comportamento social, não se vislumbra como pode o Tribunal agora vir dizer no Despacho recorrido que existe perigo de cometimento de novos factos ilícitos através daquelas armas;
18ª Diga-se que o arguido preenche os apertados requisitos legais que a Lei nº5/2006 de 23 de fevereiro exige e por via disso, a PSP emitiu a 01/02/2018 a dita licença de uso e porte de armas, que é válida até 31/03/2023;
19ª Por douto despacho datado de 15/04/2019, que declara perdidas a favor do Estado as ditas armas, o douto Tribunal “a quo” sem qualquer motivo ou justificação, baseando-se em meros pressupostos, sem sustentação factual ao caso concreto, violou, por incorrecta aplicação e interpretação entre outros o disposto nos artigos 109º, nº 1, do CPP e a Lei nº 5/2006, de 23/02, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.

Termos em que, atento o supra exposto e com o mui douto suprimento de V.Exªs deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e em consequência ser revogado o douto Despacho recorrido e em consequência ordenada a entrega ao recorrente das armas apreendidas.”

▪ Na primeira instância, o Digno Magistrado do MP, notificado do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou a sua resposta, integrada pela respetiva motivação e as seguintes conclusões (que aqui se transcrevem):

1. As duas armas de fogo e as três munições (cartuchos), que foram apreendidos, estavam na posse e domínio do arguido.
2. Naquela altura, o arguido não era titular de licença de uso e porte de arma.
3. Logo, o mesmo não estava legalmente habilitado a possuir ou ter no seu domínio, como tinha, as armas e munições apreendidas nos autos.
4. A perda de objectos, instrumentos e produtos não está sequer dependente da verificação de um crime ou de uma condenação judicial numa pena.
5. A perda de objectos a favor do Estado assenta em necessidades de prevenção relacionadas com a perigosidade desses mesmos objectos, a qual, no caso das armas de fogo, é bem patente.
6. E, face à perigosidade das armas e munições apreendidas e, bem assim, ao facto de as mesmas terem servido para a prática de um facto ilícito típico, não se descortina qualquer desproporcionalidade no despacho recorrido, tendo em consideração aos bens jurídicos em discussão.
7. Despacho esse, que se mostra devida e correctamente fundamentado, pois, ressalta claramente a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção da Mmª Juíza e a decisão por si tomada.
8. Ou seja, encontra-se bem patente o “itinerário cognoscitivo” que foi seguido.
9. Por todo o exposto, bem andou a Mmª Juíza ao determinar o perdimento das armas e munições a favor do Estado, não se vislumbrando assim a violação de qualquer normativo legal pelo despacho recorrido e ora colocado em crise.
10. E, como tal, deverá ser mantido, na íntegra.

▪ Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador da República, demarcando-se da posição assumida pelo Ministério Público em primeira instância, emitiu parecer sustentando a procedência do recurso.

Alega, em súmula, que:

- Na sentença que puniu o recorrente como autor de um crime de detenção arma proibida (fls. 271 a 276 dos autos) nada se disse quanto ao destino a dar aos objetos apreendidos à ordem deste processo, como deveria e assim o impõe o art.º 374, n.º 3, c), do C. de Processo Penal. Ora, apesar dessa não pronúncia e do subsequente trânsito da aludida sentença, o tribunal a quo estava vinculado à sua restituição por força do art.º 186, n.º 2, do aludido código, posto que, como bem sublinha aliás o recorrente, até ali nenhum perdimento foi decretado. Em tais condições, mostra-se infringido o mencionado preceito legal;
- A justificação do despacho em crise para a subsunção no art.º 109, n.º 1, do C. Penal, outrossim é discutível. Com efeito, o “facto ilícito típico” cinge-se, no caso sub judice, à mera detenção das referidas armas pelo recorrente, guardadas que estavam na sua residência; logo, em bom rigor, não houve, de facto, utilização alguma das armas no sentido naturalístico do termo, antes incidindo a punição, como se viu, na sua detenção que, ela sim e só por si, integra o cerne do ilícito em causa;
- E o segundo dos indicados pressupostos - a perigosidade que faz temer a perpetração de novas infrações, em concreto revelada - também nos parece insuficientemente demonstrado no despacho em análise. Na verdade, se se pode em abstrato dizer, na esteira do que ali se argumenta, que sempre existe a potencialidade de uma qualquer arma de fogo colocar em perigo a segurança das pessoas, certo é igualmente que tal ponderação haverá de considerar ainda as circunstâncias precisas do caso vertente, ponderação essa orientada, além do mais, pela regra da proporcionalidade. Sucede, na situação em apreço, que o recorrente viu a autoridade legal competente para conceder as licenças de uso e porte de armas reconhecer-lhe a idoneidade, decorridos já vários meses sobre a respetiva condenação (v. fls. 347);
- Se assim é, e ademais do óbice processual já referido, cremos desproporcionada a imposição do perdimento;
- Em nota final, adianta o entendimento de que, ao invés do que propugna o recorrente, não ocorre a escassez de fundamentação no sentido de haver sido infringido o art.º 97, n.º 5, do CPP. Notoriamente, o recorrente captou e inteirou-se plenamente da finalidade e dos motivos da decisão recorrida.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*
II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.)(1).

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir são:

A) Requisitos da sentença. Violação do disposto no art. 374º, nº3, al. c), do CPP. Consequências Jurídicas: possibilidade ou impedimento de o tribunal, após o trânsito em julgado da sentença, omissiva quanto ao destino a dar aos objetos apreendidos nos autos, decidir tal questão em momento ulterior, em despacho autónomo, declarando a perda dos mesmos a favor do Estado.
B) Da alegada nulidade insanável do despacho recorrido por falta de fundamentação, por violação do disposto no artigo 374º, nº 2, do CPP.
C) Verificação ou não, no caso sub judice, dos pressupostos legais para o decretamento da perda das armas apreendidas nos autos.
*
III – APECIAÇÃO:

Quanto à primeira questão (A):

Estipula o art. 374º, nº3, al. c), do CPP, sob a epígrafe “Requisitos da sentença”, que a sentença termina pelo dispositivo que contém “a indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas” – redação conferida pela Lei nº 30/2017, de 30.05.

