Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5733/15.4T8GMR.G1
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
NOVAÇÃO
DAÇÃO EM PAGAMENTO
DAÇÃO EM FUNÇÃO DO PAGAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1- A interpretação de uma declaração negocial, ou seja o modo de fazer essa interpretação e o resultado obtido em termos de relevância jurídica, constitui matéria de direito.
2- Já, diversamente, quando se pretenda estabelecer qual foi a vontade real de quem emitiu essa declaração, estamos perante matéria de facto.
3- A novação implica a constituição de uma nova obrigação, em substituição de um vínculo anterior essencial, mediante expressa vontade de novar.
4- Por sua vez, na dação em cumprimento não há a constituição de qualquer vínculo com efeito liberatório, mas apenas a extinção da obrigação através de uma prestação diferente daquela que era inicialmente devida, mediante acordo das partes, que tem de ser contemporâneo do cumprimento.
5- Já na dação em função do pagamento (datio pro solvendo), o credor também aceita uma prestação diversa da devida, mas a extinção desta última só ocorre se, quando e na medida em que aquele vir satisfeito o seu crédito.
6- Ainda que alguém se comprometa a constituir, futuramente, uma nova obrigação em substituição de um vínculo anteriormente existente num outro contrato, a dar em pagamento uma prestação diversa da que aí foi acordada, para se libertar desta, ou mesmo a facultar ao credor uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, nunca esse compromisso é, só por si, causa extintiva deste crédito. Causa extintiva será o contrato definitivo em que se assumam semelhantes obrigações.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório
1- N, intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra P, alegando, em breve resumo, que, a pedido desta sociedade, aceitou abrir em nome da mesma uma conta de depósitos à ordem, na Agência de Moreira de Cónegos.
Sucede que a referida conta, desde setembro de 2007, apresenta um saldo devedor, o qual se cifra atualmente em 41.990,96€.
Assim, porque esta ocorrência configura um “descoberto de conta” e uma vez que a Ré, apesar de interpelada para proceder à regularização desta situação, não o fez, pretende que aquela seja condenada a pagar-lhe:
a) A quantia de 41.990,96€, a título de capital em dívida;
b) Os respetivos juros de mora, à taxa contratual de 25% e 2%, bem como o imposto de selo, vencidos, que liquida em 74.403,31€;
c) Os juros de mora e imposto de selo vincendos, até efetivo e integral pagamento.
2- Contestou a Ré refutando esta pretensão porquanto, em suma e além do mais, os valores lançados a débito dizem respeito a imposto de selo e comissões relativos a um contrato de abertura de crédito em conta corrente e não a qualquer mútuo ou descoberto; que tais valores já lhe estão a ser judicialmente exigidos num processo executivo contra si instaurado, não podendo a A. exigir duas vezes a mesma quantia; que do descoberto não emerge a obrigação de pagamento de juros remuneratórios, salvo se existisse acordo escrito expresso nesse sentido, o que não sucede; que os peticionados juros de mora apenas são devidos desde a data da sua citação; que os reclamados juros prescreveram por decurso dos cinco anos previstos no artigo 310° d) do C. Civil; que acordou com a A. a liquidação de todas as obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato (conta D/O) n.º 625046030003 e n.º 625046032006 e da garantia bancária n.º 0106242200, através de uma dação em pagamento de dois imóveis, sendo que a A. nunca se aprestou a realizar a marcação da escritura pública de dação em pagamento para transmissão da propriedade de tais imóveis, do que conclui que a A. não pode exigir o pagamento em causa, mas apenas a dação dos referidos imóveis como forma de cumprimento das suas obrigações.
3- Em resposta, a A, além do envio regular de extratos para a Ré, alega que a interpelou para proceder ao pagamento da quantia em causa, sendo que a mesma reconheceu dever tal quantia em meados de 2012, quando apresentou uma proposta de regularização, pelo que concluiu pela improcedência da invocada exceção da prescrição de juros.
Por outro lado, diz ser desnecessária convenção escrita sobre os juros remuneratórios, tendo também negado que os valores aqui peticionados estejam a ser reclamados no âmbito do processo executivo referido pela Ré.
Por fim, foi por responsabilidade da Ré que não foi formalizada a dação em pagamento, pois que a mesma não criou as condições necessárias para o efeito, não tendo tratado das questões burocráticas e administrativas que lhe solicitou.
4- Terminados os articulados, foi dispensada a audiência prévia.
No mesmo despacho, depois de resumir as posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados, foi fixado o objeto do litígio e os temas da prova.
5- No desenvolvimento do processo, teve lugar, depois, a audiência final, após a qual foi proferida sentença que julgou a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar à A. a quantia que se vier a liquidar, em incidente próprio, relativamente ao saldo negativo da conta …, à data de 14 de Setembro de 2015, com exclusão de juros remuneratórios e moratórios, e até ao limite máximo de 41.990,96€, absolvendo-se a Ré do mais que vinha peticionado.
6- Inconformada com esta sentença, dela recorre a Ré, terminando a sua motivação concluindo, no essencial, o seguinte:
“1° - No presente recurso, a Recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto porquanto entende que o ponto I.11 dos factos provados e o ponto II.1 dos factos não provados foram incorrectamente julgados, tendo existido erro na apreciação da prova.
2°- A Recorrente entende deveria ter sido considerado provado o seguinte facto:
“A Autora aceitou a proposta da Ré de entrega em dação em pagamento dos dois imóveis identificados no ponto I.10 dos factos provados” liquidando dessa forma todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato (conta D/O) n.° … e n.° … e da garantia bancária n.° ….”
3°- Primeiro, porque a Recorrida não impugnou ou contradisse os factos constantes dos artigos 40° a 46°, 47° (até “... no valor de 1.528.800,00”) e 49° a 53° da contestação.
4°- E tendo-os aceite ou admitido, o Tribunal proferiu despacho saneador que refere: “Estando já provada, por documento, confissão ou acordo das partes, a matéria alegada nos artigos 1 ° a 3° da douta petição inicial e nos artigos 40° a 46°, 47° (até “... no valor de 1.528.800,00”) e 49° a 53° da douta contestação, passa-se, de imediato, à elaboração dos TEMAS DA PROVA:”
5°- O despacho saneador transitou em julgado pelo que, necessariamente os factos vertidos nos artigos 49° a 53° da contestação teriam que constar da matéria de facto considerada assente, o que não aconteceu.
6° - O Tribunal apenas deu como provado (ponto I.11 dos factos provados) que “A esta proposta, a Autora respondeu com a carta que enviou à Ré e junta a f1s.66 cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, aceitando a entrega em dação em pagamento daqueles dois imóveis, mas apenas para liquidação, dessa forma, de todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato (conta 010) n. ° 625046030003 e n. ° 625046032006.” (o sublinhado é nosso)
7°- E fez constar dos factos não provados o ponto II.1 que refere: “1. Na carta que enviou à Ré e junta a f1s.64 (cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido), a Autora aceitou a proposta da Ré para liquidação, dessa forma, de todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força da garantia bancária n. ° 0106242200.”
8°- Ou seja, o Tribunal EXCLUIU do acordo celebrado que a dação em pagamento extinguiria as obrigações que impendiam sobre a Recorrente por força da garantia bancária n.º 0106242200.
9°- Mas os factos constantes nos artigos 49° a 53° da contestação foram considerados PROVADOS no despacho saneador e, por isso, deixaram de carecer de prova porque, tendo sido admitidos ou confessados, têm força probatória plena.
10°- Daí que o Tribunal não levou aos temas da prova qualquer questão sobre a matéria dos artigos 49° a 53° da contestação.
11°- Nos Temas da Prova enunciados nos autos NÃO EXISTE qualquer questão ou matéria sobre as condições concretas do acordo celebrado entre as partes da dação em pagamento.
12°- Não constando dos temas da prova essa matéria, qualquer prova que incida sobre ela não pode ser considerada, antes deve ser tida como inexistente ou não escrita.
13°- A livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes. Cfr artigo 607° do CPC
14°- Não podia ser produzida prova sobre tal matéria porquanto se tratam de factos sobre os quais já não era lícito ao Tribunal conhecer por se encontrarem plenamente provados.
15°- Mas, querendo o Tribunal considerar oficiosamente novos factos, jamais o poderia fazer sem que as partes se pronunciassem sobre eles, ou seja, o juiz, ante a possibilidade de tomar em consideração factos novos ou inversão da matéria provada, tem que alertar as partes sobre essa sua intenção operando o exercício do contraditório e dando-lhe a possibilidade de arrolar novos meios de prova sobre eles, o que de igual modo não sucedeu.
16°- A decisão de facto viola, frontalmente, o despacho saneador anteriormente proferido e transitado em julgado, verificando-se a ofensa do caso julgado.
17°- E viola o disposto nos artigos 352°, 356° e 358° do Código Civil e artigos 410°,411°,415°,574°,596°,607°,620° e 6210 do Código de Processo Civil.
18°- Depois, o Tribunal não efectuou uma correcta apreciação e interpretação do teor dos documentos e do depoimento das testemunhas, existindo erro notório na apreciação da prova.
19°- Para além de que verifica-se existir contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
20°- O Tribunal não extraiu do documento (carta) de fls 66 e que constitui o documento 8° junto com a contestação a conclusão correcta pois do mesmo resulta a vontade da Recorrida em, com a dação em pagamento, extinguir as “responsabilidades emergentes da garantia bancária”
21°- Isto porque o Banco/recorrido fez questão de colocar nas responsabilidades em epigrafe a garantia bancária n.º 0106242200 e de declarar, expressa e claramente, que a dação em pagamento afectaria as responsabilidades em epigrafe.
22°- E se a proposta apresentada pela Recorrente à Recorrida fosse apenas a de regularização dos contratos n.º 625046030003 e 625046032006, porque razão haveria o Banco /Recorrido de colocar na epigrafe da carta a menção à garantia bancária?
23°- Se a Recorrida pretendia aceitar que a dação em pagamento extinguisse as responsabilidades apenas dos contratos n.° 625046030003 e 625046032006, porque não o referiu expressamente?
24°- Se a Recorrida pretendia aceitar que a dação em pagamento extinguisse as responsabilidades apenas dos contratos n. ° 625046030003 e 625046032006, porque declarou que a dação em pagamento afectaria as responsabilidades em epigrafe?
25°- A Recorrida declarou que aceitava a aquisição dos referidos imóveis por Dação em Pagamento extinguindo as responsabilidades em epígrafe porque foi exactamente essa a sua vontade e o acordo celebrado com a Recorrente.
26°- Mais ainda, se a Recorrida não pretendia aceitar que a dação em pagamento extinguisse as responsabilidades derivadas da garantia bancária, porque razão não colocou na carta que excluía a garantia bancária da dação em pagamento ou que se mantinha a garantia bancária mesmo com a concretização dessa operação?
27°- A Recorrida podia ter feito constar na carta que uma das condições de aceitação da proposta apresentada pela Recorrente era a manutenção da responsabilidade proveniente da garantia bancária.
28°- A Recorrida podia ter feito constar na carta que uma das condições de aceitação da dação em pagamento era a exclusão ou não inclusão da garantia bancária.
29°- Mas não o fez porque a intenção e vontade das partes era extinguir todas e quaisquer responsabilidades (quer das contas à ordem quer da garantia bancária) com a dação em pagamento dos dois imóveis.
30°- O documento (carta) de fls 66 dos autos e que constitui o documento n.º 8 junto com a contestação deve ser analisado e interpretado em conjugação com o documento de fls. 63 dos autos que constitui o documento n.º 6 junto com a contestação.
31°- Pois no documento de fls 63 - que consiste numa manifestação de vontade da Recorrida, concretamente, na aceitação de uma proposta da Recorrente - aquela fez questão de colocar no documento a manutenção da garantia bancária.
32°- Pelo que, se no posterior acordo de aquisição de 2 imóveis em dação em pagamento para regularização das responsabilidades da Recorrente, a Recorrida quisesse excluir a garantia bancária tê-lo-ia feito constar na carta, tal como o havia feito anteriormente.
33°- Se a Recorrida pretendesse ou fosse sua intenção ou vontade não extinguir as responsabilidades da garantia bancária com a dação em pagamento, teria colocado no documento (carta) de fls 66 e documento n.º 8 junto com a contestação a menção dessa condição.
34°- Mas não o fez num evidente sinal de que o acordo alcançado entre as partes visava a extinção de todas e quaisquer responsabilidades, incluindo as da garantia bancária.
35°- Não era de todo normal e expectável, no âmbito da actividade bancária e atendendo aos valores envolvidos, que a Recorrida tivesse querido excluir a garantia bancária e não o tivesse feito constar na carta de fls.66.
36°- Na formação da sua convicção, o Tribunal seguiu um raciocinio noutra questão e não efectuou o mesmo raciocínio em relação à questão da exclusão da garantia bancária do acordo firmado.
37°- O Tribunal devia ter considerado como provado que “A Autora aceitou a proposta da Ré de entrega em dação em pagamento dos dois imóveis identificados no ponto I.10 dos factos provados, para extinção das responsabilidades que sobre ela impendiam por força do contrato (conta D/O) n.º … e n.º … e da garantia bancária n.º 00106242200.”
a) Porque a Recorrida nenhuma menção fez na carta de fls. 66 da exclusão da garantia bancária ou de que esta não seria extinta, o que seria normal e expectável, no âmbito da sua actividade bancária e vistos os valores em causa, caso fosse essa a sua vontade.
b) Porque o teor da formalização por escrito da carta de fls.66 evidencia um forte indício da inexistência de qualquer condição para a formalização da escritura, nomeadamente, a não inclusão da garantia bancária ou o facto de a dação em pagamento não a extinguir.
e) Porque se a Recorrida tivesse tido tal condição como determinante da efectiva realização da dação, sempre teria feito dela menção na carta em causa ou em quaisquer outras comunicações posteriores.
d) Porque nada consta dos autos que possa corroborar tal explicação, nomeadamente, outras comunicações escritas contemporâneas dos factos que evidenciem uma aceitação da proposta da Recorrente naqueles termos ou quaisquer outras circunstâncias das quais se pudesse concluir, com a segurança inerente a uma decisão judicial conscienciosa, que foi acordado e aceite que a dação não extinguiria as responsabilidades que impendiam sobre ela por força da garantia bancária.
38°- O Tribunal fundamentou, de forma contraditória e incoerente, a decisão da matéria de facto, existindo contradição insanável na fundamentação e entre a fundamentação e a decisão.
39°- Acresce que o Tribunal assentou também a sua convicçao na prova testemunhal mas apenas e tão só do depoimento da testemunha J, referindo que confirmou que o Banco apenas aceitou que, com a efectivação da dação, seriam extintas as responsabilidades, excepto as decorrentes da garantia bancária, não obstante a Ré ter pretendido que estas fossem incluídas no acordo.
40°- Mas o depoimento da testemunha C (registado no CD n.º 1, inicio do depoimento, tempo 00: 00: 00 e fim do depoimento, tempo 00:53:51), do depoimento da testemunha J (registado no CD n.º 1, inicio do depoimento, tempo 00:00:00 e fim do depoimento, tempo 00:52:36) conjugados com o depoimento da testemunha P (registado no CD n.º 1, inicio do depoimento, tempo 00: 00: 00 e fim do depoimento, tempo 00: 31: 25) impunham que a decisão sobre a matéria de facto fosse diversa já que deveria ter sido considerado provado o seguinte facto:
“A Autora aceitou a proposta da Ré de entrega em dação em pagamento dos dois imóveis identificados no ponto I.10 dos factos provados” liquidando dessa forma todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato (conta D/O) n.º … e n.º … e da garantia bancária n.º ….”
41°- Pelo que o ponto II.1 dos factos não provados devia ter sido considerado provado e aditado ao ponto I.11 dos factos provados.
42°- De toda a prova produzida, nomeadamente do depoimento de todas as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, resultou a prova segura de que o acordo alcançado entre as partes visava a extinção de todas e quaisquer responsabilidades, incluindo as da garantia bancária.
43°- A apreciação critica da prova documental e testemunhal, conjugada entre si, bem como, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, à “normalidade do acontecer na pratica bancária”, à lógica elementar e as regras da experiência comum, conduz necessariamente à consideração como provado do ponto II.1 dos factos não provados.
44°- Tendo a garantia bancária sido prestada à Câmara Municipal de Guimarães como uma caução para garantia da execução das obras de infraestruturas e urbanização, não fazia qualquer sentido que a Recorrente transmitisse os imóveis por via de dação em pagamento e a responsabilidade pela garantia bancária se mantivesse pois, transmitindo os imóveis, a Recorrente não poderia depois executar as obras de que a garantia bancária era caução junto da CMG e, consequentemente, não podia ficar responsável pela execução das obras através da garantia bancária dada à CMG.
45°- O Tribunal apreciou incorrectamente a prova produzida sobre os factos aqui em causa, devendo considerar como provado o ponto II.1 dos factos não provados.
46°- A decisão recorrida incorreu em erro de julgamento quanto à decisão proferida sobre a matéria do ponto II.1 dos factos não provados da decisão da matéria de facto, violando o disposto nos artºs 414 e 607° C.Pr.Civil.
47°- Não tem razão o Tribunal recorrido quanto às considerações tecidas na sentença recorrida de que a declaração da Recorrida constante da carta de fls.66 consubstancia uma rejeição da proposta inicial da Recorrente e que a mesma vale como uma nova proposta, que, tendo sido aceite, produziu os seus efeitos plenos.
48°- As partes ACORDARAM que a forma de extinção das obrigações se daria através de dação em pagamento dos imóveis.
49°- Na sequência das negociações havidas entre as partes, resultou um acordo vinculativo assente sobre duas declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro) que visam estabelecer uma forma de resolução ou composição do litigio
50°- Desse acordo de vontade nasceu a obrigação da Recorrida receber aqueles imóveis para pagamento ou em cumprimento de todas as obrigações provenientes daqueles contratos para a Recorrente
51°- A Recorrida não podia exigir o pagamento de qualquer quantia por outra forma que não a dação em pagamento.
52°- A Recorrida apenas poderia exigir da Recorrente o cumprimento através da dação em pagamento dos 2 imóveis já que a dação em pagamento é uma forma de cumprimento das obrigações, além do pagamento.
53°- E essa forma de cumprimento foi, in casu, ajustada entre credor e devedor por forma a que oferecendo esta àquela a respectiva prestação (dação) cumpre a obrigação, extinguindo-a.
54°- O Tribunal “a quo” entendeu que o acordo em causa não constituía uma novação porque, segundo ele, do teor da missiva de fls.66 decorre existir uma manifestação expressa e contrária à vontade de novar.
55°- Como bem referiu a sentença recorrida, as partes, de forma válida e no âmbito da sua liberdade contratual, “estipularam, de comum acordo, o concreto modo de liquidar as responsabilidades emergentes da conta …, modificando, desse modo, a obrigação pecuniária da Ré por prestação diversa, no caso, uma prestação de coisa certa, a entrega de dois prédios rústicos, cuja formalização final não foi efectuada por motivos imputáveis à Autora, pese embora o seu anterior consentimento assumido e formalizado na missiva de f1s.66”.
56°- Ou seja, entre as partes foi celebrado um ACORDO quanto à concreta forma de cumprimento da obrigação a que a Recorrente estava obrigada.
57°- As partes NOVARAM O CUMPRIMENTO, definindo outra forma de realização da prestação a que a Recorrente estava obrigada e não NOVARAM O CONTRATO que existia entre ambos.
58°- O contrato mantém-se o mesmo e as partes acordaram apenas em substituir a obrigação que recaía sobre a Recorrente de restituir a quantia mutuada pela obrigação de transmissão de 2 imóveis.
59°- Ao invés do cumprimento da obrigação se dar por pagamento de um montante pecuniário, as partes acordaram, definitivamente, que a obrigação seria cumprida por transmissão de 2 imóveis em dação em pagamento.
60°- É claro que o ACORDO QUANTO À ESCOLHA DA MODALIDADE DE CUMPRIMENTO constituiu novação do cumprimento pois as partes apenas admitiram como forma de cumprimento a dação em pagamento e não o pagamento da quantia pecuniária.
61°- Esse acordo foi celebrado com a intenção clara e expressa de novação, ou seja, de contrair uma nova obrigação e extinguir a antiga - mas quanto à forma de cumprimento.
62°- As partes quiseram criar a obrigação de transmissão dos imóveis em substituição do pagamento do montante pecuniário.
63°- Do acordo celebrado e das declarações de vontade das partes pode extrair-se expressamente que as partes quiseram, com o referido acordo de dação em pagamento, extinguir a primitiva obrigação.
64°- A indagação da vontade das partes passa sempre pela interpretação e integração da vontade negocial e, neste âmbito, deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações a determinados tópicos, ou seja, à “ordem envolvente da interacção negocial”, como a letra do negócio, as circunstâncias do tempo, lugar e outras que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei, os usos e costumes por ela recebidos, bem assim o comportamento posterior dos contraentes. Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-09-2010 disponível in dgsi.pt
65°- Analisando todas essas premissas que resultam da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente do depoimento da testemunha P, é evidente que, pelo acordo celebrado, as partes alteraram o concreto objecto da relação obrigacional que para a Recorrente resultava.
66°- Em face do acordo alcançado entre as partes, objectivamente, ocorreu uma alteração da causa da prestação a que se encontrava adstrita a Recorrente sendo que:
a) Antes, a Recorrente seria responsável pelo pagamento de um montante pecuniário.
b) Agora, passou a ser responsável pela obrigação de entregar à Recorrida dois imóveis, obrigação que assumiu de novo.
c) Em simultâneo, a Recorrente ficou exonerada do cumprimento da obrigação originária contraída.
67°- Pelo que, ocorrendo novação, não podia a Recorrida exigir o pagamento do saldo devedor da conta n.º 625046030003, devendo a acção soçobrar.
68°- Por outro lado, no entendimento do Tribunal “a quo”, as partes não celebraram um contrato definitivo de dação em pagamento mas de “um acordo que podemos qualificar de promessa de dação em pagamento, cujas obrigações típicas dele emergentes consistem na obtenção das prometidas declarações de extinção do crédito (do lado do credor) e de declaração de transmissão da propriedade dos prédios rústicos com declaração de consentimento da dação (do lado do devedor)”
69°- Mas da matéria de facto dada como provada não podemos concluir pela celebração de um CONTRATO PROMESSA de dação em cumprimento.
70°- Da matéria de facto provada não resultam as declarações negociais que conformam um contrato promessa, a saber:
c) A Recorrente a prometer celebrar com a Recorrida um contrato definitivo de dação em cumprimento.
d) A Recorrida a prometer aceitar celebrar com a Recorrente um contrato definitivo de dação em cumprimento.
71°- Nem a Recorrida declarou que prometia aceitar receber os imóveis em dação em pagamento nem a Recorrente declarou que prometia dar os prédios em dação em cumprimento.
72°- O que existiu foi um CONTRATO DEFINITIVO pelo qual a Recorrente declarou entregar, em dação em cumprimento, dois imóveis, com o que extinguiria todas e quaisquer obrigações provenientes do contrato (conta D/O) n.º … e n.º … e da garantia bancária n.º … e a Recorrida declarou aceitar receber tais imóveis para extinção das apontadas obrigações.
73°- A Recorrente declarou dar 2 imóveis em cumprimento e a Recorrida declarou aceitar receber os 2 imoveis em cumprimento
74°- As partes celebraram, pois, um contrato definitivo - e não promessa - pelo qual definiram o concreto modo de cumprimento da obrigação.
75°- Porém, ainda que se entenda que o contrato celebrado constitui um CONTRATO PROMESSA o mesmo deve ser interpretado como:
1°- uma PROMESSA DE NOVAÇÃO ou, então,
2° uma PROMESSSA DE DAÇÃO EM FUNÇÃO DO CUMPRIMENTO (DAÇÃO “PRO SOLVENDO”)
76°- Neste caso, o acordo celebrado consubstanciaria uma promessa de dação em cumprimento, ou seja, um acordo (um pactum de in solutum dando) através do qual se permite ao devedor libertar-se da sua obrigação mediante a prestação de coisa diversa da devida.
77°- A declaração negocial da Recorrida, expressamente exarada, por escrito, na carta de fls.66 constitui uma expressa promessa de aquisição dos referidos prédios rústicos para liquidação das responsabilidades das contas à ordem e da garantia bancária.
78°- Ora, considerando-se não existir declaração expressa de que se quer novar (substituir a obrigação antiga por uma nova), a obrigação antiga não se extingue, presumindo-se haver uma datio pro solvendo, nos termos do n.º 2 do artigo 840.° do Código Civil: a obrigação antiga só se extingue pela satisfação da obrigação de novo contraída.
79°- Assim, embora se tenha criado uma nova obrigação, persiste, ao lado dela, a obrigação antiga, funcionando a primeira como modo de facilitar a satisfação do crédito.
80°- E, caso se entenda que, em face dos factos provados, não se pode interpretar a vontade negocial como sendo uma vontade de novar, mas tão e apenas de substituição do negócio, surgindo o acordo estabelecido como uma forma de apenas facilitar o cumprimento (portanto como uma datio pro solvendo), subsistindo a anterior obrigação até se encontrar totalmente satisfeita (ou reduzida na medida dessa satisfação), ainda assim a accão teria que improceder por duas ordens de razões.
81°- Em primeiro lugar, porque, no caso da datio pro solvendo, o credor está obrigado a tentar receber, primeiramente, a obrigação alternativa e só, frustrando-se esta, é que pode exigir a obrigação originária.
82°- Na datio pro solvendo, a dação tem, pois, a vantagem de facilitar ao credor a satisfação do seu direito, sem perder os benefícios do seu crédito.
83°- Nestas condições, a vontade usual das partes parece ser a de que o credor procure primeiro a sua satisfação através da coisa ou direito prestados pro solvendo, dado que, fazendo a dação, quererá, em regra, que o credor se pague por esse meio e este o aceita.
84°- (…)
90°- Tendo aceite e conservado a prestação feita em função do cumprimento é exigível ao credor que actuasse diligentemente (com a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias do caso - art. 487° nº 2) e com boa fé (art. 762°) no cumprimento da promessa de aquisição dos imóveis entregues pro solvendo e até que prestasse contas (art. 1161° d)).
91°- Mas tal não aconteceu pois, como se deu como provado, a dação em pagamento não se concretizou porque “foi a Autora quem, de modo injustificado, não quis obter da Ré a prestação que correspondia integralmente ao previamente acordado entre partes, pois que não realizou os actos necessários ao cumprimento do acordado (ou seja, não marcou a escritura pública do definitivo contrato), do que decorre que, efectivamente, é a Autora quem está em mora.”
92°- Por isso, o comportamento da Autora/Recorrida, à luz dos factos provados, ao pretender cobrar da Recorrente o saldo devedor negativo da conta a descoberto, tendo aceite e assumiu recebê-lo através da dação de dois imóveis, pretendendo, portanto, exigir uma obrigação que anteriormente não acionou e renegociou de forma a obter melhor satisfação dos seus interesses, excede manifestamente e de forma clamorosa as regas da boa-fé no cumprimento dos contratos (artigo 762.° do Código Civil), e corresponde a um abuso de direito na vertente de venire contra factum proprium, enquadrando-se tal conduta na previsão do artigo 334.° do Código Civil.
93°- Em segundo lugar, a acção sempre estaria votada ao insucesso porquanto a Recorrida não podia exigir o cumprimento da obrigação originária pois o acordo dado como provado nos autos - o contrato (promessa ou não) de dação em cumprimento - encontra-se válido e em vigor, não existindo incumprimento definitivo que justifique a sua resolução e extinção.
94°- Da matéria factual dada como provada resulta a que estamos perante uma situação de simples mora do credor e apenas uma situação de incumprimento definitivo torna legitima a resolução do contrato.
95°- Para a Recorrida poder exigir a obrigação originária teria, em primeiro lugar, que extinguir o contrato que a une à Recorrente.
96°- O incumprimento da prestação do devedor torna-se definitivo quando, por força do atraso na sua realização, o credor perde o interesse objectivo na sua efectivação.
97°- Nos termos do disposto no art.º 808.º, n.º 1 do CC, se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, considera-se para todos os efeitos não cumprida definitivamente a obrigação.
98º- A mora do devedor cessa se houver acordo das partes, purgação da mora ou se for transformada em incumprimento definitivo - artigo 808.º n.º 1, do Código Civil, havendo perda de interesse do credor, se a prestação não for realizada num prazo suplementar razoável que for fixado pelo credor.
99°- Esta última situação implica uma notificação que se traduz numa interpelação admonitória, designação doutrinária do acto previsto no nº 1 do artigo 808º do C.C. e que consiste na fixação pelo credor, ao devedor, de um prazo suplementar razoável para que cumpra a obrigação, sob pena de a considerar definitivamente não cumprida, podendo exercer todos os direitos em que esse definitivo não cumprimento o constitui.
100°- A notificação admonitória ou intimação cominatória é uma declaração receptícia que contém três elementos, como salienta CALVÃO DA SILVA, ob. cit., pg. 127 e também em “Estudos de Direito Civil e Processo Civil”, pág. 159:
1°- Intimação para o cumprimento;
2°- Fixação de um termo peremptório para o cumprimento;
3°- Admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não ocorrer o cumprimento dentro do prazo.
101°- A interpelação admonitória, para produzir os efeitos que lhe são próprios, deve conter uma intimação clara para cumprir, fixar um prazo peremptório razoável, consoante as circunstâncias do caso, para o efeito, e informar inequivocamente que o não cumprimento dentro do prazo terá a consequência de ter-se por não cumprida definitivamente a prestação.
102º- Dos factos provados não consta qualquer facto donde resulte que a Recorrida haja perdido o interesse na prestação e que procedeu à interpelação admonitória da Recorrente.
103º- Pelo que o contrato dado como provado não foi resolvido, encontrando-se válido e em vigor, devendo a Recorrida, no respeito pelo princípio geral pacta sunt servanda e do principio da boa fé, cumprir com o pacto que assumiu com a Recorrente, sob pena de violação das normas que impõem tais princípios.
104º- Concluindo, a Recorrida não era livre de escolher exigir o cumprimento do contrato ou reclamar o pagamento do saldo da conta.
105º- A Recorrida estava obrigada ao cumprimento ou a exigir o cumprimento do contrato (promessa ou não) firmado com a Recorrente.
106º- Não o tendo feito, a decisão recorrida não interpretou ou aplicou correctamente as disposições dos artigos 217º, 334º, 405º, 406º, 808º, 840º e 857º do Código Civil”.
Pede, assim, a revogação da sentença recorrida e a improcedência desta ação.
7- Respondeu a A., pugnando pela confirmação do julgado.
8- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:
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II- Mérito do recurso
A- Definição do respectivo objecto
Este objecto, como é sabido, é, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil).
Assim, observando este critério no caso presente, o objeto do recurso em apreço reconduz-se, essencialmente, às seguintes questões:
a) Em primeiro lugar, saber se deve haver lugar à modificação da matéria de facto, pretendida pela Apelante;
b) E, depois, decidir se a A. não tem o direito de exigir à Ré o pagamento do crédito de que se arroga titular.
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B- Fundamentação
a) Na sentença recorrida, julgaram-se provados os seguintes factos:
1- A A., no exercício da sua atividade bancária, aceitou, a pedido da Ré, P, representada por A, C e O, a abertura de conta de depósito à ordem, em nome daquela, na Agência do Banco em Moreira de Cónegos, conforme ficha de abertura de conta junta a fls.8 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
2- À referida conta foi atribuído o número ….
3- A Ré é uma sociedade por quotas cujo objeto social consiste construção, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e todas as demais operações legalmente permitidas sobre imóveis.
4- A Ré celebrou com o B, o contrato de abertura de crédito em conta corrente disponibilizado em D/O n.º …, alvo de alteração posterior, nos termos retratados nos documentos juntos a fls. 40 e segs (cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido) e nos termos do qual, caso a conta D/O n.º … na qual seriam creditados os valores disponibilizados por força desse contrato apresentasse saldo em dívida, não se encontrando aprovisionada com os fundos necessários para fazer face aos pagamentos previstos, o Banco poderia debitar qualquer outra conta de que a Ré fosse titular ou co-titular junto do Banco.
5- Em finais de 2007, a Ré procedia à construção de um empreendimento sito no Lugar de Encruzamento, freguesia de Moreira de Cónegos, concelho de Guimarães, sendo que a A. havia prestado à Câmara Municipal de Guimarães uma caução através da garantia bancária n.º … para garantia da execução das obras de infraestruturas e urbanização.
6- A Ré carecia de um reforço de tesouraria e, para tanto, celebrou com a A. tais contratos.
7- Em 20-04-2010, A. e Ré celebraram um acordo nos termos do qual: a) a Ré venderia a um Fundo de Investimento Imobiliário o prédio descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º … da freguesia de Moreira de Cónegos, pelo montante de 1.520.000,00€ e entregaria este valor à Autora. b) O remanescente da dívida seria consolidada num financiamento concedido pela Autora de 480.000,00€ pelo prazo de 2 anos. A liquidação do capital seria feita numa única prestação no fim do prazo do empréstimo, pagamento de juros anuais à taxa Euribor a 360 dias acrescida de um spread de 1 %. E este financiamento teria a garantia da 1 a hipoteca dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob os n.ºs 454 e 991 da freguesia de Moreira de Cónegos. c) Manutenção da Garantia Bancária n.º …, tudo conforme carta a fls.63 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
8- Em cumprimento desse acordo, por escritura pública de compra e venda, outorgada, em 02-06-2011, no Cartório Notarial de José Mário Resse Lascasas dos Santos, sito na Rua de José Falcão, n.º …, 1 ° Direito, no concelho do Porto, a Ré vendeu o referido imóvel ao Fundo de Gestão de Património Imobiliário - Fungepi BES pelo preço de 1.528.800,00€, conforme escritura pública de fls.64 e segs e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido e entregou à Autora o produto da venda no valor de 1.528.800,00€.
9. A Ré propôs à A. a entrega, em dação em pagamento, de dois imóveis, liquidando dessa forma todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato n.º … e n.º … e da garantia bancária n.º …, com o que extinguiria todas e quaisquer obrigações provenientes do contrato (conta D/O) n.º … e n.º … e da garantia bancária n.º ….
10- Os imóveis eram os seguintes: a) Prédio Rústico, Sorte das Prezinhas, situado no Lugar de Ponte de Negrelos, registado na 2ª Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º … Freguesia de Moreira de Cónegos. b) Prédio Rústico, Bouça Nova de Prezinhos ou Sorte dos Sobreiros, Sorte das Prezinhas e Sorte e Roço das Prezinhas, situado no Lugar de Encruzamento, registado na 2ª Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º … Freguesia de Moreira de Cónegos, inscrito na matriz sob o n.º ….
11- A esta proposta, a A. respondeu com a carta que enviou à Ré e junta a fls.66, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, aceitando a entrega em dação em pagamento daqueles dois imóveis, mas apenas para liquidação, dessa forma, de todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato (conta D/O) n.º … e n.º ….
12- Na conta eram lançadas a crédito todas as operações das quais resultasse um aumento dos fundos depositados, em resultado, designadamente, de transferências.
13- E eram lançadas a débito todas as operações que traduzissem uma diminuição do montante dos fundos depositados, como é o caso de cheques sacados e cobrança de comissões ou outros encargos, como imposto de selo sobre a utilização de crédito.
14- Pelo menos desde Dezembro de 2007, que a conta apresenta saldo devedor, conforme consta dos respectivos extractos bancários (cfr. fls.9 e seg., cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
15- Esses extratos foram enviados à Ré e não foram objeto de reclamação.
16- Por carta datada de 16 de Junho de 2008 (cfr. fls.147, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido), a A. exigiu à Ré o pagamento do saldo devedor dessa conta de depósitos à ordem número ….
17- Atualmente, a conta permanece com um saldo negativo de montante não concretamente apurado.
18- O produto da venda outorgada em 2 de Junho de 2011 foi entregue à A. para liquidação da conta e do contrato ….
19- A quantia recebida pela A. na sequência da venda outorgada em 2 de Junho de 2011 foi imputada apenas à dívida da Ré decorrente do contrato n°. …, nos termos que constam da comunicação enviada pelo Banco à Ré, em 16 de Maio de 2012 (cfr. fls.160, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
20- A A. não marcou a escritura pública para formalização da dação em pagamento.
21- Após o envio, em 6 de Setembro de 2012, da carta junta a fls.66 e depois de as partes terem iniciado diligências com vista à concretização dessa dação, o Banco exigiu à Ré que passasse para urbano o prédio rústico descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º … Freguesia de Moreira de Cónegos, o que a Ré não aceitou.
22- Em consequência, a Ré não tratou das questões burocráticas e administrativas solicitadas pelo Banco com vista ao referido em 1.20, na pessoa do Solicitador para tal encarregado, a fim de se outorgar a escritura/título de dação em pagamento.
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b) Na mesma sentença não se julgaram provados os seguintes factos:
1. Na carta que enviou à Ré e junta a fls.64 (cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido), a A. aceitou a proposta da Ré para liquidação, dessa forma, de todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força da garantia bancária n.º ….
2. Na conta eram lançados depósitos de dinheiro e outros valores (por exemplo, cheques) efetuados na conta pelo interveniente ou por terceiros.
3. E eram lançadas a débito transferências para outras contas, levantamentos de dinheiro e processamento de débitos diretos.
4. O produto da venda outorgada em 2 de Junho de 2011 foi entregue à A. para liquidação da conta ….
5. A Ré solicitou à A. que marcasse a escritura pública para formalização da dação em pagamento.
6. Atualmente, a conta permanece com o saldo negativo em de 41.990,96€ (quarenta e um mil e novecentos e noventa euros e noventa e seis cêntimos).
7. A Ré não recebeu qualquer extrato e não recebeu as cartas juntas a fls.14 7 e 166.
8. Os valores em dívida do contrato de abertura de crédito em conta corrente disponibilizado em D/O n.º … estão já a ser exigidos à Ré no processo executivo n° 5966/15.3T8GMR da Comarca de Braga, Instância Central de Guimarães, lª Secção de Execução – J1.
9. A. e Ré fixaram contratualmente uma taxa de 25% de juros remuneratórios em caso de saldo negativo da conta ….
10. À data de Dezembro de 2007, a A. praticava a taxa de 25% para descobertos autorizados em contas de depósito à ordem normal.
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c) Apreciação dos fundamentos do recurso
1- Da pretendida modificação da matéria de facto:
Estão em causa as afirmações contidas no ponto 11 dos Factos Provados e no ponto 1 dos Factos não Provados.
Segundo a Apelante, essas duas afirmações devem ser substituídas por outra que julgue provado que “[a] A. aceitou a proposta da Ré de entrega em dação em pagamento dos dois imóveis identificados no ponto I.10 dos factos provados” liquidando dessa forma todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato (conta D/O) n.° … e n.° … e da garantia bancária n.° …”.
E isto, por diversas razões:
a) Porque a A. não impugnou “os factos constantes dos artigos 40° a 46°, 47° (até “... no valor de 1.528.800,00”) e 49° a 53° da contestação”, quando o podia e devia ter feito se quisesse evitar a sua confissão tácita desses factos;
b) Porque o tribunal recorrido julgou provados esses factos no despacho saneador e esse despacho transitou em julgado, não mais podendo ser decidido o contrário;
c) Porque nos “Temas da Prova enunciados nos autos não existe qualquer questão ou matéria sobre as condições concretas do acordo celebrado entre as partes da dação em pagamento” e, portanto, “não constando dos temas da prova essa matéria, qualquer prova que incida sobre ela não pode ser considerada, antes deve ser tida como inexistente ou não escrita”.
d) Porque “a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” e, nessa medida “não podia ser produzida prova sobre tal matéria porquanto se tratam de factos sobre os quais já não era lícito ao Tribunal conhecer por se encontrarem plenamente provados”.
e) Porque mesmo que se entenda o contrário, “querendo o Tribunal considerar oficiosamente novos factos, jamais o poderia fazer sem que as partes se pronunciassem sobre eles, ou seja, o juiz, ante a possibilidade de tomar em consideração factos novos ou inversão da matéria provada, tem que alertar as partes sobre essa sua intenção operando o exercício do contraditório e dando-lhe a possibilidade de arrolar novos meios de prova sobre eles, o que de igual modo não sucedeu”.
f) E, por fim, porque, “o Tribunal não efetuou uma correta apreciação e interpretação do teor dos documentos e do depoimento das testemunhas, existindo erro notório na apreciação da prova”.
Sucede que, na base desta discordância, está a consideração de que as aludidas afirmações contêm, em si mesmas, apenas a reprodução de factos.
Mas, não é assim.
Efetivamente, se analisarmos o teor da proposta de redação ora formulada pela Apelante, verificamos que, no essencial, a mesma se reconduz ao que está afirmado no artigo 53.º da contestação.
Ora, nesse artigo o que se reproduz não é o teor do documento antes mencionado (no artigo 52.º), ou seja, o documento 8, correspondente ao que consta de fls. 66, mas, antes, a interpretação que a Ré dele faz; o sentido que dele retira.
Senão vejamos:
Depois de referir que propôs à A. a entrega, por dação em pagamento, dos dois imóveis que identifica - para liquidação de todas as obrigações emergentes dos contratos n.ºs …, … e … - afirma a Ré, no artigo 52.º da sua contestação, que aquela, ou seja, a A., lhe respondeu com a carta “que constitui o documento n.º 8, cujo conteúdo se dá por reproduzido para todos os efeitos legais”.
E, nessa sequência, conclui (artigo 53.º): “Ou seja, a Autora aceitou a proposta da Ré de entrega em dação em pagamento daqueles dois imóveis, liquidando dessa forma todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato (conta D/O) n.° … e n.° … e da garantia bancária n.° …”.
É bom de ver, assim, que esta última afirmação não corresponde a um facto. Corresponde, antes, à interpretação que a Ré faz da missiva que a A. lhe dirigiu, datada do dia 06/09/2012.
Mas, o tribunal recorrido não procedeu de modo diverso. Em vez de julgar provado apenas o envio de tal missiva e o respetivo teor, pronunciou-se sobre o sentido a dar às declarações nela exaradas, em sede de matéria de facto. E, assim, julgou provado que “a A. respondeu com a carta que enviou à Ré e junta a fls.66, (…), aceitando a entrega em dação em pagamento daqueles dois imóveis, mas apenas para liquidação, dessa forma, de todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato (conta D/O) n.º … e n.º …”. E, por contraponto, julgou não provado que nessa mesma carta a A. tenha aceitado “a proposta da Ré para liquidação, dessa forma, de todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força da garantia bancária n.º …”.
Ou seja, em sede de matéria de facto, julgou provado o sentido e alcance que tinha por juridicamente relevante para o teor da carta em questão.
Ora, há muito que é entendimento dominante na doutrina e jurisprudência, que a interpretação das declarações negociais, ou seja o modo de fazer essa interpretação e o resultado assim obtido em termos de relevância jurídica, como é o caso, constitui matéria de direito. Como refere António Menezes Cordeiro(1), “[a] interpretação dos negócios jurídicos deve ser assumida como uma tarefa científica, tendente a determinar o regime aplicável aos problemas que se ponham no seu âmbito”. Isto porque, como se assinala no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/10/1997 (2) toda a interpretação jurídica tem uma função constitutiva da juridicidade e uma índole normativa incompatíveis com a sua caracterização como uma pura hermenêutica”.
Assim, sempre que se trate de fixar o sentido de uma declaração negocial, quando não seja conhecida a vontade real de quem a emitiu, estamos perante matéria de direito. Mas, diversamente, quando se pretenda estabelecer qual foi essa vontade, estamos perante matéria de facto(3).
Pois bem, no caso em apreço, a Ré não sustenta que a vontade real da A. foi a de englobar na sua contraproposta a liquidação de todas as obrigações que decorriam dos três contratos referidos (n.° …, n.° … e n.° …). O que diz é que esse é o significado da mensagem que a Ré lhe enviou.
Ora, este é, nitidamente, um resultado interpretativo. Tal como o é aquele que foi fixado pela instância recorrida.
Daí que nenhum deles se possa manter em sede de matéria de facto. Nem mesmo pelas razões invocadas pela Apelante. Efetivamente, a partir do momento em que se considera estarmos perante uma questão jurídica, e não de facto, deixam de fazer sentido aquelas razões(4).
Em suma: o que aqui deve ser julgado provado, porque nenhuma das partes o contestou e é o que resulta da carta em questão, é teor dessa mesma carta e o seu envio à Ré. Tudo o mais, deve ser expurgado desta sede de matéria de facto.
E, assim, eliminando o ponto 1 dos Factos não Provados, confere-se ao ponto 11 dos Factos Provados a seguinte redação:
“A esta proposta, a A. respondeu com a carta que enviou à Ré, datada de 06/09/2012, com o seguinte teor:
Regularização de Responsabilidades
Descrição dos contratos
Conta de Depósitos à Ordem – Contrato n.º …
Conta de Depósitos à Ordem – Contrato n.º …
Garantia Bancária - Contrato n.° …

Exmºs Senhores,
Acusamos a recepção da Vossa carta neste Serviço, o qual mereceu a nossa melhor atenção.
A mesma consubstanciava uma proposta de regularização dos contratos n.° … e …, através da entrega voluntária dos seguintes imóveis:
- Prédio Rústico, Sorte das Prezinhas, situado no Lugar de Ponte de Negrelos, registado na 2ª CRP de Guimarães, …, Freg. de Moreira de Cónegos.
- Prédio Rústico, Bouça Nova de Prezinhos ou Sorte dos Sobreiros, Sorte das Prezinhas e Sorte e Roço das Prezinhas, situado no Lugar de Encruzamento, registado na 2ª CRP de Guimarães, … Freg. de Moreira de Cónegos, inscrito na matriz sob o N.º ….
Somos a informar que o B dá o seu acordo à aquisição dos referidos imóveis por Doação em Pagamento no valor de 292.000,00€, com o qual e após concretização da referida operação, ficará afecto às responsabilidades em epígrafe.
No entanto, cumpre salientar que a presente decisão fica sem efeito se até à data da realização da escritura de compra e venda, forem registados a favor de terceiros outros ónus ou encargos além dos já identificados e objecto de negociação, que possa recair sobre os referidos imóveis.
(…)”.
2- Vejamos, agora, se a A. não tem o direito de exigir da Ré o pagamento do crédito de que a mesma se diz titular
Na sentença recorrida, entendeu-se o contrário; isto é, no que tange ao capital que se vier a apurar em incidente posterior, até ao limite de 41.990,96€, a A. tem o direito a haver da Ré esse capital. Isto porque, no fundo, entre as partes teria sido celebrado um convénio bancário que a isso obrigaria, sem que o acordo subsequente, que aí foi qualificado como promessa de dação em pagamento, implique para a A. o dever de, necessariamente e apenas, acionar esse acordo.
A A. - como aí se considerou – “tanto pode exigir da Ré a declaração definitiva da transmissão da propriedade em pagamento, como o pagamento do saldo devedor da conta a descoberto, pois que não decorre daquela promessa a expressa vontade de extinguir, pela própria promessa, tal obrigação”.
Daí que tenha condenado a Ré nos termos sobreditos.
A Ré, no entanto, não se conforma com esta solução. E, além de expressar uma distinta interpretação da missiva que a A. lhe dirigiu, com a data de 06/09/2012, sustenta ainda que, com essa missiva, foi concluída, não uma promessa de dação em pagamento, mas uma novação consensual da forma de cumprimento do seu débito.
Assim, ao contrário do decidido na sentença recorrida, a A. não era livre de escolher a prestação para satisfazer o seu crédito, mas estava obrigada a socorrer-se da última modalidade acordada.
De todo o modo, ainda que se entenda que o último acordo celebrado constitui um contrato promessa, o mesmo deve ser interpretado como uma promessa de novação ou, então, uma promessa de dação em função do cumprimento (dação “pro solvendo”), pelo que, neste caso, a A. estava “obrigada a tentar receber, primeiramente, a obrigação alternativa e só, frustrando-se esta, é que pode exigir a obrigação originária”.
Acresce que a pretensão da A. “sempre estaria votada ao insucesso porquanto a Recorrida não podia exigir o cumprimento da obrigação originária pois o acordo dado como provado nos autos - o contrato (promessa ou não) de dação em cumprimento - encontra-se válido e em vigor, não existindo incumprimento definitivo que justifique a sua resolução e extinção”.
De modo que a referida pretensão sempre seria de julgar improcedente.
Como vemos, grande parte deste litigio gira em torno da interpretação e natureza jurídica do último convénio celebrado entre as partes.
A Ré, como resulta dos factos provados, confrontada com a situação de descoberto bancário que tinha perante a A., propôs-lhe “a entrega, em dação em pagamento, de dois imóveis, liquidando dessa forma todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato n.º … e n.º … e da garantia bancária n.º …, com o que extinguiria todas e quaisquer obrigações provenientes do contrato (conta D/O) n.º … e n.º … e da garantia bancária n.º …”.
E a A., por sua vez, respondeu-lhe nos termos supra transcritos. Ou seja, no essencial, que dava “o seu acordo à aquisição dos referidos imóveis por dação em pagamento no valor de 292.000,00€, com o qual e após a concretização da referida operação, ficará afeto às responsabilidades em epígrafe”.
Ora, é neste preciso segmento que se centram as dúvidas interpretativas. Saber, em suma, como qualificar o acordo assim concluído e qual o seu alcance jurídico.
Comecemos pela qualificação.
Neste aspeto, estão em causa, essencialmente, as seguintes figuras: a novação, a dação em cumprimento (datio in solutum), a promessa de novação, a promessa de dação em cumprimento e a promessa de dação em função do cumprimento (datio pro solvendo).
As duas primeiras, como é sabido, são formas de extinção das obrigações além do cumprimento.
A novação, como o nome indica, implica sempre a constituição de uma nova obrigação em substituição de um vínculo anterior.
Se for novação objetiva, “o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga” – artigo 857.º, do Código Civil.
Se for novação subjetiva, mesma pode dar-se por substituição do credor “quando um novo credor é substituído ao antigo, vinculando-se o devedor para com ele por uma nova obrigação”; ou por substituição do devedor “quando um novo devedor, contraindo nova obrigação, é substituído ao antigo, que é exonerado pelo credor” – artigo 858.º, do Código Civil.
Em qualquer caso, a novação não se presume. Tem de ser expressamente manifestada a vontade de a realizar (artigo 859.º, do Código Civil); isto é, tem de haver uma declaração negocial com essa finalidade, seja por meio de palavras, escrita ou outro modo direto de manifestação da vontade (artigo 217.º, nº. 1, do Código Civil).
Mas, uma vez constituída a nova obrigação, a antiga extingue-se imediatamente. Por isso se diz que este contrato envolve, simultaneamente, um acordo constitutivo e extintivo de obrigações. Na primeira vertente, relativamente à obrigação nova, e, na segunda, quanto à obrigação originária.
Em qualquer caso, a novação, para assim ser considerada, deve ter por objeto um elemento essencial da relação obrigacional. Se assim não for e a modificação contratual incidir apenas sobre um dos seus elementos acessórios, não há novação(5).
Por sua vez, na dação em cumprimento há também uma modificação contratual. Mas, ao contrário da novação, não há a constituição de qualquer vínculo com efeito liberatório, mas apenas a extinção da obrigação através de uma prestação diferente daquela que era inicialmente devida. Prestação que, “embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento” – artigo 837.º, do Código Civil. Isto é, sem o assentimento do credor não se concretiza a extinção da relação obrigacional, por este meio(6).
Por outro lado, na dação de que estamos a tratar, o acordo das partes tem de ser contemporâneo do cumprimento. Ou seja, este não pode ser deferido em relação àquele. Se o for, já não estamos perante a mesma figura jurídica, posto que, na dação em pagamento, “não se chega a criar uma nova obrigação; extingue-se a existente mediante a entrega de uma outra prestação (cfr. art.837.º)(7)”.
O acordo do credor, pois, deve incidir sobre a dupla vertente da aceitação de prestação diversa da devida e na extinção imediata do seu direito de crédito.
Distinta, mas ao mesmo tempo conceptualmente próxima das duas figuras que acabamos de abordar, é a dação em função do pagamento (datio pro solvendo).
Nela, também o credor aceita uma prestação diversa da devida, mas a extinção desta última só ocorre se, quando e na medida em que aquele vir satisfeito o seu crédito. O artigo 840.º, n.º 1, do Código Civil, é bem claro a esse propósito: “Se o devedor efetuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito, e na medida respetiva” – artigo 840.º, n.º 1, do Código Civil.
Por conseguinte, a prestação que é objeto desta dação não tem, por regra, efeito liberatório imediato em relação à obrigação inicialmente devida, mas esta subsiste até à satisfação integral do direito de crédito correspondente. No fundo, como “se tratasse de um mandato conferido ao credor pelo devedor de se pagar por via da coisa ou do crédito em causa”(8). Desta característica se depreende que o seu objetivo é facilitar o cumprimento, harmonizando, na medida do possível, os interesses do credor e devedor.
Todos estas modalidades têm em comum o facto de terem por objeto uma prestação diferente da que é devida, sendo a finalidade última e prática, ainda que nem sempre a imediata extinção da obrigação originária por causa diversa do seu cumprimento.
Mas não é esse fenómeno que se observa no contrato promessa.
Neste tipo de convénios, a sua obrigação característica, como decorre do disposto no artigo 410.º, n.º1, do Código Civil, é a de contratar; ou seja, “uma obrigação de prestação de facto, que tem de particular consistir na emissão de uma declaração negocial”(9).
Assim, ainda que alguém se comprometa a constituir, futuramente, uma nova obrigação em substituição de um vínculo anteriormente existente num outro contrato, a dar em pagamento uma prestação diversa da que aí foi acordada, para se libertar desta, ou mesmo a facultar ao credor uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, nunca esse compromisso é, só por si, causa extintiva deste crédito. Causa extintiva será o contrato definitivo em que se assumam semelhantes obrigações.
Pois bem, munidos desta noções, é altura de averiguar o que quiseram as partes com o último acordo entre elas celebrado.
E, para o efeito, é indispensável proceder à interpretação desse acordo. Só depois de estar definido o sentido das declarações negociais nele exaradas é possível, em conjugação com as regras legais pertinentes, determinar os direitos e obrigações nascidos com esse acordo e quais as suas consequências jurídicas e patrimoniais.
Como é sabido, vigoram nesta matéria as regras estipuladas nos artigos 236.º e 238.º, do Código Civil.
De acordo com o primeiro preceito legal indicado(10), ressalvando a hipótese do declaratário conhecer a vontade real do declarante, deve a declaração negocial ser sempre entendida a partir da posição do real declaratário, com o sentido que um declaratário normal, ou seja, de qualidades e diligência médias, colocado naquela posição, pudesse deduzir, salvo se não fosse razoável contar com esse sentido.
Como se assinalou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/04/2013 ((11)); “[o] declaratário é obrigado a investigar, num plano de boa fé e tendo em consideração todas as circunstâncias por ele sabidas ou cognoscíveis, o que o declarante quis; este, por seu lado, é também obrigado pela boa fé a deixar valer a declaração no sentido que o declaratário, mediante cuidadosa verificação, tinha de atribuir-lhe.
Todavia, na interpretação de um contrato deve buscar-se não apenas o sentido de declarações negociais separadas e alheadas do seu contexto negocial global, “mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo, como acção de autonomia privada e como globalidade da matéria negociada ou contratada”.
A normalidade do declaratário legalmente apontada implica, por um lado, a capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, e, por outro lado, o zelo para acolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, contribuam para a descoberta da vontade real do declarante.
Nesses elementos inserem-se: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras que antecederam a sua celebração ou são contemporâneas destas; as negociações entabuladas; a finalidade prosseguida pelas partes; o próprio tipo negocial; a lei, os usos e os costumes por ela recebidos. Para além destes elementos, também releva a posição assumida pelas partes na concretização do negócio. Esta não pode, na verdade, deixar de, razoavelmente, corresponder ao que as partes entendem ser os direitos e as vinculações que para cada uma delas emergem do negócio”.
Em qualquer caso, tendo sido observada a forma escrita, como sucedeu no caso presente, não podem as declarações negociais “valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” – artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil.
E, “em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio de prestações” – artigo 237.º do Código Civil. A menos que se trate de uma dação em função do pagamento (datio pro solvendo), que tenha por objeto a cessão de um crédito ou a assunção de uma dívida, em que se presume ter sido feita para facultar ao credor uma prestação diferente da devida, de modo a que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito – artigo 840.º, n.º 2, do Código Civil.
Mas, não é este o caso, como é consensual entre as partes. A Ré refere-se à promessa de dação em função do cumprimento (cl. 75ª), mas não à dação, enquanto contrato definitivo, propriamente dito, nesta modalidade.
Por conseguinte, devem aplicar-se as regras gerais já referidas.
Ora, tendo presentes essas regras e o texto da proposta e resposta já referenciadas, o que verificamos, antes de mais, é que a Ré, como já vimos, propôs à A. “a entrega, em dação em pagamento, de dois imóveis, liquidando dessa forma todas e quaisquer obrigações que sobre ela impendiam por força do contrato n.º … e n.º … e da garantia bancária n.º …, com o que extinguiria todas e quaisquer obrigações provenientes do contrato (conta D/O) n.º … e n.º … e da garantia bancária n.º …”.
E a A., por sua vez, respondeu-lhe dizendo, no essencial, que dava “o seu acordo à aquisição dos referidos imóveis por dação em pagamento no valor de 292.000,00€, com o qual e após a concretização da referida operação, ficará afeto às responsabilidades em epígrafe”.
Esta resposta suscita, como dissemos, duas divergências: a natureza do acordo assim concluído e as suas implicações jurídicas.
No que ao primeiro problema concerne, temos para nós, em primeiro lugar, que não estamos perante qualquer contrato promessa.
A A, não se obriga a celebrar o acordo definitivo (artigo 410.º do Código Civil), embora esteja implícito que o irá fazer. A mensagem que transmite, porém, não é essa. É, antes, que aceita receber os imóveis cuja aquisição a Ré lhe propôs, por dação em pagamento. E só isso.
Por conseguinte, todas as teses construídas na sentença recorrida e nas alegações de recurso que partem deste pressuposto, não as subscrevemos.
Mas também não subscrevemos o entendimento de que estamos perante qualquer novação, ainda que do cumprimento, como sustenta a Ré, ou mesmo em face de qualquer dação em pagamento.
Na verdade, a aquisição dos imóveis, por banda da A., que a Ré lhe propôs, só podia, e pode, ser realizada através da forma legalmente estipulada (artigo 875.º, do Código Civil).
Ora, não foi esse o caso. As partes limitaram-se a concluir a fase negocial decidindo, por consenso, que a dívida da Ré para com a A. seria extinta por dação em cumprimento de dois imóveis àquela pertencentes.
E dizemos seria, porque é a própria A. quem adverte a Ré, na sua resposta, que “só após a concretização da referida operação”, ou seja, só após a concretização da aquisição, é que se daria o efeito extintivo típico da dação em pagamento. Nem podia ser antes, uma vez que, como já vimos, razões de ordem formal impediam que a aquisição dos referidos imóveis se concretizasse apenas pela troca de correspondência em análise.
Daí que se conclua que entre a A. e a Ré não foi celebrado nenhuma novação ou dação em pagamento. As partes apenas concordaram em vir a celebrar a dação em pagamento, no futuro. Se o não fizeram, pode haver lugar a outas consequências, designadamente no plano da responsabilidade contratual, verificados que estejam os respetivos pressupostos, mas nunca o acordo em análise implica, só por si, a extinção do direito de crédito reclamado pela A. nesta ação.
Nessa medida, encontra-se prejudicada a questão de saber se o efeito liberatório pretendido pela Ré se confina a dois dos contratos bancários celebrados ou se estende a todos eles. Esse efeito, repetimos, não ocorreu e, por conseguinte, a condenação expressa na sentença recorrida deve manter-se.
Ou seja, em resumo, os argumentos esgrimidos pela Ré, neste recurso, não podem ser acolhidos e deve manter-se o decidido na aludida sentença.
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III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao recurso em apreço e, consequentemente, confirma-se o decidido na sentença recorrida.
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- Porque decaiu na totalidade, as custas deste recurso serão suportadas pela Apelante - artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

1- Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral, 4ª Edição, Almedina, pág. 685.
2- Citado pelo mesmo Autor na obra e local citados.
3- Cfr. neste sentido, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, (Funções. Circunstâncias. Interpretação), IV, 2014, Almedina, pág. 313; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol I, 4ª ed Revista e Atualizada, Coimbra Editora, pág. 224; Evaristo Mendes e Fernando Sá, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pág. 541; e, na jurisprudência, entre muitos outros, Ac. STJ de 04/06/2002, Processo n.º 02A1442, e Ac. STJ de 05/01/2016, Processo n.º 146/13.5TCFUN-A.L1.S1, consultáveis em www.dgsi.pt
4- Mesmo no que toca à existência de caso julgado, pois que há muito é doutrina e jurisprudência maioritárias que essa consequência não se verifica no plano dos factos – Neste sentido, por todos, José
5- Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol III, 3ª edição Revista e actualizada, Coimbra Editora, pág.149.
6- E compreende-se que assim seja. “A relação obrigacional está colimada à satisfação do interesse do credor, nela encontrando o seu sentido final e existencial. Nasce para satisfazer o mais completa e adequadamente o interesse do credor na prestação e extingue-se no momento em que essa satisfação for alcançada” - João Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, Almedina, pág.67.
7- Neste sentido, pronunciam-se, entre outros, Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, pág.791; e, na jurisprudência, Ac. STJ de 17/03/2005, Processo n.º 05B499, consultável em www.dgsi.pt
8- Ac. STJ de 17/03/2005, já referido.
9- Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª Edição/Reimpressão, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, pág. 102.
10- Que consagra a teoria da impressão do declaratário, segundo uma conceção objetivista. Neste sentido, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª Ed., págs. 447e 448 e Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª ed. Revista e atualizada, pág.447 e 448.
11- Processo n.º 2449/08.1TBFAF.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt