Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2228/19.0T8VNF-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
ABUSO DE DIREITO
RELAÇÕES IMEDIATAS
AVALISTA
DEVERES DE COMUNICAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende.
II- O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos dois anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da ação executiva contra os avalistas, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no artigo 334º do Código Civil, na modalidade de "venire contra factum proprium".
III- Ocorrendo por parte da exequente, a violação do dever de informação quanto às cláusulas relativas aos pactos de preenchimento das livranças exequendas, a consequência daí decorrente será apenas a exclusão dessas cláusulas dos respetivos contratos.
IV- Sendo os embargantes demandos na ação executiva na qualidade de avalistas e não como outorgantes nos contratos para cujo cumprimento foram emitidas as livranças, aquelas exclusões não afetam os avales prestados enquanto negócios cambiários.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

J. E. e M. G. deduziram os presentes embargos de executado à execução intentada por “X – Sociedade de Garantia Mútua, SA”, pedindo que sejam julgados procedentes os embargos e, em consequência, extinta a execução.

Alegaram o abuso de direito da exequente por apenas haver procedido ao preenchimento das livranças oferecidas à execução em 02/08/2018 e 13/08/2018, por garantias prestadas no âmbito de contratos vencidos, se não antes, pelo menos em 26/01/2016 (data da declaração de insolvência da subscritora); a nulidade do aval prestado por violação pela embargada dos deveres de comunicação e informação; e a falta de interpelação dos avalistas para pagamento.
Contestou a exequente, descrevendo os contratos subjacentes à emissão das livranças oferecidas à execução - dois contratos de emissão de garantia autónoma á primeira solicitação que celebrou com a “Y Medical, Unipessoal, Lda.” – que foram avalizadas pelos ora embargantes como garantia do cumprimento daqueles. No mais, impugna a materialidade alegada pelos embargantes.
Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a oposição à execução por embargos, totalmente improcedente, determinando o normal prosseguimento da instância executiva.

Os embargantes interpuseram recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:

1. Os Apelantes entendem que, ao julgar improcedente a oposição à execução e, consequentemente, ordenar o normal prosseguimento da acção executiva, o Tribunal de Primeira Instância incorreu em erro na aplicação do Direito.
2. Os títulos executivos constituem duas livranças avalizadas (em branco) pelos Apelantes, sendo que apenas a Embargante mulher era gerente da sociedade devedora principal.
3. O pacto de preenchimento das livranças consta da cláusula 4ª dos contratos de garantia autónoma juntos com a contestação como Doc. nºs 1 e 2.
4. O Tribunal ‘a quo’ considerou tais cláusulas como juridicamente inexistentes ao excluí-las dos contratos, pelo facto de as mesmas não terem sido negociadas, nem informadas e esclarecidas aos Embargantes/Apelantes.
5. Considerando os factos dados como provados na douta sentença recorrida (pontos nºs 10, 14, 15 e 16) e ainda os factos não provados («A Embargante houvesse informado e explicado aos Embargantes avalistas o conteúdo dos contratos referidos em 4 e 6, designadamente o teor da cláusula 4ª dos mesmos» e «A Embargante houvesse facultado ao Embargante marido fotocópia ou duplicado desses contratos»), o Tribunal ‘a quo’ deveria ter julgado procedente a excepção do abuso de direito e, sem conceder, a nulidade do aval.
6. A Exequente agiu em claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, quando demandou judicialmente os avalistas, ora Apelantes, dando à execução as livranças, já que: a Exequente considerou os contratos vencidos em 23/07/2015, em face do incumprimento da devedora principal; esta última foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado em 16/02/2016; a Exequente reclamou, nesse processo de insolvência, um crédito no valor de € 14.577,72; em 10/10/2016, foi proferido despacho de encerramento do processo de insolvência, pelo que, pelo menos, a partir dessa data, a Exequente tinha conhecimento que não lograria a satisfação (total ou parcial) do seu crédito junto da devedora principal; a Exequente preencheu as livranças (subscritas em branco), apondo-lhes, como data de vencimento, 02/08/2018 e 13/08/2018.
7. Sendo certo que, a cláusula 4ª, a qual o Tribunal ‘a quo’ argumentou que não fixava qualquer prazo para a Embargada preencher as livranças exequendas, é precisamente a mesma cláusula que o Tribunal excluiu dos contratos.
8. Por outro lado, a nulidade do pacto de preenchimento vertido na cláusula 4ª do contrato e dele excluída, por violação dos deveres de comunicação e de informação, inquina o aval, afectando-o do mesmo vício.
9. Assim, a Exequente não tem fundamento legal para proceder ao preenchimento das livranças e, consequentemente, alegar que não foram pagas pelos Embargantes.
10. Afigura-se desprovido de fundamento de facto e de direito que o Tribunal de Primeira Instância conclua ser «muito pouco provável que os Embargantes, não obstante o nível de escolaridade baixo comparativamente com os padrões actuais (…) desconhecessem o que significa prestar o aval numa livrança, pois que a generalidade das pessoas sabe bem o que significa uma livrança e ser avalista».
11. Ao decidir como decidiu, o Tribunal ‘a quo’ violou as normas ínsitas nos artigos 334º do Código Civil e no artigo 9º, nº2 do Decreto-Lei nº446/85, de 25 de Outubro.
Pelo exposto, deverão V. Exas. Senhores Juízes Desembargadores conceder provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue verificada a excepção do abuso de direito e a nulidade do aval,
ASSIM SE FAZENDO INTEIRA JUSTIÇA.