No caso concreto, é ponto assente que a sentença proferida a 06.12.2017 pelo tribunal a quo, transitada em julgado a 18.01.2018, não deu cumprimento ao disposto no sobredito normativo legal, na medida em que não se pronunciou sobre o destino a conferir a objetos apreendidos nos autos, designadamente uma arma de fogo longa, classe D, Benelli, com o nº .../C505921, calibre 12, manifestada com o livrete nº ..., uma arma de fogo longa, classe D, Verney Carron, com o nº ..., calibre 12, manifestada com o livrete nº ..., e três cartuchos de bala expansiva, de calibre 12, marca Saga.

Nessa decorrência, entende o arguido recorrente que não pode o douto Tribunal “a quo”, depois daquela Sentença ter transitado em julgado, ordenar a perda das armas apreendidas no processo, por violação do disposto na alínea c) do citado artigo, devendo, em consequência, tal decisão ser modificada por outra que ordene a entrega desses bens ao recorrente, conforme o disposto no art. 186º, nº2 do Código de Processo Penal (CPP). Invoca, a favor da sua tese, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.01.2014, Processo nº 549/11.0JAPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.
Diferentemente do que sucedeu em primeira instância, em que o Ministério Público pugnou pela manutenção da decisão recorrida e consequente improcedência do recurso (cfr. douta resposta de fls. 386 a 388), o Insigne Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Guimarães pronunciou-se no sentido de assistir razão ao arguido, desde logo pelo sobredito fundamento de recurso invocado, chamando ainda à colação outro aresto proferido, a 30.06.2006, no Processo 413638, pelo Tribunal da Relação do Porto (cfr. douto parecer de fls. 395 a 397).

Da análise jurisprudencial por nós realizada, ressuma existirem, no essencial, três distintas posições sobre a questão ora em apreço, que aqui, resumidamente, se expõem:

a) Uma primeira corrente jurisprudencial (2), coincidente com a defendida pelo recorrente, entende que, transitada em julgado a sentença (ou acórdão) sem que aí tenha sido declarada a perda do(s) objeto(s) apreendidos, o tribunal está impedido de ulteriormente declarar tal perda a favor do Estado, em despacho autónomo, – nomeadamente se tal implicar modificação ou adicionamento de factos da sentença/acórdão –, devendo, antes, em cumprimento do disposto no art. 186º do CPP, restituir tais objetos ao seu legítimo proprietário ou possuidor – representativos deste entendimento são os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-09-2009, processo nº 2143/05.5TBBCL; e do Tribunal da Relação do Porto de 30-06-2004, processo nº 0413638, e de 17-05-2006, processo nº 0610514, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

b) Uma segunda corrente jurisprudencial – aqui denominada simbolicamente por “híbrida” ou “intermédia” –, cremos que maioritária, que, adota, no essencial, o entendimento exteriorizado pela primeira corrente quanto ao momento próprio e único, em regra, para a declaração de perda de objetos, ou seja, na sentença/acórdão, mas permite a ocorrência dessa decisão em momento posterior ao do trânsito da decisão final, ainda que restringida aos objetos que, por se encontrarem fora das condições legais, não podem ser detidos pelos particulares; diferentemente, se estivermos perante objetos apreendidos de detenção lícita por particulares, após o trânsito em julgado da sentença/acórdão, no âmbito do qual o tribunal omitiu pronúncia sobre o destino dos objetos que se encontravam apreendidos, deve ser dado cumprimento ao disposto no art. 186º do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses bens a favor do Estado – neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/10/2013, processo nº 316/09.0JABRG-F.G1, e de 17/01/2011, processo nº 1168/03.0PBGMR; do Tribunal da Relação de Évora de 04/12/2016, processo nº 1072/11.8GTABF-B.E1, e de 16/04/2013, processo nº 28/11.5GBORQ.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt; e ainda do Tribunal da Relação de Évora de 03/06/2014, CJ, 2014, Tomo III, p. 290.

c) Uma última posição jurisprudencial, cremos que minoritária, entende que a omissão da sentença ou acórdão quanto ao destino a dar aos objetos apreendidos relacionados com o crime não gera qualquer nulidade, mas tão só mera irregularidade, a qual, por não afetar a decisão do objeto do processo, não determina a invalidade da sentença. Assim, como a decisão de declarar perdido a favor do Estado o objeto apreendido ou de ordenar a sua restituição a quem de direito não faz parte do objeto do processo, pode ser proferida mesmo depois do trânsito em julgado da sentença ou do acórdão onde deveria ser tomada – assim foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.03.1998, processo nº 1250/97, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 11-01-2012, processo nº 323/09.3GACNF.P1 disponível em www.dgsi.pt, e de 06-04-2011, processo nº 538/06.6GNPRT.P1, este disponível na base de dados jurídica (BDJUR) do TRP; Acórdãos da Relação de Lisboa, de 28-09-1988, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 379, página 625 e de 10-01-1995, este na Coletânea de Jurisprudência, Ano de 1995, Tomo I, página 147; e da Relação de Évora, de 13-05-2003, Coletânea de Jurisprudência, Ano de 2003, Tomo III, página 259.

Ponderados os argumentos esgrimidos por cada uma das teses em confronto, todos doutos e respeitáveis, julgámos – sem que a última das mencionadas, ou seja, a que não toma o momento da sentença (ou acórdão) como sendo impreterivelmente o único em que se pode decidir sobre o destino a dar aos objetos apreendidos no processo, sejam estes de detenção proibida ou lícita, é aquela que, salvo o devido respeito por diverso entendimento, melhor se coaduna com o texto e o espírito da lei e a que assenta em mais sólido estribo jurídico.

Com efeito, a posição contrária, vertida na primeira das sobreditas correntes jurisprudenciais, conduziria a soluções processuais pouco ou nada percetíveis para o cidadão comum e, mormente, para a realização da justiça no caso concreto. Mais: frustrar-se-iam por completo as razões de prevenção que subjazem à medida de perda de objetos legalmente prevista em normas de cariz substantivo (cfr. art. 109º do CP e, na legislação conexa, a título exemplificativo, o art. 35º do DL 15/93, de 22.01.), sendo que as normas processuais destinam-se precisamente a permitir a materialização daquelas.
Pense-se, por exemplo, no caso em que, por ter existido omissão de pronúncia na sentença sobre o destino a dar à droga apreendida nos autos, referente a um crime de tráfico de estupefacientes, o tribunal teria de, nos termos do art. 186º, nº2 do CPP, restituir o produto estupefaciente ao arguido que a possuía aquando da apreensão; ou o caso em que, perante tal omissão de pronúncia, se imporia a devolução de uma arma biológica, radioativa ou suscetível de explosão nuclear ao seu proprietário, arguido nos autos.

E tais nefastas e incompreensíveis consequências, atente-se, decorrem daquele entendimento jurisprudencial sem que os seus defensores sequer assumam que aquela omissão de pronúncia na sentença gera a nulidade desta – nulidade que, como veremos infra, não se verifica.

Destarte, sempre com o devido respeito, não aderimos a tal posição jurisprudencial.
A corrente jurisprudencial aludida na al. b) coloca-se, em parte, a coberto das sobreditas críticas ao permitir que mesmo após o trânsito em julgado da sentença ou acórdão proferido o tribunal possa proferir despacho autónomo a declarar perdidos bens ou objetos de detenção proibida, ilícita, por particulares.
Porém, concedendo-se que a solução encontrada é, na prática, funcional, ela não fundamenta dogmaticamente – do ponto de vista dos efeitos do caso julgado – a razão de se atribuir ou não ao juiz poderes para declarar o perdimento dos objetos, consoante a diferente natureza destes. Na verdade, para que tal tese vingasse pela coerência, o reclamado esgotamento do poder jurisdicional do tribunal após o trânsito em julgado da sentença em que não houve pronúncia sobre o destino a conferir a objetos apreendidos, enquanto impreterível efeito do caso julgado, teria de valer também no que concerne aos bens de detenção lícita por particulares e não só aos que se mostrem de detenção ilícita, porquanto nenhum argumento jurídico válido é apresentado para fundamentar tal dicotomia. Tanto mais que, como é sabido, fundando-se a perda de instrumentos do crime, rectius, do facto ilícito típico, em razões preventivas, verificando-se os pressupostos previstos no nº1 do art. 109º do CP, a perda pode – e deve – ocorrer mesmo relativamente a bens licitamente detidos por particulares (e ainda que não haja decisão condenatória pela prática de um crime).
Em conformidade, também não nos revemos no entendimento veiculado pelos supramencionados doutos arestos.
Aderimos, assim, à última das posições elencadas (descrita na al. c)).
Desde logo porque entendemos que a omissão cometida na sentença ou acórdão de destinar os objetos apreendidos relacionados com o crime (facto ilícito típico) não gera qualquer nulidade, chegando-se a esta conclusão a partir da conjugação do princípio da legalidade que enferma tal espécie de invalidade com a ausência de norma que comine tal omissão com tal consequência.

Prescreve o art.º 118.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei».
Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular – nº2 do art. 118º do CPP.
Ora, a não indicação no dispositivo da sentença do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime, não se encontra prevista no elenco taxativo de nulidades da sentença constante do art.º 379.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Aliás, se o legislador quisesse prever tal efeito para a omissão em causa bastaria aduzir à al. a) do nº1 do art. 379º do CPP uma menção ao disposto na al. c) do nº3 do art. 374º do mesmo diploma legal. Não o fez, presumindo-se que o texto da lei coincide com o pensamento legislativo, isto é, que só quis cominar com nulidade a sentença que não contenha no dispositivo a decisão condenatória ou absolutória.
E, salvo melhor opinião, tal nulidade não resulta também do disposto na al. c) do nº1 do art. 379º do CPP ao preceituar que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, as quais são, para este efeito, delimitadas ao objeto do processo.

Na verdade, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-10-2011, no processo n.º 141/06.0JALRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, a determinação sobre o destino a dar aos objetos relacionados com o crime, embora, como já vimos atrás, deva constar do dispositivo, o certo é que «já está para além da solução da concreta questão que é submetida ao tribunal. Tal como a remessa de boletins ao registo criminal, por exemplo (3). Tais requisitos devem integrar a decisão (…) mas rigorosamente não fazem parte do objeto do processo» (4).
Ressuma do supra expendido que estaremos em face de uma mera irregularidade, a qual, por não afetar a decisão que verdadeiramente concerne ao objeto do processo, não determina a invalidade da sentença ou do acórdão.
Deriva ainda do exposto que a omissão de pronúncia do acórdão condenatório sobre o destino a dar aos objetos apreendidos não forma caso julgado. Tanto mais que se trata da omissão de proferir uma decisão, sem que o tribunal tenha chegado a apreciar o seu mérito. Tal vale para o caso de os objetos deverem ser declarados perdidos a favor do Estado e, outrossim, para o caso de deverem ser restituídos a quem de direito.
Independentemente do trânsito em julgado da sentença e da definitiva fixação de tudo quanto nela se determina, não se pode olvidar que o processo continua a reclamar, com carácter de imprescindibilidade, um ato decisório que dê destino aos objetos apreendidos.

Posto isto, é imperioso conformar o entendimento expendido com o disposto no nº2 do art. 186º do CPP.
Dispõe tal número e artigo que «Logo que transitar em julgado a sentença, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado».
Na esteira do entendimento perfilhado pelos aludidos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 11-01-2012 e de 06-04-2011, cremos que a aplicação desta norma supõe que tenha sido devidamente cumprido o disposto na al. c) do n.º 3 do art.º 374.º do CPP, ou seja, que previamente a ela tenha havido uma decisão judicial a dar destino aos objetos.
Como se refere no aresto de 06-04-2011: “Na omissão dessa decisão judicial prévia, a norma do n.º 2 do art.º 186.º torna-se inexequível, até porque ninguém, além do juiz, tem competência para declarar quem é “quem de direito”. Pode, é claro, defender-se que, após o trânsito da sentença, o Juiz poderá dar um despacho a mandar entregar os bens, vinculando-se aos efeitos da omissão cometida na sentença. Afigura-se-nos tal solução como artificiosa. O caso julgado recairia sobre um silêncio, que teria de ser posteriormente preenchido por uma declaração que respeitasse os efeitos jurídicos desse silêncio.
Afigura-se-nos, ainda, que – sendo certo que o caso julgado visa garantir o direito das partes à estabilidade e segurança asseguradas por uma sentença firme – o facto de, onde a decisão final nada tenha afirmado, o destino dos objetos aprendidos ser dado por despacho proferido depois do trânsito em julgado dessa decisão em nada colide com os direitos constitucionais dos possíveis visados, nomeadamente, com os seus direitos processuais e com o direito de propriedade”.
Mais: “No plano processual não é postergado um direito ao contraditório, que no caso, não existe – o que pode configurar um argumento mais no sentido de que o destino a dar aos objetos apreendidos não é uma “questão da causa”. Quanto ao direito ao recurso, os visados pela decisão têm-no nos mesmos termos em que o teriam da sentença recorrida (enfim, poderá não ser exatamente nos mesmo termos, mas, em todo o caso, em grau suficiente para garantir tal direito). E no que respeita ao direito de propriedade, o despacho posterior ao trânsito em julgado da decisão que julgou a causa é, relativamente aos objetos apreendidos, proferido sob a mesma exigência de observância do direito aplicável, nomeadamente no que se refere aos eventuais direitos de propriedade. A não ser que se queira ver na dedução de efeitos jurídicos da omissão cometida pelo tribunal uma forma legítima de obstaculizar uma declaração de perdimento e por essa via salvaguardar um direito de propriedade de outro modo comprometido.

Em suma, repugna-nos que possa recair caso julgado sob aspetos do processo que, de todo em todo não foram decididos, não se podendo, salvo o devido respeito, afirmar que a omissão os decide negativamente, porque, dada a natureza do que há que decidir, tal não corresponde à realidade, como já bastante referimos”.

Sumariando o pensamento por nós aqui expresso, diremos:

- O momento processual próprio, determinado por lei (art. 374º, nº3, al. c) do CPP), para a decisão quanto ao destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime é a sentença ou o acórdão;
- A omissão da sentença ou acórdão quanto ao destino a dar os objetos apreendidos relacionados com o crime não gera qualquer nulidade, mas tão só mera irregularidade, a qual, por não afetar a decisão do objeto do processo, não determina a invalidade da sentença;
- A decisão de declarar perdido a favor do Estado o objeto apreendido ou de ordenar a sua restituição a quem de direito não faz parte do objeto do processo, razão pela qual pode ser proferida mesmo depois do trânsito em julgado da sentença ou do acórdão onde deveria ter sido tomada;
- A declaração de perda dos preditos objetos, ainda que seja proferida em momento ulterior ao do trânsito da decisão final sobre o objeto do processo, tanto pode reportar-se a bens de detenção ilícita por particular como a bens de detenção lícita, conquanto se mostrem verificados no caso os pressupostos para o perdimento vertidos no nº1 do art. 109º do CP.

Volvendo ao caso objeto do presente recurso, urge concluir que não colhe a douta motivação do recorrente na parte em defende que depois da sentença proferida pelo tribunal “a quo” ter transitado em julgado, sem que ali tenha sido dado destino às armas apreendidas nos autos, não podia aquele Tribunal, ulteriormente, em despacho autónomo, ordenar tal perda, por violação do disposto na alínea c) do nº3 do artigo
374º do CPP.

Como vimos, o tribunal “a quo” não estava impedido – impunha-se mesmo que o fizesse - de decidir, nos termos processuais em que o fez e em momento posterior ao do trânsito em julgado da sentença, sobre o destino a dar às armas apreendidas ao arguido nos autos, no caso optando pela declaração de perda das mesmas a favor do Estado.


Da invocada nulidade insanável do despacho sob recurso (B):

Alega o recorrente (conclusões 5º, 6ª e 7ª da douta motivação) que o Tribunal “a quo” fundamentou a decisão recorrida no facto de as armas que declarou perdidas a favor do Estado terem servido para a prática do ilícito em causa e na potencialidade de as armas colocarem em perigo a segurança das pessoas – cfr. artigo 109º, nº 1, do Código Penal; contudo, no caso concreto, não enuncia expressamente os motivos de facto e de direito que determinaram a prolação do mesmo.
Tal falta de fundamentação, diz, inquina o despacho de nulidade insanável, por violação do disposto no artigo 374º, nº 2, do CPP, o que invoca para os devidos e legais efeitos.
Julgámos que não lhe assiste razão.
Desde logo, a norma processual penal invocada pelo recorrente para fundamentar a alegada nulidade “insanável” não tem aplicação in casu.
Com efeito, tal normativo reporta-se aos requisitos da sentença, e a cominação para a falta de fundamentação, sendo de nulidade, não a reputa de insanável, conforme decorre do cotejo do preceituado no art. 379º, nº1, al. a), primeira parte, com a previsão do art. 119º, ambos do mesmo diploma legal.
Não se olvida que o despacho judicial em apreço, constituindo um ato decisório, também está abrangido pelo dever de fundamentação, devendo nele ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – cf. art. 97º, nºs 1, al. b), e 5, do CPP. Contudo, a eventual falta de fundamentação de ato decisório que não conheça a final do objeto do processo, na ausência de cominação de nulidade, consubstancia uma mera irregularidade, nos termos do disposto no art. 123º do CPP – assim, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, anotação 9 ao art. 97º, p. 269.
Trata-se do corolário do princípio constitucional consagrado no art. 205º, nº1 da Constituição da República Portuguesa.
A fundamentação não está atreita a exigências quantitativas e deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados.
Paulo Pinto de Albuquerque (5) reporta-se à fundamentação como incorporando um juízo racional, “um raciocínio argumentativo que possa ser entendido e reproduzido (nachwollziehbar) pelos destinatários da decisão”.
Paulo Saragoça da Matta (6) entende que “a motivação existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor”.
No despacho em questão, a Meritíssima Juíza, após extensa citação de um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra a propósito de considerações teóricas acerca dos requisitos legais exigíveis, fundamentou sucintamente a decisão recorrida na verificação concreta – em seu entender – dos aludidos pressupostos, formal e material, necessários para a declaração de perda de objetos a favor do Estado.

Fê-lo nos seguintes termos:

“No caso em apreço, a primeira das condições indicadas pela lei está verificada, porquanto os objectos em causa – as armas – serviram para a prática do ilícito pelo qual o arguido foi condenado.
Acresce que, estando em causa armas de fogo, não é despiciendo ter presente a potencialidade de as mesmas colocarem em perigo a segurança das pessoas”.
Ou seja, a Meritíssima Juíza expôs de modo suficiente, claro e percetível o raciocínio lógico que a conduziu à decisão que tomou. Com efeito, elencou os pressupostos legais para que ocorra o perdimento de instrumentos relacionados com o crime, a disposição legal aplicável e os fundamentos de facto que, no seu entendimento, conduzem a que aqueles requisitos se verifiquem no caso concreto.
E tanto assim é que o próprio recorrente, porque entendeu perfeitamente tal motivação, também alega que não concorda com a fundamentação do despacho recorrido e que determinou a perda daquelas armas a favor do Estado (cfr. conclusão 5ª). Ora, não se discorda de algo que não se entende!
Destarte, improcede a invocada nulidade insanável da decisão recorrida, por falta de fundamentação.


Quanto ao último fundamento do recurso (C):

Preceitua o art. 109º do Código Penal (CP) – redação da epígrafe e do art. introduzida pela Lei nº 30/2017, de 30.05, com entrada em vigora a 31.05.2017:

“Perda de instrumentos

1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
2 - O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
3 - Se os instrumentos referidos no n.º 1 não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
4 - Se a lei não fixar destino especial aos instrumentos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.”.

A perda de bens ou de objetos relacionados com o crime tem uma natureza preventiva (7), isto é, sempre que aqueles bens coloquem “em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou [ofereçam] sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos” (art. 109.º, do CP) devem ser declarados perdidos a favor do Estado. O que pode ocorrer independentemente da punição de uma pessoa — nos termos do art. 109.º, n.º 2, do CP, a perda de instrumentos e produtos do crime pode ter “lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto”: casos em que pode ser declarada ainda que tenha havido despacho de arquivamento, por exemplo, ou ainda que tenha ocorrido uma absolvição.
Como menciona Conde Correia, “o que está em causa é remover um perigo, não aplicar uma sanção qualquer. Se não fosse assim, seria (...) uma clara violação da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), por aplicação de uma determinada sanção penal, sem a prévia verificação da culpabilidade” (8).
Quanto à natureza deste instituto, também Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit., p.310) observa que a perda de objetos “Não se trata de uma pena acessória, porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque não depende sequer da existência de uma condenação. Embora não sendo também uma medida de segurança, pois não se baseia na perigosidade do agente, a perda de objetos é uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes decorrente do objeto”.
Esta perigosidade das coisas, que fundamenta a perda de bens a favor do Estado, deve ser avaliada objetivamente, a partir da perigosidade dos bens em si, ou subjetivamente, sempre que sejam considerados perigosos tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, atenta, por exemplo, a utilização que deles se fez ou fará.

Apelando, uma vez mais, às palavras de Conde Correia (ob. cit., pp. 70-72):

“As circunstâncias do caso concreto complementam a natureza objetiva da coisa, cerceando ou delimitando ainda mais o campo da aplicação da norma. O critério utilizado pelo legislador nacional é, assim, um critério misto, que parte das características objetivas da coisa, mas não esquece a natureza específica do caso concreto. Os dois critérios conjugam-se e articulam-se por forma a definir rigorosamente o caráter perigoso da coisa e a limitar os casos em que ela pode ser, por esta via preventiva, confiscada.”.
Ademais, a lei exige que os bens “[tenham] servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por estes tiverem sido produzidos” (art. 109.º, n.º 1, do CP). Isto é, torna-se necessário que o material ou os utensílios tenham sido utilizados para a realização de uma conduta que seja ilícita e típica — “ou, dito de forma explícita: torna-se necessária a verificação de todos os elementos de que depende a existência de um crime, com ressalva dos requisitos relativos à culpa do agente” (Figueiredo Dias, ob. cit., § 985, p. 619).
Em suma, estamos perante um instituto que depende de uma perigosidade dos bens, objetiva ou subjetiva, presente ou futura, e que não depende da culpa do agente. E depende da prática de um facto típico e ilícito.
Havendo a declaração de perda, esta tem uma “eficácia real, com transferência para o Estado da propriedade, sobre a coisa, no momento em que transite em julgado a decisão” (9).
Na jurisprudência, acolhendo, integralmente, o entendimento supra exposto, vide, a título exemplificativo, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.03.2019, processo nº 182/15.7GAMLG-B.G1, e de 17.05.2010, processo nº 3/08.7FIVCT.G1; do Tribunal da Relação do Porto de 25.03.2015, processo 1202/11.0JAPRT-A.P1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.03.2015, processo nº 28/14.3GBSTR-A.C1; do Tribunal da Relação de Évora de 26.02.2013, processo nº 99/11.4EAEVR-A.E1, e de 07.04.2015, processo nº 8/14.9GDPTG.E1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.03.2004, processo nº 903/2004-3, todos disponíveis em www.dgsi.pt, e do TRL de 11.02.2014, este em CJ, 2014, TI, p. 146.

Ressuma do exposto que a declaração de perda de instrumentos prevista no art. 109º do CP pressupõe a verificação de dois pressupostos:

- Um pressuposto formal, impondo a utilização dos instrumentos na prática de um facto ilícito e típico, não sendo necessário que o crime se tenha consumado, nem que seja imputável ao arguido;
- Um pressuposto material, assente na perigosidade dos objetos (10), apreciada pelo julgador casuisticamente, atendendo à natureza intrínseca daqueles, ou seja, à sua especifica e conatural utilidade social, de modo a aquilatar se se mostram especialmente vocacionados para a prática criminosa (11), e/ou às “circunstâncias do caso”, relevando para este efeito, entre o mais, a relação em que se encontram os instrumentos com a pessoa que os possui ou detém e a natureza ocasional ou plúrima da ação criminosa.

No caso sub judicio, a Mma. Juiz atendeu na decisão recorrida à seguinte matéria de facto dada por provada na sentença (transitada em julgado):

Com pertinência para a decisão, na referida sentença, consta a seguinte factualidade assente:

“ 1 - Em 06.04.2016, o arguido tinha na sua posse e no interior da sua residência, sita na Travessa …, Valpaços, concretamente:
A. Na prateleira superior do 1.º roupeiro do lado esquerdo existente no corredor dos quartos: - Uma espingarda de caça, marca Benelli, de calibre 12.
B. Na prateleira superior do 2.º roupeiro do lado esquerdo existente no corredor dos quartos: - Uma espingarda de caça, marca Verney – Carron, de calibre 12.
C. No armazém agrícola de arrumos anexo à habitação: - Três cartuchos de
bala expansiva, de calibre 12, marca Saga.
2 - O arguido apenas possuía a arma de fogo identificada em 1.º a) registada
em seu nome, porém não era, naquela data, titular de qualquer livrete ou licença de detenção de arma no domicílio.
3 - O arguido bem sabia que não podia nem devia possuir, nem deter as aludidas armas e munições, por não ter a necessária licença de uso e porte, nem de detenção de qualquer arma no domicílio.
4 - Agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se absteve de a prosseguir. (…)”.

Foi ainda invocado na decisão recorrida (em conformidade com a prova documental e peças processuais que constam do processo):

“Nos presentes autos e na sequência da denúncia efectuada, foi ordenada e efectuada busca domiciliária na residência e viatura de arguido – M. F., na decorrência da qual foram apreendidas as armas e as munições constantes do auto de apreensão de fls. 120 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

As referidas armas e munições foram entregues ao Comando Distrital da Policia de Segurança Pública de Vila Real – conforme auto de entrega de fls. 145 - para exame, constando os autos de exame de fls. 146 a 156.
Por sentença de 6-12-2017, transitada em julgado em 18-1-2018 e constante dos autos a fls. 271 a 276 e 280, o arguido M. F. foi condenado na pena de 100 (cem) dias à taxa diária de € 8.00 (oito euros), o que perfaz o total de € 800,00, pela prática de um crime de detenção de arma proibida prevista e punida pelo artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro.
Por requerimentos com as referências 1565813 de 12-3-2018 e 1595522 de 18-4-2018, respetivamente, o arguido/condenado, alegando e juntando aos autos comprovativo da titularidade das armas e da licença de uso e porte de arma, requereu a restituição das mesmas.
Por despacho proferido em 24-10-2018 foi declarada extinta, por cumprimento, a pena de multa aplicada ao arguido.

Por ofício com a referência 1786815 de 8-11-2018, o Comando Distrital de Vila Real da Polícia de Segurança Pública, prestou a seguinte informação:

- que M. F. é titular de licença de uso e porte de arma da classe C, com o número .../2018, emitida em 1-2-2018 e válida até 31-1-2023;
- em relação à arma de fogo longa, classe D, Benelli, com o nº .../C505921, calibre 12, manifestada com o livrete nº ..., a mesma encontra-se registada/manifestada em nome do visado, M. F.;
- em relação à arma de fogo longa, classe D, Verney Carron, com o nº ..., calibre 12, manifestada com o livrete nº ..., a mesma encontra-se registada/manifestada em nome de F. P., nascido a ..-8-1938, titular do BI ..., falecido em ..-7-2012;
- o visado M. F., herdeiro da arma de fogo, anteriormente descrita em nome de seu pai, até à presente data não encetou qualquer diligência para regularizar a situação, conforme estipulado no artigo 37º (aquisição por sucessão mortis causa) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, com a última alteração introduzida pela Lei nº 50/2013 de 24 de Julho;
- as duas armas, anteriormente descritas, encontram-se em depósito neste Núcleo de Armas e Explosivos do Comando Distrital de Vila Real, à ordem do processo NUIPC: 395/15.1GAVLP, dos presentes autos.

Na sequência da informação prestada pelo Comando Distrital de Vila Real da Polícia de Segurança Pública, no ofício supra aludido, e da promoção da Digna Magistrada do Ministério Público, por despacho de 13-11-2018 foi ordenada a notificação do arguido para que se desloque à P.S.P./Comando Distrital de Vila Real - Núcleo de Armas e Explosivos e diligenciar, relativamente à arma de fogo propriedade de seu pai, já falecido, pela regularização documental da situação, conforme o disposto no art.º 37.º da Lei n.º 5/2006, de 23-02, comprovando nos autos, oportunamente, essa regularização, sob pena de, assim não procedendo, poder a mesma ser declarada perdida a favor do Estado.
Por requerimento com a referência 1806080 de 28-11-2018, M. F., informando que se encontrava a diligenciar pela legalização/regularização documental da arma de fogo, registada em nome do seu falecido pai, requereu prazo para juntar aos autos o respectivo comprovativo.

Por requerimento com a referência 1817634 de 10-12-2018, M. F., nos termos e para os efeitos do artigo 186º, nº 1 do C.P.P., expôs e requereu o seguinte:

- Conforme resulta do ofício da Polícia de Segurança Pública, Comando Distrital de Vila Real, datado de 30-10-2018, junto aos autos, o arguido é titular de licença de uso e porte de arma da classe C, com o nº .../2018, emitida em 1-2-2018 e válida até 31-1-2023;
- Constando do mesmo ofício que a arma de fogo, classe D, Benelli, com o nº .../C505921, calibre 12, manifestada com o livrete nº ..., encontra-se registada/manifestada em nome do arguido, tendo já regularizado a arma de fogo longa, classe D, Verney Carron, com o nº ..., calibre 12, que herdou do seu falecido pai – cfr. cópia do livrete nº ..., emitido em 28-11-2018, que se junta sob o documento nº 1;
- Ora, conforme decorre do processo, dele nada resulta que os objectos (armas) apreendidos serviram ou estiveram destinados a servir a prática de um crime;
- Assim como não resulta dos autos que os objectos apreendidos ofereçam sério risco de serem utilizados para o cometimento de factos ilícitos;
- Sendo o arguido titular de uso e porte de armas da classe C.

Face ao exposto e por entender ser desnecessário a manutenção da apreensão dos objectos apreendidos, vem, nos termos e para os efeitos do artigo 186º, nº 1 do CPP, requerer a V. Exa. se digne ordenar a sua restituição ao arguido”.

Perante este circunstancialismo factual e processual, a Meritíssima Juíza, após extensa citação de um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra a propósito de considerações teóricas acerca dos requisitos legais exigíveis, fundamentou sucintamente a decisão recorrida na verificação concreta – em seu entender – dos aludidos pressupostos, formal e material, necessários para a declaração de perda de objetos a favor do Estado.

Fê-lo nos seguintes termos:

“No caso em apreço, a primeira das condições indicadas pela lei está verificada, porquanto os objectos em causa – as armas – serviram para a prática do ilícito pelo qual o arguido foi condenado.
Acresce que, estando em causa armas de fogo, não é despiciendo ter presente a potencialidade de as mesmas colocarem em perigo a segurança das pessoas”.
Não concordámos, porém, com o que ali foi decidido.
Concede-se que as armas de fogo em causa serviram para a prática do crime pelo qual o arguido foi condenado – um crime de detenção de arma proibida prevista e punida pelo artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro.
Distanciámo-nos, por isso, do respeitável entendimento a esse propósito defendido pelo arguido/recorrente e pelo MP junto deste tribunal da Relação de que, in casu, não houve de facto, utilização alguma das armas no sentido naturalístico do termo, antes incidindo a punição na sua detenção que, ela sim e só por si, integra o cerne do ilícito em causa.
Salvo melhor opinião, perfilhar tal entendimento conduz ao completo esvaziamento da norma incriminatória que sustentou a condenação do arguido. Parece-nos artificioso distinguir a ação típica de detenção do objeto que é detido, no caso as armas e respetivas munições. A detenção só é punida porque se detém algo que, legalmente, não se podia deter.
Situação semelhante ocorre noutros crimes e face a outras condutas tipificadas como crime sem que, cremos, tal raciocínio seja posto em causa – por exemplo, na detenção de produtos estupefacientes, na contrafação de bens ou na falsificação de documentos. Nestes casos, pensámos que ninguém dúvida que os produtos estupefacientes, os bens contrafeitos ou os documentos em questão foram utilizados para a prática dos respetivos ilícitos criminais, tanto que eles próprios são elementos objetivos integradores dessas condutas típicas.
Ademais, a ausência da efetiva, naturalística, utilização das armas de fogo em causa pode e deve ser antes valorada na apreciação da verificação do segundo requisito (perigosidade do objeto, apreciada objetiva e subjetivamente).
Em conformidade, como entendido no despacho em análise, temos por verificado o primeiro dos pressupostos (formal) exigidos por lei para que pudessem ser declaradas perdidas a favor do Estado as armas apreendidas nos autos.
Diferentemente, não podemos acolher o entendimento vertido pelo tribunal a quo no despacho recorrido de que também se mostra preenchido o segundo dos exigíveis pressupostos (material).
Não é, abstratamente, por estar em causa armas de fogo que se verifica, em concreto, perigo a segurança das pessoas (um concreto perigo e não a mera “potencialidade” de ocorrência desse perigo com que se bastou, e ainda assim genericamente, a julgadora em primeira instância).
Diga-se, primeiramente, que se a decisão em apreço tivesse sido tomada no momento próprio, ou seja, na sentença, nem sequer se colocaria a possibilidade de restituição das armas de fogo ao arguido. Na verdade, encontrando-se aquelas armas fora das condições legais, por falta de registo ou manifesto (cf. art. 86º, nº2 da Lei nº 5/2006, de 23.02), a sua detenção por particulares é ilícita, e, como tal, não podia ser promovida, propiciada, pelo próprio tribunal (12).
Posto isto, a partir do momento em que o tribunal, na esteira do que foi sendo promovido nos autos pelo Ministério Público, concedeu ao arguido a possibilidade de legalizar a posse das armas em questão, o que este efetivamente fez, a Meritíssima Juíza devia ter extraído as devidas consequências jurídicas desses factos, tanto mais que – como abaixo veremos – não se vislumbra perigosidade inerente a esses objetos, quer pela sua natureza quer pelas circunstâncias do caso, suscetível de colocar em risco a segurança das pessoas e/ou de potenciamento do cometimento de novos factos ilícitos típicos.

Decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/09/2010 (citado no sítio www.pgdlisboa.pt em anotação ao art. 109º do CP) que:

“ (…)
IV. A licença de uso e porte de arma é uma licença temporária, sujeita a um prazo de validade, cuja atribuição e renovação está subordinada a determinados requisitos legais. É um acto administrativo incluído na categoria dos actos permissivos que permite a alguém a prática de um acto ou o exercício de uma actividade relativamente proibidos.
V. A caducidade traduz-se, juridicamente, na cessação de produção de efeitos, pelo que uma licença caducada deixa de titular a produção dos efeitos jurídicos respectivos.
VI. A lei dispõe que a renovação da licença de uso e porte de arma deve ser requerida até ao termo do seu prazo. Porém, quando se verifique a caducidade da licença, o respectivo titular, sem prejuízo da referida responsabilidade contra-ordenacional, deve, no prazo de 180 dias, promover a renovação da licença; solicitar outra licença que permita a detenção, uso ou porte das armas adquiridas ao abrigo da licença caducada; ou proceder à transmissão das respectivas armas (artigo 29.º do RJAM).
VII. Num caso em que a arma foi apreendida por estar caducada a licença de uso e porte de arma do seu possuidor, estando também já ultrapassado o prazo de 180 dias para a renovação da dita licença impõe-se concluir no sentido da declaração da perda da arma.”.

Por seu turno, entendeu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-09-2010, CJ, 2010, T4, pág.137:

“Não sendo a espingarda de caça um objecto em si mesmo perigoso, não deve ser declarada perdida a favor do Estado a espingarda de caça que tenha sido apreendida por a validade da licença de uso e porte da arma ter expirado há mais de 180 dias, sem previamente se conceder ao dono da arma apreendida a oportunidade de apresentar licença válida de uso e porte de arma.”.

Parece ter sido esta jurisprudência que em primeira instância foi seguida para dar a possibilidade ao condenado de, no prazo fixado, apresentar licença de uso e porte de arma válida. Em conformidade, pela lógica que deve imperar nas decisões judiciais, esperar-se-ia que se o arguido procedesse em conformidade, obtivesse tal licença e registasse/manifestasse em seu nome a espingarda de caça, arma de fogo longa, classe D, Verney Carron, com o nº ..., calibre 12 (que herdou do seu falecido pai), as armas apreendidas lhe fossem restituídas e que, caso contrário, seriam as mesmas declaradas perdidas a favor do Estado.

Sucede que, inexplicavelmente, na decisão recorrida o Tribunal desprezou integralmente todas as diligências processuais realizadas após o trânsito em julgado da sentença e concomitante acervo probatório atinente à legalização das armas que daí derivou, apesar de, frisa-se, terem surgido por determinação desse tribunal. Limitou-se a referi-las no “relatório” da decisão sem que daí retirasse subsequentemente qualquer ilação; fica-se, pois, sem saber qual a influência que teve no espírito do julgador para a decisão tomada a circunstância de as armas se encontrarem atualmente (e já à data da decisão recorrida) em conformidade com as condições legais e de o arguido ter obtido a necessária licença de uso e porte dessas armas. Aparentemente nenhuma, frustrando as legítimas expectativas do arguido, destinatário dessas sucessivas determinações judiciais, quando é certo que a lei não tolera a prática de atos inúteis (art. 130º do CPC, ex vi do art. 4º do CPP).
Aqui chegados, cumpre ter em conta que, à data do despacho recorrido, o arguido tinha registado em seu nome e manifestado ambas as armas em questão, pelo que se encontravam dentro das condições legais, e, concomitantemente, era titular de licença válida de uso e porte dessas armas – cfr. informação policial de fls. 98, auto de busca e apreensão de fls. 114 a 116, 120 a 122, relatório de informação e documentos anexos de fls. 128 a 139, auto de exame direto e avaliação de fls. 147 a 156, documentos de fls. 310 a 317, informação policial de fls. 347, documento de fls. 356, verso, e o disposto nos arts. 3º, nº6, al. a), 8º, 12º, nº1 e 86º, nºs 1, al. c), e 2, todos da Lei nº 5/2006, de 23.02.
Não se olvida que a titularidade de licença de uso e porte de arma não tem a virtualidade de, pela simples razão de existir, afastar a declaração de perdimento a favor do Estado do objeto atinente, porquanto, para tal efeito, relevante é a perigosidade, reportada ao objeto em apreço e às concretas circunstâncias do caso.
Contudo, no caso vertente, tal perigosidade não se mostra provada.
As espingardas de caça apreendidas, de calibre 12 (e respetivas munições), não constituem, de per si, pela sua intrínseca natureza, num contexto de análise em que se prescinda da sua concreta utilização ou manejamento, um objeto em si mesmo perigoso (13). Aliás, facilmente se descobrem razões de cariz recreativo (por exemplo, a caça), socialmente toleradas, que podem justificar a sua aquisição e utilização, pelo que nunca se poderia considerar tais objetos como que “predestinados” ao cometimento de crimes.
Por outro lado, não resulta das circunstâncias do caso concreto o perigo de utilização das mesmas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Na verdade, não foi suficientemente indiciado que o arguido, no âmbito de um denunciado crime de ameaças cujo procedimento terminou nos autos pelo arquivamento (cfr. despacho do MP de fls. 228 a 231), se tenha socorrido de arma de fogo para as concretizar ou que tivesse intenção de o fazer.
Acresce que o arguido tem carta de caçador válida (cf. doc. fls. 132) e não possuía antecedentes criminais (cf. certificado de registo criminal de fls. 256).
Por último, demonstrou ter interiorizado a censura penal pelo seu comportamento contida na sentença condenatória ao ter diligenciado pela legalização das armas de fogo em questão, que obteve, a par da necessária licença para uso e porte de arma do Tipo C, que lhe permite deter as armas em questão, da classe D.
Conclui-se, destarte, que não se mostra legalmente justificada a decisão que declarou perdidas a favor do Estado as armas de fogo e as munições apreendidas nos autos, pertencentes ao condenado M. F..

Por conseguinte, urge considerar procedente o douto recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que, nos termos do art. 186º, nº2 do CPP, ordene a restituição ao arguido dos sobreditos objetos.
*

IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido M. F. e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que declarou a perda de armas e munições apreendidas nos autos, devendo proceder-se à restituição de tais objetos ao arguido.

Sem custas (arts. 513, nº1 do CPP).
*
Guimarães, 28 de Outubro de 2019,

Paulo Correia Serafim (relator)
Nazaré Saraiva

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)


1. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
2. Na Doutrina, igual entendimento é perfilhado por Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, anotação 4 ao art. 186º, p. 505.
3. E, acrescentámos nós, tal como a ordem para recolha, após trânsito em julgado, da amostra com vista a obtenção do perfil de ADN do condenado ou do inimputável e à respetiva integração na base de dados de perícias de ADN (artigos 8º, nº 2 e 3, da Lei nº 5/2008, de 12.02, conjugado com o art. 18º da mesma lei), ou a decisão sobre as custas.
4. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, anotação 2 e. ao art. 379º, p. 963, parece sufragar este entendimento ao não incluir esta específica questão da perda de objetos nas omissões de pronúncia geradoras de nulidade da sentença que ali elenca.
5. Ob. cit., anot. 6 ao art. 97º do CPP, p. 268.
6. “A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, 2004, Almedina, p. 267.
7. Vide, entre outros, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português (As consequências jurídicas do crime)”, Lisboa: Ed. Notícias/Æquitas, 1993, § 979 (p. 616); Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, UCE, anotação 1 ao art. 109º, pp. 310 e 311; Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, in “Código Penal Anotado e Comentado”, 2ª Edição, Quid Juris, anot. 3 ao art. 109º, p. 325.
8. “Da proibição do confisco à perda alargada”, INCM/PGR, 2012, p. 69.
9. Figueiredo Dias, ob. cit., § 999, p. 628; igualmente, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., anot. 16 ao art. 109º, p. 313.
10. Perigo para a segurança pública, a moral ou ordem públicas, ou de cometimento de novos factos ilícitos típicos.
11. Cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. p. 621.
12. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.05.2017, citado no sítio www.pgdlisboa.pt em anotação ao art. 109º do CP: “Não é possível devolver ao possuidor, que não tem licença para a sua detenção, uma arma não registada, que por isso deve ser declarada perdida a favor do Estado, independentemente da verificação dos requisitos do artº 109º CP, por ser arma fora do comércio jurídico e insusceptível de ser possuída por particulares”.
13. Assim também se considerou no já citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.09.2010