Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
283/21.2T8BGC.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: DIREITO AO SUBSÍDIO DE REFEIÇÃO
USOS
VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA NÃO DISCRIMINAÇÃO
FILIAÇÃO SINDICAL
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Não releva como uso laboral, nem constitui violação dos princípios da igualdade e da não discriminação nem abuso de direito ou má-fé por parte da ré/empregadora, o facto de pagar subsídio de refeição aos seus trabalhadores durante cerca de três anos e meio sem que a isso estivesse obrigada pelos contratos individuais de trabalho ou por IRCT, paga nos cerca de vinte anos seguintes ao abrigo de um ACT que aplicou e, em finais de 2020, quando toma conhecimento que alguns dos seus trabalhadores se filiaram em determinado Sindicato o que os exclui da aplicação que vinha fazendo do aludido ACT, deixa de lhes aplicar esse ACT e passa a aplicar-lhes uma PRT, que não prevê o pagamento de subsídio de refeição e, por isso, deixa de pagar a esses trabalhadores subsídio de refeição mas continua a pagá-lo aos restantes trabalhadores.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante: Sindicato dos Trabalhadores do Comércio Escritórios e Serviços de ...
Apelada: Santa Casa da Misericórdia ...

I – RELATÓRIO

O Sindicato dos Trabalhadores do Comércio Escritórios e Serviços de ..., com os demais sinais nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Santa Casa da Misericórdia ..., também nos autos melhor identificada, pedindo a condenação da ré a:

a) Reconhecer a ilicitude da decisão de retirar aos trabalhadores filiados no CESP a atribuição do subsídio de refeição;
b) A manter o direito ao subsidio de refeição a todos os trabalhadores da R. independentemente da sua filiação sindical ou não filiação;
c) Atribuir retroactivamente a todos os trabalhadores sindicalizados no A. e trabalhadores da R. o subsídio de refeição nos montantes que abusivamente e ilegalmente foram subtraídos.

Alega para tanto, e em síntese, que a ré retirou aos seus trabalhadores que concomitantemente são filiados no Sindicato autor o pagamento do subsídio de alimentação, que desde sempre lhes pagou, violando com tal actuação o direito desses trabalhadores a perceberem tal subsídio, direito que fundamenta tanto nos usos laborais, quer porque tal omissão de pagamento viola os princípios da igualdade e da não discriminação e constitui um abuso de direito por parte da ré.

Tendo-se realizado audiência de partes, malogrou-se, nessa sede, a conciliação entre elas.

Notificada para o efeito, a ré apresentou contestação para, em resumo, impugnar parte da factualidade alegada pelo autor e alegar que é lícita a retirada do dito subsídio, porque a ré o pagou enquanto obrigada, ou na convicção de o estar, por força dos IRCT aplicáveis à relação laboral com os ditos trabalhadores, e só o deixou de pagar quando passou a aplicar a esses trabalhadores um IRCT que não prevê o pagamento daquele subsídio.

Prosseguindo os autos, foi saneado o processo, despacho no âmbito do qual foi o autor julgado parte ilegítima quanto ao pedido formulado em b) na parte respeitante aos trabalhadores da ré que não sejam filiados no autor.

Veio a realizar-se a audiência final e, após, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (na parte que ora releva):
“Perante o exposto, julgo totalmente improcedente, por não provada, a presente acção e, em consequência, absolvo a R. Santa Casa da Misericórdia ... do pedido contra si formulado pelo A. Sindicato dos Trabalhadores do Comércio Escritórios e Serviços de ....”

Inconformado com esta decisão, dela veio o autor interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
“1 - O A./Apelante vem recorrer da decisão do tribunal “a quo” que, na douta sentença, se pronunciou pela total improcedência do pedido, vindo da mesma recorrer de facto e de direito porquanto é seu entendimento lavrar a sentença em erro de julgamento, estando a matéria de facto efectivamente provada em oposição aos factos dados como provados e não provados e consequentemente a decisão assentar em erróneo fundamento de direito e de facto
2 - O A./Apelante não pode aceitar que o Tribunal “a quo” tenha dado como provado o vertido no ponto 12 da matéria de facto, porquanto apenas resultou provado que, desde o ano de 2016, em virtude da adesão da Ré à chamada Convenção de ..., ACT entre a Santa Casa da Misericórdia ... e a FNE, publicado no BTE n.º 47 de 22/12/2001, esta passou a aplicar o referido ACT à generalidade dos seus trabalhadores.
3 - O facto provado em análise vem abranger desta forma as relações contratuais anteriores a 2001, relações contratuais que nem sequer a R. alega e muito menos comprova.
4 – Ainda que se considerasse que a Ré teria aderido em 2001, (o que claramente não é possível, uma vez que a mesma não consta das instituições outorgantes), ainda assim todo o percurso anterior, desde a data da sua constituição, fica fora da referida Convenção Colectiva de Trabalho.
5 - Nos factos provados encontra-se o número 13 com vínculos contratuais das trabalhadoras desde o ano 1992 até, no que toca à Convenção de ..., 2001.
6 - O facto vertido no ponto 12, deverá ser eliminado pois tais trabalhadoras auferem subsídio desde a data da contratação até à decisão em ata da R./Apelante (momento da retirada do subsídio) o que se encontra provado no facto 4 e a aplicação do ACT apenas ocorre a partir de 2016.
7 - O douto Tribunal “a quo” dá como provado que a retirada do subsídio de refeição se faz em agosto de 2020 e dá como não provado que os trabalhadores o recebiam desde momento anterior à PRT de 1996, sendo que esse pagamento está admitido e provado, nomeadamente no que diz respeito às trabalhadoras com contratos anteriores a 1996, como sejam AA admitida a 01/10/1993 e BB admitida em 20/03/1992.
8 - A mesma prova se encontra documentada através do Doc. n.º ... da P.I. (Recibos de Vencimentos), quanto a estas e outras trabalhadoras, com pagamento do subsídio de refeição nos anos de 1998, 2000, 2001, 2004 e 2005, todos eles anteriores à adesão da Ré/Apelada à Convenção de ....
9 - Quanto aos factos controvertidos não provados, resulta, quer da matéria de facto provada, quer da prova produzida, quer ainda dos documentos juntos aos autos, que tais factos deverão passar a constar do elenco dos factos provados, com a mesma redação, eliminando-se do facto 12 dos factos provados.
10 - Quanto ao primeiro facto não provado, resulta da conjugação do ponto 13 provado e dos pontos 9 e 4, que em data anterior a 1996 já a Ré/Apelada pagava o respetivo subsídio de alimentação às suas trabalhadoras, subsídio atribuído por determinação da Ré/Apelada sem qualquer IRCT que sustentasse a referida atribuição (vidé art. 13.º).
11 – O ponto 9 da matéria de facto provada, expressamente afirma que até agosto de 2020 todas as trabalhadoras referidas no ponto 5 auferiram subsídio de alimentação estando neste universo de trabalhadoras, as trabalhadoras com contratação anterior a 1996, anterior a 2001, e anterior a 2016.
Este facto deverá passar para o elenco dos factos provados.
12 - Quanto ao segundo facto não provado que afirma, “que apenas com o conhecimento da filiação de alguns dos seus trabalhadores no Sindicato A. a Ré retirou aos mesmos o subsídio de alimentação” tal evidência resulta dos pontos 4 e 5 dos factos provados e ainda da ata da R./Apelada junto aos autos.
13 - A conciliação destes dois factos e documento, permite concluir que a Ré/Apelante retira o subsídio de refeição a partir de setembro de 2020 a todos os trabalhadores da A./Apelante, porquanto pede ao A./Apelante a lista dos trabalhadores filiados no Autor e são estes os trabalhadores a quem foi retirado o subsídio de alimentação.
14 - Resulta da prova testemunhal produzida que desde sempre, ou pelo menos desde 1992 que a R./Apelada pagava a todas as suas trabalhadoras subsídio de refeição. Que o subsídio de refeição lhes foi retirado por determinação da R./Apelada, decisão lavrada em ata e que apenas estas trabalhadoras não foram aumentadas e deixaram de receber o subsídio de refeição.
15 - Importa realçar que decorre da natureza da entidade patronal a obrigatoriedade de pagar subsídio de refeição, ainda que sem qualquer IRCT aplicável, na medida em que as Santa Casa da Misericórdia, ou têm cantina ou pagam as refeições.
16 - O subsídio de refeição e o seu pagamento nascem desta necessidade de trabalharem em horários rotativos de dia, de noite e aos fins-de-semana, habitualmente em jornada contínua.
17 - Da convicção formada pelo douto Tribunal “a quo” resulta à evidencia a total descredibilização da prova documental e testemunhal do A/Apelante e o privilegiar do falso testemunho, em contradição inclusive com documentos que a R./Apelada diz aceitar.
18 - A mera consulta dos outorgantes da Convenção de ... de 2001 permite afastar o depoimento do Sr. Provedor e da diretora de Recursos Humanos, uma vez que a Santa Casa da Misericórdia ... não outorgou tal IRCT, tendo mais tarde vindo a aderir ao mesmo, em 2016, embora resulte essa evidência em 2010 por efeito da Portaria.
19 - Os documentos recibos de retribuição juntos pelo A. comprovam o pagamento desse subsídio pelo menos desde o ano de 1998. Recibos que a R./Apelada não impugnou.
20 - O depoimento da trabalhadora CC que além do mais é dirigente sindical (com uma proximidade evidente com as restantes trabalhadoras sindicalizadas), confirma que as trabalhadoras, DD e AA, desde o ano de 1992 recebem subsídio de refeição.
21 - A diretora dos Recursos Humanos não tem como não saber que, tem trabalhadoras com a antiguidade pelo menos a 1992, por mera consulta aos recibos das trabalhadoras.
22 - Curiosamente o Provedor não apresenta quaisquer atas contemporâneas da Convenção de ... que instituam o pagamento do respectivo subsídio de refeição, nem que determinem a aplicação da convenção, que nunca tendo sido outorgada pela R./Apelante, sempre teriam que existir.
23 – A fundamentação de facto e de direito da douta sentença contradiz quer prova testemunhal produzida, quer a prova documental junta aos autos. Há uma contradição entre a prova produzida e a convicção criada pelo douto tribunal e bem assim a respectiva fundamentação de facto e de direito.
24 – O A./Apelante em momento algum alegou que o subsídio de refeição tinha a natureza de retribuição.
25 - O A./Apelante defendeu e defende que o respectivo subsídio de alimentação, pago aos trabalhadores desde a data da constituição da R. integra os respectivos direitos das trabalhadoras por força do uso e não com base em qualquer IRCT, que não invoca.
26 - Basta a mera leitura do IRCT, publicado no BTE nº 47 de 22/12/2001, identificado para concluirmos que a Santa Casa da Misericórdia ..., não consta como entidade outorgante.
27 - O Direito do Trabalho é um dos ramos do direito onde tem sido atribuído relevo aos usos como elemento normativo de integração do vínculo laboral, pois conforme resultava do n.º 2 do artigo 12.º da LCT, na regulamentação dos contratos de trabalho era de atender aos usos da profissão do trabalhador e das empresas desde que conformes com as normas legais ou convencionais aplicáveis e com o princípio da boa-fé.
28 - Esta doutrina também é de seguir terminada a vigência da LCT, pois foi consagrado no artigo 1.º do CT/2003, norma que transitou para o artigo 1.º do CT/2009, que o contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação coletiva assim como aos usos laborais que não contrariem o princípio da boa-fé.
29 – Na noção de uso está ínsita ou implícita a ideia de uma reiteração ou repetição dum comportamento ao longo do tempo, ou melhor de um período de tempo relevante.
30 - A vinculação do empregador pelo uso da empresa resulta da sua autovinculação por força da boa-fé na execução do contrato, da tutela da confiança e da proibição do abuso do direito, vinculação que o empregador vai criando a si próprio por comportamentos que adota perante um coletivo, assentando a tutela da confiança no trabalhador confiar, não que o empregador se quis vincular juridicamente para o futuro, mas sim na convicção que o empregador prosseguirá no futuro aquele uso, sendo esta expectativa dos trabalhadores na continuidade da prática reiterada que é merecedora de tutela.
31 - É pela exigência de boa-fé na execução do contrato, pela proibição do arbítrio e pela necessidade de tutela da pessoa que trabalha e que está sujeita ao poder de outrem na execução do seu trabalho, que a prática espontânea e reiterada do empregador desemboca, mesmo que este sem disso tenha consciência, em uma vinculação e uma fonte de obrigações para o próprio empregador.
32 - Tal prática (uso) consolidou-se e passou a constituir um uso laboral relevante como fonte de direito do trabalho quando passou a incorporar direta e imediatamente os contratos de trabalho dos trabalhadores ao serviço da empresa.
33 - Se há um sector em que o pagamento do subsídio de refeição é um uso relevante é efetivamente o das ... na sua vertente de Apoio Social de 24 horas por dia e mês.
34 - O Tribunal “a quo”, conclui, com o devido respeito, com uma inverdade e erro de direito e de Julgamento. Toda a prova produzida, mesmo a da R., não diz, em momento algum, que não pagava o subsídio de refeição a todos os seus trabalhadores desde a data da sua contratação, nem o momento em que tal subsídio foi implementado.
35 - Nem o Provedor, nem a Diretora de Recursos Humanos, vão tão longe como o foi a sentença, pois nunca afirmam que as trabalhadoras não recebiam subsídio de refeição desde a data da sua contratação.
36 - A douta sentença refere ainda não ter sido violado o princípio da igualdade e não discriminação, o que se não verificou, apesar de mais uma vez termos uma longa exposição de direito, Tais Princípios foram violados. Só às trabalhadoras sócias ou associadas do Sindicato aqui A./Apelante foi retirado o subsídio de refeição e a ata refere expressamente que tal retirada resultava do facto de serem aí filiadas.
37 - A douta sentença viola os dispositivos legais mencionados na respectiva fundamentação, expressamente o vertido no art. 23.º n.º 2 do C.T., o vertido no art. 24.º n.º 1 quanto à filiação sindical, art. 25.º n.º 1 todos do Código do Trabalho. Esta violação constitui, de facto, uma violação mais ampla prevista nos arts. 13.º e 59.º da C.R.P..
38 - Há uma errónea aplicação do direito aos factos, na verdade o A./Apelante provou, sem margem para dúvidas que o pagamento do subsidio de refeição não decorre da aplicação de diferentes IRCT’s em função da respectiva filiação, mas que tal decisão advém de mera retaliação da R. e que esta opera tal decisão à revelia de um uso implementado de décadas a todos os seus trabalhadores, independentemente da sua filiação sindical e motivado, o respectivo uso, pelas condicionantes do negócio e natureza do trabalho prestado.
39 - Há Abuso de Direito e má-fé na decisão tomada pela R. e vertida em ata de retirar o subsídio de refeição aos trabalhadores associados do A./Apelante.
40 - Concluindo, mal andou a douta sentença do Tribunal “a quo” de que se recorre ao determinar a total improcedência dos pedidos formulados pelo A./Apelante.”

A recorrida apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.

Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exm.a Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Tal parecer não mereceu qualquer resposta.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enunciam-se então as questões que cumpre apreciar:

a) Impugnação da matéria de facto;
b) Obrigatoriedade de a ré pagar o subsídio de refeição (por força dos usos; violação dos princípios da igualdade e da não discriminação; abuso de direito e má-fé por parte da ré).

III – APRECIAÇÃO DO RECURSO
           
Da impugnação da matéria de facto:

Na decisão recorrida, a matéria de facto foi considerada provada e não provada nos seguintes teremos:

“a) Factos provados por confissão ou admitidos por acordo nos articulados e por documento (artigo 574º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil):
1- O A. patrocinou judicialmente em Tribunal uma trabalhadora sua sócia, EE, pedindo a aplicação da PRT de 1996 na medida em que a mesma previa a aplicação de diuturnidades aos seus trabalhadores.
2- A sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Trabalho, Processo 1496/18.... viria a reconhecer à trabalhadora o direito às diuturnidades vencidas nos termos do art. 21º da PRT de 1996 publicado no BTE n.º 15, 1ª. Série, de 22.04.1996.
3- Na sequência da decisão supra referida que não foi objecto de recurso, A. e R. acordaram em reunião que teve lugar nas instalações da R. com vista à aplicação do regime das diuturnidades aos trabalhadores, seus filiados.
4- A Mesa Administrativa da R., a 21.09.2020, deliberou, entre outros pontos de ordem de trabalhos:
“Primeiro: aplicar aos colaboradores filiados no CESP a PRT de 1996, tal como determina a sentença judicial.
Segundo: retirar a estes colaboradores, o subsídio de refeição, por não estar previsto na PRT de 1996, a partir do corrente mês de Setembro de 2020, inclusive.
Terceiro: encarregar os Recursos Humanos de proceder ao cálculo dos valores em dívida e ao pagamento dessas quantias juntamente com o vencimento do mês de Setembro de 2020”.
5- Os trabalhadores filiados no CESP constam de uma lista enviada pelo A. à R., a pedido desta, e são:
FF,
GG,
HH,
II,
CC,
JJ,
KK,
LL,
AA,
MM,
NN,
OO,
PP,
QQ,
RR,
SS,
TT,
UU,
BB,
VV,
EE,
WW,
XX,
YY,
DD,
ZZ,
AAA,
XX,
BBB,
CCC,
DDD,
EEE,
FFF,
GGG,
6- Todas as trabalhadoras referidas no item antecedente se encontravam filiadas na Ré em Agosto de 2020 e permaneciam sindicalizadas em Março de 2021.
b) Factos provados da matéria controvertida:
7- A retirada do subsídio de refeição provocou já a saída de trabalhadores sindicalizados, dado que o seu montante é de valor superior ao valor das diuturnidades que os trabalhadores filiados no CESP passaram a auferir.
8- Em Janeiro de 2021, a R. deliberou actualizar a tabela salarial e aplica-la “aos trabalhadores que se regem pelo ACT celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e outras e a FNSTFPS, publicado no BTE nº 38 de 15 de Outubro de 2016”, determinando, ainda, que “a todos os outros será aplicada anova remuneração de base, salvo no caso de já auferirem um valor superior, que se manterá, ao qual acresce o valor das diuturnidades a que tenham direito”.
9- As trabalhadoras supra citadas e aqui referenciadas auferiam, até Agosto de 2020, um subsídio de refeição, o qual, nessa data, era de € 4,27/diário. (alterado, nos termos infra mencionados: Os trabalhadores da ré, entre os quais as trabalhadoras supra citadas e aqui referenciadas, auferiam, desde, pelo menos, o mês de Julho do ano de 1998, até Agosto de 2020, um subsídio de refeição, o qual, nessa data, era de € 4,27/diário)
10- O pagamento do subsidio de refeição não consta do contrato de nenhum dos trabalhadores filiados no Autor, nomeadamente os que constam do item nº 5.
11- As trabalhadoras referidas no item 5 autorizaram a R. a intentar a presente acção.
12- A Ré, até pelo menos Agosto de 2020, aplicava à generalidade dos seus trabalhadores, as cláusulas previstas no ACT celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e a FNE-Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, publicado no BTE n.º 47 de 22/12/2001.
13- A trabalhadora GG foi admitida, pelo menos, em Julho de 1998; a trabalhadora; a trabalhadora JJ filiou-se no CESP em Setembro de 2020; a trabalhadora KK filiou-se em Novembro de 2016; a trabalhadora LL filiou-se em Julho de 2017; a trabalhadora AA foi admitida em 1/10/1993 e filiou-se em Outubro de 2016; a trabalhadora MM, foi admitida em 9/2/2001; a trabalhadora NN foi admitida, pelo menos, em Junho de 2003; a trabalhadora PP foi admitida em 2/11/1998; a trabalhadora RR filiou-se em Agosto de 2016; a trabalhadora SS foi admitida em 9/2/2001 e filiou-se em Agosto de 2017; a trabalhadora TT foi admitida em 18/5/2006; a trabalhadora UU filiou-se em Agosto de 2016; a trabalhadora BB foi admitida em 20/3/1992 e filiou-se em Maio de 2020; a trabalhadora WW filiou-se em Novembro de 2016; a trabalhadora XX filiou-se em Outubro de 2016; a trabalhadora YY, filiou-se em Agosto de 2016; a trabalhadora ZZ foi admitida, pelo menos, em Fevereiro de 2002 e filiou-se em Agosto de 2016; a trabalhadora AAA foi admitida em 1/10/2002 e filiou-se em Setembro de 2016; a trabalhadora XX foi admitida em 14/01/2008 e filiou-se em Janeiro de 2017; a trabalhadora BBB filiou-se em novembro de 2016; a trabalhadora CCC filiou-se em Outubro de 2019; a trabalhadora DDD foi admitida em 16/6/1999 e filiou-se em Novembro de 2016; a trabalhadora EEE filiou-se em Outubro de 2019; e a trabalhadora GGG foi admitida em 30/12/1999.
c) Factos controvertidos não provados:
-que a R. desde data anterior a 1996 que paga subsidio de refeição a todos os seus trabalhadores independentemente da sua filiação sindical.
-que apenas com o conhecimento da filiação de alguns dos seus trabalhadores no Sindicato A. retirou aos mesmos o subsídio de alimentação.”

(…)
Apreciemos então do mérito da impugnação.

O Tribunal recorrido consignou a seguinte motivação da matéria de facto:

“Quanto aos factos controvertidos que resultaram provados a convicção do Tribunal fundou-se na apreciação crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, designadamente:
-Declarações de parte da legal representante do A., HHH, que confirmou o teor da reunião mantida entre o Sindicato A. e a R. referindo que o Sr. Provedor justificou a retirada do subsídio de refeição aos trabalhadores sindicalizados no CESP com a aplicação a estes trabalhadores da PRT de 1996 e confirmou que houve trabalhadoras que se desfiaram por causa da retirada do subsídio de refeição;
-Declarações de parte do legal representante da R. III, que explicou as razões que levaram a Ré a retirar o subsídio de refeição às trabalhadoras sindicalizadas no CESP, esclarecendo que consultou o seu antecessor sobre o subsídio de alimentação e que este lhe disse que era pago porque assim o impunha a Convenção de ..., e que consultou actas da direcção da década de 90, não tendo encontrado referências ao subsídio de refeição, ou deliberação da Mesa que instituísse o seu pagamento aos trabalhadores, o que sempre teria de suceder;
-Depoimentos das testemunhas EE, trabalhadora da R. desde 2004 e autora no processo 1496/18, a qual referiu que sempre auferiu subsídio de alimentação desse a data da admissão, tendo deixado de o receber a partir de Outubro de 2020, após o regresso de um período de baixa médica e de férias; CC, trabalhadora da Ré desde 2012 e dirigente sindical, que também referiu que sempre auferiu subsídio de refeição, até Setembro de 2020, data em que lhe foi retirado; JJJ, trabalhadora da Ré desde 2009 e que foi delegada sindical até Março de 2021, a qual confirmou que sempre recebeu subsídio de refeição, tendo deixado de o receber quando passou a auferir diuturnidades, que lhe foi dito que as filiadas no CES não receberiam subsídio de refeição e que desde que deixou de ser filiada no CESP passou a receber o subsídio de refeição, deixou de receber diuturnidades e o seu salário foi aumentado em 20€; e KKK, Directora de Recursos Humanos da R., a qual esclareceu a posição da Ré quanto ao pagamento aos trabalhadores filiados no CESP o subsídio de refeição, referindo que este foi-lhes retirado porque não estava previsto nos contratos individuais de trabalho, nem no Código do Trabalho, nem na PRT e que a R. pagava o subsídio de refeição aos seus trabalhadores por estar previsto nos IRCT de 2001, 2010 e 2016.
-Nos documentos juntos aos autos a fls. 62 a 83 vº (fichas de inscrição das trabalhadoras no CESP), 84 a 95 vº (contratos de trabalho escritos de algumas das trabalhadoras da R.), 96 a 117 vº (alguns recibos de vencimento de algumas trabalhadoras constantes da lista de trabalhadores da R. filiados no CESP), 127 (informação da R. dirigida aos seus trabalhadores acerca dos IRCT aplicáveis a partir de 1/9/2017), 167 (declaração de autorização subscrita pelas trabalhadoras elencadas no artigo 59º da PI), e 178 a 184 (actas nº 230 e 231, nas quais consta a deliberação da Mesa Administrativa da Ré de actualizar as retribuições para o ano de 2021).
Quanto aos factos não provados, não foi produzida prova convincente da sua realidade ou foram os mesmos infirmados pela prova produzida, sendo que a testemunha LLL não revelou conhecimento relevante para o esclarecimento dos factos.”

Das conclusões do recurso quanto à matéria de facto, extrai-se que o recorrente quer que se considere não provada a matéria de facto que se encontra provada sob o ponto 12,

12- A Ré, até pelo menos Agosto de 2020, aplicava à generalidade dos seus trabalhadores, as cláusulas previstas no ACT celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e a FNE-Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, publicado no BTE nº47 de 22/12/2001.

E na fundamentação do recurso diz o apelante, designadamente: “O A./Apelante não pode desde logo aceitar que o Tribunal “a quo” tenha dado como provado o vertido no ponto 12 da matéria de facto, porquanto apenas resultou provado que, desde o ano de 2016, em virtude da adesão da Ré à chamada Convenção de ..., ACT entre a Santa Casa da Misericórdia ... e a FNE, publicado no BTE n.º 47 de 22/12/2001, esta passou a aplicar o referido ACT à generalidade dos seus trabalhadores. O facto provado em análise vem abranger desta forma as relações contratuais anteriores a 2001, relações contratuais que nem sequer a R./Apelada alega e muito menos comprova. Aliás, ainda que se considerasse que a Ré teria aderido de imediato, em 2001, (o que claramente não é possível, uma vez que a mesma não consta das instituições outorgantes), ainda assim todo o percurso anterior, desde a data da sua constituição, fica fora da referida Convenção Colectiva de Trabalho. Não é despiciente esta análise porquanto verificamos que nos factos provados se encontra o número 13 onde se encontram vínculos contratuais das trabalhadoras desde o ano 1992 até, no que toca à Convenção de ..., 2001.”

Ora como refere a apelada nas contra-alegações, no que é secundada pelo parecer apresentado pelo Ministério Público nesta Relação, não é exacta a afirmação da recorrente de que a recorrida não consta das instituições outorgantes do ACT celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e outras e a FNE-Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, publicado no BTE n.º 47 de 22/12/2001: parafraseando a recorrida,
A mera consulta da pagina 3107 [cf. 3.ª posição, a contar de cima, da coluna da esquerda] do Boletim do Trabalho e Emprego nº 47º, 1ª Série de 22 de Dezembro de 2001 comprova que a Santa Casa da Misericórdia ..., subscreveu/outorgou a referida Convenção de ... de 2001.”

Por outro lado, resulta intrinsecamente da redacção do citado ponto 12. da matéria de facto que a recorrida aplicava à generalidade dos seus trabalhadores o ACT em causa, publicado no BTE n.º 47 de 22/12/2001, naturalmente desde que este passou a vigorar.  E quando o passou a aplicar – em Dezembro de 2001 -, aplicou-o à generalidade dos seus trabalhadores.
É isto que, à luz do disposto nos art.s 236.º/1 e 238.º/1 do CC, consta desse ponto da matéria de facto.

Sendo assim, como são, as coisas, não são necessários mais vastos considerandos para se concluir que a recorrente não tem qualquer razão, e que o ponto 12. da matéria de facto tem de persistir no elenco dos factos provados.

Pretende também o recorrente que se considerem provados os factos que na decisão recorrida foram expressamente considerados como não provados, isto é, que se dê como provado:

- que a R. desde data anterior a 1996 que paga subsidio de refeição a todos os seus trabalhadores independentemente da sua filiação sindical.
- que apenas com o conhecimento da filiação de alguns dos seus trabalhadores no Sindicato A. retirou aos mesmos o subsídio de alimentação.
           
Quanto à pretensão de que se tenha como provado que a R./recorrida desde data anterior a 1996 que paga subsidio de refeição a todos os seus trabalhadores independentemente da sua filiação sindical alega a recorrente, designadamente, “que esse pagamento está admitido e provado, nomeadamente no que diz respeito às trabalhadoras com contratos anteriores a 1996, como sejam AA admitida a 01/10/1993 e BB admitida em 20/03/1992.
A mesma prova se encontra documentada através do Doc. n.º ... da P.I. (Recibos de Vencimentos), quanto a estas e outras trabalhadoras, com pagamento do subsídio de refeição nos anos de 1998, 2000, 2001, 2004 e 2005, toos eles anteriores à adesão da Ré/Apelada à Convenção de ....”

Ora, e numa primeira abordagem, diga-se que o recorrente diz que tal matéria foi admitida, mas não esclarece onde/em que termos.
Nem alcançámos que a recorrida tenha admitido a sua veracidade.
Com efeito, tendo sido alegada pelo autor em 42.º da PI, mostra-se expressamente impugnada pela ré nos artigos 3.º e 20.º da contestação.

Por outro lado, a factualidade em causa abrange três aspectos distintos:

- desde que data paga a ré subsidio de refeição;
- se o paga a todos os seus trabalhadores;
- se o faz independentemente da filiação sindical destes.

A recorrente enfatiza o elemento “desde quando”, pretendendo que se dê como provado que desde data anterior a 1996.
Estando provado, sob o ponto, 9-, que As trabalhadoras supra citadas e aqui referenciadas auferiam, até Agosto de 2020, um subsídio de refeição, o qual, nessa data, era de € 4,27/diário, poderia pensar-se, numa primeira leitura, que a matéria que o recorrente quer ver provada já está compreendida neste número 9, e até que este ponto entra em contradição com a resposta de não provado aos factos em questão (a R. desde data anterior a 1996 que paga subsidio de refeição a todos os seus trabalhadores independentemente da sua filiação sindical).
Mas bem vistas as coisas não é assim.
Em primeiro lugar, porque “as trabalhadoras supra citadas” são apenas as identificadas no número 5 dos factos provados, trabalhadoras da ré filiadas no CESP/autor, e não todos os trabalhadores da ré.
Em segundo lugar, porque no ponto 9 dos factos provados nada se diz relativamente a ser, ou não, o subsídio de refeição pago independentemente da filiação sindical dos trabalhadores.
E também porque naquele ponto 9 verdadeiramente não se diz desde quando é que a ré pagou subsídio de refeição, mas resultando inequívoco, no contexto de toda a matéria de facto, provada e não provada, que não está provado que desde data anterior a 1996: porque expressamente se consignou este facto como não provado, pois “não foi produzida prova convincente da sua realidade ou foram os mesmos infirmados pela prova produzida”, e até em sede de fundamentação de direito a Mm.ª Juiz a quo acaba por explicitar melhor esse entendimento, quando aí expendeu: “No caso concreto, a Ré alegou, mas não provou, que a R. vinha pagando subsídio de refeição a todos os seus trabalhadores, durante toda a sua antiguidade, mesmo antes da sua adesão a quaisquer convenções colectivas, designadamente antes de 1996.” (sendo evidente que onde se diz “a Ré alegou” se quis dizer “a Autora alegou”).

Isto esclarecido, vejamos então se as provas impõem que esta matéria seja considerada provada.

Os recibos de vencimento juntos aos autos são manifestamente inidóneos a, só por si, fazerem a respectiva prova.
Com efeito, apenas comprovam o pagamento (e aos trabalhadores a que respeitam) de subsídio de refeição a partir do ano de 1998, não havendo nos autos recibos relativos a anos anteriores (como, aliás, reconhece o recorrente nas alegações de recurso).

E, ainda que tenhamos em consideração os depoimentos das testemunhas que o recorrente trouxe à colação (mas sem cumprir, como se disse, os ónus que, a respeito, sobre si impendem), os mesmos têm muito escassa relevância.
É que – tendo-se procedido oficiosamente à audição dos depoimentos -, como resulta do que as testemunhas em causa disseram, nenhuma delas trabalhou para a ré em data anterior a 2004, nenhuma tendo conhecimento directo, anteriormente a essa data, do que a propósito da matéria em questão se passava, nem mostrando qualquer conhecimento, que lhes adviesse de forma indirecta, minimamente consistente.

Ora, e da conjugação desta prova, documental e testemunhal, a convicção que pode formar-se é que pelo menos desde 1998 que a ré pagou aos seus trabalhadores subsídio de refeição – não apenas às trabalhadoras referidas em 5-, posto que, embora os recibos juntos aos autos não respeitem a todos os trabalhadores, ou sequer a todas as trabalhadoras identificadas em 5-, decorre dos depoimentos recolhidos e até das declarações do legal representante da ré, que até a ré ser confrontada com a acção mencionada nos autos de uma trabalhadora a reivindicar o pagamento de diuturnidades, quando pagou subsídio de refeição a ré pagou-o a todos os trabalhadores.

Quanto à filiação sindical, ou falta dela, dos trabalhadores a quem a ré pagou subsídio de refeição – naturalmente, para além da filiação no sindicato autor dos trabalhadores identificados em 5 dos factos provados - também nada de relevante foi dito ou comprovado documentalmente.

Daí que a matéria que vimos analisando tem de permanecer como não provada.

Não obstante, afigurando-se-nos, nos termos sobreditos, algo deficiente a redacção daquele n.º 9 dos factos provados, mas tendo nós acesso a toda a prova produzida, podendo colmatar essa deficiência (cf. art. 662.º n.º 1 e n.º 2 al. c) do CPC), a sua redacção passa a ser a seguinte:
9- Os trabalhadores da ré, entre os quais as trabalhadoras supra citadas e aqui referenciadas, auferiam, desde, pelo menos, o mês de Julho do ano de 1998, até Agosto de 2020, um subsídio de refeição, o qual, nessa data, era de € 4,27/diário.

No que tange ao segmento apenas com o conhecimento da filiação de alguns dos seus trabalhadores no Sindicato A. retirou aos mesmos o subsídio de alimentação, também o recorrente não identificou qualquer prova que imponha a sua transição para os factos provados.

O que despoletou a retirada pela ré do subsídio de alimentação não foi, simplesmente, a filiação dos trabalhadores no Sindicato A., mas o facto de lhes passar a aplicar a PRT de 1996 e, por isso, a pagar a esses trabalhadores diuturnidades, o que não paga aos restantes trabalhadores.
Isso mesmo resulta do ponto 4 da matéria de facto, como das declarações de parte do legal representante da ré e, bem assim, dos depoimentos das testemunhas CC e MMM que estabeleceram essa correlação entre o pagamento pela ré de diuturnidades aos trabalhadores filiados no Sindicato autor, por força da aplicação da PRT de 1996, e a retirada aos mesmos trabalhadores do subsídio de refeição.

Destarte, à excepção da alteração introduzida na redacção do n.º 9 dos factos provados, tem de manter-se a matéria de facto tal como decidida pelo tribunal a quo.

- Da obrigatoriedade da ré pagar o subsídio de refeição (por força dos usos; da violação dos princípios da igualdade e da não discriminação; abuso de direito e má-fé por parte da ré).

Na sentença recorrida, em sede de aplicação do direito, começou-se por clarificar qual a natureza do subsídio de alimentação tendo-se aí concluído que no caso em apreço o A. nada alegou que permita concluir que o subsídio de refeição que a R. vinha pagando às suas trabalhadoras assuma a natureza de retribuição e discorrido, de seguida, sobre quais os IRCT aplicáveis às relações entre a R. e as trabalhadoras filiadas no A. e o que neles se dispõe a propósito do subsídio de refeição, respigando-se desse enquadramento:
“O primeiro IRCT a regular as relações entre a R. e os seus trabalhadores foi a Portaria de Regulamentação do Trabalho, publicado no BTE nº 15 de 22.04.1996, que veio estabelecer as condições mínimas do trabalho nas instituições particulares de solidariedade social (IPSS). Trata-se, portanto, de um IRCT de natureza não negocial, hoje denominado Regulamento de Condições Mínimas, cujo âmbito de aplicação está limitado às relações laborais que não sejam abrangidas por IRCT de natureza negocial, seja pela via directa da dupla filiação ou da adesão, seja pela via administrativa do regulamento de extensão.
Em matéria de prestações pecuniárias, previa-se em tal IRCT, para além da retribuição de base estabelecida em tabela anexa em função do enquadramento profissional nas diversas categorias e níveis, a remuneração por isenção de horário de trabalho, subsídio de turno, subsídio de natal, abono para falhas e diuturnidades. Não se previa subsídio de refeição.
    
(…)
No BTE nº 47 de 22/12/2001 foram publicados dois IRCT que regulam relações de trabalho no sector de actividade da R. Por um lado, o Acordo Colectivo de Trabalho (ACT) celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e outras e a FNE — Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, do qual a R. também foi subscritora, mas não o ora A., cujo âmbito de aplicação se encontra definido na sua cláusula 1ª: regula as relações de trabalho estabelecidas entre as Santas Casas da Misericórdia subscritoras, adiante designadas por instituições, e os trabalhadores ao seu serviço, representados pelas organizações sindicais outorgantes.
(…)
O ACT SCM Abrantes foi objecto de alteração publicada no bte nº 3 de 22/01/2010, que nem o a., nem a ré, subscreveram. tanto esta alteração como a sua versão original foram objecto de regulamento de extensão, através da Portaria nº 278/2010 de 24 de maio, por via do qual a sua disciplina foi estendida, no território do continente, por um lado, às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia não outorgantes que prossigam as actividades reguladas pela convenção e trabalhadores ao seu serviço, das profissões e categorias profissionais neles previstas; e, por outro lado, às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia outorgantes que prossigam as actividades nela reguladas e trabalhadores ao seu serviço, das referidas profissões e categorias profissionais, não representados pelas associações sindicais outorgantes. Contudo, foram expressamente excluídas do seu âmbito de aplicação as relações de trabalho entre santas casas da misericórdia filiadas na CNIS — Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e trabalhadores ao seu serviço, bem como a trabalhadores filiados em sindicatos associados na FEPCES — Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços, como era o caso do ora A.
(…)
Por fim, a R. celebrou com a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais - FNSTFPS e outros um acordo de adesão à convenção coletiva em vigor entre a Santa Casa da Misericórdia ... e outras e a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais - FNSTFPS e outros, publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 38, de 15 de outubro de 2016. Tal acordo de adesão está publicado no BTE n.º 32, 29/8/2017 e, de acordo com o nº 2, produz efeitos para futuro. Dada a sua natureza negocial, este AE apenas se aplica às relações entre a R. e os trabalhadores filiados nos sindicatos associados nas federações sindicais outorgantes, entre os quais não se conta o CESP.
Todos os IRCT referidos, com excepção da PRT, mantiveram o direito ao subsídio de refeição, caso o empregador não forneça a refeição.
Ora, como resulta dos factos provados, as trabalhadoras representadas nestes autos pelo A. filiaram-se no mesmo em data posterior a Agosto de 2016, pelo que, até essa data, o IRCT aplicável às relações laborais estabelecidas entre tais trabalhadoras e a Ré era o ACT celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e outras e a FNE — Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, do qual a R. também foi subscritora publicado no BTE nº 47 de 22/12/2001 e a alteração publicada no BTE nº 3 de 22/01/2010, por força da Portaria nº 278/2010 de 24 de Maio. A partir do momento em que passaram a ser associadas do CESP, que, por sua vez, está federado na FEPCES, ficaram abrangidas pela exclusão prevista no nº 2 do art. 1º da referida Portaria, que exclui do seu âmbito os trabalhadores filiados nos sindicatos associados da FEPCES, pelo que deixou de lhes ser aplicável a disciplina do ACT referido. A partir das datas da respectiva filiação das trabalhadoras em causa no CESP, deixou de existir IRCT negocial que discipline as relações laborais entre as partes, sejam as convenções colectivas – AE e CCT – celebrados pela FEPCES pelas razões que supra se explicitaram, designadamente por não obrigarem a R., que não as subscreveu, nem a elas aderiu, sejam os ACT celebrados pela Santa Casa da Misericórdia ... e outros, dada a exclusão do seu âmbito de aplicação dos trabalhadores filiados nos sindicatos associados da FEPCES. Nada tendo sido alegado pelas partes quanto a eventual existência de acordos bilaterais entre a Ré e as mesmas trabalhadoras no sentido de aderir a algum dos IRCT do sector, resta o IRCT não negocial estabelecido pela PRT para o trabalho nas Instituições de Solidariedade Social, publicado no BTE nº 15 de 22.04.1996.
Tal significa que a partir da data da filiação no CESP das trabalhadoras representadas pelo A., deixou de existir fundamento nos IRCT que vinculavam a R. para o pagamento do subsídio de refeição, já que os mesmos deixaram de ser aplicáveis e a PRT de 1996 para o trabalho nas IPSS não prevê o pagamento de tal prestação.”

Ora, o recorrente não questiona a apreciação feita na sentença de que o subsídio de refeição que a R. vinha pagando aos seus trabalhadores não assume a natureza de retribuição, nomeadamente para lhe ser aplicável o princípio da irredutibilidade da retribuição (art. 129.º, n.º 1, al. d) do CT) bem como não põe em crise, antes concorda, que às relações laborais entre os trabalhadores cujos interesses individuais aqui estão em causa e a ré é aplicável a Portaria de Regulamentação do Trabalho de 1996 (PRT nas instituições particulares de Solidariedade social, publicada no BTE, 1.ª Série, n.º 15, de 22.4.1996) – aliás, isso mesmo foi decidido no âmbito de uma acção judicial movida por um daqueles trabalhadores (EE) contra a aqui ré; cf. pontos 1 e 2 do elenco dos factos provados -, e não o ACT celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e a FNE-Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, publicado no BTE n.º 47 de 22/12/2001.

Aquela PRT não prevê o pagamento do subsídio de refeição.

Será que é devido em razão dos usos laborais?

A este propósito considerou-se na decisão recorrida:
“O A. sustenta, porém, que a Ré está obrigada ao pagamento do subsídio de refeição a todos os seus trabalhadores, independentemente da sua filiação sindical pois tal constitui uma prática constante, uniforme e reiterada que vigora na instituição, antes e depois da sua adesão a quaisquer convenções colectivas, tendo adquirido valor de uso relevante à luz do artigo 1º do Código do Trabalho.
A propósito do conceito, natureza e relevância juridica dos usos no direito laboral, transcreve-se a síntese doutrinal e jurisprudencial constante do Acórdão do STJ de 17/11/2016, relatado pelo Venerando Conselheiro Gonçalves Rocha, disponível no sítio online www.dgsi.pt:
o artigo 3º/1 do CC que os usos que não forem contrários aos princípios da boa-fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine.
O Direito do Trabalho é um dos ramos do direito onde tem sido atribuído relevo aos usos como elemento normativo de integração do vínculo laboral, pois conforme resultava do nº 2 do artigo 12º da LCT, na regulamentação dos contratos de trabalho era de atender aos usos da profissão do trabalhador e das empresas desde que conformes com as normas legais ou convencionais aplicáveis e com o princípio da boa-fé.
Esta doutrina também é de seguir terminada a vigência da LCT, pois foi consagrado no artigo 1º do CT/2003, norma que transitou para o artigo 1º do CT/2009, que o contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação colectiva assim como aos usos laborais que não contrariem o princípio da boa-fé.
De qualquer forma, e no que respeita à sua relação com a lei, os usos podem afastar normas legais supletivas, mas já não valerão se contrariarem norma imperativa, conforme decidiu o acórdão deste Supremo Tribunal de 5-7-2007, Recurso n.º 2576/06 - 4.ª Secção.
Quanto ao seu conceito, ensina Mota Pinto[1] que se trata de práticas ou usos de facto que não constituindo verdadeiras normas jurídicas, nem se confundindo com o costume como fonte de direito consuetudinário, correspondem a práticas sociais reiteradas, não acompanhadas da convicção da sua obrigatoriedade.
Monteiro Fernandes assinala que não se trata aqui do “costume”, estando-se apenas perante "práticas usuais ou tradicionais" deste ou daquele sector do mundo laboral, que apesar de não revestirem as características de obrigatoriedade da norma jurídica, se apresentam como "mero elemento de integração das estipulações individuais (ou seja, destinado a preencher condições a que as partes não se referiram, de harmonia com aquilo que elas presumivelmente estariam dispostas a aceitar)” - Direito do Trabalho, 12º edição, págs. 113 e 114.
Para Romano Martinez os usos são, actualmente, verdadeira fonte de direito laboral, traduzindo-se em práticas sociais reiteradas a que não está associada a convicção de obrigatoriedade. (Direito do Trabalho, 5ª edição, Almedina, 197).
Igualmente Maria do Rosário Palma Ramalho se pronuncia no sentido dos usos corresponderem a práticas sociais reiteradas não acompanhadas da convicção de obrigatoriedade, sendo reconduzidos à categoria de fonte meramente mediata de normas jurídicas por não terem relevância autónoma[2].
Para Júlio Vieira Gomes, na noção de uso está ínsita ou implícita a ideia de uma reiteração ou repetição dum comportamento ao longo do tempo, ou melhor de um período de tempo relevante (Novos Estudos de Direito do trabalho, pgª 15).
E continuando a seguir este autor, como é que uma prática reiterada, que começa num primeiro momento por ser livre e espontânea, por não corresponder a qualquer obrigação jurídica, passa, depois, a ser uma conduta devida, conteúdo de uma obrigação do empregador e de um correspondente direito do trabalhador?
Afastando a tese negocial que vê na conduta do empregador uma proposta negocial tacitamente aceite pelo trabalhador, e não aderindo à corrente doutrinária que vê nessa actuação do empregador uma promessa ao público, por não existir uma verdadeira declaração de vontade, sustenta este autor que a vinculação do empregador pelo uso da empresa resulta da sua autovinculação por força da boa-fé na execução do contrato, da tutela da confiança e da proibição do abuso do direito, vinculação que o empregador vai criando a si próprio por comportamentos que adopta perante um colectivo (obra citada, 22), assentando a tutela da confiança no trabalhador confiar, não que o empregador se quis vincular juridicamente para o futuro, mas sim na convicção que o empregador prosseguirá no futuro aquele uso (pgªs 34 e 35), sendo esta expectativa dos trabalhadores na continuidade da prática reiterada que é merecedora de tutela.
E nesta linha conclui que “é de certo modo pela exigência de boa-fé na execução do contrato, pela proibição do arbítrio e pela necessidade de tutela da pessoa que trabalha e que está sujeita ao poder de outrem na execução do seu trabalho, que a prática espontânea e reiterada do empregador desemboca, mesmo que este sem disso tenha consciência, em uma vinculação e uma fonte de obrigações para o próprio empregador”, conforme acentua aquele autor (38/39).
Assim, a relevância atribuída pela lei laboral aos usos advém da circunstância de se valorar uma autovinculação do empregador, assumida através duma prática espontânea mas reiterada, que, por efeitos do princípio da confiança, gera no trabalhador a convicção de que o empregador a prosseguirá no futuro.
E é a partir do momento em que tal prática se consolidou e passou a constituir um uso laboral relevante como fonte de direito do trabalho que o objecto deste uso passou a incorporar directa e imediatamente os contratos de trabalho dos trabalhadores ao serviço da empresa, conforme decidiu o já citado acórdão de 5/7/2007, proferido no Recurso n.º 2576/06 - 4.ª Secção (Mário Pereira).
Quanto ao período de tempo necessário para tal consolidação, acrescenta Júlio Gomes que (pgª 16 do estudo acima identificado) que “os ordenamentos que dão relevância aos usos não estabelecem quanto tempo é que tem de decorrer para que nasça um uso – essa é uma questão que cabe aos Tribunais decidir…”
No caso concreto, a Ré alegou, mas não provou, que a R. vinha pagando subsídio de refeição a todos os seus trabalhadores, durante toda a sua antiguidade, mesmo antes da sua adesão a quaisquer convenções colectivas, designadamente antes de 1996.
O que resulta da matéria de facto apurada e dos IRCT aplicáveis é que, pelo menos desde 2001, a Ré está obrigada ao pagamento de subsídio de refeição aos seus trabalhadores por força desses instrumentos de regulamentação colectiva, seja negociais, seja não negociais. Relativamente às trabalhadoras filiadas no CESP, essa vinculação durou, pelo menos, até Agosto de 2016, data da filiação sindical que redundou na inaplicabilidade dos IRCT negociais e no afastamento das Portarias de Extensão a que o CESP deduziu oposição.
Não pode, pois, dizer-se que existia uma prática social reiterada não acompanhada da convicção de obrigatoriedade, geradora de autovinculação, característica dos usos laborais. O meso é dizer que a Ré, nesse período de tempo, pagou o subsídio de refeição aos seus trabalhadores porque a tanto estava obrigada pelos instrumentos de regulamentação colectiva que outorgou, ou a que aderiu ou cuja aplicação lhes foi administrativamente estendida.
É certo que após Agosto de 2016 a Ré continuou a pagar o subsídio de refeição às trabalhadoras filiadas no CESP. Contudo, fê-lo, ainda, na convicção da sua obrigatoriedade e num período de dúvida quanto ao IRCT aplicável a tais trabalhadoras. Com efeito, como se provou, só após a sentença proferida no processo 1496/18...., que viria a reconhecer a uma trabalhadora da R. filiada no CESP o direito às diuturnidades vencidas nos termos do art. 21º da PRT de 1996 publicado no BTE n.º 15, 1ª. Série, de 22.04.1996 é que a R. deliberou aplicar aos colaboradores filiados no CESP a PRT de 1996, tal como determina a sentença judicial, retirar a estes colaboradores, o subsídio de refeição, por não estar previsto na PRT de 1996, a partir do corrente mês de Setembro de 2020, inclusive e encarregar os Recursos Humanos de proceder ao cálculo dos valores em dívida e ao pagamento dessas quantias juntamente com o vencimento do mês de Setembro de 2020.
Não pode, pois, afirmar-se que durante um lapso de tempo considerável e relevante, de moto próprio, sem a a Ré tenha implementado uma prática reiterada de pagamento de subsídio de refeição a todos os seus trabalhadores, independentemente da sua filiação sindical, em termos de criar nos seus trabalhadores a expectativa de que manteria tal pagamento independentemente das vicissitudes da contratação colectiva. Logo, improcede a tese do uso laboral defendida pelo A. como fundamento do direito de todos os trabalhadores da R. ao subsídio de refeição.”

Concordamos com o essencial desta fundamentação.

Efectivamente dos factos provados (ponto 12-) resulta que A Ré, até pelo menos Agosto de 2020, aplicava à generalidade dos seus trabalhadores, as cláusulas previstas no ACT celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e a FNE-Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, publicado no BTE n.º 47 de 22/12/2001.

Poderá questionar-se, é certo, se entre Julho de 1998 e o final do ano de 2001, em que a ré igualmente pagou subsídio de alimentação aos seus trabalhadores (sem que decorra dos autos que o fazia em decorrência de algum IRCT ou cláusula dos contratos de trabalho), tal prática não estava já consolidada como um uso laboral, mas afigura-se-nos que não, porquanto, e aderindo a uma expressão do Tribunal a quo, tal prática não ocorreu “durante um lapso de tempo considerável e relevante”.
Com efeito, e sendo certo que a lei não nos dá uma resposta taxativa, este é um aspecto em que, como nota António Dias Coimbra, “A resposta da jurisprudência oferece, aqui, notória importância”[1].

Na verdade, e à luz do que tem sido o critério, nomeadamente, do STJ, o período de cerca de três anos e meio mostra-se insuficiente para consolidar como uso laboral uma prática do empregador que consistia em pagar subsídio de refeição a todos os seus trabalhadores.

No Ac. do STJ de 27-03-2019[2], e aludindo a um artigo de Tiago Cochofel de Azevedo, consignou-se que “Este mesmo autor no que concerne à frequência do uso sustenta que «no plano laboral, a frequência do uso dependerá, em última análise, do seu objeto. As práticas diárias mais facilmente (e sobretudo mais rapidamente) constituirão usos, por oposição àquelas que apenas se manifestam esporadicamente.”, aludindo-se nesse douto aresto também aos ensinamentos de José Andrade Mesquita, o qual “observa que o lapso de tempo necessário para que se constitua um uso pode até depender da frequência da reiteração, sendo necessário mais tempo para que se constitua o uso da empresa de uma gratificação anual, do que para o uso que consiste no tratamento diário de uma pausa como tempo de trabalho.”

Ora, precisamente numa situação em que estava em causa considerar como uso laboral a prática do empregador, que perdurou por 3 anos, de considerar como tempo de trabalho a pausa diária de 60 minutos, o SJT decidiu, por acórdão de 21.3.2019[3], que “O período de três anos, durante o qual a empregadora continuou a considerar a pausa diária de 60 minutos, como tempo de trabalho, nos termos anteriormente estipulados no AE, entretanto substituído por ACT, expressamente considerado, nos termos do art. 503º, nº 3 do Código do Trabalho, globalmente mais favorável e que deixou de prever aquela pausa como tempo de trabalho, é tempo insuficiente para que se configure uma prática constante merecedora da tutela da confiança dos trabalhadores na sua continuidade, não assumindo, por isso, a natureza dum “uso” relevante à luz do artigo 1º do Código do Trabalho.”
Também o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão datado de 07.7.2010[4], considerou que “a circunstância demonstrada de que, durante cerca de quatro anos após a conclusão do doutoramento, o trabalhador com o conhecimento do empregador, continuou a prestar o seu trabalho no mesmo regime presencial de 16 horas por semana, só pode ser entendida como mera tolerância, não consubstanciando uma prática ou uso laboral suscetível de lhe conferir o direito a manter, de forma permanente, aquele regime presencial de 16 horas semanais, pois, para além de não se poder considerar aquele período como um período longo de tempo que justificasse que o trabalhador tivesse adquirido legitimamente a convicção de que, no futuro e definitivamente, esse regime presencial seria mantido, o trabalhador sabia que tal regime era excecional.” (cf. ponto V do respectivo sumário)

Ainda o nosso mais Alto Tribunal, em acórdão de 27.11.2018[5], e valendo-nos da síntese do ponto III do respectivo sumário, decidiu que “O pagamento do subsídio de refeição, nas férias, durante cerca de 40 anos, constituiu uma prática constante, uniforme e pacífica sendo por isso merecedora da tutela da confiança dos trabalhadores na sua continuidade, assumindo a natureza dum uso relevante à luz dos artigos 12.º, n.º 1 da LCT, 1.º do CT/2003 e do CT/2009, coberto pela imperatividade da norma do art. 129.º, n.º 1, al. d) do Código do Trabalho/2009, “ex vi” do art. 260.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do mesmo diploma.”, pois que, como na fundamentação do acórdão também se diz, “o subsídio de refeição pago pela Ré nas férias dos seus trabalhadores, quando não seria devido, excede os respectivos montantes normais”.

Júlio Gomes, em Dos usos da empresa em Direto do Trabalho - Novos Estudos de Direito do Trabalho[6], refere que “a tese que proporciona a explicação mais satisfatória e convincente para a vinculação do empregador pelo uso da empresa é a da autovinculação deste por força da boa fé na execução do contrato, na tutela da confiança gerada e da proibição do abuso de direito (…)” e que “Esta expectativa dos trabalhadores na continuação da aplicação de uma regra revela-se particularmente digna de tutela em prestações muito próximas do sinalagma, sendo menos relevante e carecida de protecção em domínios em que, até do ponto de vista social, não se justifica a intervenção do Direito”.

Reportando de novo à situação em causa nos autos, temos que o subsídio de refeição, que não constitui retribuição em sentido estrito, foi pago numa cadência mensal, durante cerca de três anos e meio. Tendo presentes os considerandos supra, a orientação jurisprudencial que podemos retirar dos arestos supra citados, e bem assim os ensinamentos da doutrina já aludidos, entendemos manifestamente parco o referido período para que nele possamos ancorar a consolidação de um uso laboral.
 
Acresce que, nos termos propugnados no art. 8.º/3 do CC, “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”

Por outro lado, a ré, até pelo menos Agosto de 2020, aplicava à generalidade dos seus trabalhadores, as cláusulas previstas no ACT celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e a FNE-Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, publicado no BTE n.º 47 de 22/12/2001(número 12 dos factos provados), quando é certo que havia trabalhadores já filiados no Sindicato aqui autor desde Agosto de 2016 (cf. número 13 dos factos provados), mas para além de este período de tempo, conforme justificação acima exposta, continuar a afigurar-se insuficiente que a consolidação de um uso laboral, e também para além das razões já aduzidas na sentença recorrida, temos de notar que não consta dos factos provados que a dita filiação sindical fosse levada ao conhecimento da ré, ou provados factos dos quais seja possível extrair que a ré necessariamente tinha conhecimento dessa filiação – aliás, ao pretender o autor que se dê como provado “que apenas com o conhecimento da filiação de alguns dos seus trabalhadores no Sindicato A. a Ré retirou aos mesmos o subsídio de alimentação” (e sem prejuízo do que se consignou a propósito aquando do conhecimento da impugnação da matéria de facto) parece que está o autor a aceitar que a ré apenas tomou conhecimento dessa filiação na altura em que retirou aos mesmos o subsídio de alimentação.

Ora, mais do que avaliar, sob o ponto de vista jurídico, se a PRT de 1996 era ou não aplicável às relações laborais destes trabalhadores entretanto filiados no Sindicato autor (CESP), e até de se poder concluir que a avaliação da ré assim feita estava incorrecta – e das controvertidas repercussões desse hipotético erro na eventual formação do uso -, o conhecimento pela ré da referida filiação sempre constituiria um pressuposto para a referida aplicação.
Isto é, se não foi dado conhecimento à ré que os seus trabalhadores entretanto se filiaram em determinado Sindicato, no caso o autor, também a ré não tinha que reequacionar qual o IRCT que lhes era aplicável, pois sobre ela não impendia qualquer obrigação de, a todo o momento, diligenciar por aquela informação.

Daí que, em nosso entendimento, o tempo decorrido entre a data da filiação de cada trabalhador no Sindicato autor e ao mês de Setembro de 2000, em que a ré deixou de pagar a esses trabalhadores o subsídio de refeição, sempre seria irrelevante para efeitos de constituição de um uso laboral, pois, independentemente de qualquer eventual erro em que pudesse incorrer a ré quanto a tratar-se de uma prática reiterada mas sem a convicção da sua obrigatoriedade, sequer dos factos provados resulta que a ré pudesses fazer esse juízo, e eventualmente concluir, logo aquando da filiação de cada trabalhador, que deixou de lhe ser devido o pagamento de subsídio de refeição.

Uma última nota a propósito desta temática:
O recorrente diz (por ex., conclusões 15 e 16) que decorre da natureza da entidade patronal (v.g. horários rotativos, de dia e de noite, e jornada contínua) a obrigatoriedade de pagar subsídio de refeição, ou fornecer as refeições, ainda que sem qualquer IRCT aplicável.
Ora, para estas (eventuais; nos autos não ficaram demonstradas) situações rege o n.º 4 da cláusula 17.ª da PRT de 1996, que estabelece: “O disposto nos números anteriores não é aplicável aos trabalhadores que, no interesse da instituição, devam nela permanecer nos períodos das refeições e ou durante a noite, aos quais serão fornecidos alimentação e ou alojamento gratuitos.”

Em conclusão, improcede também para nós a tese do uso laboral defendida pelo autor.

Se não há uso laboral a considerar, então prejudicado fica conjecturar sobre as suas possíveis consequências, v.g. ao nível do contrato de trabalho de cada trabalhador em causa, e da sua eventual articulação com o IRCT/Portaria tido como aplicável a essas relações laborais.

Quanto à invocada violação dos princípios da igualdade e da não discriminação, escreveu-se na decisão recorrida:
“Alega, ainda, o sindicato A., de modo genérico, diga-se, que a R. provocou uma discriminação em função da sua filiação sindical, já que retirou às trabalhadoras representadas pelo A. o subsídio de refeição, apenas com o conhecimento da filiação sindical. Importa, pois, analisar a questão na perspectiva do princípio da igualdade de tratamento.

A ré, como qualquer empregador, está obrigada a respeitar os princípios de igualdade e não discriminação, designadamente, em matéria de retribuição, impostos pela Constituição e pela lei. No que importa, convocam-se as seguintes disposições legais em matéria de igualdade e não discriminação nas relações laborais:

Artigo 23º
Conceitos em matéria de igualdade e não discriminação
1 — Para efeitos do presente Código, considera -se:
a) Discriminação directa, sempre que, em razão de um factor de discriminação, uma pessoa seja sujeita a tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou venha a ser dado a outra pessoa em situação comparável;
b) Discriminação indirecta, sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutro seja susceptível de colocar uma pessoa, por motivo de um factor de discriminação, numa posição de desvantagem comparativamente com outras, a não ser que essa disposição, critério ou prática seja objectivamente justificado por um fim legítimo e que os meios para o alcançar sejam adequados e necessários;
c) Trabalho igual, aquele em que as funções desempenhadas ao serviço do mesmo empregador são iguais ou objectivamente semelhantes em natureza, qualidade e quantidade;
d) Trabalho de valor igual, aquele em que as funções desempenhadas ao serviço do mesmo empregador são equivalentes, atendendo nomeadamente à qualificação ou experiência exigida, às responsabilidades atribuídas, ao esforço físico e psíquico e às condições em que o trabalho é efectuado.
2 - Constitui discriminação a mera ordem ou instrução que tenha por finalidade prejudicar alguém em razão de um factor de discriminação.
Artigo 24.º
Direito à igualdade no acesso a emprego e no trabalho
1 — O trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos.
2 — O direito referido no número anterior respeita, designadamente:
a) A critérios de selecção e a condições de contratação, em qualquer sector de actividade e a todos os níveis hierárquicos;
(…)
c) A retribuição e outras prestações patrimoniais, promoção a todos os níveis hierárquicos e critérios para selecção de trabalhadores a despedir;
(…).
Artigo 25.º
Proibição de discriminação
1 — O empregador não pode praticar qualquer discriminação, directa ou indirecta, em razão nomeadamente dos factores referidos no n.º 1 do artigo anterior.
2 — Não constitui discriminação o comportamento baseado em factor de discriminação que constitua um requisito justificável e determinante para o exercício da actividade profissional, em virtude da natureza da actividade em causa ou do contexto da sua execução, devendo o objectivo ser legítimo e o requisito proporcional.
3 — São nomeadamente permitidas diferenças de tratamento baseadas na idade que sejam necessárias e apropriadas à realização de um objectivo legítimo, designadamente de política de emprego, mercado de trabalho ou formação profissional.
4 — As disposições legais ou de instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho que justifiquem os comportamentos referidos no número anterior devem ser avaliadas periodicamente e revistas se deixarem de se justificar.
5 — Cabe a quem alega discriminação indicar o trabalhador ou trabalhadores em relação a quem se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que a diferença de tratamento não assenta em qualquer factor de discriminação.
6 — O disposto no número anterior é designadamente aplicável em caso de invocação de qualquer prática discriminatória no acesso ao trabalho ou à formação profissional ou nas condições de trabalho, nomeadamente por motivo de dispensa para consulta pré -natal, protecção da segurança e saúde de trabalhadora grávida, puérpera ou lactante, licenças por parentalidade ou faltas para assistência a menores.
(…).

As citadas disposições legais concretizam ao nível da lei ordinária em matéria laboral o princípio constitucional da igualdade, consagrado no art. 13.º da C.R.P. (“Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”) e desenvolvido no art. 59.º nº 1 da mesma C.R.P. (“Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna”). É pacificamente entendido e aceite que este princípio se reporta a uma igualdade material, que não meramente formal, e concretiza-se na proscrição do arbítrio e da discriminação, devendo tratar-se por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual.
Para efeitos do disposto no 5 do artigo 25.º do CT/2009, quem invoca uma situação de discriminação, nomeadamente em termos salariais, tem apenas de provar a discriminação concreta de que é vítima e os factos integrativos do factor de discriminação referidos no n.º 1 do artigo 24.º, incumbindo depois ao empregador provar que a diferença de tratamento assenta em critérios objectivos e não decorre do factor de discriminação invocado.
Ora, o A. invocou como factor de discriminação a filiação sindical das suas associadas. Provou-se, com efeito, que a R. deliberou retirar o subsídio de refeição aos trabalhadores filiados no CESP. Contudo, não pode afirmar-se a existência de violação do princípio da igualdade em matéria salarial numa situação em que a diferença de tratamento resulta do facto desses trabalhadores se encontrarem abrangidos por instrumento de regulamentação colectiva que não prevê a atribuição de subsídio de refeição, ao passo que os demais trabalhadores a quem a R. efectua tal pagamento se encontram abrangidos por um IRCT que prevê tal pagamento.
A diferença de tratamento, neste caso, tem uma razão objectiva que radica na liberdade de filiação sindical e de contratação colectiva. Não existe, pois, violação do princípio da igualdade de tratamento por parte da R.”

Revemo-nos nesta fundamentação, que traz à liça o normativo legal pertinente, interpretando-o devidamente e fazendo uma adequada aplicação ao caso.

E, de resto, entendimento que também vem sendo sufragado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Ainda recentemente (Ac. de 13.12.2022[7]) se sumariou em douto acórdão da RC:

“I - O princípio para “trabalho igual salário igual” não proíbe que o mesmo trabalho prestado em quantidade, natureza e qualidade seja remunerado em termos quantitativamente diferentes.
II – O que o princípio proíbe são as discriminações ou distinções sem fundamento material, designadamente porque assentes em meras categorias subjectivas.
III – Se as diferenças de remuneração assentarem em critérios objectivos, então elas são materialmente fundadas, e não discriminatórias.”

E também na linha da decisão recorrida, consignou-se em Ac. do STJ de 14.12.2016:[8]
“A vinculação de um trabalhador a uma concreta convenção coletiva de trabalho implica a aceitação da disciplina global que da mesma emerge, uma vez que as convenções são um todo, onde o equilíbrio global é conseguido a partir da harmonização do complexo das matérias negociadas.
No caso de existência no âmbito da mesma empresa de trabalhadores que desempenhem funções análogas abrangidos por diversos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho não é possível comparar segmentos isolados dos instrumentos para afirmar a existência de discriminações entre eles.
Sobre esta problemática referiu-se no acórdão desta Secção de 21 de outubro de 2009, proferido no processo n.º 838/05.2TTCBR.C1.S1, o seguinte:
«Na verdade, se porventura o trabalhador é associado de uma organização sindical que celebrou com a empresa um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho que, perspetivado no seu todo, apresenta uma globalidade de condicionantes mais favoráveis ou menos constritoras que aquelas que, também no seu todo, são decorrentes de acordos de empresa que foram celebrados com outras organizações sindicais, seria extremamente redutor que, para aferir da violação do princípio constitucional de que curamos, se atentasse no acordo ou nos acordos celebrados unicamente na parte em que dele ou deles decorria o aumento salarial, pois que uma tal postura, no fundo, escamoteava uma totalidade de circunstâncias que, no domínio da realidade, podem constituir critérios de diferenciação atendíveis, e isto independentemente da questão de saber se, não obstante o que se encontra prescrito na parte final do n.º 1 do artigo 18º do Diploma Básico, o princípio de que «para trabalho igual salário igual» há de ser, como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 604) “como qualquer princípio constitucional”, “conjugado com outros princípios constitucionais e, concretamente neste âmbito específico, carece de ser articulado com o princípio geral da autonomia privada, com a liberdade de empresa e com a própria liberdade de filiação sindical»

E embora no caso dos autos o contraponto não haja de ser feito entre dois instrumentos de regulamentação colectiva convencionais, em que de ambos seja possível dizer que são “fruto do livre desenvolvimento das negociações efectuadas entre ambas [Associação de empregadores e Sindicatos], mediante cedências e conquistas de parte a parte e nele se encontra definido um novo regime de enquadramento das relações de trabalho, com novos direitos, deveres e obrigações, que integram o novo estatuto contratual dos trabalhadores filiados nas associações sindicais membros daquela Federação que o subscreveu e que a ele se sujeitou, sendo evidente que o que foi aceite por qualquer das partes outorgantes em certas áreas teve as suas contrapartidas em outras áreas da convenção, dentro ou fora da matéria específica em que essa cedência teve lugar, constituindo, assim, tal CCT um todo unitário do qual não podem dissociar-se as tabelas salariais[9]”, mas se trate de aplicar, por um lado, um ACT, e por outro lado uma PRT, a conclusão de não discriminação mantém-se.

Aderindo a uma resenha feita pela Sr.ª Conselheira Paula Sá Fernandes[10], “A designação de portaria de regulamentação do trabalho era usada na legislação laboral que antecedeu o Código do Trabalho de 2003, mais concretamente na Lei das Relações Coletivas de Trabalho (LRCT) (art.º. 36).
Sucedeu-lhe o regulamento de condições mínimas na vigência do Código do Trabalho de 2003 (artigos 2.º, n.º 4 e 577.º, e ss), atualmente, esta figura de regulamentação coletiva das situações laborais vem regulada com a designação de portaria de condições de trabalho, no Código do Trabalho de 2009 (artigos 2.º, n.º 4 e 517.º e ss).
As portarias de condições do trabalho têm assim uma natureza residual prevalecendo relativamente a estas, as portarias de extensão e, relativamente a estas, os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho negociais. Com efeito, como resulta do disposto no artigo 3.º, n.º 2 do Código do Trabalho: As normas legais reguladoras do contrato de trabalho não podem ser afastadas por portarias de condições de trabalho. Esta norma surge na sequência do entendimento do Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva, no acórdão n.º 306/2003, publicado no Diário da República, 1.ª Série A, de 18 de julho de 2003, onde foi entendido que as portarias de condições de trabalho violam o artigo 112/5, n.º 6 (atual n.º 7) da Constituição da República Portuguesa, pois têm carácter normativo inovatório e não se ligam a nenhum instrumento de regulamentação coletiva negocial anterior.”

Ora, não obstante esta natureza residual da Portaria de Regulamentação não deixa de regular vária matéria – no caso, plasmada em 26 cláusulas e Anexos -, que visam regular não só a remuneração, como abrangem, sem se ser exaustivo, condições de admissão, classificação profissional, definição de funções e níveis de qualificação, local de trabalho, deslocações, períodos normais de trabalho, intervalos de descanso, feriados e férias, estipulando-se até (n.º 2 da cláusula 24.ª) que “O regime constante da presente portaria considera-se globalmente mais favorável do que o resultante da regulamentação colectiva anterior.”

Não há, assim, e como acima já referimos, motivo para não aplicarmos aqui o raciocínio expendido nos acórdãos citados, e que afasta a existência de tratamento discriminatório.

Relativamente ao aventado abuso de direito e má-fé por parte da ré:
Consta, a propósito, da fundamentação da sentença:
“Por fim, o A. alega que a R. agiu de má fé e com abuso de direito, já que a retirada do subsídio de refeição aos trabalhadores sindicalizados no A., vedou-lhes o acesso a um direito social e económico e desvirtuou a essência da natureza do mesmo.
Como decorre do artigo 334.º do Código Civil, o abuso do direito traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular, ao exercê-lo, exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Não basta, pois, que o titular do direito exceda os limites referidos naquele preceito, é necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito que é exercido. Por outro lado, não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, ou seja, não é necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, basta que na realidade (objectivamente) esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e intolerável, porquanto o ordenamento jurídico acolheu a concepção objectiva do abuso do direito (cf., por todos, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1967, p. 217).
Os limites impostos pela boa fé decorrem do princípio da confiança e da estabilidade e previsibilidade das relações jurídicas. Os bons costumes traduzem-se no conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta na sociedade onde se inserem. Por fim, os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu. Se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, poderá haver abuso do direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante.
No caso em apreço está em causa eventual violação dos limites decorrentes do princípio da boa fé e do fim social e económico do direito exercido pela R. O artigo 126º do Código do Trabalho estabelece os deveres gerais de boa-fé no exercício dos direitos e no cumprimento das obrigações emergentes do contrato de trabalho e de colaboração na execução do contrato de trabalho, deveres que tanto obrigam o empregador como o trabalhador. Também o artigo 520º nº 1 do Código do Trabalho impõe aos destinatários de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho o dever de proceder de boa-fé no seu cumprimento.
É certo, ainda, como supra de demonstrou, que o estatuto sócio-profissional das trabalhadoras da Ré estava sujeito à disciplina estabelecida no ACT celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e outras e a FNE — Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, do qual a R. também foi subscritora publicado no BTE nº 47 de 22/12/2001 e a alteração publicada no BTE nº 3 de 22/01/2010, por força da Portaria nº 278/2010 de 24 de Maio. E provou-se que a Ré aplicava à generalidade dos seus trabalhadores as mesmas condições de trabalho que aplica, designadamente as previstas no ACT celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e a FNE — Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros publicado no BTE nº 47 de 22/12/2001. Sofrendo esse estatuto sócio-profissional emergente de determinado IRCT uma modificação resultante de facto imputável às trabalhadoras representadas pelo A., porque emergente do livre exercício por parte destas do direito de filiação sindical, incompatível com a aplicação daquele IRCT, não se vislumbra como possa ser assacada à R. a violação do dever de boa-fé e do fim social e económico do direito exercido – de retirada do subsídio de refeição a tais trabalhadoras, pois foram estas que quiseram prevalecer-se do novo estatuto, que previa outras prestações, como as diuturnidades, mas não prevê o subsídio de refeição, rejeitando a aplicação do anterior. A Ré deixou de pagar o subsídio de refeição, mas, em contrapartida, passou a pagar diuturnidades às mesmas trabalhadoras, isto no que a prestações pecuniárias respeita. Acresce que as alterações ao estatuto sócio-profissional das trabalhadoras representadas pelo A. não se restringem às questões pecuniárias, abrangendo aspectos como a organização dos tempos de trabalho, entre outras matérias, que deixaram de estar reguladas pelos anteriores IRCT.
Dito isto, do simples facto da R. ter retirado às trabalhadoras representadas pelo A. o subsídio de refeição – não existindo ilicitude nesse acto pelas razões explicitadas – apesar de o continuar a pagar aos demais trabalhadores por força das condições de trabalho decorrentes de um outro IRCT e que genericamente aplicava aos demais trabalhadores, não pode concluir-se, sem mais, que a Ré tenha adoptado um comportamento abusivo em termos clamorosamente ofensivos da boa fé, dos bons costumes e do fim social a que se destina. Opondo-se o A. aplicação de tal IRCT aos trabalhadores da Ré seus associados e exigindo a aplicação da PRT para os trabalhadores das IPSS, não poderiam, nem o A., nem as trabalhadoras suas associadas, esperar que essa oposição não trouxesse outras alterações ao estatuto sócio-profissional dos trabalhadores abrangidos. Concretamente, não poderiam ignorar que deixava de existir suporte e protecção do “subsídio de refeição”, seja nos contratos individuais de trabalho, que não o estipulava, seja no IRCT reivindicado, que o não prevê. Isto porque, um IRCT é aplicável no seu conjunto, em bloco e não apenas nos aspectos que pareçam mais favoráveis. Aliás, o carácter mais ou menos favorável de determinado IRCT aprecia-se no seu conjunto e não em atenção a medidas/regras específicas nele contidas.
Não se verificam, pois, os pressupostos do invocado abuso de direito.”

Concordamos uma vez mais com a fundamentação da sentença, que faz uma correcta e exaustiva aplicação do Direito, não se justificando aqui, a nosso ver, quaisquer aditamentos ao já explanado pela Mm.ª Juiz a quo.

IV - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo do recorrente.
Notifique.
Guimarães, 30 de Março de 2023

Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor


[1] Uso Laboral, Para Jorge Leite, Escritos Jurídico-Laborais I, Coimbra Editora, pág. 254.
[2] Ac. STJ de 27-03-2019, Proc. 18047/16.3T8LSB.L1.S1, Chambel Mourisco, www.dgsi.pt
[3] Proc. 26175/16.9T8LSB.L1.S1, Ribeiro Cardoso, www.dgsi.pt
[4] Proc. 123/07.5TTBGC.L1.S1, Vasques Dinis, www.dgsi.pt
[5] Proc. n.º 12766/17.4T8LSB.L1.S1, Ribeiro Cardoso, www.dgsi.pt
[6] Coimbra Editora, pág.s 34 e 37.
[7] Proc. 574/21.2T8GRD.C1, Felizardo Paiva, www.dgsi.pt
[8] Proc. 4521/13.7TTLSB.L1.S1, António Leones Dantas, www.dgsi.pt
[9] Ac. RL de 15-12-2021, Proc. 413/20.1T8VPV.L1-4, Alves Duarte e, no mesmo sentido e da mesma Relação, Ac. de 15-02-2012, Proc. 3250/09.0TTLSB.L1-4, Ferreira Marques, ambos em www.dgsi.pt
[10] Ac. STJ de 29-09-2021, Proc. 7814/18.3T8VNG.P1.S1, www.dgsi.pt