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a existência de abuso de direito por parte da exequente por apenas haver preenchido as livranças em agosto de 2018 e com a nulidade do aval prestado por violação por parte da embargada do dever de comunicação e informação.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:
Factos provados
1. X – Sociedade de Garantia Mútua, S.A. intentou, em 28 de Março de 2019, contra os Embargantes J. E. e M. G., a execução de que os presentes autos são apenso, para pagamento da quantia de 17 129,56 € (Dezassete Mil Cento e Vinte e Nove Euros e Cinquenta e Seis Cêntimos) – cfr. requerimento executivo junto aos autos principais.
2. Fundou a execução no facto de ser legítima portadora, de dois escritos, denominados «livrança», subscritos/aceites pela sociedade «Y Medical, Unipessoal Lda.» e avalizados à subscritora pelos Executados J. E. e M. G., no valor de € 4 609,02 (Quatro mil seiscentos e nove euros e dois cêntimos) e de € 12 007,56 (Doze mil e sete euros e cinquenta e seis cêntimos).
3. A X – Sociedade de Garantia Mútua, S.A. juntou como títulos executivos duas livranças:
a) Livrança n.º ...............96, no valor de € 4 609,02 (Quatro mil seiscentos e nove euros e dois cêntimos), com data de emissão em 01/08/2018 e vencimento em 13/08/2018, onde se encontra inscrita a referência «Titulação da Garantia Autónoma 2012.......64, subscrita pela Y Medical, Unipessoal Lda. e avalizada pelos ora Embargantes;
b) Livrança n.º …………….25, no valor de € 12 007,56 (Doze mil e sete euros e cinquenta e seis cêntimos), com data de emissão em 01/08/2018 e vencimento em 13/08/2018, onde se encontra inscrita a referência «Titulação da Garantia Autónoma 2014.......93, subscrita pela Y Medical, Unipessoal Lda. e avalizada pelos ora Embargantes.
4. Em 13 de Julho de 2012, entre a sociedade Y Medical, Unipessoal Lda., nesse acto representada pela sua gerente e ora Embargante M. G., celebrou com a X – Sociedade de Garantia Mútua, S.A. um contrato mediante o qual esta prestou uma garantia autónoma à primeira solicitação com o n.º 2012.......64 a favor do Banco ..., SA.
5. Através dessa garantia, a Exequente assegurou o cumprimento da obrigação de reembolso quanto a 75% do capital mutuado, em dívida a cada momento, no valor máximo de € 11.250,00 (onze mil, duzentos e cinquenta euros), no âmbito de um contrato de empréstimo celebrado entre aquela instituição financeira e a referida Y Medical, Unipessoal Lda..
6. No dia 19 de Fevereiro de 2014, no exercício da sua actividade, a Exequente e a Y Medical, Unipessoal Lda., nesse acto representada pela sua gerente e ora Embargante M. G., celebraram um outro contrato mediante o qual a Exequente prestou uma garantia à primeira solicitação com o n.º 2014.......93 a favor do Banco ..., SA..
7. Através dessa garantia, a Exequente assegurou o cumprimento da obrigação de reembolso quanto a 75% do capital mutuado, em dívida a cada momento, no valor máximo de € 11.250,00 (onze mil, duzentos e cinquenta euros), no âmbito de um novo contrato de empréstimo celebrado entre aquela instituição financeira e a referida Y Medical, Unipessoal Lda..
8. Para garantia das responsabilidades decorrentes da celebração dos contratos de emissão da garantia autónoma à primeira solicitação acima referidos em 4. e 6. A Y Medical, Unipessoal Lda. entregou à Exequente/Embargada as livranças identificadas em 3..
9. No momento em que foram assinadas e entregues à Exequente, as livranças apenas continham a identificação do beneficiário, encontrando-se os restantes elementos em branco, designadamente a data de emissão, a data de vencimento e o valor.
10. Os Embargantes J. E. e M. G. assinaram os contratos de emissão de garantia autónoma referidos em 4. E 6., na qualidade de avalistas, cujas cláusulas foram formuladas pela Embargada, sem prévia negociação, sendo o seguinte o teor da Cláusula Quarta dos referidos contratos:
“Para garantia de todas as responsabilidade que para V. Exas. emergem do presente contrato, deverão (…) entregar, nesta data, à K, livrança em branco por V. Exas. subscrita e avalizada pelas entidades abaixo identificadas, as quais expressamente e sem reservas dão o seu acordo ao presente contrato e às responsabilidades que para si emergem do mesmo. A referida livrança ficará em poder da K, ficando esta, desde já, expressamente autorizada, quer pelo subscritor quer pelos avalistas, a completar o preenchimento da livrança quando o entender conveniente, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, local de emissão e de pagamento e indicando como montante tudo quanto constitua o seu crédito sobre V. Exas.”
11. Face ao incumprimento dos contratos de empréstimo por parte da Y Medical, Unipessoal Lda., o Banco ..., SA. declarou o vencimento antecipado dos mesmos e accionou as garantias autónomas emitidas pela Exequente a seu favor no dia 23 de Julho de 2015:
a) Accionou a garantia n.º 2012.......64 solicitando à Exequente o pagamento do valor total de € 4.017,85 (quatro mil, dezassete euros e oitenta e cinco cêntimos), correspondente a 75% do capital em dívida pela Y Medical, Unipessoal Lda. junto do Banco;
b) Accionou a garantia n.º 2014.......93 solicitando à Exequente o pagamento do valor total de € 10.071,71 (dez mil, setenta e um euros e setenta e um cêntimos), correspondente a 75% do capital em dívida pela Y Medical, Unipessoal Lda. junto do Banco.
12. A Exequente pagou ao Banco ..., SA. as importâncias solicitadas, ambas no dia 27 de Agosto de 2015.
13. No dia 27 de Agosto de 2015 a Exequente enviou cartas à Y Medical, Unipessoal Lda. dando conhecimento do acima exposto e solicitando o pagamento das quantias por si pagas ao Banco.
14. A sociedade Y Medical, Unipessoal Lda. foi declarada insolvente por sentença proferida em 26/01/2016, no âmbito do processo nº9460/15.4T8VNF, que correu termos pela Comarca de Braga, Instância Central de Vila Nova de Famalicão, 2ª Secção do Comércio, J4, e transitada em julgado em 16/02/2016.
15. Nessa insolvência, a Exequente reclamou um crédito no valor de € 14.577,72, não tendo havido lugar a sentença de verificação e graduação de créditos pois, por decisão de 31/10/2016, foi a instância de reclamação de créditos julgada extinta, por inutilidade superveniente da lide em razão do encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa.
16. Em 10/10/2016, foi proferido, no âmbito do processo nº9460/15.4T8VNF, despacho de encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, o qual transitou em julgado em 26/10/2016.
17. No dia 2 de Agosto de 2018, a Exequente, no âmbito da garantia n.º 2012.......64, remeteu cartas registadas com aviso de recepção à Empresa e aos avalistas/Executados a solicitar o pagamento do montante de € 4.609,02 (quatro mil, seiscentos e nove euros e dois cêntimos) e a informar dos termos de preenchimento da livrança, com a advertência de que em caso de não pagamento até à data de vencimento – 13 de Agosto de 2018.
18. Também no dia 2 de Agosto de 2018, a Exequente, no âmbito da garantia n.º 2014.......93, remeteu cartas registadas com aviso de recepção à Empresa e aos avalistas/Executados a solicitar o pagamento do montante de € 12.007,56 (doze mil, sete euros e cinquenta e seis cêntimos) e a informar dos termos de preenchimento da livrança, com a advertência de que em caso de não pagamento até à data de vencimento – 13 de Agosto de 2018.
19. As cartas referidas em 17 e 18 remetidas aos ora Embargantes foram endereçadas para a Rua …, tendo sido devolvidas ao remetente com a indicação “Não atendeu”.

Factos não provados

Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa, designadamente que:

- A Embargada houvesse criado nos Embargantes a convicção de que não procederia ao preenchimento das livranças e à cobrança do valor do crédito que detém sobre a devedora principal “Y Medical, Unipessoal, lda.”;
- Ao assinar as livranças, o Embargante marido não tenha sido confrontado com os Contratos das Garantias autónomas nº 2012.......64 e nº 2014.......93, nem estes lhe tenham sido dados a ler (prévia ou posteriormente);
- A Embargante houvesse informado e explicado aos Embargantes avalistas o conteúdo dos contratos referidos em 4 e 6, designadamente o teor da cláusula 4ª dos mesmos;
- A Embargante houvesse facultado ao Embargante marido fotocópia ou duplicado desses contratos;
- Os Embargantes não se encontrassem familiarizados com a figura do aval.

Os apelantes não põem em causa a decisão de facto, pelo que estes são os factos a ter em conta para a apreciação do recurso.

A primeira questão que suscitam prende-se com o abuso de direito.

Entendem que a exequente atuou em abuso de direito ao ter preenchido as livranças apenas em agosto de 2018, quando desde outubro de 2016 sabia, já, que não lograria a satisfação do seu crédito junto da devedora originária, gerando junto dos embargantes uma situação de confiança face à sua total inação durante dois anos, aproveitando-se da sua própria inércia para imputar aos executados o pagamento de valores que não seriam devidos caso tivesse atuado com a diligência devida, na medida em que, entretanto, se venceram juros de mora que a exequente incluiu no valor das livranças exequendas.

Mas os apelantes não têm razão.

Segundo o artigo 334º do C. Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Porque o Código Civil vigente consagrou a concepção objectivista do abuso de direito, não se exige, por parte do titular do direito, a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que, objectivamente, esses limites tenham sido excedidos de forma manifesta e grave – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2010, in www.dgsi.pt.
«O abuso de direito, consubstanciado num «venire contra factum proprium», consiste em alguém, comportando-se de maneira a criar na outra parte a legítima convicção de que certo direito não seria exercido, vem depois a exercê-lo.» - Acórdão da Relação do Porto de 29/09/97 in CJ, ano XXII, tomo IV, pág. 200.
Contudo, para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, do Código Civil, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de direito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congeminações. A lei não se contentou com qualquer excesso; o excesso cometido tem que ser manifesto para poder desencadear a aplicabilidade do artigo 334º, por isso, os tribunais só podem fiscalizar a "moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso" – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, página 298 e 299. “Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos “clamorosamente ofensivos da justiça” – autores e obra citada.
E para que o abuso de direito exista, não basta que o exercício do direito pelo seu titular, cause prejuízo a alguém - a atribuição de um direito traduz deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com aqueles confluentes -, sendo necessário, sim, que o titular dele manifestamente exceda os limites que lhe cumpre observar, impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido.

Vejamos, então, o nosso caso.

A livrança em branco define-se como aquela a que, ainda que falte algum ou faltem alguns dos requisitos essenciais mencionados no art. 75.º da Lei Uniforme relativa Letras e Livranças “incorpora, pelo menos, uma assinatura que tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária”, “destinando-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado ‘acordo ou pacto de preenchimento’ – Cfr. Acórdão do STJ de 24/10/2019, processo n.º 295/14.2TBSCR-A.L1.S1 (Nuno Pinto Oliveira).
Ora, nos termos do disposto nos arts. 10.º, 75.º e 77.º da LULL, as livranças emitidas nestas condições produzem todos os efeitos deste título de crédito, conquanto os vários intervenientes cambiários tenham acordado (pacto de preenchimento) os termos em que o tomador há-de preencher os elementos em falta, como em concreto aconteceu.
E, nos termos do art. 32.º, ex vi do art. 77.º, ambos da LULL, o dador de aval é responsável pela mesma maneira que a pessoa por ele afiançada (o subscritor).
O avalista não se obriga perante o avalizado, mas sim perante o titular da livrança, respondendo como obrigado direto, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança.
Ora, do singelo facto da exequente não ter accionado as livranças logo que se apercebeu de que não iria cobrar o valor em dívida da devedora originária e ter aguardado cerca de dois anos para o fazer, não podem os executados concluir que as referidas livranças não iriam ser executadas ou teriam que o ser de imediato, a fim de não se acumularem juros. Aliás, como resulta da matéria de facto, não se provou que “a exequente houvesse criado nos executados a convicção de que não procederia ao preenchimento das livranças e à cobrança do valor que detém sobre a devedora principal “Y Medical, Unipessoal, Lda.””. Ou seja, não se provou qualquer comportamento da exequente, para além do simples facto de não ter exigido antes, aos avalistas, a quantia em dívida, que fizesse prever o não preenchimento das livranças e que incutisse nos executados a confiança em como tal iria suceder.
Assim, o comportamento da exequente não foi de molde a criar nos executados a convicção de que nunca iria preencher as ditas livranças. De igual modo, não se encontra neste comportamento uma intolerável contradição com o seu comportamento anterior (que foi, aliás, o de tentar cobrar a quantia em dívida, designadamente, reclamando o seu crédito na insolvência), não se vislumbrando neste qualquer renúncia ao seu direito de obter o pagamento.
Veja-se, a este propósito, e neste sentido, o Acórdão do STJ de 19/10/2017, processo n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1 (Rosa Tching), in www.dgsi.pt: “O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole, com a sua conduta, os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende. O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da ação executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no artigo 334º do Código Civil, na modalidade de "venire contra factum proprium"”.
Na expressão de Paulo Sendim, in “Letra de Câmbio”, vol. II, pág. 149, citado no referido Acórdão do STJ de 19/10/2017, “ao dar o aval ao subscritor em livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento, assumindo mesmo o risco de esse contrato não ser respeitado e de ter de responder pela obrigação constante do título como ela «estiver efectivamente configurada».
Pode ler-se, ainda, neste Acórdão: “De realçar que, enquanto a livrança não for preenchida e nela inserida a data de vencimento, não começa o prazo de prescrição da obrigação cambiária referido no artº 70º, ex vi do artº 77º, ambos da LULL, o qual conta-se a partir da data constante do título como sendo a do seu vencimento (e não da data da celebração do negócio subjacente à emissão do título. Neste sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 05.12.2006 (revista nº 2522/06-1ª Secção), publicado in www.dgsi.pt), porquanto só com a aposição do montante titulado e da data de vencimento é que a subscritora e seus avalistas passam a ser considerados como devedores perante o portador da livrança. Vale tudo isto por dizer que, até que se operasse a prescrição da livrança exequenda (que nem tão pouco foi invocada pela recorrente), o banco podia instaurar a execução no momento que tivesse por mais conveniente, conforme o acordado, não se vislumbrando que da demora em fazê-lo se possa inferir, sem mais, que o mesmo, enquanto portador da livrança avalizada pela recorrente, prescindisse de usar do seu direito de fixar a quantia devida e a data de vencimento que o pacto de preenchimento lhe facultava, exigindo aos avalistas o respetivo pagamento”.
Mantendo-se o aval prestado pelos recorrentes estes deveriam contar, a qualquer momento, com o exercício do direito de cobrança coerciva dos créditos vencidos (neles se incluindo capital, juros e despesas), designadamente pela via da ação cambiária.
A atuação do banco não é violadora dos princípios da boa-fé e da confiança, “não se podendo inferir do simples facto do mesmo ter desencadeado os meios legais para obter a cobrança do crédito titulado na livrança que ele atuou com abuso de direito, nomeadamente por violação da tutela da confiança – venire contra factum proprium – ou por qualquer outro fundamento susceptível de integrar a figura do abuso de direito prevista no art. 334º do C. Civil” – Acórdão citado.
Não há, pois, no simples decurso do tempo, traição da confiança dos executados em conduta anterior da exequente, não consistindo aquele uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico da sociedade, atentas as conceções ético-jurídicas dominantes, nem manifesta violação do princípio da boa fé.
Não incorreu, assim, a exequente em abuso de direito ao preencher as livranças e dá-las à execução no momento em que o fez, improcedendo, nesta parte, a apelação.

A outra questão suscitada pelos apelantes prende-se com a nulidade do aval.
Entendem que, tendo sido considerado na sentença recorrida – com trânsito em julgado, uma vez que não houve recurso nessa parte - que, por violação dos deveres de comunicação e informação que cabiam à exequente, tem-se como excluída a cláusula 4.ª dos contratos subjacentes à emissão das livranças e que respeitava aos termos do preenchimento das livranças, o pacto de preenchimento não subsiste e, sendo nulo este pacto, essa nulidade inquina o aval, afectando-o do mesmo vício.
Não há dúvida que na sentença recorrida se considerou excluída a cláusula 4.ª dos contratos em virtude de não ter a embargada logrado demonstrar “que houvesse, efetivamente, comunicado aos embargantes o teor das cláusulas em questão nos presentes autos, em especial a cláusula respeitante aos termos do preenchimento da livrança – cláusula 4.ª. O que significa, portanto, que tal cláusula deverá ter-se por excluída”.
Contudo, concluiu-se “daí não decorre, todavia, que os embargantes se possam eximir do cumprimento dos avales prestados, pois que tal circunstância, contrariamente ao por si propugnado, não afeta a validade do aval”

No caso presente, como já vimos, os embargantes foram demandados na qualidade de avalistas e não como outorgantes dos contratos que estiveram subjacentes à emissão das livranças dadas à execução, tendo subscrito esses contratos e as livranças como avalistas.
Ou seja, encontramo-nos no domínio das chamadas relações imediatas.
Tem-se entendido, tal como se afirma no Ac. do STJ de 22.10.2013, Proc. nº 4720/10.3T2AGD-A.C1 (Alves Velho), in www.dgsi.pt, que «quando o avalista tenha tomado parte no pacto de preenchimento do título em branco, subscrevendo-o, devam ser qualificadas de imediatas as relações entre ele e o tomador ou beneficiário da livrança – pois que não há, nesse caso, entre o avalista e o beneficiário do título interposição de outras pessoas -, o que confere ao dador da garantia legitimidade para arguir a exceção, pessoal, da invalidade do pacto de preenchimento.»
Assim, porque e enquanto no domínio das relações imediatas, os embargantes podiam opor à exequente, como fizeram, os meios de defesa relativos à relação causal a que se vincularam, designadamente discutir a invalidade do pacto de preenchimento e a nulidade do seu aval, não obstante a independência da obrigação do avalista em relação à obrigação do avalizado.
Foi, nessa sequência que a cláusula 4.ª, que respeita aos pactos de preenchimento das livranças, se considerou excluída dos contratos, por violação do dever de comunicação e informação por parte da exequente.
Contudo, a exclusão de tal cláusula, não conduz à nulidade dos contratos de garantia autónoma celebrados entre a exequente e a devedora originária, subscritora dos mesmos, como aliás, resulta do disposto no artigo 9.º da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (DL 446/85 de 25 de outubro) que preceitua que os contratos se mantêm, vigorando, na parte afetada, as normas supletivas aplicáveis, salvo se ocorrer uma indeterminação insuprível de aspetos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé.
Sublinhe-se também, neste domínio, que a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada (artigo 292º do CC) demonstração que, no caso em apreço, não foi feita.
Assim, a simples exclusão da cláusula 4.ª, nunca conduziria, nos termos destes normativos, à nulidade dos contratos em que se inserem, mantendo-se, em consequência, os avales prestados
Conforme é referido no citado Acórdão do STJ de 22.10.2013, «se o avalista opta por lançar mão da invalidade da cláusula que integra o pacto de preenchimento em que interveio, com a respetiva exclusão do contrato, auto exclui-se da intervenção no acordo de preenchimento e, consequentemente do posicionamento que detinha no campo das relações imediatas com a beneficiária da livrança, a coberto das quais poderia invocar e fazer valer a exceção do preenchimento abusivo.»
Os apelantes, enquanto obrigados cambiários como dadores do aval, pretendem ver-se exonerados da obrigação de pagamento da quantia constante do título a pretexto de, como alegam, não haver qualquer pacto de preenchimento válido – porque excluída a cláusula que o previa, por violação do regime das cláusulas contratuais gerais.
Contudo, como se salienta neste Acórdão: “- ou o Recorrente aceitava a validade do pacto consubstanciado na Condição 9 do “Contrato” e, relativamente ao respectivo conteúdo obrigacional, opunha a excepção à Exequente, o que não fez (nem lhe interessaria, pois que a livrança terá sido completada em conformidade com o aí clausulado); - ou, arguindo, como arguiu a invalidade e exclusão desse pacto, para sustentar o concurso da excepção, teria de invocar a violação de um outro pacto, o que também não fez.
Ora, assim sendo, sobra a posição jurídica do Oponente, apenas enquanto avalista, assumindo o aval a sua plena autonomia, ou seja, na pureza da obrigação cambiária fora das relações imediatas”.
Como se colhe da norma do artigo 10.º da LULL, a obrigação cambiária do avalista da letra ou livrança em branco surge com a aposição das respectiva assinatura nessa qualidade e com a emissão do título, numa palavra, com a dação do aval.
A obrigação cambiária está perfeita quando a livrança, incompleta, contém uma ou mais assinaturas destinadas a fazer surgir tal obrigação, ou seja, quando as assinaturas nela apostas exprimam a intenção dos respectivos signatários de se obrigarem cambiariamente, quer se entenda que a obrigação surge apenas com o preenchimento, quer antes, no momento da emissão, a ele retroagindo a efectivação constante do título por ocasião do preenchimento. Necessário é que se mostre preenchida até ao momento do acto de pagamento voluntário (cfr. PINTO COELHO, “As Letras”, II, 2ª, 30 e ss; FERRER CORREIA, “Lições de D.to Comercial”, Reprint, 483; VAZ SERRA, BMJ, 61º-264; O. ASCENSÃO, “D.to Comercial”, III, 116).

Como já acima referimos, ao dar o aval ao subscritor de livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento, assumindo mesmo o risco de esse contrato não ser respeitado e de ter de responder pela obrigação constante do título como ela «estiver efectivamente configurada» - artigos 10º e 32º, n.º 2 da LULL (P. SENDIM, “Letra de Câmbio”, II, 149, citado no Acórdão do STJ de 22/10/2013).
Daí que se possa concluir que, sendo os embargantes demandados na ação executiva na qualidade de avalistas e não como outorgantes nos contratos para cujo cumprimento foram emitidas as livranças, a exclusão daquelas cláusulas não afeta os avales prestados enquanto negócios cambiários. Ou seja, se os avalistas optam por lançar mão da invalidade das cláusulas que integram os pactos de preenchimento em que intervieram, com a respetiva exclusão dos contratos, auto excluem-se da intervenção nos acordos de preenchimento e, consequentemente do posicionamento que detinham no campo das relações imediatas com a beneficiária das livranças, a coberto das quais poderiam invocar e fazer valer a exceção do preenchimento abusivo – cfr Acórdão da Relação de Lisboa de 24/04/2018, processo n.º 4/17.4T8PDL-A.L1-7 (José Capacete), in www.dgsi.pt.

Não estando afetada a validade do aval, improcedem as conclusões da apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
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Guimarães, 13 de julho de 2021

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho