Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5834/17.4T8BRG.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1- Como decorrência dos princípios do dispositivo e do contraditório, o Autor encontra-se obrigado, na vigência do atual CPC, a delimitar, na petição inicial, subjetiva (sujeitos) e objetivamente (pedido e causa de pedir) a relação jurídica material controvertida que submete à apreciação do tribunal, encontrando-se onerado com o ónus da alegar, nesse articulado, os factos essenciais consubstanciadores dessa causa de pedir.

2- Contrariamente ao que acontecia antes da revisão operada pela Lei n.º 41/2013, de 26/6, na vigência do atual CPC não é possível ao Autor alterar ou ampliar o pedido ou a causa de pedir na réplica, articulado este que, aliás, passou a ser meramente eventual (apenas admissível quando seja deduzida reconvenção).

3- Os pressupostos processuais são os elementos de cuja verificação depende a possibilidade de o juiz poder entrar na apreciação do mérito, pelo que, em princípio, os mesmos têm de ser aferidos por referência à relação jurídica material controvertida delineada, subjetiva e objetivamente, pelo Autor na petição inicial.

4- Pelo pressuposto processual da legitimidade exige-se que atendendo, em princípio, à relação jurídica material controvertida delineada, subjetiva e objetivamente, pelo Autor, na petição inicial, entre os sujeitos que figuram no processo como Autor e como Réu e o objeto do processo (pedido e causa de pedir) por aquele delineados na petição inicial, interceda uma certa conexão, por forma a poder concluir-se que aqueles são “as partes certas” dessa relação jurídica em discussão no processo, por nele figurar como “Autor” a pessoa que, de acordo com essa relação jurídica delineado na petição inicial, por referência ao direito substantivo, tem a pretensão deduzida em juízo, por ser o titular incontestado do direito que aí é exercido (independentemente dos factos que alegou, na petição inicial, como constitutivos desse seu direito serem verdadeiros ou falsos e de os vir ou não a lograr provar), e nesse processo figurar como “Réu” a pessoa que, atenta essa relação jurídica controvertida delineada na petição inicial e por referência ao direito substantivo, ser a pessoa cuja esfera jurídica será diretamente atingida pela providência requerida (pedido) em caso de procedência da ação.

5- Instaurando o Autor ação contra dois Réus, pessoa singulares, e uma sociedade Ré, com vista a ser indemnizado solidariamente pelos últimos pelos prejuízos sofridos em consequência da reparação defeituosa do seu veículo automóvel, resultando dos factos alegados, na petição inicial, que o contrato de empreitada de cujo cumprimento defeituoso o Autor faz derivar a sua pretensão indemnizatória contra aqueles Réus, foi celebrado entre o Autor e uma sociedade terceira (que não é Ré no processo), os Réus demandados são destituídos de legitimidade passiva para a ação, ainda que o Autor alegue, em sede de petição inicial, que a nova sociedade Ré tem como representantes legais aqueles que eram (ou são) os legais representantes da sociedade com quem celebrou o contrato de empreitada cumprido defeituosamente (os Réus, pessoas singulares) e que a nova sociedade (Ré) tem a sua sede na mesma morada onde funcionava a sociedade com quem celebrou aquele contrato de empreitada e aí labora com os mesmos trabalhadores, máquinas e ferramentas.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrente: (…)
Recorridos: Mário (..) E OUTROS

P. M., residente na Rua …, Barcelos, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Mário …, residente na Rua … Braga, A. F., residente na Rua …, Braga, e MF Automóveis, Lda., com sede na Rua … Braga, pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhe a quantia de 8.111,36 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, desde a citação até integral pagamento.
Para tanto alega, em síntese (conquanto não iremos sintetizar em demasia os factos que por ele são alegados a título de causa de pedir, atento o objeto da presente apelação) ser dono do veículo de matrícula CG, o qual, em agosto de 2014, deixou ao cuidado do 1º Réu, Mário ..., para reparações na oficina sita no Campo de Futebol, n.º …, Braga, tendo ficado acordado que as reparações incidiam somente na pintura do veículo;
Porém, foi-lhe comunicado que era necessário proceder à reparação da caixa de velocidades, em virtude desta apresentar alguns defeitos;
Confiando na perícia técnica da oficina e ignorante quanto a reparações de automóveis, o Autor autorizou, também, a reparação da caixa de velocidades e apenas veio a usufruir do seu veículo automóvel em dezembro de 2014, com os danos supostamente reparados e com a garantia de não ter qualquer problema na caixa de velocidades;
Acontece que a viatura foi-lhe entregue com vários danos na pintura, de que deu conhecimento ao 1º Réu, que apesar de assumir a reparação, nunca chegou a proceder à mesma;
Pouco tempo depois, o Autor detetou inúmeros defeitos na caixa de velocidades, nomeadamente, vibração anormal desta, o que comunicou ao 1º Réu, que lhe respondeu que teria de verificar a viatura e que resolveria o problema;
Nessa sequência, o Autor confiou novamente aquele veículo ao cuidado do 1º Réu em janeiro de 2016;
Sucede que o 1º Réu comunicou ao Autor que a reparação teria um custo associado, pois não se responsabilizava pela mesma;
Atendendo a esta posição, o Autor tentou reclamar junta da oficina, alegando que os defeitos existentes no veículo diziam respeito à caixa de velocidades, supostamente reparada na oficina do 1º Réu, exigindo-lhe que fosse exibida a fatura correspondente às tarefas realizadas na viatura, apercebendo-se, então, que o serviço não tinha sido devidamente faturado;
Por intermédio do seu advogado, o Autor tentou interpelar os Réus, por cartas de fls. 9 verso a 13 dos autos, remetidas para a morada da sede e da oficina, para que cumprissem com as suas obrigações, salientando o facto da reparação ter uma garantia legal de dois anos e requerendo a realização do trabalho de correção de pintura e de reparação da caixa de velocidades, cartas essas que foram devolvidas;
Em face da recusa do Réu em proceder à reparação da viatura, o Autor retirou esta da oficina em 19/04/2016, através de reboque e tentou apresentar reclamação escrita no livro amarelo, o que o 1º Réu não permitiu, o que só foi possível mediante a intervenção de mandatário e das forças policiais;
Acontece que apenas quando conseguiu escrever essa reclamação no livro amarelo é que o Autor se apercebeu que a oficina a quem endereçou a reclamação já não era a mesma na qual deixou o carro e que a sociedade Unipessoal, Lda., tinha sido substituída por uma nova sociedade, a 3ª Ré;
Sucede que o representante legal da 3ª Ré continua a ser o 1º Réu, aquela 3ª Ré tem a sua sede social da sociedade supramencionada e extinta, labora com os mesmos trabalhadores, as mesmas máquinas e ferramentas, assim se justificando o chamamento e todos os Réus aos presentes autos;
Impossibilitado de andar com o seu próprio veículo, o Autor foi obrigado a proceder à reparação daquele noutra oficina, no que despendeu 3.111,36 euros;
O Autor ficou privado dessa viatura durante cerca de dois meses e para fazer face às necessidades de transporte nos dias em que se encontrava em Portugal, dado que aquele se encontra emigrado, mas está frequentes vezes em Portugal, viu-se forçado a diligenciar pelo empréstimo de um carro para as deslocações mais prementes e de recorrer a transportes públicos, o que lhe causou danos não patrimoniais para cuja compensação reclama a quantia de 3.000,00 euros;
O recurso à via judicial implica custos acrescidos para o Autor, designadamente, em deslocações e honorários, que se estimam em quantia não inferior a 500,00 euros.

Os Réus contestaram defendendo-se por exceção e por impugnação.
Invocaram a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, sustentando que tal como é alegado pelo Autor e é comprovado pelos documentos 1 e 2 que este juntou aos autos, o mesmo nunca contratou com os Réus, tanto mais que, a sociedade Ré apenas existe desde 07/10/2014;
O Autor não imputa um único facto em relação ao 2º Réu A. F., pelo que este não pode ser considerado parte legítima;
Também o 1º Réu Mário ... é parte ilegítima uma vez que o Autor nunca contratou com ele qualquer reparação ou serviço, nunca assinou qualquer contrato ou discutiu qualquer condição do veículo ou necessidade de reparações a realizar, nem tão pouco recebeu o veículo seja a que título for, ou se o fez, fê-lo na qualidade de legal representante da sociedade comercial existente à data dos factos alegados, a “Office X, Unipessoal, Lda.”, como decorre da posição assumida pelo próprio Autor nos documentos 1 e 2 que juntou aos autos;
Invocaram a exceção da ilegitimidade ativa, alegando que o Autor instaurou a presente ação sustentando ser dono do veículo;
Acontece que não tendo aquele junto aos autos qualquer documento comprovativo dessa pretensa propriedade sobre o veículo, entende-se não estar suficientemente demonstrada a sua legitimidade ativa para instaurar a presente ação;
Invocaram a exceção perentória da caducidade do direito indemnizatório que o Autor vem exercer nos autos, alegando que o mesmo assume que logo em dezembro de 2014, o veículo lhe foi entregue com vários danos na pintura, pelo que teria de comunicar esses defeitos à “Office X” até fevereiro, o que não fez;
O Autor teve conhecimento dos alegados vícios de que padecia a caixa de velocidades em momento incerto, mas nunca depois de dezembro de 2014;
Assim, o Autor denunciou aqueles pretensos defeitos mais de dois meses sobre a data em que deles teve conhecimento e intentou a presente ação mais de dois anos sobre esse conhecimento, pelo que o direito que aquele se arroga titular perante os Réus se encontra caduco;
Impugnaram a factualidade alegada pelo Autor, sustentando que este entregou o veículo em janeiro de 2016, advogando que este confunde muitos conceitos ao longo da ação, nomeadamente, sociedades comerciais e pessoas singulares, não compreendendo os Réus porque é que aquele não intentou a presente ação contra a sociedade comercial com a qual contratou os serviços.
Concluem pedindo que se julgue provadas as exceções da ilegitimidade ativa e passiva e da caducidade, com as consequência legais; que se julgue totalmente improcedente, por não provada a presente ação e se absolva os mesmos do pedido e, bem assim, se condene o Autor como litigante de má fé, em multa e em indemnização, em quantitativo não inferior a mil euros.

Notificou-se o Autor para tomar posição quanto à matéria de exceção deduzida na contestação, o que fez a fls. 43 a 49;
Conclui pela improcedência da exceção da ilegitimidade passiva, alegando que, na prática, a 3ª Ré é a anterior sociedade “X”, dado que se assiste “a um uso da personalidade coletiva de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios”; a “sociedade Ré tem a sua sede na mesma morada que a sociedade extinta (…), os mesmos trabalhadores, as mesmas máquinas e ferramentas, em nada difere da anterior; o modus operandi é exatamente o mesmo; aliás, o represente legal é o mesmo. Na verdade, falamos da mesma empresa (…), utilizando as regras jurídicas que asseguram a existência de patrimónios autónomos, os Réus constituíram uma sociedade nova, para assim continuarem a exercer a sua atividade sem responderem por obrigações antigas. Na prática, as sociedades aqui referidas em nada diferem. Assim sendo, os tribunais têm entendido que este abuso de patrimónios autónomos não deve ser premiado ou facilitado. Estamos perante uma promiscuidade entre as esferas jurídicas de duas ou mais pessoas. Aliás, é de realçar que, quando o Autor decidiu confiar novamente a sua viatura à oficina, nunca lhe foi dito que seria preciso celebrar um novo contrato, ou que a empresa já não era a mesma. O veículo do Autor chegou a estar nas instalações da sociedade Ré, instalações nas quais já tinha estado na anterior sociedade, cerca de 4 meses, e em nenhum momento os representantes da oficina referiram que já nada tinham a ver com o contrato anteriormente. Assim sendo, o Autor agindo de boa fé, deixou o seu veículo no local de sempre, com a oficina de sempre, combinando com o represente legal de sempre. Acresce ao referido, que o Réu Mário ... sempre se assumiu como o titular da empresa e responsável por todos os processos. O Autor contactou sempre com o Réu Mário ..., que em todos os momentos assumiu-se como responsável pelas reparações sucessivas no carro. Este como antigo sócio da primeira sociedade contratada e como atual sócio da sociedade aqui demandada, não pode deixar de ser demandado neste processo (…) - sublinhado nosso.
Advoga a improcedência das exceções da ilegitimidade ativa e da caducidade invocadas pelos Réus, impugnando parte dos factos por estes alegados em sede desta última exceção e pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má fé.

Notificou-se o Autor para juntar aos autos documentação do veículo por forma a aferir quem é o titular do direito de propriedade sobre esse veículo e notificou-se os Réus para juntarem aos autos certidão relativa à 3ª Ré e à sociedade “Office X Unipessoal, Lda.”, o que foi feito quanto à certidão dessas sociedades, juntando, por sua vez, o Autor os documentos de fls. 61 verso e 66 aos autos quanto ao veículo automóvel.

Proferiu-se despacho saneador, fixando o valor da ação em 8.111,36 euros e conhecendo da exceção dilatória da ilegitimidade ativa suscitada pelos Réus, que se julgou procedente, absolvendo-se os Réus da instância, constando esse despacho da seguinte parte dispositiva:
“Nesta conformidade, não tendo a sociedade Ré e os Réus por si mesmos – o próprio Autor alude ao contrato com a Office X Unipessoal, Lda., em agosto de 2014, representada pelo Réu Mário na ocasião – celebrado com o Autor qualquer contrato relativo à reparação do veículo, e estando reclamados nos autos prejuízos que advieram para o Autor do cumprimento desconforme desse contrato, facilmente constatamos que não são os Réus titulares da relação controvertida, sendo, consequentemente, de considerar partes ilegítimas na ação, impondo-se a sua absolvição da instância, nos termos dos artigos 278º, n.º 1 al. d), 576º, n.º 2 e 577º, al. e), todos do Código de Processo Civil.
Custas pelo Autor”.

Inconformado com esta decisão, o Autor interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:

Primeira: A ação foi intentada contra os Réus, aqui todos Recorridos, uma vez que estes atuavam, a título pessoal e singular e a título de legais representantes de diferentes sociedades, no mesmo espaço, dedicando-se aos mesmos serviços, recorrendo aos mesmos trabalhadores e às mesmas ferramentas de trabalho.
Segunda: Julgou o Tribunal a quo a ação totalmente improcedente, com fundamento na ilegitimidade passiva de todos os Réus, considerando que o Autor, aqui recorrente, havia contratado com uma sociedade já insolvente, designadamente a X Unipessoal, Lda., e que, por tal, deveria o recorrente ter reclamado créditos em sede de insolvência ou à própria massa.
Terceira: Deveria o Tribunal a quo ter permitido a discussão da ilegitimidade passiva em sede de audiência de discussão e julgamento, pois apenas nesse momento estaria em condições de decidir com todos os elementos necessários à boa decisão da causa.
Quarta: Ademais, tenha-se em consideração que, tal como defende Barbosa de Magalhães, a legitimidade deve ser aferida tendo em conta a titularidade da relação material controvertida, tal como referido no Acórdão do Supremo Tribunal de justiça, de 24-10-2002, referente ao processo n.º 02S347.
Quinta: Sem prescindir, e atendendo à atuação dos Réus, aqui Recorridos, deveria o Tribunal a quo ter equacionado a desconsideração da personalidade jurídica de todos os Réus.
Sexta: Os Recorridos agiram com o objetivo de obter interesses estranhos ao fim das sociedades e contra os princípios da boa fé.
Sétima: a este propósito veja-se o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no acórdão referente ao processo n.º 919/15.4T8PNF.P1.S1, que defende que ocorre a desconsideração jurídica dos patrimónios, designadamente, quando os sujeitos atuam com o objetivo de confundir terceiros, como sejam clientes, atuando de forma conjunta e encapotada, com a finalidade de prejudicar terceiros, demarcando-se, através da confusão criada, da possibilidade de responderem por incumprimentos ou cumprimentos defeituosos.
Oitava: como ocorreu, no caso sub judice, com a totalidade dos Réus, que atuavam a título pessoal, singular e individual, escudando-se no facto de ter sido representante legal de uma sociedade já declarada insolvente.
Por tudo quanto exposto, requer-se a revogação da sentença proferida e o prosseguimento dos autos nos seus ulteriores termos.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

Tendo em consideração estas premissas, a questão que se encontra submetida à apreciação da presente Relação consiste em saber se o despacho saneador recorrido, ao julgar procedente a exceção da ilegitimidade passiva dos apelados para a presente ação, padece de erro de direito.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para apreciar a questão que se encontra submetida à apreciação do tribunal ad quem são os que constam do relatório acima elaborado.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURIDICA

No despacho saneador recorrido julgou-se procedente a exceção dilatória da ilegitimidade passiva dos Réus (apelados) para os termos da presente ação intentada pelo apelante com os seguintes fundamentos: “Pretende por via desta ação, o A., a condenação dos RR no pagamento da quantia que despendeu com a reparação de determinado veículo, indemnização pela privação do uso desse veículo, despesas com honorários e danos não patrimoniais. A causa de pedir assenta na celebração de um contrato relativo à reparação do veículo CG, com a sociedade Office X Unipessoal, Lda., que o R. Mário ... representava à época – agosto de 2014 -, contrato esse que foi defeituosamente cumprido, e do qual advieram para o A. os danos aqui reclamados. Mais refere o A. que aquela sociedade deixou de existir, passando a ali laborar a sociedade R., também representada pelo R. Mário .... Nada o A. alega respeitante ao R. A. F., no entanto, depreende o tribunal que está demandado, atenta a sua qualidade de sócio da sociedade R., conforme se consta da certidão de fls. 35 v e ss. (…). Como resulta dos autos, a causa de pedir assenta no cumprimento defeituoso de determinado contrato, tal contrato corresponde a uma empreitada (…). Prosseguindo, a reparação do veículo, no entender do A. foi desconforme, razão pela qual, pretende ser indemnizado nos termos aqui reclamados. Sucede, porém, que demanda o A. sociedade distinta daquela com quem contratou (…). Ora, como é bom de ver, apenas pode responder perante o A. quem com ele contratou, e resulta à saciedade dos autos, que não foi com a sociedade R. que ele contratou, até porque a mesma nem sequer existia à data da celebração do contrato. Mais, o facto da sociedade R. ter o mesmo representante legal e laborar no mesmo local, não permite, de modo algum, responsabilizá-la pelas dívidas, prejuízos que a anterior sociedade que aí laborava ocasionou. Por outro lado, a mera circunstância dos RR., pessoas singulares, representarem uma sociedade, não os torna responsáveis pelos prejuízos que a atuação da sociedade ocasionar, a sociedade é uma pessoa jurídica que responde por si, apenas é representada pelos representantes legais, não os tornando, sem mais, responsáveis pessoalmente pelas suas dívidas, pelo que nenhum sentido tem a sua demanda a título pessoal, quando se limitaram a atuar como legais representantes de uma sociedade. (…).

Contra este entendimento insurge-se o apelante, imputando à decisão recorrida, que julgou procedente a exceção dilatória da ilegitimidade passiva procedente, erro de direito, mas antecipe-se, desde já, sem manifesta razão.
Dir-se-á mesmo que lidas as alegações de recurso apresentadas pelo apelante, salvo o devido respeito por entendimento contrário, a fonte da sua irresignação infundada em relação a esta concreta decisão da 1ª Instância reside na circunstância daquele incorrer numa série de equívocos, nomeadamente, a propósito do ónus alegatório que sobre si impende, o que sejam pressupostos processuais, e dentro destes, em que consiste o pressupostos processual da legitimidade passiva e com base em que elementos esse pressuposto carece de ser aferido.

Não se olvidando que os tribunais visam dirimir conflitos, com vista à restauração da paz social e que essa restauração só logrará ser alcançada desde que o juiz logre, através da fundamentação de facto e de direito, convencer as partes do correto fundamento das suas decisões, passando de “convencido a convincente”, vamo-nos esforçar por esclarecer devidamente o apelante a propósito dos vários equívocos em que incorreu ao longo do processo e em que reincide nas suas alegações de recurso e do consequente bom fundamento jurídico da decisão recorrida.

Assim procedendo, precise-se que um dos princípios nucleares do processo civil é o princípio do dispositivo.
Na sua dimensão tradicional, o princípio do dispositivo significa que são as partes que dispõem do processo, como da relação jurídica.
Nesta conceção entendia-se que o “processo é coisa ou negócio das partes (conceção privatística, contratualista ou quase contratualista do processo). É uma luta, um duelo entre as partes, que apenas tem de decorrer segundo certas normas. O juiz arbitra a pugna, controlando a observância dessas normas e assinalando o resultado (conceção duelística ou «guerresca» do processo). Donde a inércia, inatividade ou passividade do juiz, em contraste com a atividade das partes. Donde também que a sentença procure e declare a verdade formal (intra-processual) e não a verdade material (extra-processual)” (1).

Embora esta conceção tradicional do princípio do dispositivo se encontre atualmente ultrapassada, uma vez que os tribunais em geral, incluindo os tribunais cíveis, são instrumentos de pacificação social, a qual só logrará ser alcançada caso os tribunais não encarem o processo cível como puro negócio das partes, descurando os interesses públicos que estão subjacente à sua nobre função de administrar a justiça, à qual é co-natural a busca da verdade material, desde há muito esse princípio tem vindo a ser temperado pelo princípio do inquisitório, tendo a última revisão ao CPC, operada pela Lei n.º 41/2013, dado um passo decisivo nesse temperamento, ao privilegiar as decisões materiais em detrimento das decisões de forma.
Não obstante a evolução verificada, o certo é que o princípio do dispositivo continua a ser nuclear no âmbito do processo civil.
Nele procura-se que as decisões judiciais versem efetivamente sobre o fundo da causa e, portanto, sobre os bens discutidos no processo e que definam realmente a relação jurídica deduzida em juízo, dirimindo, de modo efetivo, o conflito existente entre os litigantes e procura-se que essa resolução seja feita a contento da verdade material, embora uma verdade material processualmente adquirida, ou seja, não a verdade material ontológica, isto é, como esta efetivamente ocorreu (se alguma vez tal é possível) e “obtida a todo o custo”, mas a verdade material obtida de acordo com o estrito cumprimento das regras legais que regulam a aquisição dos meios de prova, o valor probatório a atribuir a cada um desses meios de prova e, bem assim, as regras processuais que têm de ser observadas ao longo do processo a fim de se obter um processo equitativo e, por conseguinte, uma decisão judicial materialmente justa, isto é, em que a verdade material explanada no processo tenha sido obtida mediante o cumprimento das normas legais de direito probatório material aplicáveis e, bem assim, as que regulam o processo.
Como referido, o princípio do dispositivo continua a ter um papel decisivo, fundamental e nuclear no atual vigente CPC, conforme decorre da circunstância dos tribunais cíveis não poderem resolver qualquer interesse das partes sem que essa resolução lhes seja pedida (art. 3º, n.º 1 do CPC); de caber às partes e, principalmente, ao autor, aduzir o material fáctico a utilizar pelo juiz para a decisão do litígio, circunscrevendo, assim, o thema decidendum, dentro do qual o tribunal se tem de mover, sob pena de incorrer em nulidade da decisão que venha a proferir, por excesso de pronúncia ou por omissão de pronúncia, quando, respetivamente, conheça de questão que não lhe foi submetida pelas partes e de que não lhe era lícito conhecer oficiosamente, ou quando não conheça de questão que estas lhe submeteram, apesar desse conhecimento não se encontrar prejudicado pelo conhecimento de uma anterior sobre que se debruçou e decidiu.
Deste modo é que continua a impender sobre o autor o ónus de definir, na petição inicial, os elementos subjetivos (sujeitos) e objetivos (pedido e causa de pedir) da relação jurídica controvertida que submete ao tribunal e que pretende que este dirima, devendo para tanto individualizar, na petição inicial, os sujeitos dessa relação jurídica, qual a pretensão de tutela judiciária que solicita que o tribunal lhe reconheça (pedido) e quais os factos em que faz ancorar essa sua pretensão (causa de pedir), devendo, nesta sede, alegar os factos essenciais constitutivos da causa de pedir que elegeu para ancorar o pedido (arts. 5º, n.º 1 e 552º, n.º 1 als. a), d) e e) do CPC).
Por sua vez, visando o demandado opor exceções dilatórias (que impeçam o tribunal de conhecer do mérito da causa e que, por isso, implicam a absolvição deste da instância ou a remessa do processo para outro tribunal – n.º 1 do art. 576º do CPC) ou perentórias (que impeçam, modificam ou façam extinguir o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor – n.º 3 daquele art. 576º), sobre ele impende o ónus da alegação, na contestação, dos factos essenciais em que se baseiam essas exceções (arts. 5º, n.º 1 e 572º, al. c) do CPC).
Quanto ao tribunal, este apenas pode conhecer da concreta relação jurídica material que lhe foi submetida pelas partes, o que implica que apenas poderá decidir das “questões” que estas lhe submeteram, incorrendo em nulidade por omissão de pronúncia quando não conheça de todas essas questões, ou seja, de todos os pontos fáctico-jurídicos nucleares, essenciais ou estruturante da relação jurídica que as partes submeteram à sua apreciação, atentos os sujeitos, todos os pedido e todas as causas de pedir invocadas pelo autor e de todas as exceções aduzidas pelo réu ou das contra-exceções aduzidas pelo autor às exceções invocadas pelo réu, salvo se a apreciação dessas questões tiver ficado prejudicada pela apreciação e a decisão que tomou em relação a uma outra questão, e incorrendo em nulidade por excesso de pronúncia quando aprecie questão que não lhe tenha sido submetida pelas partes e de que não lhe era lícito conhecer oficiosamente (arts. 608º, n.º 2, 609º e 615º, n.º 1, al. d) do CPC).
Decorrência do enunciado ónus alegatório que impende sobre as partes e da consequente vinculação ao thema decidendum por estas fixado ao tribunal e a que este se encontra subordinado, precise-se que em sede de julgamento da matéria de facto, na sentença, o tribunal apenas pode considerar provados ou não provados os factos essenciais que constituem a causa de pedir e que tenham sido alegados pelo autor em sede de petição inicial e, bem assim, os factos essenciais em que se baseiam as exceções invocadas pelo réu na contestação, ou os factos essenciais das contra exceções que o autor tenta oposto às exceções invocadas pelo réu (art. 5º, n.º 1 do CPC), bem como os factos notórios (art. 5º, n.º 2, al. c) do CPC), além dos factos complementares dos essenciais (alegados), desde que os mesmos resultem da instrução da causa e tenha sido observados, quanto a eles, o princípio do contraditório (art. 5º, n.º 2, al. b) do CPC) e, bem assim, os factos instrumentais, desde que estes resultem da instrução da causa (art. 5º, n.º 2, al. a) do CPC).
Significa isto que, no atual vigente CPC, o princípio do dispositivo se mantém plenamente válido, de forma irrestrita, quanto aos factos essenciais integrativos da causa de pedir e das exceções invocadas.
Desta sorte, os factos essenciais têm de ser alegados pelas partes sob pena de, posteriormente, o tribunal os não poder considerar como provados ou não provados na decisão que venha a proferir, ainda que, na sequência da instrução da causa, venha a ser produzida prova quanto aos mesmos e aqueles, em função dessa prova, devam merecer resposta positiva.
Mais se precise que por força do princípio da estabilidade da instância, tendo o autor delimitado subjetiva (sujeitos) e objetivamente (pedido e causa de pedir), nos moldes acima enunciados, em sede de petição inicial, a relação jurídica material controvertida, uma vez citado o réu, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei, essa relação controvertida tem que se manter inalterada quanto aos sujeitos, pedido e à causa de pedir por ele delimitada na petição inicial (art. 260º do CPC).
Note-se que no atual CPC, que apenas admite dois articulados como princípio regra (a petição inicial e a contestação), em que a réplica consubstancia um articulado eventual, na medida em que apenas pode ser apresentada pelo autor quando o réu, em sede de contestação, formule reconvenção, em que a réplica se destinará precisamente a permitir que o autor-reconvindo apresente toda a sua defesa à matéria da reconvenção deduzida pelo réu-reconvinte na contestação (art. 584º, n.º 1 do CPC -, devendo, no caso em que seja apresentada reconvenção, para além de apresentar a sua defesa quanto esta, nesse caso (e só nele), na réplica, o autor igualmente pronunciar-se quanto à matéria de exceção invocada pelo réu na contestação – art. 3º, n.º 4 do CPC), contrariamente ao que acontecia no CPC vigente antes da revisão operada pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, em que era sempre possível ao autor apresentar réplica e nela alterar ou ampliar o pedido e a causa de pedir – art. 273º, n.ºs 1 e 2 do CPC anterior), no atual vigente processo civil, que vigora desde 01 de setembro de 2013 (art. 8º da Lei n.º 41/2013) e que, por isso, é o aplicável aos presentes autos, deixou de ser possível ao autor alterar o pedido e a causa de pedir na réplica, articulado este que, como dito, é inclusivamente apenas eventual.
Na verdade, nos termos do disposto no art. 264º, n.º 1 do atual CPC, na falta de acordo do réu, o autor apenas pode alterar ou ampliar a causa de pedir alegada na petição inicial, em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, devendo essa alteração ou ampliação ser feita no prazo de dez dias a contar da aceitação.
Destarte, no atual CPC o autor deixou de ter a faculdade de, na réplica, alterar ou ampliar a causa de pedir que alegou na petição inicial, sequer tem o direito de apresentar irrestritamente réplica, a qual apenas passou a ser admissível, reafirma-se, quando o réu, na contestação, deduza reconvenção.
Significa isto que os factos essenciais integrativos da causa de pedir que sustenta o pedido têm, em face do atual CPC, de serem necessariamente alegados pelo autor na petição inicial, ficando precludido o seu direito de vir a alegar esses factos essenciais numa fase posterior do processo, embora os possa vir a alegar numa outra ação que venha a instaurar contra o mesmo réu, caso essa primeira ação que instaurou culmine com uma decisão processual, que leve à absolvição do réu da instância, designadamente, por ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, por contradição entre pedido e causa de pedir, por cumulação de causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis (art. 186º, n.º 1 do CPC), ou por via da procedência de qualquer exceção dilatória, como seja, a exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal, da ilegitimidade ativa ou passiva, etc. (arts. 576º, n.º 1, 577º e 620º do CPC), ou quando apesar dessa primeira ação que intentou culminar com uma decisão de mérito quanto à relação material controvertida que o autor submeteu à apreciação do tribunal e este pretenda instaurar uma outra ação contra o mesmo réu, com base nessa mesma causa de pedir, mas em que pretenda dela extrair um outro efeito jurídico – um outro pedido (arts. 619º e 621º do CPC).
Quanto ao réu, este tem de alegar, na contestação, todas as exceções que possa opor ao direito que contra ele vem exercido pelo autor no processo e tem, por isso, nesse articulado, de alegar os factos essenciais em que se baseiam essas exceções, sob pena de ficar precludido o seu direito de invocar esses factos essenciais em posterior articulado (art. 572º, al. c) e 573º do CPC) e caso este processo culmine com uma decisão de mérito que julgue a ação procedente, o réu não poderá, inclusivamente, instaurar contra o anterior autor posterior ação para fazer valer um direito contra o mesmo com fundamento nessas exceções que não cuidara em alegar no anterior processo judicial, por a isso se opor o trânsito em julgado da sentença de mérito proferida nesse anterior processo.
Aqui chegados, assente que está que no domínio do atual vigente CPC, o qual, reafirma-se é aplicável aos presentes autos, o autor continua a ter, como decorrência do princípio do dispositivo, o ónus de delimitar subjetiva (sujeitos) e objetivamente (pedido e causa de pedir) a relação jurídica controvertida que submete à apreciação do tribunal, cumprindo-lhe, por conseguinte, na petição inicial, identificar os sujeitos dessa relação, bem como a pretensão judiciária que pretende que lhe seja reconhecida pelo tribunal contra o aí réu (pedido) e, bem assim, alegar, individualizando-a, a causa de pedir, mediante a alegação dos respetivos factos essenciais em que ancora esse pedido, incumbe precisar que para além dos identificados ónus serem decorrência do identificado princípio do dispositivo, os mesmos são igualmente consequência de um outro princípio nuclear, fundamental e estruturante que informa o processo civil, que é o princípio do contraditório.
O princípio do contraditório, na sua dimensão tradicional, que mantém a sua vigência atual (art. 3º, n.º 1 do CPC), significa que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que o autor lhe submete e que identifica e delimita na petição inicial sem que a pessoa por ele demandada (o réu) seja devidamente chamada a esse processo (o que se alcança pela citação) para que o último se defenda – dimensão negativa do princípio do contraditório -, mas que, atualmente, tem também uma dimensão mais ampla, a saber: a sua dimensão positiva.
Nessa dimensão positiva proíbe-se ao tribunal a prolação de decisões surpresa, ainda que essa decisão incida sobre questão que seja do conhecimento oficioso do tribunal.
Com efeito, concebendo o legislador o atual processo civil como “comunidade de trabalho”, em que o princípio da cooperação obriga magistrados, mandatários e partes a cooperarem entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (art. 7º, n.º 1 do CPC), responsabilizando todos pelos resultados alcançados no processo (2), o princípio do contraditório não se compadece apenas com a sua dimensão negativa de mera salvaguarda do direito de defesa do réu em relação às pretensões que contra ele são deduzidas pelo autor, com fundamento em determinada causa de pedir, mas antes reclama que seja reconhecido àquele (assim como ao autor) o direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e pelo tribunal, ainda que a coberto de se tratar de questão que cumpre ao último conhecer oficiosamente, e a tomar sobre elas posição, ou seja, um direito de resposta, de molde a possibilitar que aquele possa influenciar essa decisão que venha a ser tomada pelo tribunal a propósito dessa concreta questão (3).
Aqui atua a dimensão positiva do princípio do contraditório, em que o assento tónico deixa de ser a “defesa” para passar a ser a “influência” (vertente esta consagrada no n.º 3 do art. 3º do atual CPC), posto que só assim o processo assumirá uma real dimensão de “comunidade de trabalho” e se salvaguardará o princípio da igualdade substancial das partes estabelecido no art. 4º do CPC, de que o princípio do contraditório é decorrência.
Avançando.
Enunciados que estão os ónus alegatórios que impende sobre o autor em sede de petição inicial, nomeadamente, quanto ao ónus de individualização da relação jurídica controvertida por ele delineada, em que aquele tem de, em sede de petição inicial, individualizar subjetiva (sujeitos) e objetivamente (pedido e causa de pedir) essa relação jurídica que submete à apreciação do tribunal, e expostas que estão as consequências jurídicas que decorrem do incumprimento desses ónus e as razões que subjazem à imposição destes e das consequências jurídicas decorrentes do respetivo incumprimento, abeirando-nos agora do ponto decisivo que subjaz ao inconformismo do apelante em relação à decisão recorrida, incumbe precisar que perante uma determinada relação jurídica controvertida submetida ao tribunal pelo autor e por ele delineada na petição inicial, o juiz terá de aferir se perante essa relação material controvertida estão ou não recolhidos os elementos mínimos, considerados indispensáveis pela lei processual civil que lhe possibilitem entrar na apreciação do mérito – são os denominados pressupostos processuais.
Com efeito, os pressupostos processuais “são precisamente os elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida. Trata-se das condições mínimas consideradas indispensáveis para, à partida, garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa. Não se verificando algum desses requisitos, como a legitimidade das partes, a capacidade judiciária de uma delas ou de ambas, o juiz terá, em princípio, que abster-se de apreciar a procedência ou improcedência do pedido, por falta de um pressuposto essencial para o efeito” (4).
A ausência de um pressuposto processual impõe ao juiz que profira uma decisão meramente processual, sem entrar na discussão do mérito, isto é, nos bens discutidos no processo, absolvendo o réu da instância ou, se esse for o caso e se encontrarem preenchidos os respetivos pressupostos legais, remetendo o processo para o tribunal competente (art. 576º, n.º 2 do CPC).
Atendendo ao fim visado almejar com os pressupostos processuais, compreende-se que estes tenham, em princípio, de ser aferidos por referência à relação material controvertida tal como esta é delineada, subjetiva e objetivamente, pelo autor na petição inicial.
Um desses pressupostos processuais é o da legitimidade das partes, a que alude o art. 30º do CPC.

Mediante o pressuposto processual da legitimidade exige-se que para que o juiz possa entrar na apreciação do mérito da relação jurídica que lhe é submetida pelo autor, julgando a ação procedente ou improcedente, que naquele concreto processo figurem como autor e como réu as “partes exatas” dessa relação jurídica controvertida submetida pelo autor ao tribunal.

“Ser parte exata no processo”, ou parte legítima neste, significa que nele tem de figurar como autor a pessoa que tem o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo, e como réu aquele que tem o poder de dirigir a defesa contra essa pretensão. “A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida. Se assim não suceder, a decisão que o tribunal viesse a proferir sobre o mérito da ação, não poderia surtir o seu efeito útil, visto não puder vincular os verdadeiros sujeitos da relação controvertida ausentes da lide” (5).

Deste modo, exige-se que entre quem figure na ação como autor e como réu e o objeto dessa ação interceda uma certa relação, de forma a que se possa afirmar que esses sujeitos são as partes certas dessa relação (6).
O pressuposto processual da legitimidade exprime-se precisamente pela relação que, segundo a lei processual civil, tem de existir entre as partes (sujeitos) que figuram no processo e o objeto desse processo (pedido e causa de pedir), sem o que não poderá o juiz entrar na apreciação do mérito dessa relação material que lhe é submetida pelo autor a fim de a dirimir naquele concreto processo, por nele não figurar como autor quem tem o poder de dirigir contra o aí réu aquele concreto pedido, atenta a respetiva causa de pedir que o suporta e que fora alegada pelo mesmo na petição inicial (ilegitimidade ativa) e/ou por não figurar, nesse processo, como réu a pessoa a quem assiste o direito de defesa em relação a esse pedido e causa de pedir alegados pelo autor na petição inicial (ilegitimidade passiva).
Dito por outras palavras, tal como no campo do direito material, há que se aferir pela titularidade dos interesses em jogo, isto é, se aquele que se arroga o direito contra determinada pessoa, de acordo com a lei substantiva, é efetivamente titular desse direito (ex: titular do direito de propriedade, credor da prestação contratual alegadamente incumprida, etc.), e se o demandado, de acordo com essa lei substantiva, em caso da violação desse direito que é alegada na petição inicial, é devedor da prestação pretendida pelo autor, de molde a que se julgue procedente ou improcedente o pedido deduzido pelo último - legitimidade substantiva -, em sede de pressuposto processual da legitimidade (exceção dilatória), há que se averiguar, se de acordo com a lei processual civil e, em regra, atenta a relação jurídica delineada pelo autor na petição inicial, figura no processo como autor e como réu quem deva deter essas qualidades jurídicas.
De acordo com os n.ºs 1 e 2 do art. 30º do CPC, o autor é parte legítima quando tenha interesse direto em demandar, o que se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação; e o réu é parte legitima quando tenha interesse direto em contradizer, o que se exprime pelo prejuízo que da procedência da ação lhe advenha.
Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (n.º 3 daquele art. 30º do CPC).
Significa isto que de acordo com os enunciados comandos legais, para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, terá, em sede de pressuposto processual da legitimidade que considerar, em regra (“na falta de indicação da lei em contrário”), a relação jurídica delineada pelo autor na petição inicial, atentos os elementos subjetivos (sujeitos) e objetivos (pedido e causa de pedir) nela por ele delineados e terá, em seguida, de recorrer ao direito substantivo para verificar se em função dessa relação jurídica controvertida que se encontra delineada na petição inicial, o autor é efetivamente a pessoa a quem esse direito substantivo reconhece o estatuto de parte legitima para discutir em juízo esse direito, por ser o titular incontestado do mesmo e, bem assim, se nele figura como réu aquele que, de acordo com esse direito substantivo, por referência a essa mesma relação jurídica delineada na petição inicial, deter essa qualidade jurídica, por ser aquele que tem interesse direto em contradizer.
Note-se que de acordo com o n.º 1 do art. 30º, para que o pressuposto processual da legitimidade ativa ou passiva se afirme, não basta que exista da parte de quem figura no processo como autor e como réu um qualquer interesse, ainda que jurídico, respetivamente, na procedência ou improcedência da ação.
Exige-se antes que as partes que figurem no processo como autor e como réu tenham um interesse jurídico direto, seja em demandar, seja em contradizer.
Não basta assim, à afirmação do pressuposto processual da legitimidade que em função da relação jurídica delineada pelo autor na petição inicial, as partes tenham um interesse moral, científico ou afetivo em demandar ou contradizer, sequer que o interesse jurídico que aquelas eventualmente tenham em discutir essa relação jurídica delineada na petição inicial seja meramente indireto, reflexo ou derivado.
Deste modo, conforme ponderam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, o promitente comprador não tem legitimidade ativa para requerer a declaração judicial de validade do contrato pelo qual o promitente vendedor adquiriu a coisa prometida vender-lhe de terceiro, embora tenha um interesse indireto na manutenção do contrato. O sublocatário, pela mesma razão, carece de legitimidade passiva para intervir como réu na ação de despejo intentada pelo senhorio contra o locatário, apesar de ser diretamente prejudicado com a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre senhorio e locador (7).
Quanto à relação jurídica controvertida a considerar, como referido, estando-se no âmbito da apreciação de um pressuposto processual, essa relação é, em princípio, a desenhada pelo autor na petição inicial.
Deste modo, de acordo com o comando do n.º 3 do art. 30º do CPC, para se aferir do pressuposto processual da legitimidade, tem que se atender unicamente (salvo disposição legal em contrária) à relação controvertida tal como esta vem delineada, subjetiva e objetivamente, pelo autor na petição inicial e indagar se, no pressuposto desses factos alegados pelo último virem a ser por ele provados, se de acordo com o direito substantivo aplicável, aquele é o titular do direito que pretende exercer na ação, caso em que se concluirá pela respetiva legitimidade ativa; e, por outro lado, verificar se aquele contra quem é exercida essa pretensão, é de facto aquele que de acordo com a lei substantiva, é o sujeito passivo (devedor da prestação) dessa relação jurídica delineada na petição inicial.
Anote-se e reafirma-se que uma coisa é saber se as partes são os sujeitos da pretensão formulada para efeitos do pressupostos processual da legitimidade, em que apenas se impõe, em regra, atender à relação material controvertida desenhada pelo autor em sede de petição inicial, e outra, bem diversa, é apurar se a pretensão que o autor vem exercer nos autos existe efetivamente, ou seja, se o autor é o efetivo titular do direito que pretende exercer contra o réu e se a violação do mesmo lhe confere efetivamente a pretensão que formula contra o último, o que já nada tem a ver com o pressuposto processual da legitimidade, isto é, com a exceção dilatória da legitimidade ativa ou passiva, mas única e exclusivamente, com o mérito da ação, isto é, com a legitimidade substantiva, por estar dependente da verificação dos requisitos de facto e de direito que condicionam o nascimento dessa obrigação, o seu objeto e a sua perduração (8).
Significa isto que o legislador nacional, como bem diz o apelante, que não obstante essa sua alegação não extraiu dela todas as consequências jurídicas, na esteira daquele que já era o entendimento jurisprudencial dominante, mediante a consagração do n.º 3 do art. 30º CPC, em que ordena que se atenda, em princípio, à relação jurídica controvertida tal como esta é delineada ou configurada pelo autor (na petição inicial, onde, como já demonstrado, a tem de delinear subjetiva e objetivamente) veio pôr termo à discussão clássica entre Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, optando pela tese deste último, ao estatuir que ao apuramento da legitimidade apenas interessa, por regra, a relação jurídica controvertida desenhada pelo autor na petição inicial, independentemente da prova dos factos que a integram (9).
Assente nestas premissas, revertendo ao caso em análise, dir-se-á carecer de total fundamento legal a pretensão do apelante quando sustenta que a 1ª Instância devia ter permitido a discussão da ilegitimidade passiva em sede de audiência de discussão e julgamento, pois apenas, nesse momento, estaria em condições de decidir com todos os elementos necessários à boa decisão da causa.
É que caso assim fosse, caso fosse em função dos factos que se viesse a apurar em sede de audiência final que se iria aferir quem são os sujeitos da relação jurídica controvertida delineada pelo apelante/Autor na petição inicial, já estaríamos a confundir o pressuposto processual da legitimidade ativa e passiva com o mérito da causa, isto é, com a legitimidade substantiva, ou seja, no caso, se foi ou não o apelante quem celebrou o contrato de empreitada que alegou na petição inicial; se celebrou esse contrato com os réus/apelados ou com terceira pessoa; se esse contrato foi ou não incumprido e se esse facto, a verificar-se, nomeadamente, caso a reparação do veículo do apelante apresente deficiências, lhe conferem ou não o direito indemnizatório que o mesmo se arroga titular sobre os Réus/apelados (tudo questões de mérito).
Ora, para efeitos de pressuposto processual da legitimidade, seja ativa, seja passiva, como acima se demonstrou, apenas se impõe atender à relação jurídica controvertida delineada objetiva e subjetivamente pelo Autor/apelante, na petição inicial, e verificar se atentos os factos que por ele aí foram alegados, independentemente desses factos serem ou não verdadeiros ou de o Autor/apelante os vir ou não a provar, se de acordo com a lei substantiva aplicável aos mesmos (isto é, num juízo puramente abstrato, porque feito independentemente desses factos alegados serem ou não verdadeiros e de virem ou não a ser provados), o Autor/apelante assume efetivamente a posição de credor da prestação contratual alegadamente incumprida e se os Réus/apelados assumem ou não efetivamente a posição contratual de devedores dessa prestação contratual.
Porque assim é, compulsada a petição inicial verifica-se que nela, o apelante P. M., na qualidade de Autor, instaurou a presente ação contra os Réus Mário ..., A. F. e MF Automóveis, Lda., pretendendo obter a condenação solidária destes a pagar-lhe a quantia global de 8.111,36 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, a título de danos patrimoniais, sendo 3.11,36 euros, decorrentes do custo alegadamente suportado pelo mesmo para eliminar os defeitos em consequência da reparação defeituosa da sua viatura automóvel; 500,00 euros, a título de despesas com deslocação e de honorários que terá se suportar com o seu mandatário por via da instauração da presente ação; e a quantia de 1.500,00 euros, a título de danos não patrimoniais alegadamente sofridos em consequência do período temporal em que esteve privado do uso dessa viatura por via da alegada reparação defeituosa desta.
Para suportar esse pedido, o Autor/apelante alega, em sede de petição inicial (nisso se consubstanciando a causa de pedir que suporta o pedido de condenação solidários dos Réus a pagar-lhe aquelas quantias indemnizatórias), que em agosto de 2014, deixou o seu veículo automóvel da marca CG, ao cuidado do 1º Réu Mário ..., para reparações na oficina deste, sita na Rua …, Braga, tendo ficado acordado que essa reparação apenas incidiria sobre a pintura do veículo e dos defeitos que aquele 1º Réu lhe dizia que este apresentava ao nível da caixa de velocidades (arts. 2º a 4º da p.i.).
Mais alega que em dezembro de 2014, o veículo foi-lhe restituído supostamente reparado, mas apresentando vários defeitos ao nível da pintura, os quais prontamente denunciou ao 1º Réu, que apesar de assumir a reparação, nunca chegou a concretizá-la (arts. 6º a 8º da p.i.).
Alega, ainda, que poucos dias depois da entrega da viatura, o Autor/apelante sentiu uma vibração anormal na caixa de velocidades do veículo, o que também prontamente denunciou ao 1º Réu, que lhe respondeu que teria de verificar a viatura e que resolveria o problema, pelo que o primeiro lhe confiou novamente a viatura.
Finalmente, alegada que o 1º Réu veio a comunicar-lhe que a reparação teria um custo associado, custo esse que o mesmo se recusou a suportar, levando-o a reclamar junto da oficina e a interpelar os Réus para que cumprissem com as suas obrigações, por cartas que junta aos autos a fls. 9 verso a 13 (arts. 9º a 18º da p.i.).
Como refere a 1ª Instância, o pedido indemnizatório formulado pelo apelante, atentos os factos que por ele são alegados na petição inicial, para consubstanciar a causa de pedir em que funda esse pedido indemnizatório, ancora-se na responsabilidade civil contratual, mais concretamente, no cumprimento defeituoso de um contrato de empreitada celebrado pelo apelante.
Trata-se de instituto contratual que se encontra regulado nos arts. 1207º e ss., e que é, efetivamente, uma das modalidades do contrato de prestação de serviços (art. 1155º do CC).
O incumprimento contratual em causa decorre da circunstância da reparação efetuada ao veículo (obra) ter pretensamente sido executada com defeitos pelo empreiteiro ao nível da pintura e da caixa de velocidades, que contrariamente ao que se encontrava contratualmente obrigado, não cuidou em executar essa reparação em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor da viatura, ou a aptidão desta para o seu uso ordinário ou previsto no contrato (art. 1208º do CC) – a circulação.
Ora se prima facie, em face da alegação do apelante vertida na petição inicial, em que este alega ter convencionado os termos do contrato de empreitada celebrado com o 1º Réu Mário ..., junto de quem sustenta ter, igualmente, denunciado os defeitos da pintura e da caixa de velocidades do veículo automóvel e ser também, a pessoa que, na sequência da denúncia desses pretensos defeitos, se terá obrigado a eliminá-los, tudo indica que, de acordo com a relação material controvertida delineada pelo apelante naquele articulado, era o 1º Réu Mário ..., a título pessoal, quem celebrou com ele esse contrato de empreitada e assumiu as obrigações emergentes desse contrato, detendo, por isso, a qualidade jurídica de “empreiteiro”, verifica-se que já face à alegação daquele, vertida no art. 15º da petição inicial, em que sustenta que face à posição do 1º Réu Mário ... de que a reparação teria um custo associado, “tentou reclamar junta da oficina”, que efetivamente assim não é, posto que com essa sua alegação o apelante aponta indiscutivelmente no sentido de que “a oficina reparadora do veículo” a quem ele apelou na sequência daquela posição do 1º Réu será não só uma pessoa jurídica distinta do 1º Réu, como será quem detém a qualidade jurídica de “empreiteiro”.
Aliás, no art. 18º da petição inicial, ao alegar que “…por intermédio de advogado tentou interpelar os RR. para cumprir as suas obrigações, conforme doc. 1 e 2, em anexo – cartas remetida para a morada da sede e para a morada da oficina – e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos, bem como os demais que se anexam”, o apelante acaba por esclarecer cabalmente que a pessoa jurídica com quem celebrou o contrato de empreitada e que, consequentemente, se obrigou contratualmente a executar a reparação da viatura foi a sociedade “Office X Unipessoal, Lda.”, tendo sido esta quem incumpriu (na modalidade de cumprimento defeituoso) esse contrato de cujo incumprimento faz derivar o direito indemnizatório que se arroga titular perante os Réus, tanto assim que foi para essa sociedade que endereçou e enviou as cartas que juntou aos autos reclamando a eliminação desses defeitos.
Logo, porque assim é, toda a negociação que o apelante alegada, em sede de petição inicial, ter levado a cabo com o 1º Réu Mário ..., que culminaram com a celebração do contrato de empreitada objeto dos presentes autos, bem como todos os contactos que estabeleceu com esse 1º Réu na sequência da reparação pretensamente defeituosa do veículo, assim como todas as vinculação que o 1º Réu alegadamente assumiu, na sequência da denúncia desses defeitos, foram por este assumidas na qualidade jurídica de representante (de facto, que não de direito, já que, em agosto de 2014, quem detinha a qualidade jurídica de única sócia e gerente dessa sociedade era C. M. – cfr. certidão da matrícula de fls. 56 e 57 dos autos) ou de comitente da sociedade “Office X, Unipessoal, Lda.”, que era, por isso, quem detinha a qualidade jurídica de empreiteiro e que foi quem, por conseguinte, incumpriu esse contrato ao reparar, com deficiência, o veículo automóvel.
Ora, porque os contratos apenas têm, em princípio, eficácia relativa, apenas vinculando as partes neles contratantes (art. 406º do CC), tendo, em função da relação jurídica delineada, subjetiva e objetivamente, pelo apelante, na petição inicial, o contrato de empreitada objeto dos presentes autos sido celebrado entre o apelante e a sociedade “Office X, Unipessoal, Lda.”, que foi quem, consequentemente, incumpriu esse contrato, conferindo ao primeiro os pretensos direitos indemnizatórios que reclama nos autos, é indiscutível que sendo a sociedade “X” uma pessoa coletiva, dotada de personalidade jurídica e de património distintos do dos apelados Mário ..., A. F. e “MF Automóveis, Lda.”, estes não têm qualquer interesse direto em contradizer a presente ação, dado que da respetiva procedência, atenta a relação jurídica nela em discussão e delineada pelo Autor em sede de petição inicial, nunca os mesmos poderão ser condenados no pedido, pelo que os mesmos não dispõem de legitimidade passiva para a presente ação.
Deste modo é que não podemos deixar de sufragar a decisão de mérito explanada pela 1ª Instância, designadamente quando nela se escreve que “como é bom de ver, apenas pode responder perante o Autor quem com ele contratou, (…), que não foi a sociedade Ré, (…), que nem sequer existia à data da celebração do contrato. (…) o facto da sociedade R. ter o mesmo representante legal e laborar no mesmo local, não permite, de modo algum, responsabilizá-la pelas dívidas, prejuízos que a anterior sociedade que aí laborava ocasionou. Por outro lado, a mera circunstância dos Réus, pessoas singulares, representarem uma sociedade, não os torna responsáveis pelos prejuízos que a atuação da sociedade ocasionar, a sociedade é uma pessoa jurídica que responde por si, apenas é representada pelos representantes legais, não os tornando, sem mais, responsáveis pessoalmente pelas suas dívidas”.
Com efeito, como já enunciado, de acordo com a relação jurídica controvertida delineada, subjetiva e objetivamente, pelo apelante em sede de petição inicial, este celebrou o contrato de empreitada de cujo cumprimento defeituoso faz derivar a sua pretensão indemnizatória, com a sociedade comercial “Office X, Unipessoal, Lda.”.
Essa sociedade é uma pessoa coletiva, detendo, por isso, personalidade jurídica própria e distinta e, bem assim, património também ele distinto, do dos Réus/apelados.
Conforme se realça na decisão recorrida, a sociedade 3ª Ré, “MF Automóveis, Lda.”, nem sequer existia à data da celebração do contrato de empreitada alegadamente cumprido defeituosamente, uma vez que apenas veio a ser constituída em 07/10/2014 (cfr. fls. 35 verso a 36).
Quanto aos Réus pessoas singulares, Mário ... e A. F., estes à data da celebração do contrato de empreitada (agosto de 2014), não detinham a qualidade de sócios e/ou gerentes da sociedade “Office X, Unipessoal, Lda.”, uma vez que essa sociedade tinha como única sócio e gerente de direito C. M..
Destarte, não obstante nos termos do disposto nos arts. 78º a 84º do Cód. Soc. Com., os representantes legais das sociedade e/ou os respetivos sócios possam ser responsabilizados pelos seus atos perante os credores da sociedade que, respetivamente, sejam representantes ou sócios, verificados que sejam os pressupostos legais enunciados nesses preceitos, no caso, o apelante para além de não ter ancorado a sua pretensão indemnizatório nos institutos jurídicos enunciados nestes preceitos, mas exclusivamente no cumprimento defeituoso do contrato de empreitada que celebrou com a sociedade “Office X, Unipessoal, Lda.”, o mesmo não alegou, em sede de petição inicial, que aqueles Réus Mário e A. F. fossem, à data da celebração do contrato de empreitada, sócios e/ou gerentes de facto da sociedade “X”, sequer ainda, a restantes factualidade necessária a responsabilizá-los, a título pessoal, por esse cumprimento defeituoso nos termos daqueles dispositivos legais, nomeadamente, que sendo sócios ou gerentes de facto daquela, estes, mediante a inobservância culposa de disposições legais ou contratuais que regulavam a sociedade “X” com vista à proteção dos credores desta, o património social dessa sociedade se tivesse tornado insuficiente para a satisfação das suas obrigações perante os respetivos credores, em cujo elenco se inserirá o apelante.
Advoga o apelante que atendendo à atuação dos Réus, deveria o tribunal ter equacionado a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade “X” uma vez que os aqui Réus e apelantes agiram com o objetivo de obter interesses estranhos ao fim das sociedades e contra os princípios da boa fé, mas sem razão.
Precise-se que a figura da desconsideração jurídica coletiva não tem base legal expressa no ordenamento jurídico nacional, uma vez que não existe norma expressa, designadamente, no Cód. Soc. Com., que consagre o mesmo.
Não obstante isso, a doutrina e a jurisprudência têm considerado que esse instituto deriva de vários princípios explanados em vários preceitos, de aplicação restrita, como é o caso dos arts. 58º, n.º 1, al. a), 58º, n.º 3, 84º do Cód. Soc. Com. e 378º do Cód. Trab., e tem recorrido àquele para obviar a situações excecionais, em que os sócios fazem uma indevida utilização, a seu favor, da autonomia da personalidade jurídica e patrimonial da sociedade, a fim de prosseguirem finalidades inaceitáveis, atuando com abuso dos preceitos que estabelecem essa autonomia, defraudando o tráfego jurídico e os terceiros que contratem com a sociedade e a própria lei.
Deste modo é que se tem considerado que quando a personalidade coletiva seja usada de forma ilícita ou abusiva, fazendo-se um uso desta contrário às normas ou princípios gerais, incluindo à ética dos negócios, com vista a prejudicar terceiros, deve-se proceder ao levantamento dessa personalidade jurídica e fazer responder perante os terceiros, não apenas a sociedade, mas também os seus gerentes e/ou os sócios, a título pessoal.
Esse uso ilícito ou abusivo da personalidade coletiva é suscetível de ocorrer, nomeadamente, quando a sociedade é utilizada pelos respetivos sócios e/ou gerentes como “testa de ferro” na celebração dos negócios; quando a sociedade é utilizada por aqueles para contornar obrigações legais ou contratuais que os mesmos individualmente assumiram ou para encobrir negócios contrários à lei, em que a sociedade funciona como interposta pessoa, ou ainda, quando se assista a uma confusão de esferas jurídicas da sociedade e a dos respetivos sócios e/ou gerentes, por inobservância de certas regras societários ou por decorrências puramente objetivas, em que não é clara, na prática, a separação entre o património societário e o património pessoal dos sócios ou dos gerentes (10).
Acontece que, no caso, compulsada a petição inicial, em que o apelante tinha a obrigação, reafirma-se, de delimitar, subjetiva e objetivamente, a relação jurídica controvertida nos presentes autos, alegando, em sede de causa de pedir, os factos essenciais em que estriba a causa de pedir que elegeu para suportar o pedido indemnizatório que deduz contra os Réus, verifica-se que de acordo com essa sua alegação e como acima já se demonstrou, o mesmo sustenta que o contrato de empreitada foi celebrado com a sociedade “Office X Unipessoal, Lda.”, para quem, relembra-se, endereçou e remeteu as cartas que constituem os docs. 1 e 2 juntos em anexo à petição inicial (fls. 9 verso a 13) e em que reclama a eliminação dos defeitos do seu veículo automóvel, o que torna os Réus desprovidos de legitimidade passiva para os termos da presente ação.
A mera alegação pelo apelante, nos arts. 28º a 30º da p.i., de que a “a sociedade X Unipessoal, Lda.”, foi substituída por uma nova sociedade (…), a terceira Ré” em que “o representante da nova sociedade, datada de 03/10/2014, continuava a ser o 1º Réu” e que “a 3ª Ré tem a sua sede na mesma morada que a sociedade extinta (…), os mesmos trabalhadores, as mesmas máquinas e ferramentas, e o mesmo representante legal”, é de todo insuficiente para, ainda que o apelante venha a fazer prova de toda essa factualidade, se concluir estarem recolhidos os elementos fácticos necessários para se proceder à desconsideração da personalidade jurídica da sociedade “X” com quem o apelante sustenta ter celebrado o contrato de empreitada pretensamente cumprido defeituosamente e em cujo incumprimento faz ancorar a sua pretensão indemnizatória, quando se verifica que o mesmo, nesse articulado, nem sequer alega que os 1º e 2º Réus fossem sócios e/ou gerentes de facto da “X” à data da celebração do contrato de empreitada; sequer alega que estes, quando celebraram esse contrato, em agosto de 2014, já tinham em vista constituir a 3ª Ré, “MF Automóveis, Lda.”, com o fito de passaram para esta última todo o património e negócio da sociedade “X”, com vista a furtarem essa sociedade às suas responsabilidades perante terceiros, clientes desta, com quem tinha contratado.
É certo que o apelante, perante a invocação pelos apelados da exceção da ilegitimidade passiva, na sequência da notificação que lhes foi dirigida pela 1ª Instância para que se pronunciasse, querendo, quanto a essa, e às demais exceções, deduzida pelos últimos na contestação, veio, na resposta de fls. 44 a 49, tentar suprir aquela falha de alegação, procurando alegar facticidade que eventualmente pudesse levar a que se recorresse ao instituto da desconsideração jurídica, alegando, designadamente, que os Réus Mário ... e A. F. constituíram a 3ª Ré “para assim continuar a exercer a sua atividade sem responderem por obrigações antigas” da sociedade “X”, e que quando “decidiu confiar novamente a sua viatura à oficina, nunca lhe foi dito que seria preciso celebrar um novo contrato, ou que a empresa já não era a mesma. O veículo do Autor chegou a estar nas instalações da sociedade Ré, instalações nas quais já tinha estado na anterior sociedade, cerca de 4 meses, e em nenhum momento os representantes da oficina referiram que já nada tinham a ver com o contrato anteriormente. Assim sendo, o Autor agindo de boa fé, deixou o seu veículo no local de sempre, com a oficina de sempre, combinando com o represente legal de sempre. Acresce ao referido, que o Réu Mário ... sempre se assumiu como o titular da empresa e responsável por todos os processos. O Autor contactou sempre com o Réu Mário ..., que em todos os momentos assumiu-se como responsável pelas reparações sucessivas no carro”.
Acontece que com a alegação dessa facticidade, o apelante ampliou a causa de pedir que inicialmente tinha alegado na petição inicial, com vista a que se desconsiderasse a personalidade coletiva da sociedade “Office X, Unipessoal, Lda” e eventualmente se responsabilizasse os demandados pelos créditos indemnizatórios decorrentes do cumprimento defeituoso do contrato de empreitada celebrado com essa sociedade.
Fê-lo, porém, ilegalmente, dado que, como referido, os factos essenciais da causa de pedir em que o apelante estribou o seu pedido tinham de ser por eles alegados na petição inicial, pelo que aquela facticidade ampliada na resposta de fls. 43 a 49 jamais poderia ser considerada pelo tribunal nos presentes autos.
Porque assim é, bem andou a 1ª Instância em julgar procedente a exceção dilatória da ilegitimidade passiva dos Réus/apelados para a presente causa e ao absolvê-los da instância.
Resulta do que se vem dizendo que a decisão recorrida não padece dos erros de direito que o apelante lhe imputa, impondo-se, na improcedência de todos os fundamentos de recurso por ele aduzidos, confirmar essa decisão.
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Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- Como decorrência dos princípios do dispositivo e do contraditório, o Autor encontra-se obrigado, na vigência do atual CPC, a delimitar, na petição inicial, subjetiva (sujeitos) e objetivamente (pedido e causa de pedir) a relação jurídica material controvertida que submete à apreciação do tribunal, encontrando-se onerado com o ónus da alegar, nesse articulado, os factos essenciais consubstanciadores dessa causa de pedir.
2- Contrariamente ao que acontecia antes da revisão operada pela Lei n.º 41/2013, de 26/6, na vigência do atual CPC não é possível ao Autor alterar ou ampliar o pedido ou a causa de pedir na réplica, articulado este que, aliás, passou a ser meramente eventual (apenas admissível quando seja deduzida reconvenção).
3- Os pressupostos processuais são os elementos de cuja verificação depende a possibilidade de o juiz poder entrar na apreciação do mérito, pelo que, em princípio, os mesmos têm de ser aferidos por referência à relação jurídica material controvertida delineada, subjetiva e objetivamente, pelo Autor na petição inicial.
4- Pelo pressuposto processual da legitimidade exige-se que atendendo, em princípio, à relação jurídica material controvertida delineada, subjetiva e objetivamente, pelo Autor, na petição inicial, entre os sujeitos que figuram no processo como Autor e como Réu e o objeto do processo (pedido e causa de pedir) por aquele delineados na petição inicial, interceda uma certa conexão, por forma a poder concluir-se que aqueles são “as partes certas” dessa relação jurídica em discussão no processo, por nele figurar como “Autor” a pessoa que, de acordo com essa relação jurídica delineado na petição inicial, por referência ao direito substantivo, tem a pretensão deduzida em juízo, por ser o titular incontestado do direito que aí é exercido (independentemente dos factos que alegou, na petição inicial, como constitutivos desse seu direito serem verdadeiros ou falsos e de os vir ou não a lograr provar), e nesse processo figurar como “Réu” a pessoa que, atenta essa relação jurídica controvertida delineada na petição inicial e por referência ao direito substantivo, ser a pessoa cuja esfera jurídica será diretamente atingida pela providência requerida (pedido) em caso de procedência da ação.
5- Instaurando o Autor ação contra dois Réus, pessoa singulares, e uma sociedade Ré, com vista a ser indemnizado solidariamente pelos últimos pelos prejuízos sofridos em consequência da reparação defeituosa do seu veículo automóvel, resultando dos factos alegados, na petição inicial, que o contrato de empreitada de cujo cumprimento defeituoso o Autor faz derivar a sua pretensão indemnizatória contra aqueles Réus, foi celebrado entre o Autor e uma sociedade terceira (que não é Ré no processo), os Réus demandados são destituídos de legitimidade passiva para a ação, ainda que o Autor alegue, em sede de petição inicial, que a nova sociedade Ré tem como representantes legais aqueles que eram (ou são) os legais representantes da sociedade com quem celebrou o contrato de empreitada cumprido defeituosamente (os Réus, pessoas singulares) e que a nova sociedade (Ré) tem a sua sede na mesma morada onde funcionava a sociedade com quem celebrou aquele contrato de empreitada e aí labora com os mesmos trabalhadores, máquinas e ferramentas.
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Decisão:

Nestes termos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência:

a- confirmam a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
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Guimarães, 17 de dezembro de 2019
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

Dr. José Alberto Moreira Dias (relator)
Dr. António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
Dr. José Manuel Alves Flores (2º Adjunto)



1. Manuel Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 373 e 374.
2. Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pag. 62.
3. Teixeira de Sousa, ob. cit., págs. 46 a 48.
4. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manuel de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 104.
5. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 127.
6. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 74, onde postula que “A questão da legitimidade é essencialmente uma questão de posição das partes em relação à lide”.
7. Ob. cit., pág. 135.
8. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 134.
9. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 4ª ed., Almedina, pág. 93. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2014, págs. 69 e 70, onde se lê: “… a legitimidade consiste numa posição concreta da parte perante uma causa. Por isso, a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute. (…). Conforme resulta da redacção que a Reforma de 1995/96 deu ao n.º 3 do art. 26º do CPC de 1961 – redação mantida agora no art. 30º -, foi adotada a teoria que faz corresponder a legitimidade das partes à titularidade da relação controvertida descrita pelo autor na petição inicial”.
10. Ac. STJ. de 07/11/2017, Proc. 919/15.4T8PNF.P1.S1, in base de dados da DGSI.