Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
483/03.7TBCMN-B.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: VENDA EXECUTIVA
ANULAÇÃO DE VENDA
ERRO SOBRE A COISA PENHORADA
FALTA DE CONFORMIDADE
COISA ALHEIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1) Ao cumprir o dever de apreciar a nulidade da decisão recorrida e de sobre ela se pronunciar, nos termos dos artºs 641º, nº 1, e 617º, nº 1, CPC, o juiz não pode limitar-se a negá-la tabelarmente. Deve fundamentar o seu juízo sobre ela.

2) Ainda que errada seja a perspectiva adoptada sobre a questão objecto do litígio, a linha de raciocínio seguida para a resolver e a decisão tomada, mas desde que se percebam os seus termos e sentido, não há nulidade por contradição nem por ininteligibilidade nos termos da alínea c), do nº 1, do artº 615º, CPC.

3) O pressuposto da anulação da venda executiva relativo ao erro sobre a coisa (penhorada) transmitida por falta de conformidade com o que foi anunciado não se confunde com a invalidade do negócio jurídico por erro sobre o objecto nem com a venda de coisa alheia.

4) Manifestando o adquirente ter conhecimento, há mais de um ano, da venda do direito adquirido na execução antes de ele ter sido nesta penhorado e ainda que entendesse, então, que aquela venda teria sido simulada, não se pode considerar que ele agiu em erro quando tal vício se não demonstra afinal.

5) Ao defender, agora, que a venda pelo executado do direito a terceiro, antes de ele ser penhorado, é válida e que, portanto, na execução foi penhorada e vendida coisa alheia, tal adquirente age em contradição com o que ele próprio antes defendeu.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Numa execução especial instaurada, em Novembro de 2010, no Tribunal de Família e Menores de Viana do Castelo, pela exequente C. M. contra B. L., destinada a cobrar certa quantia pecuniária por este devida a título de alimentos (e juros), foi penhorada a quota de 1/9 de quatro imóveis, sitos em Venade, pertença deste executado.

Chegada a fase da venda, o Banco A apresentou uma proposta de compra, vindo o direito penhorado a ser-lhe adjudicado.

Como, no Tribunal de Caminha, pendia já acção especial de divisão de coisa comum dos prédios, aliás instaurada pelo próprio Banco A como comproprietária deles (em outra quota de 2/9), contra os demais co-titulares, designadamente o próprio executado B. L., aquela, na sequência da adjudicação, deduziu, no apenso B, a sua habilitação como sucessora deste na referida quota-parte (1/9) assim adquirida.

Contudo, na subsequente contestação, os comproprietários A. M. e esposa, alegaram que, já antes da execução, em escritura notarial, haviam adquirido ao executado B. L. o quinhão hereditário deste na herança ilíquida e indivisa de Maria, que corresponde a um nono indiviso dela.

Daí que, defendendo o Banco A que, por “erro quanto à coisa transmitida”, lhe foram adjudicados “bens alheios” ou “bens de terceiro” e que, assim, sendo inválido o acto de venda, nada adquiriu, tenha deduzido, na execução, o incidente a que alude o nº 1, do artº 838º, do CPC, e nele requerido que o tribunal declarasse anulada tal venda executiva.

A tal pretensão se opôs a exequente C. M., alegando que tal arguição é extemporânea e que, antes de ter apresentado a proposta de compra, já o Banco A sabia que aquele direito não pertencia ao executado, inexistindo, por isso, erro. Além disso, a pretensão consubstancia abuso de direito e revela má-fé da pretendente.

Foram, neste incidente de anulação, inquiridas testemunhas (entre estas, o próprio A. M. e a esposa).

Após ter sido solicitado e lhe ser apresentada a acção de divisão solicitada ao Tribunal de Caminha onde pendia, ao abrigo do invocado artº 838º, do CPC, decidiu o tribunal a quo, em 27-03-2018:

“Consideramos improcedente a pretensão do Banco A. Custas por esta….”.

O requerente Banco A, inconformada, apela, alega e conclui:

1.ª - Há uma manifesta contradição e ambiguidade na motivação e fundamentação da douta sentença recorrida no que respeita à factualidade não provada, sendo, pois, ininteligível o pensamento do Mm.º Juiz a quo, na medida em que comporta dois sentidos distintos e opostos, o que acarreta a nulidade da sentença - vd. al. c) do n.º 1 do art.º 615.º CPC
2.ª - A escritura pública de fls. 503 a 504v. goza de força probatória plena e conjugada com a decisão de fls. 566v. a 569 e os depoimentos de A. M. e E. M., impõe que seja dado como provado que:

O quinhão hereditário que pertencia ao executado B. L., na herança indivisa aberta por óbito de Maria, foi vendido a A. M. e mulher em 27 de Outubro de 2009, a estes pertencendo aquando da adjudicação à recorrente.” - vd. depoimento de A. M., gravado com início às 11h:57m:39m e termo às 12h:13m:59s (passagens aos 3m16, 3m50 a 4m06, 5m26 a 5m47, 8m42 a 9m08, 14m24) e depoimento de E. M., gravado com início às 12h:14m:13s e termo às 12h:24m:14s (passagens do aos 0m40 a 0m44, 1m49 a 2m07, 2m17 a 2m55, 3m27 a 3m43, 4m49 a 5m16).
3.ª - Tendo em conta o teor do anúncio de venda formulado nos autos, a recorrente apresentou proposta de compra convencida de que o executado B. L. era titular de 1/9 de 4 imóveis, sem consciência de que esses mesmos imóveis correspondiam ao quinhão hereditário do executado na herança indivisa da sua avó
4.ª - Constatando-se que os bens vendidos não pertenciam ao executado, estamos perante um erro sobre a coisa transmitida à recorrente, que, na realidade, é inexistente, havendo por isso falta de conformidade com o que foi anunciado, o que justifica a anulação da venda efectuada em 12.09.2016 - vd. art.º 838.º CPC
5.ª - Quando foi realizada a venda do quinhão hereditário nos presentes autos, o mesmo já não pertencia ao executado B. L., pelo que a adjudicação feita à recorrente configura venda de bens alheios e, como tal, é nula - vd. art.º 892.º CC
6.ª - Uma vez que a consequência para a venda de bens alheios é a nulidade do negócio e não a mera anulabilidade, esse vício pode ser invocado a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal - vd. art.º 286.º CC
DE HARMONIA COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO AO RECURSO E POR TAL EFEITO:
- revogar-se a decisão impugnada e declarar-se a nulidade da venda de 1/9 dos referidos 4 imóveis e, consequentemente, obrigar-se a exequente a restituir à recorrente o valor recebido dessa venda.
ASSIM ESTE TRIBUNAL SUPERIOR FARÁ JUSTIÇA”.

A exequente C. M. contrapôs-se-lhe, alegando e concluindo também:

I. Sendo o recurso delimitado pelas doutas conclusões da Recorrente/Apelante, entendemos que não lhe assiste razão, devendo a Douta Sentença ser mantida na íntegra.
II. Inexiste, s.m.o., contradição e ambiguidade na Motivação e Fundamentação da Douta Sentença, pois o Tribunal Recorrido, acompanhando integralmente a posição defendida pela Apelante no Processo nº236/10.6TBCMN (Acção de divisão de coisa comum, no qual é Autora), considerou que a venda operada pelo Executado B. L. ao A. M. foi simulada (simulação absoluta) e extraiu daí as necessárias conclusões.
III. Se o B. L./Executado nada quis vender e o A. M. nada quis comprar, estamos perante um negócio simulado, pelo que inexistindo negócio dissimulado, o primeiro é nulo.
IV. Sendo a venda titulada pela Escritura Pública nula, não se coloca a questão de se tratarem de bens alheios, nem há lugar à invocada nulidade da venda/adjudicação no âmbito da presente execução.
V. Foi a Apelante quem promoveu o registo a seu favor de 2/9 parte indivisas (e não que qualquer quinhão hereditário) e foi com base nesse registo que foi elaborado o anúncio da venda, pelo que qualquer inexactidão é da exclusiva responsabilidade da própria Apelante, que, aliás, sempre se arrogou proprietária de 2/9 indivisos (Cf. a título de exemplo o Requerimento Citius com a Ref. 6893240, de 04/04/2011).
VI. A Apelante sabia (como demonstra o extenso acervo documental) que os imóveis penhorados integravam o quinhão hereditário do Executado na herança indivisa da sua avó. E tinha conhecimento desse facto desde, pelo menos, 25/11/2011, data em que lhe foi notificada a Contestação/Reconvenção com Incidente de Habilitação de Cessionários. (Cf. Documentos que acompanham o Requerimento Citius com a Ref. 28387948, de 05/03/2018).
VII. Nesse articulado foi junta a Relação dos Bens que integram a herança aberta por óbito da Maria, nos quais se encontram enumerados e devidamente identificados, sem possibilidade de erro ou confusão, os quatro bens penhorados à ordem deste processo:

- Prédio urbano inscrito na matriz respectiva da freguesia V. sob o art. … ---» Verba 3;
- Prédio urbano inscrito na matriz respectiva da freguesia V. sob o art. … ---» Verba 4;
- Prédio rústico inscrito na matriz respectiva da freguesia V. sob o art. … ---» Verba 15;
- Prédio rústico inscrito na matriz respectiva da freguesia V. sob o art. … ---» Verba 14.
VIII. A Apelante sabia assim, desde 25/11/2011, que os bens penhorados nos presentes autos integravam a referida herança.

Sem conceder,
IX. Em 12 de Setembro de 2016, foram adjudicados à CCAM 1/9 «de todos os bens imóveis, identificado nos editais e anúncios, pelo preço global de 14.920,00 (catorze mil novecentos e vinte euros)». – Cf. fls. dos autos. O regime da anulabilidade consagrado no art. 287º estabelece o prazo de um ano para a sua arguição, prazo que se mostra há muito ultrapassado. Pelo que a invocação da anulabilidade e Janeiro de 2018 será, s.m.o., extemporânea.
X. Da análise dos documentos que acompanham o Requerimento Citius com a Ref. 28387948, de 05/03/2018, extraídos do Processo nº236/10.6TBCMN ("Acção de Divisão de coisa comum"), que corre seus termos no Juízo de Competência Genérica de Caminha e no qual a Apelante é Autora, decorre que esta foi notificada, em 25/11/2011, da Contestação/Reconvenção apresentada bem como dos documentos que acompanhavam.
XI. Ou seja, independentemente de se considerar negócio simulado a venda por parte do Executado dos bens penhorados, a verdade é que tal venda (simulada ou não) era do conhecimento da Apelante desde o mencionado mês de Novembro de 2011. Apesar desse evidente conhecimento, a Apelante entendeu, no ano de 2016, apresentar nestes autos uma proposta, na sequência da qual lhe foram adjudicados os referidos bens.
XII. De entre todos os interveniente processuais (Tribunal, Exequente, Sr. Oficial de Justiça, etc.), considerando que a compra/venda (simulada ou não) não foi registada, a Apelante era a única que sabia que tais bens tinham sido alegadamente alienados pelo Executado, pelo que não pode tentar prevalecer-se juridicamente de um erro no qual não incorreu!
XIII. A Apelante apesar de , desde 2011, que fora outorgada uma escritura de compra e venda que, para além de outros, incluía os bens penhorados à ordem dos presentes autos, apresentou uma proposta de adjudicação desses bens em 2016, pagou o preço devido e registou a sua aquisição.
XIV. Com esse seu comportamento, a Apelante criou a convicção na Apelada de que o acto de transmissão era legítimo, de que se encontravam preenchidos todos os pressupostos e de que nenhum vício afectaria a venda.
XV. Vem agora a Apelada reclamar a restituição da importância por si paga, invocando um erro que a mesma sabe não se ter verificado. Com a sua actividade processual, a Apelada actua em manifesto abuso de direito, consubstanciado num evidente "venire contra factum proprium".
XVI. Litiga a Apelante nos presentes autos com manifesta má fé, nomeadamente ao persistir na afirmação de que desconhecia a "alienação" dos bens penhorados quando tal venda (simulada ou não) era já do seu conhecimento desde 25/11/2011.
XVII. Devendo, em consequência, ser a Apelada condenada como litigante de má fé, em multa e em indemnização à Exequente, a qual deverá ser fixada no preciso valor da proposta por aquela apresentada (ou seja, €14.920,00), nos termos do disposto nos art. 542º e 543º, ambos do CPC.

Termos em que deve o recurso de Apelação ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se a Douta Sentença recorrida, ou, assim não se entendendo, alargando-se o âmbito do recurso (nos termos do art636, nº1, CPC) e conhecendo-se do alegado nas Conclusões IX. a XVII., deverá negar-se provimento ao recurso (em face da actuação da Apelada com manifesto abuso de direito), condenando-se ainda a Recorrente como litigante de má fé, nos termos peticionados,
Assim fazendo V. Ex.ªs a esperada e costumada JUSTIÇA!

Quanto à ampliação do recurso por esta formulada, a recorrente retorquiu, concluindo:

1.ª - Todos os fundamentos invocados pela recorrida para efeitos de ampliação do âmbito do recurso - intempestividade, inexistência de erro, abuso de direito e máfé - foram já apreciados na 1.ª instância e fundamentaram a decisão recorrida, não sendo por isso permitida essa ampliação - vd. n.º 1 art.º 636.º CPC
2.ª - A recorrida só decaiu quanto à questão do abuso de direito / má-fé da recorrente, porém, aquilo que pretende com a ampliação não é a ponderação deste fundamento pela Relação, mas sim impugnar o sentido da decisão na parte em que ficou vencida, o que não é admissível e, aliás, exigia interposição de recurso independente ou subordinado - vd. n.º 1 do art.º 636.º e 633.º do CPC
3.ª - Não tendo a recorrida apresentado o competente recurso, a decisão proferida, nesta parte, transitou em julgado, não podendo, pois, ser reapreciada - vd. n.º 1 art.º 627.º e art.º 628.º CPC
4.ª - De resto, os fundamentos invocados pela recorrida - tempestividade do pedido de anulação da venda, erro sobre o negócio e abuso de direito - são já objecto do recurso apresentando pela recorrente, não carecendo, por isso, o recurso de qualquer ampliação.
EM CONFORMIDADE COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE - julgar-se não admissível a ampliação do objecto do recurso E ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA“.

No despacho a que alude o artº 641º, nº 1, CPC, o tribunal a quo, quanto à invalidade da decisão recorrida, limitou-se a negá-la e a declará-la improcedente. Admitiu o recurso, como de apelação, a subir de imediato, em separado, com efeito devolutivo.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos. Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, importa apreciar:

a) Se a decisão recorrida é nula, nos termos da alínea c), do nº 1, do artº 615º, CPC, por contrária à sua fundamentação e ininteligível por ambiguidade e obscuridade.
b) Se a decisão da matéria de facto deve ser modificada.
c) Se a venda executiva é anulável, nos termos do artº 838º, CPC.
d) Ou se é nula, nos termos do artº 892º, do CC.
e) Se, assim não se julgando e caso se admita a requerida ampliação do objecto do recurso, deve o requerimento ser considerado extemporâneo, julgar-se que a requerente não laborou em erro, age em abuso de direito e deve ser condenada como litigante de má-fé.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido, nesta sede, decidiu dever “considerar”, ou seja, elencar como factos julgados provados, os seguintes:

1- C. M. instaurou a presente execução contra B. L. em Novembro de 2010, visando a cobrança de alimentos em atraso e respectivos juros.
2- C. M. descreveu os "bens indicados à penhora" (fls. 3) da seguinte forma:
"1/9 parte indivisa - prédio urbano, composto de dois andares e rossio.
Comproprietários:
2/9 - Banco A CRL ...
3/9 - A. B. ...
3/9 - B. L.
Localização do Bem:
Venade Caminha
Prédio descrito sob o n° … - Conservatória do Registo Predial"
"1/9 parte indivisa - prédio urbano, composto de dois andares, 2 dependências e rossio.
Comproprietários:
2/9 - Banco A, CRL ...
3/9 - A. B. ...
3/9 - B. L.
Localização do Bem:
Venade Caminha
Prédio descrito sob o n' … - Conservatória do Registo Predial"
"1/9 parte indivisa - prédio rústico, composto de terreno de cultura e vinha.
Comproprietários:
2/9 - Banco A, CRL ...
3/9 - A. B. ...
3/9 - B. L.
Localização do Bem:
Venade Caminha
Prédio descrito sob o n' … - Conservatória do Registo Predial"
"1/9 parte indivisa - prédio rústico, composto de terreno de cultura e vinha.
Comproprietários:
2/9 - Banco A, CRL ...
3/9 - A. B. ...
3/9 - B. L.
Localização do Bem:
Venade Caminha
Prédio descrito sob o n' … - Conservatória do Registo Predial"
3- Após a penhora, foi agendada a abertura de propostas para o dia 12 de Dezembro de 2013 (fls. 240), Não sendo sucedida, foi determinada a venda por negociação particular (fls. 28D.
4- Em Maio de 2016, a exequente requereu a adjudicação das 4 verbas Cfls. 326).
5- Em 12 de Setembro de 2016, o Banco A apresentou proposta para aquisição - pelo preço de :€14.920,00 - e juntou cheque de valor correspondente a 5% do preço, tendo-lhe sido adjudicadas as verbas (fls. 349 ssl.
6- A 8 de Março de 2017 o Banco A veio comprovar o depósito do remanescente do preço (fls. 440).
7- E satisfeitas as obrigações fiscais, solicitou o título de transmissão, a 30/3 (fls. 450).
8- A 17 de Janeiro de 2018, veio o Banco A requerer a anulação da venda (fls. 498).
9- Corre termos no Juízo de Caminha acção de divisão de coisa comum C236/10.6TBCMN) instaurada pelo Banco A contra, entre outros, B. L.. A dita acção foi instaurada em 27 de Abril de 2010.
10- O Banco A deduziu [1] habilitação (apenso B) como adquirente de "1/9 indiviso que ... B. L. detinha nos ... 4 prédios". A habilitação foi instaurada em 26 de Junho de 2017.
11- A habilitação foi contestada - em 10 de Julho de 2017 - por A. M. e E. M., alegando terem adquirido a B. L. "o quinhão hereditário que lhe pertencia na herança ... indivisa aberta por óbito de sua avó, Maria, falecida ... a 16.10.2002, em Venade", quinhão esse que corresponde a 1/9 indiviso da herança.
12- A quota-parte de 1/9 adjudicada ao Banco A corresponde ao quinhão hereditário de B. L., havendo aquela respondido à contestação, em 18 de Setembro de 2017, que a "aquisição .,. de 1/9 .,. em .,. execução do TFM é .,. válida e eficaz".
1.3- O tribunal de Caminha julgou improcedente o incidente de habilitação. [2]
14- Em 18 de Janeiro de 2013 foi iniciado incidente de habilitação por apenso (A) à acção de divisão por A. M. e E. M.. [3][4][5]
15- Alegaram então: "por escritura ... outorgada em 27 de Outubro de 2009" adquiriram ao ... B. L. .,. "o quinhão que àquele pertencia na herança ... aberta por óbito de sua avó, Maria" (fls. 2, l).
16- A 31 de Janeiro de 2013, o Banco A apresentou [6] contestação, extraindo-se da mesma: "foi agora notificada ... do articulado ... com incidente de habilitação apresentado em Novembro de 2011 na acção principal… este apenso foi aberto com base nesse mesmo articulado ... Ora, em 15 de Dezembro de 2011, na acção ... apresentou resposta a este articulado ... alegou aí a simulação da cessão do quinhão ... em que se baseia este incidente ... dá por reproduzidos os pontos ... dessa resposta" (fls. 24). [7]
17- Consta de dita resposta do Banco A: "a autora é (apenas) dona de 2/9 indivisos, correspondentes ao direito e acção ... na herança indivisa de Maria ... ficou consignado nesta escritura [de 27.10.2009J que ... B. L. declarava vender ao ... A. M. ... o quinhão hereditário na herança indivisa por óbito de Maria ... o negócio representado nesta escritura foi maquinado ... no intuito de enganar os credores do referido B. L. e por isso é simulado .. B. L. ... nunca quis ceder/vender ... nem A. M. ... quis ... comprar esse quinhão ... B. L. não recebeu o valor de :€82.500,00 declarado nessa escritura ... as declarações ... divergem da vontade real de cada um dos outorgantes o" o negócio é nulo e de nenhum efeito".
18- A. M. e Esperança foram julgados "habilitados como adquirentes de Réu B. L." por decisão datada de 12 de Julho de 2013, constando daquela: "A Autora [Banco A] não arrolou qualquer prova e … sem qualquer suporte probatório … a oposição não pode senão improceder". [8]
19- Na acção de divisão, invocou o Banco A para adjudicação ou venda, haver adquirido na execução 688/2002, "2/9 partes indivisas" dos bens agora em causa, entre outros, a 15/04/2009.
20- A acção procedeu e foi determinada a venda dos bens.”.

Depois da “motivação” e antes da “fundamentação” consta o seguinte [9]:

“Não provado do teor da alegação do Banco A
o quinhão de B. L. na herança de Maria foi vendido a A. M. e mulher em 27 de outubro de 2009, pertencendo a terceiros aquando da adjudicação. ”

IV. APRECIAÇÃO

1. Enquadramento

Importa, antes de mais, para se enquadrar o apelo, lembrar que, de acordo com o relato inicial e em vista do requerimento de 17-01-2018 (fls. 167 a 170, do processo digitalizado), estamos no domínio de um processo executivo e no âmbito de típico incidente próprio da respectiva tramitação, previsto no artº 838º, do CPC actual (908º, do antigo).

Dispõe tal norma, sob a epígrafe “anulação da venda e indemnização do comprador”:

1 - Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil.
2 - A questão prevista no número anterior é decidida pelo juiz, depois de ouvidos o exequente, o executado e os credores interessados e de examinadas as provas que se produzirem.
3 - Feito o pedido de anulação do negócio e de indemnização do comprador antes de ser levantado o produto da venda, este não é entregue sem a prestação de caução; sendo o comprador remetido para a ação competente, a caução é levantada, se a ação não for proposta dentro de 30 dias ou estiver parada, por negligência do autor, durante três meses.”

Além desse caso, dispõe ainda o artº 839º, na alínea d), do seu nº 1, que a venda só fica sem efeito se a coisa vendida não pertencia ao executado e foi reivindicada pelo dono.

Apesar da controvérsia sobre a natureza da venda executiva [10], cremos que esta, apesar de o nº 2 se lhe referir como um “negócio”, não pode deixar de ser considerada como um “fenómeno essencialmente processual” [11] e, portanto, com as especificidades decorrentes do regime traçado naquele artigo, designadamente quanto aos pressupostos da sua anulação e ao esquema adjectivo dali decorrente, em cujo âmbito, portanto, aqui nos movemos.

Não se trata, porém, em tal norma, da anulação do acto propriamente dito nos termos, v.g., do artº 195º, CPC, nem de nulidade ou anulabilidade de um negócio jurídico, v. g., nos termos dos artºs 251º ou 892º, do CC, nem sequer de a venda ficar sem efeito nas diversas hipóteses previstas no artº 939º, CPC.

Trata-se de anulabilidade e não de nulidade da venda por erro sobre a coisa transmitida, erro este (sobre o objecto) confinado a uma espécie ou origem: falta de conformidade com o que foi anunciado (desconformidade esta que, para o caso, só releva sendo material, isto é, respeitante à identidade ou às qualidades do bem vendido [12]).

No dizer de F. Amâncio Ferreira “Há erro sobre a coisa transmitida quando o comprador, perante o anunciado, supõe adquirir o prédio A e adquire o prédio B ou quando adquire a coisa pretendida mas ela tem qualidades diversas das conjecturadas”. (13)

Refere-se, a propósito da interpretação e aplicação do nº 1, do artº 908º, do CPC (antecessor do actual 838º), mormente sobre o segundo dos respectivos fundamentos aí previstos, no Acórdão do STJ, de 17-06-2014 [14], que:

“O preceito contempla dois fundamentos de anulação da venda executiva que passam pelo reconhecimento, depois da venda, (i) “da existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou (ii) da existência “de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado”.
Ao caso em discussão interessa apenas a segunda das enunciadas causas de anulação, ou seja, a existência de erro sobre o objecto, na modalidade de «erro sobre a coisa transmitida».

Por contraposição à primeira daquelas causas, em que o erro incide sobre o objecto jurídico e consiste em vícios de direito (cfr. art. 905º C. Civil – vícios redibitórios), nestoutra contempla-se a hipótese de erro material acerca do objecto, vícios da coisa ou incidentes sobre a própria coisa (art. 251º C. Civil), em qualquer dos casos afectando a formação da vontade de comprar e que, “por isso, abortam à nascença o direito adquirido pelo comprador ou adjudicatário” (REMÉDIO MARQUES, “Curso de Processo Executivo Comum”, 371).

Este erro, sobre o objecto mediato do negócio, pode recair sobre a própria identidade do objecto (error in corpore) ou apenas sobre as suas qualidades (error qualitatis) e, como é também entendimento unânime na doutrina mais recente, goza de regime especial, na medida em que para a respectiva invocabilidade não se exige o requisito geral da essencialidade do erro para o declarante nem o da cognoscibilidade do mesmo pelo declaratário, entendimento e solução que encontram justificação na necessidade de proteger o adquirente “induzido em erro pela descrição do objecto da venda que é feita no próprio processo e assim garantida pelo tribunal” (vd. MOTA PINTO, “Teoria Geraldo Direito Civil”, 4ª ed., 507; M. TEIXEIRA DE SOUSA, “Acção executiva Singular”, 396; F. AMÂNCIO FERREIRA, “Curso de Processo de Execução”, 2ª ed., 285; J. LEBRE DE FREITAS e A. RIBEIRO MENDES, “CPC, Anotado”, vol. 3º, 609; REMÉDIO MARQUES, ob. cit.372).

Assim, suficiente para a procedência do pedido de anulação da venda é o reconhecimento de ter havido erro sobre a identidade da coisa alienada (transmitida) ou sobre as suas qualidades, por verificação de falta de conformidade (divergência) entre as características constatadas aquando da transmissão com as anunciadas (designadamente as vertidas nos editais e anúncios a que alude o art. 890º CPC).”.

Como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra, de 03-12-2012 (15):

I - No caso de existência de erro sobre a coisa transmitida, por desconformidade com o que tiver sido anunciado (n°1 do art. 908° CPC), a venda judicial é anulável independentemente da verificação dos demais requisitos de que a lei geral faz depender a anulação do negócio jurídico por erro (arts. 257º e 251º CC), sendo suficiente que a identidade ou as qualidades do bem vendido divirjam das que tiverem sido anunciadas.
II - Quanto o legislador fala em divergência com "o que foi anunciado", não quererá cingir-se à identificação do imóvel constante dos "anúncios", pretendendo com tal expressão abranger a identificação do imóvel resultante das várias diligências tendentes à divulgação da venda efectuadas pelo tribunal, nomeadamente a correspondência física que dele for fornecida pelo encarregado da venda.
III - Assim sendo, se o prédio penhorado e vendido não corresponder ao prédio que foi mostrado ao adquirente pelo encarregado da venda, será tal venda anulável ao abrigo do n°1 do art. 908º.”.

O pedido de anulação da venda é, assim, feito no próprio processo de execução, no prazo do artº 287º, CC, ou seja, “dentro do ano subsequente ao conhecimento do vício” [16], devendo o juiz decidir se tiver elementos para isso, ou, se estes forem insuficientes, remeter o comprador para a acção competente, conforme nº 3.

Ora, tendo o apelante requerido a anulação com fundamento em que o direito sobre a coisa, mesmo já antes de ser instaurada esta execução, fora vendido pelo executado a terceiro, por escritura pública de 27-10-2009, e que, portanto, ocorre “erro sobre a coisa transmitida”, resulta da decisão recorrida, em sede de factos apurados, que, na acção de divisão, apenso A, A. M. e esposa, além de terem contestado, requereram a sua habilitação para aí tomarem o lugar do aqui executado B. L. como adquirentes da quota deste, fundamentando-se na dita escritura intitulada de “cessão de quinhão hereditário”; o Banco A contestou, primeiro na acção e depois nessa habilitação, tal pretensão invocando a simulação de tal negócio (tal como já fizera antes), alegando que foi uma maquinação para enganar os credores, nenhuma das partes quis vender/comprar, nenhum preço foi pago; não obstante, aqueles foram julgados habilitados, com fundamento na referida transmissão, pressuposta como válida por nenhuma prova ter sido oportunamente indicada nem produzida quanto à simulação, por isso considerada improcedente; semelhantemente, no apenso B, o próprio Banco A, após lhe ter sido adjudicado nesta execução a quota de 1/9, requereu a sua habilitação, para nela tomar o lugar do executado B. L., como adquirente; novamente A. M. e esposa alegaram, opondo-se-lhe, ter já adquirido a quota deste e sido habilitados em lugar dele no Apenso A, e, portanto, que nem sequer tinha sentido a habilitação ora requerida por aquele ter deixado de ser parte em tal processo; o Banco A respondeu que a sua aquisição (na execução) de 1/9 era válida e eficaz; e novamente o tribunal julgou não habilitado o Banco A, considerando, para tal, que o dito B. L., em consequência do decidido no apenso A, já não era parte.

Nos dois apensos, portanto, o Banco A foi, na referida ocasião e por tal via, confrontada com a escritura e, apesar de alegar a sua invalidade, por simulação, com as decisões que, no primeiro caso, não acolheram o alegado vício por falta de prova e, no segundo, por força do respectivo caso julgado, por o executado B. L. já ter deixado de ser parte.

Logicamente, em ambas as situações, tomou, primeiro, posição conducente à validade da penhora e da venda judicial na execução do quinhão de 1/9, mostrando-se convencida de que a transmissão do executado B. L. para o A. M. e esposa era alegadamente simulada e, portanto, sem o efeito de despojar aquele do direito penhorado e que acabou por lhe ser vendido na execução.

Porém, baseando-se no decidido, mormente quanto à segunda habilitação que ela própria deduziu, deu o dito antes por não dito e, admitindo e defendendo agora a validade da venda de 27-10-2009, pretende que foram penhorados bens alheios na execução (por o executado já os ter transmitido validamente, não lhe pertencerem, logo não ter legitimidade para deles dispor) e, consequentemente, que o tribunal fez uma venda a non domino, nula, uma vez que nemo plus juros in aliena transfere potest quam ipse habet.

Neste contexto, o tribunal recorrido, enveredando por seleccionar (relatar) e dar como provados os factos respeitantes ao procedimento nos diversos processos, posições nele defendidas pelos interessados e decisões proferidas, estranhamente, ora na motivação ora no seu epílogo, considerou não se ter provado a realidade da venda pelo executado B. L. ao A. M., ou seja, que não se provou o contrário do que até agora o Banco A alegara, ou seja, a simulação, nem, portanto, o “teor da alegação” ou da “actual posição” do Banco A (a dita realidade).

Cremos que partiu de um erro básico, gerador de confusão e que despoletou a, pela recorrente alegada contradição e a ininteligibilidade da decisão por ambiguidade ou obscuridade, alegação que se compreende mas não tem fundamento, ocorrendo sim, mas apenas, um manifesto erro de enquadramento do problema e de perspectiva sobre a sua solução pelo tribunal a quo, que todavia não o desvio da correcta solução final.

Com efeito, recorde-se que o Banco A pediu a anulação da venda com base em erro sobre a coisa transmitida, nos termos do artº 838º, nº 1.

Tal erro, segundo ela, consiste no facto de já ter sido vendido antes, pelo executado, através da escritura de 27-10-2009, o direito depois penhorado neste autos e que acabou por lhe ser adjudicado, ou seja, venda de coisa alheia.

Naturalmente, em função das regras da prova, impende sobre ela o ónus de provar o referido negócio translativo.

Conquanto o referido meio – a escritura pública – já conste dos autos e dela, nos termos dos artºs 371º, nº 1, 393º, nº 1, CC, resultem plenamente provadas as declarações dos outorgantes e nem sequer seja admitida prova testemunhal sobre elas, mas sendo certo que, neste incidente, ninguém arguiu a simulação daquele negócio (a exequente limitou-se a alegar que a arguição da nulidade da venda é extemporânea, que antes da proposta de compra já o Banco A sabia da venda e que, por isso, não existe erro mas sim abuso de direito e má fé), o tribunal, sabendo do que, entretanto, já ocorrera na acção de divisão de coisa comum, inquiriu as testemunhas sobre o contrato de compra e venda e sobre a sua veracidade, como tema de prova (correspondência da vontade declarada com a real).

Em face disso, concluiu nada se encontrar nos depoimentos nem nos autos que “permita sustentar a realidade contrária à que até ao presente mereceu a adesão do Banco A, a de que não existiu nem vontade de comprar nem vontade de vender o nono da herança”.

Ou seja: tendo o Banco A, até então, defendido a simulação e agora, no incidente, a veracidade, não encontrou o tribunal, nos depoimentos, prova desta…

E, assim, da sua posição actual, pois “Nada permite acompanhar a actual posição do Banco A de que A. M. terá efectivamente procedido à aquisição”.

Aliás, considerou o tribunal ser “desconhecida a motivação para o abandono da consideração da escritura como nula e resultante de maquinação/simulação.”.

Daí que considere “Não provado o teor da alegação do Banco A”, alegação esta feita no incidente.

Ou seja, não provado que “o quinhão de B. L. na herança de Maria foi vendido a A. M. e mulher em 27 de outubro de 2009, pertencendo a terceiros aquando da adjudicação”.

Temos, portanto, de um lado a escritura, verdadeira e válida, já que não foi posta em causa a sua autenticidade nem a das declarações nela vertidas, nem agora alegada, muito menos comprovada, a simulação.

Temos, por outro, o tribunal a considerar que, tendo antes o Banco A alegado a simulação e a nulidade da compra e venda, não vê motivo para ela ter mudado de posição porque os depoimentos e os autos em “nada” permitem sustentar a sua realidade.

Tudo isto, apesar de subsistir a escritura pública …!

Vejamos o que na “motivação” (da decisão de facto) se escreveu:

“o teor de 1- a 8- extrai-se dos presentes e corresponde à matéria alegada pelo Banco A na secção I Cfls. 498 VO). O valor indicado pelo Banco A Cfls. 499) não coincide com o preço por ela proposto Ce aceite) em Setembro de 2016 C5-).
O elencado de 9- a 13- corresponde às secções II e III do alegado pelo Banco A Cfls. 499) e extrai-se do teor da acção de di visão CCaminha) e apensos.
A matéria de 14- ss corresponde ao alegado pela exequente e é ilustrado pelo teor da acção de di visão e apensos.
Foram ponderados os depoimentos de A. M. e E. M., que reafirmaram a compra do quinhão hereditário do executado. Concorrem ambos interessados contra o Banco A quanto à titularidade do nono da herança. Recorda-se que no processo de Caminha não conseguiram esclarecer o pagamento do preço ao executado, invocando caber a prova ao Banco A do não pagamento e alegando, sem precisão, haver satisfeito dívidas de B. L.. Não se encontra explicação para a alegada compra, geradora de bastantes problemas (como seria previsível a um adquirente normal) como reconhece A. M.. Nada se encontra nos depoimentos, nem nos autos que permita sustentar a realidade contrária à que até ao presente mereceu a adesão do Banco A, a de que não existiu nem vontade de comprar nem vontade de vender o nono da herança.
A. B., tia do executado e filha da autora da herança, não chegou a saber que o sobrinho tinha vendido a parte na herança da avó e só pela intervenção em processo veio a ouvir falar em venda.
Nada permite acompanhar a actual posição do Banco A de que A. M. terá efectivamente procedido à aquisição, sendo desconhecida a motivação para o abandono da consideração da escritura como nula e resultante de maquinação/simulação.
Não provado do teor da alegação do Banco A
O quinhão de B. L. na herança de Maria foi vendido a A. M. e mulher em 27 de outubro de 2009, pertencendo a terceiros aquando da adjudicação”.

Percebe-se, pois, que, neste incidente:

-o Tribunal a quo, erradamente, entendeu que era necessário que o Banco A, por antes ter alegado a simulação, agora provasse a realidade do negócio, apesar e para além da escritura válida;
-que, por isso, afigurando-se-lhe esta realidade como duvidosa face ao teor dos depoimentos testemunhais e não obstante tal escritura, prevalece a alegação da simulação e, assim, julgou, erradamente, não provada aquela, sem atender à força probatória plena legalmente conferida ao documento e que nem o Banco A nem a exequente C. M. – no incidente, repete-se – alegaram a falsidade dela nem a simulação do negócio formalizado.

Foi segundo este quadro metodológico e circunstancial e pressupostos de direito probatório material e, assim, sem nada decidir, de facto, quanto à simulação/veracidade da escritura que o tribunal a quo, acabando por onde devia ter começado, já que a questão da tempestividade do incidente e do conhecimento da venda anterior à execução era prévia, por, no capítulo do direito, considerar improcedente a pretensão do Banco A (nulidade da venda), quer por ser extemporânea, quer por desde Dezembro de 2011 ela ter conhecimento da dita escritura (não havendo erro nem podendo contraditoriamente alegá-lo) quer, enfim, por não provar que a venda foi real quando antes alegara ser simulada.

Assim, no capítulo do direito, fundamentou desta modo o decidido:

“O Banco A pretende a rescisão da venda efectivada na presente execução instaurada por C. M. contra B. L. por, no seu entendimento ter ocorrido erro quanto à coisa transmitida.
A lei faculta a pretendida anulação nas circunstâncias indicadas no artigo 838º CPC: desconformidade entre o bem anunciado para venda e o bem realmente adquirido ou existência de limitação ou ónus, além da normalidade, cuja existência não haja sido considerada, vindo a constituir surpresa para o adquirente na execução.
O argumento para o erro invocado: os bens penhorados e vendidos não pertenciam ao executado, haviam sido vendidos em 2009 a A. M. e esposa e o Banco A pagou e não os adquiriu.
A pretensão do Banco A esbarra em dois obstáculos: o tempo e o conhecimento cabal relativamente ao bem vendido nos autos.
O Banco A adquiriu em execução (n.688/2002) em Abril de 2009, "2/9 partes indivisas" dos bens da presente execução, além de outros, integrantes de herança da avó de B. L., aqui executado.
Em Abril de 2010 o Banco A iniciou acção de divisão de coisa comum (n.236/10.6TBCMN) ainda em curso, visando pôr termo à indivisão.
Em Janeiro de 2013, A. M. e esposa iniciaram incidente de habilitação, argumentando com a aquisição, por escritura de outubro de 2009, da fracção de 1/9 a B. L..
Logo nesse mesmo mês, o Banco A respondeu ao incidente, remetendo para a resposta pertinente, já levada aos autos de divisão, em 15 de Dezembro de 2011. E repetiu a já então alegada "simulação da cessão do quinhão", pois segundo ela, "dona de 2/9 indivisos, correspondentes ao direito e acção ... na herança indivisa ... o negócio representado nesta escritura [B. L. declarava vender a A. M. o quinhão hereditário] foi maquinado o.' no intuito de enganar credores ... é simulado". E adianta a ausência de vontade de vender e de comprar e a ausência de pagamento do declarado preço e que "o negócio é nulo e de nenhum efeito".
Desde Dezembro de 2011 que o Banco A é conhecedora da escritura pela qual B. L. declarava vender o seu quinhão hereditário (1/9) a A. M. e esposa, e sempre, até pelo menos ao dia 18 de Setembro de 2017, considerou o negócio entre aqueles como "nulo e de nenhum efeito".

O Banco A não trouxe qualquer elemento demonstrativo de que a escritura correspondeu a uma real venda, esta não ficou comprovada no processo de divisão nem nos apensos e nenhum argumento adiantou o Banco A que justificasse a inversão da sua posição, no sentido de passar a ter como correspondente à realidade o teor da escritura de 27 de outubro de 2009.
o bem cuja venda se concretizou nos presentes em 12 de Setembro de 2016 foi devidamente identificado e a escritura na qual agora (Janeiro de 2018) o Banco A funda a alegação de venda de "bens alheios" é conhecida daquela desde Dezembro de 2011.
Ao formalizar a proposta de aquisição (fls. 349) em Setembro de 2016 não é admissível que o Banco A esquecesse ou não tivesse em consideração que terceiro se arrogava - há anos - titular de nono do quinhão.
"A rescisão da venda por causa de erro só pode ser pedida dentro de um ano contado da data em que o adquirente tiver tido conhecimento dele" (Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, Almedina, Coimbra 1992, p. 594) nos termos do artigo 287° CC.
Não existe qualquer erro por banda do Banco A ao adquirir mais 1/9 de quinhão, por ser já do conhecimento desta a existência de escritura que referia venda do referido 1/9.
Não se encontra justificação para considerar enfermar de má-fé a presente intervenção do Banco A. ”

Posto isto, estamos em condições de, então, apreciar a alegada nulidade da decisão.

2. Nulidade

O tribunal recorrido, tendo em vista cumprir a obrigação de se pronunciar sobre ela, nos termos dos artºs 641º, nº 1, e 617º, nº 1, CPC, limitou-se a referir tabelarmente que ela improcede por “não encontrar” fundamento para “aceitar a referida enfermidade”.

Apesar do alegado pela recorrente, não diz ele porquê.

Não enfrentou, nem ponderou, nem valorou, ou seja, não chegou a “apreciar”, como manda a lei, perante o caso concreto, as razões esgrimidas pela apelante e, assim, não decidiu fundamentadamente, como também manda a lei (em geral – artº 154º, nº 1; e, nesta situação, em particular – artº 617º, nº 1, tudo de modo a convencer as partes e a habilitar o tribunal superior a cabalmente reapreciar a questão), por que é que entende inexistir a alegada contradição ou ininteligibilidade, apesar de, sobretudo quanto a esta porque relacionada com obscuridade ou ambiguidade, se tratar de hipótese normativa em que, porventura, mais sentido faz que o seu autor a aprecie de modo a explicar e esclarecer o exacto sentido e a coerência lógica do que decidiu ou a suprir qualquer falha, se for o caso.

A tal não pode, por isso, deixar de equiparar-se a omissão a que alude o nº 5, do artº 617º.

Considera-se, porém, dispensável mandar baixar o processo, porquanto, com alguma persistência é certo, consegue-se perceber o iter da decisão criticada, o raciocínio subjacente e relacionar com eles o desfecho e concluir que, como já atrás se adiantara, apesar de “enfermar” de um erro, não está a decisão realmente “vitimada” de nulidade (na expressão do Mº Juiz).

Vejamos.

As deficiências de ambiguidade ou obscuridade geradoras de ininteligibilidade estavam, no CPC anterior, previstas na alínea a), do nº 1, do artº 669º, fora das causas de nulidade da sentença. Tais situações, se justificadas, implicavam apenas o seu esclarecimento.

Definindo-as, escrevia Rodrigues Bastos que a obscuridade é a imperfeição da sentença que se traduz em ininteligibilidade e que a ambiguidade se verifica quando à decisão, em certo passo, podem razoavelmente atribuir-se dois ou mais sentidos. [17]

Sucede que no novo Código de Processo Civil o preceito que equivale àquele é o artigo 615.º, n.º 1, alínea c), in fine, que considera nula a sentença quando “…ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

De facto, os actos processuais que hajam de reduzir-se a escrito devem ser redigidos de maneira a tornar claro e suficiente o seu conteúdo – artº 131º, nº 3.

A norma actual equipara, assim, em termos de patologia, diagnóstico e terapêutica, à oposição propriamente dita entre os fundamentos e a decisão, as situações em que exista alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, ou seja, as situações em que nos deparamos com uma obscuridade (não se percebe, não é claro, é difícil e incerto entender) ou ambiguidade (é possível mais do que uma interpretação ou leitura, tornando variável ou indefinido o sentido a considerar) tais que tornem a decisão em si mesma ininteligível (não possui a congruência, clarividência e certeza que é suposto existir numa escorreita decisão judicial destinada a impor uma consequência jurídicas às partes e a convencê-las da sua bondade e justiça).

A norma actual, ao contrário da anterior, não refere “alguma ambiguidade ou obscuridade” expressamente à decisão ou aos seus fundamentos. Tão só àquela, genericamente.

Também não estabelece qualquer graduação do vício, embora as consequências fossem, antes, apenas o esclarecimento e sejam agora a nulidade.

Afigurando-se, no entanto, contemplar no seu âmbito, “qualquer” desses dois vícios e referir-se igualmente tanto à própria decisão como aos seus fundamentos (de facto ou de direito), exige-se que eles tornem aquela, mais do que duvidosa e sombria nos seus termos e sentido, verdadeiramente ininteligível.

Para além de disciplinar a invocação de tais falhas ou deficiências, esta alteração legislativa pretendeu também atenuar o entendimento antes sedimentado sobre o vício da oposição entre os fundamentos e a decisão.

Com efeito, tradicionalmente, com apoio na interpretação de Alberto dos Reis (18), entendia-se que esta nulidade apenas ocorria quando a construção da sentença era viciosa, isto é, quando “os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto”.

E distinguia-se, como faremos a propósito da primeira parte da norma da alínea c), do nº 1, do artº 615º, entre a oposição geradora da nulidade e o mero erro de julgamento, sustentando que o facto de a decisão radicar numa construção jurídica errónea não gerava nulidade, apenas a necessidade de alterar a decisão ou mesmo revogá-la em conformidade com a construção jurídica correcta, sendo necessário, para se estar perante a nulidade, que os fundamentos apresentados só pudessem conduzir, necessariamente, isto é, de acordo com um raciocínio lógico-jurídico inquestionável, a uma única decisão e a decisão proferida fosse, contudo, diferente dessa.

Esta posição tradicional deixava de fora do âmbito da nulidade e, consequentemente, do respectivo efeito, maxime ao nível da intervenção correctiva pelo tribunal superior, situações em que não era possível afirmar a existência da invocada oposição entre os fundamentos, ainda que a fundamentação e a decisão fossem obscuras ou ambíguas e em que, não tendo já sido requerida nem colmatada em 1ª instância e uma vez afastada a via da nulidade, ficava o tribunal de recurso impossibilitado de corrigir a sentença, pela via da obscuridade ou ambiguidade.

Por seu turno, a oposição entre os fundamentos e a decisão integrava antes o vício causador de nulidade previsto na alínea c), do nº 1, do artº 668º . Passou, com idêntica sistematização para o artº 615º, mas abrangendo-se agora em tal norma a ininteligibilidade, como se viu.

É frequente, por tudo e por nada, referirem-se às sentenças, indistinta e confusamente, contradições que realmente não existem ou juridicamente o não são e que, no fim de contas, apenas se apresentam como resultado inconsequente da veemência com que, mediante prolixas alegações e densas conclusões, se pretende manifestar o inconformismo e não acatamento da decisão e, para tal, defender que, com os fundamentos ajuizados, a decisão não devia ter sido a que foi (contrária aos interesses do apelante), mas outra (favorável aos mesmos).

Comportando a sentença, hoje, diferentemente de antes, duas distintas decisões – a da matéria de facto e a da matéria de direito –, é ponto assente que cada uma delas, podendo conter erros ou invalidades, está sujeita a pressupostos e a regimes diversos no respectivo recurso.

O da primeira resulta, principalmente, do artº 662º. Na alínea c), do nº 2, lá está prevista a contradição da decisão sobre pontos de facto.

O da segunda, sobretudo, do artº 639º, nº 1. No artº 615º, estão elencadas as causas típicas de nulidade e, entre estas, na alínea c), do nº 1, a oposição entre os fundamentos e a decisão.

Relativamente à primeira, como sugere Abrantes Geraldes, citando doutrina e jurisprudência a tal propósito [19], há respostas ou factos contraditórios quando uns e outros colidem, quando não podem subsistir por logicamente incompatíveis.

A contradição, como também se referiu no Acórdão da Relação do Porto, de 10-04-2014 (20), “ocorre quando dela própria resultarem realidades incompatíveis, e não da sua motivação. Tal não se confunde com erro de julgamento.”

Quanto à segunda, tal vício pressupõe, como se colhe do que têm dito e redito a Doutrina e a Jurisprudência, que, no epílogo do processo lógico [21] em que se manifesta a operação de subsunção dos factos às normas jurídicas convocadas, de per se revelador de um determinado itinerário e da solução expectável, se profira, afinal, decisão dele divergente ou oposta só explicável por uma ostensiva, enviesada e inesperada desconformidade do raciocínio com as premissas utilizadas, viciando-a.

A contradição consiste em afirmar coisas de sentido contrário. A oposição refere-se, mais amplamente, ao resultado de um juízo logicamente incompatível com os seus termos.

Os factos (ser) respeitam a expressões empíricas da vida real componentes de um quadro em torno do qual se cruzam os interesses das partes e, por isso, carente de regulação pelo Direito.

A decisão (dever ser) exprime o resultado do juízo de valor ou relevo normativo daqueles (operação intelectual sobre realidades ou com instrumentos diferentes, logo dificilmente susceptíveis de se contrariarem), concedendo ou não a regulação pretendida.

Só quando estes (resultado/decisão/regulação) já ressumam dos próprios factos ou daquela operação como evidentes, consequentes e necessários mas, apesar disso, os afirmados se apresentam manifesta e logicamente contrários ao esperado, é que se verifica oposição constitutiva de um vício grave no juízo, invalidante da própria sentença e, por isso, não qualificável como mero erro de julgamento.

Tal vício gera anulação daquela (porque não pode ser). Não suscita apenas correcção deste (do que deve ser).

Assim, a “A lei refere-se … à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão…há um vício real no raciocínio do julgador (…): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”. (22)

Como, a tal propósito, se refere no Acórdão do STJ, de 30-05-2013 (23):

“I- A contradição a que a lei impõe o efeito inquinatório da sentença como nulidade, é a oposição entre os fundamentos e a decisão – art.º 668º, nº 1, al. c) do CPC.
II- Porém, para que tal ocorra, não basta uma qualquer divergência inferida entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência pode consubstanciar um mero erro de julgamento (error in judicando) sem a gravidade de uma nulidade da sentença. Como escreve Amâncio Ferreira «a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento» (Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª edição, pg. 56).
III- A contradição entre os fundamentos e a decisão prevista na alínea c) do nº 1 do art.º 668º, ainda nas palavras do citado autor, verifica-se quando «a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo Juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente».”

O resultado errado mas logicamente possível não constitui vício de nulidade, pois “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário(24).

Ora, olhando ao que, no caso aqui em apreço, quanto a esta questão, alega a apelante e ao teor da sentença, verifica-se que nenhuma verdadeira e relevante contradição obscuridade ou ambiguidade nela existe subsumível à previsão da alínea c), do nº 1, do artº 615º, CPC.

Diz a apelante sobre isto, nas suas alegações:

“Analisada a decisão recorrida, neste segmento, afigura-se-nos que existe contradição entre a fundamentação e a decisão, vislumbrando-se, igualmente, uma ambiguidade ou obscuridade que a tornam ininteligível.

Vejamos.

O tribunal a quo julgou não provado que “o quinhão de B. L. na herança de Maria foi vendido a A. M. e mulher em 27 de Outubro de 2009, pertencendo a terceiros aquando da adjudicação.”

Independentemente da impugnação desta concreta matéria de facto sobre a qual nos iremos debruçar de seguida, importa aqui notar que, da leitura da sentença recorrida não se consegue compreender o raciocínio lógico que esteve na base da decisão do tribunal a quo ao ter concluído pela não prova de tal factualidade, sendo, pois, nesta parte, manifestamente contraditória e ambígua a motivação /fundamentação expressa na douta sentença.

Como ensina Remédio Marques, in “Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto”, 3.ª Edição, pág. 667, “a ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos”, e “a obscuridade, de acordo com a jurisprudência e doutrinas dominantes, traduz os casos de ininteligibilidade da sentença.”

Ora, lê-se na motivação da sentença recorrida que “Foram ponderados os depoimentos de A. M. e E. M. que reafirmaram a compra do quinhão hereditário do executado. Concorrem ambos interessados contra o Banco A quanto à titularidade do nono da herança. (…)
Nada se encontra nos depoimentos, nem nos autos que permita sustentar a realidade contrária à que até ao presente mereceu a adesão do Banco A, a de que não existiu nem vontade de comprar nem vontade de vender o nono da herança.”

Ou seja, o Mm.º Juiz a quo, no fundo, e em consonância com os factos que deu como provados, designadamente, nos pontos 14, 15 e 18, reconhece que o quinhão hereditário que pertencia ao executado B. L., na herança indivisa aberta por óbito de Maria, foi vendido a A. M. e mulher em 27 de Outubro de 2009.
Porém, contrariando totalmente este reconhecimento expresso, o Mm.º Juiz a quo julga “não provada” esta venda.

Na verdade, prosseguindo a leitura da motivação da sentença recorrida, constata-se que, desdizendo o inicialmente avançado, o Mm.º Juiz a quo conclui que “Nada permite acompanhar a actual posição do Banco A de que A. M. terá efectivamente procedido à aquisição (…).”
É, por isso, manifestamente ininteligível o pensamento do Mm.º Juiz a quo, na medida em que comporta dois sentidos distintos e opostos.
Fica, portanto, por perceber qual a convicção exacta do Mm.º Juiz a quo, no sentido de saber se considera que o referido quinhão hereditário que foi pertença do executado, foi ou não vendido a A. M. e mulher, em data anterior à adjudicação feita nos autos à recorrente.
A motivação e fundamentação da douta sentença recorrida não permite, por isso, compreender a decisão proferida, particularmente, no que respeita à factualidade não provada.
Há, pois, uma manifesta contradição e ambiguidade na motivação /fundamentação expendida pelo Mm.º Juiz a quo, que acarreta a nulidade da sentença - cfr. al. c) do n.º 1 do art.º 615.º CPC”.[25]

Como já mais atrás se salientou ao enquadrar o problema e ao analisar a decisão quanto a ele preconizada pelo tribunal recorrido, percebe-se que, alegando o Banco A, agora, neste incidente, a validade e eficácia da venda feita pelo executado B. L., em 27-10-2009, a A. M., de modo a fundamentar que o bem penhorado e que lhe foi adjudicado era, afinal, coisa alheia, o tribunal recorrido, impressionado pela circunstância de, antes, na acção de divisão e incidente de habilitação, ter, contrariamente, alegado que a mesma venda era simulada e, por efeito disso, o bem teria permanecido como coisa própria do referido devedor/executado, entendeu que, independentemente disso, o que o Banco A, no incidente e para efeitos desta, tinha de provar era não apenas que foi penhorada e vendida coisa alheia por antes o executado a ter validamente alienado a terceiro, mas também que, tendo ela defendido outrora a sua simulação, devia agora, não obstante a escritura pública e o que, não sendo ela impugnada, dela resulta, para justificar e se poder aceitar a sua mudança de posição, provar que efectivamente a venda de 27-10-2009 foi real, verdadeira … .

E, como o tribunal recorrido, apesar da escritura – repete-se –, entendeu que dos autos e dos depoimentos testemunhais tomados, não resulta demonstrada efectivamente tal realidade (a correspondência entre a vontade real do B. L. e do A. M. quando declararam nela vender e comprar), decidiu julgar “não provada” tal venda e, portanto, indemonstrada agora uma “realidade contrária” àquela que até ao presente fora a esgrimida pelo Banco A (ou seja, a simulação).

Percebe-se o fio do raciocínio e o seu epílogo.

Embora custe, face ao patente erro de enquadramento do problema, à desconsideração dos requisitos do incidente de anulação da venda executiva previstos no artº 838º, nº 1, do CPC, do verdadeiro ónus que, deduzindo-o, o Banco A tomou sobre si e, enfim, do contorno das regras legais relativas à força probatória da escritura pública não impugnada neste incidente.

É que uma coisa é a relevância das posições contraditórias antes e agora tomadas pelo Banco A quanto à validade da escritura em sede de legitimidade para arguir a invalidade da venda executiva, de boa-fé processual, de verificação da realidade e seriedade do erro que constitui pressuposto daquela e da tempestividade na sua invocação.

Outra coisa, são os factos.

E é facto que a escritura pública de venda existe. Não foi aqui alegada, muito menos demonstrada, a sua falsidade ou a simulação do negócio através dela formalizado. Portanto, independentemente da perplexidade ou até censura que a posição contraditória do Banco A possa merecer, ela subsiste.

Não podem os seus efeitos legais, designadamente probatórios, deturpar-se em função do que, porventura, até se prefigure como o resultado justo mas por outros diversos fundamentos jurídicos, como, aliás, no caso sucedeu.

Por errada, enfim, que seja a perspectiva adoptada, a linha de raciocínio seguida e a fundamentação construída para a decisão tomada, não se verifica contradição: julgada não provada a realidade da venda de 27-10-2009 e subsistente a alegação da simulação, o bem continuou – segundo o tribunal recorrido – na esfera jurídica do executado. Não se deu por demonstrada, por isso, penhora e venda, na execução, de coisa alheia. Logo, improcedeu o pedido de anulação desta.

Nem se verifica ininteligibilidade, por obscuridade ou ambiguidade. Percebem-se os termos e o sentido do raciocínio que esteve na base e conduziu à decisão, designadamente de julgar como não provado que a venda realmente ocorreu em 27-10-2009.

Errado foi considerar que, dada a posição anterior do Banco A, não poderia ela valer-se agora da invocação da escritura pública nem da validade da venda e que, portanto, esta, enquanto facto, não podia dar-se como assente.

Não há, pois, nulidade da decisão.

Nem mesmo da de facto propriamente dita, nos termos da alínea c), do nº 2, do artº 662º.

Nesta norma se prevê que a decisão da matéria de facto deve ser alterada, ou anulada se não houver elementos para tal, em caso de deficiência, obscuridade ou contradição dela sobre pontos determinados da respectiva matéria.

Ora, se bem virmos, o tribunal a quo limitou-se, no elenco dos factos provados (pontos 1 a 20), a relatar os termos do processo executivo, do presente incidente, da divisão de coisa comum e dos dois incidentes de habilitação à mesma apensos. E, no dos não provados, a referir que não se provou que o quinhão tenha sido realmente vendido em 27-10-2009. Nem sequer deu por assente o negócio formalizado e respectiva escritura pública.

Portanto, também por aí não se perspectiva nulidade.

Assim, improcede a primeira questão recursiva.

3. Modificação da matéria de facto

Relativamente à segunda, defende a apelante que deve modificar.se a decisão de facto e dar-se como provado que “o quinhão hereditário que pertencia ao executado B. L., na herança indivisa aberta por óbito de Maria, foi vendido a A. M. e mulher em 27 de Outubro de 2009, a estes pertencendo aquando da adjudicação à recorrente”.

Sustenta, em face da escritura pública respectiva, de a mesma, neste incidente, não ter sido impugnada a qualquer título, de aqui não ter sido alegado nem provado que houve, por simulação, divergência entre as vontades de ceder e de adquirir nela vertidas, da sua eficácia probatória legalmente tabelada e, enfim, do que já a tal propósito ocorreu e se decidiu na acção de divisão de coisa comum e seus apensos de habilitação, ademais do que se colhe dos depoimentos testemunhais gravados, que resulta provada aquela factualidade.

Por mais certos que sejam tais argumentos e razoável a conclusão a partir deles tirada pela recorrente, maxime quanto à escritura e sua força probatória, a verdade é que qualquer alteração na decisão da matéria de facto sempre redundaria em pura inutilidade pelo que a seguir será referido.

E, como tem sido referido na Jurisprudência, cfr., por exemplo, o Acórdão da Relação do Porto, de 19-05-23014 (26), “A reapreciação da decisão da matéria de facto visa obter um sustentáculo fáctico para uma certa solução para uma dada questão de direito, pelo que se a matéria de facto cuja reapreciação se requer é inócua à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito, deve o tribunal ad quem indeferir essa pretensão, por força da proibição da prática no processo de actos inúteis.”

Daí que deva improceder a pretendida alteração.

Vamos agora ao Direito.

4. Anulação da venda executiva

4.1.Em primeiro lugar, por tudo quanto inicialmente se expôs, sobre os pressupostos do incidente deduzido e lembrando-se que ele o foi ao abrigo do disposto no nº 1, do artº 838º, CPC, devia ter sido o mesmo liminarmente rejeitado.

Com efeito, invocou-se, a pretexto de o bem ter sido vendido pelo executado a terceiro antes de penhorado na execução e nesta ter sido adjudicado à apelante, que houve “erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado” – um dos dois fundamentos naquela norma previstos – e, portanto, pediu-se a anulação da venda executiva.

Ora, manifestamente, tal situação configura uma venda de bem alheio e não se confunde com aquela previsão legal.

Como acima se explicou e justificou, na desconformidade em causa não cabe a venda de coisa alheia.

Desconformidade/aleatoriedade e anulabilidade/nulidade são coisas diversas, quanto aos pressupostos e ao regime legal.

O bem adjudicado corresponde, inquestionavelmente, ao que, neste processo, foi anunciado, pretendido comprar e comprado pela recorrente.

Se, de facto, a coisa vendida pertencia, sem dúvida, a terceiro, para a venda, na execução, ficar sem efeito necessário era que, nos termos do artº 839º, nº 1, alínea d), tivesse sido este – e não foi – a reivindicá-la aqui.

De resto, o problema da nulidade da venda de 27-10-2009 só pode ser tratado e decidido no confronto também do vendedor e do comprador (no incidente apenas estão a credora exequente que requereu a penhora e o adquirente a quem na execução ele foi adjudicado) e em função das regras de direito substantivo atinentes – artºs 892º, 894º e 825º, do CC – e sem perder de vista as do registo predial.

Na verdade, a penhora da quota de 1/9 e sua aquisição foram registadas. Ignora-se se a compra em 27-10-2009 pelo A. M. e esposa o foi. O jogo das regras nisto implicadas, como se sabe, implica resultados que aqui não cabe analisar.

Daí que, como se disse, liminarmente pudesse ter sido logo afastada a hipótese de anulação da venda executiva com o fundamento invocado neste incidente, assim de indeferir.

Mas mais.

4.2.O tribunal recorrido, tendo começado por anunciar, na parte de direito, que a pretensão do Banco A esbarrava com o obstáculo do tempo, só marginalmente se lhe referiu no fim mencionando, através da citação de Lopes Cardoso, tirada do Manual da Acção Executiva, que ela só podia ser pedida dentro de um ano contado da data em que o adquirente teve conhecimento do erro.

Ora, não há dúvida que, quando, em 17-01-2018, o Banco A deduziu o incidente de anulação, há muito tinha ela conhecimento da venda ocorrida pela escritura de 27-10-2009.

Teve-o quando, na acção de divisão de coisa comum, face ao articulado de contestação nela introduzido em 24-11-2011, por A. M. e esposa, deste foi notificada e, quando à aquisição por eles alegada pela escritura de 27-10-2009, ela respondeu, com data de 15-11-2011, que tal venda – de que portanto ficou ciente – era simulada.

Reafirma-se esse conhecimento quando, autuado por apenso (A) o incidente de habilitação requerido naquele articulado pelo A. M. e esposa, o Banco A, em 31-01-2013, contestou tal incidente.

Bem assim quando, já depois de lhe ter sido adjudicado o bem penhorado e com tal fundamento ter requerido a sua habilitação em lugar do executado B. L. na acção de divisão de coisa comum, aqueles o contestaram novamente alegando a aquisição em 27-10-2009.

Apesar de, na sentença da habilitação requerida pelo A. M. e esposa em 18-01-2013, ter sido proferida, em 12-07-2013, cujos termos já acima se referiram, na qual foi julgada improcedente a arguição pelo Banco A do vício de simulação e, portanto, aqueles julgados habilitados, esta persistiu em propor a compra, na execução.

Não pode ela, portanto, agora, quando deduziu o incidente, sustentar que há menos de um ano teve conhecimento de que, afinal, o bem não pertencia ao executado e que, entretanto, laborou por ignorância de tal facto, na convicção de que ele era bem pertencente ao executado, mas erradamente.

Conhecedora da escritura e da sua força, embora crente, ou pelo menos, alegando, que ela teria sido simulada e, sobretudo, depois que não o conseguiu demonstrar na habilitação a que respeita o apenso A e precisamente o tribunal por isso julgou improcedente a sua arguição e válida a transmissão, declarando habilitados A. M. e esposa, não podia mais ela dizer que estava convencida da invalidade da venda e, portanto, da regularidade da penhora e da adjudicação e que só se convenceu – e só ficou ciente ou tomou conhecimento – que assim não era com o julgamento da segunda habilitação (apenso B) por ela própria deduzida e na qual o tribunal, após oposição daqueles, considerou que, em face do decidido, com trânsito em julgado, no apenso A, com base na escritura de 27-10-2009 não posta procedentemente em causa, já na divisão de coisa comum o executado B. L. e vendedor do bem havia sido substituído pelos referidos compradores adquirentes do mesmo.

A sua crença, nunca comprovadamente fundamentada, em realidade diversa da resultante da escritura pública não permite considerar que o Banco A só mais tarde se consciencializou ou convenceu que o negócio de transmissão era válido e desconsiderar que deste tomou conhecimento e o detinha quando propôs a compra do bem penhorado e este lhe foi adjudicado.

Ela não estava em erro. Estava esclarecida de que ocorrera a venda. Não releva, para o efeito, que desconfiasse da mesma e não acreditasse na sua veracidade, alimentando temerariamente a hipótese de assim não ser e decidindo correr os riscos inerentes.

Quem corporizava a entidade colectiva Banco A, exprimia a sua vontade e decisões, curava dos seus interesses, a representava e a aconselhava certamente tinha mediana capacidade de agir, entender, discernir e de avaliar as circunstâncias fácticas em causa, percebê-las e tomar consciência do risco da sua opção livre e de eventuais consequências da mesma, sendo de presumir que, confrontada com a escritura no primeiro momento, ficou esclarecida sobre as suas implicações e que nesse estado de espírito se encontrava quando resolveu propor a compra do bem penhorado.

Não vale o argumento de que, face à sua desconfiança ou até convicção de que o negócio fora simulado, aquele conhecimento não releva e de que, para ele se considerar e apenas a partir dele se dever contar o prazo para pedir a anulação da venda levada a cabo na execução, tal tinha de ser decidido e de que só o foi quando, deduzida com o instrumento de adjudicação a sua própria habilitação, o tribunal lha negou.

Até porque nem sequer, nesta última sentença – a do apenso B – o tribunal conheceu da questão da simulação. Isso já ocorrera no apenso A, longinquamente, em 12-07-2013.

Como se refere, numa situação similar decidida pelo Acórdão do STJ, de 30-04-2003 [27], o conhecimento relevante é o da probabilidade de, da situação fáctica patente, resultar o vício a arguir e não o da certeza deste a impor-se juridicamente por uma esperada sentença.

Segundo o sumário respectivo:

“IV - Sendo o vício invocado como fundamento de anulabilidade o erro por desconhecimento de um elemento essencial, a cessação desse vício - momento a partir do qual se conta o prazo de caducidade - ocorre quando termina esse desconhecimento.
V - Esse momento é o do conhecimento dos factos susceptíveis de determinar a anulabilidade e não o do trânsito em julgado de decisão judicial que os declare, pois o exercício do direito de anulação não depende da certeza jurídica, fornecida por decisão transitada, de que determinados factos originam a existência daquele direito.”

E como se explica no texto da respectiva fundamentação:

“Ora, uma sentença que se limite a reconhecer a anterior existência e validade de factos, - cujo desconhecimento, mesmo que apenas no que respeita à sua validade, por uma das partes num negócio jurídico, seja susceptível de vir a ser qualificado como integrando fundamento de anulação desse negócio jurídico -, não tem efeito constitutivo, pois tais factos válidos e tal causa de anulação são claramente anteriores a essa sentença, não se constituindo por causa dela mas antes existindo independentemente dela.

Ou seja, o aludido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido na acção movida pela NN contra a EE, na parte em que reconheceu a existência da dita confissão de dívida desta àquela e lhe fixou o valor jurídico, não tem eficácia constitutiva, pois nada anula nem cria, mas de simples apreciação nos termos do art.º 4º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil, visto que nessa parte se limita a declarar a existência de um facto e do direito que de tal facto já resultava independentemente do mesmo acórdão. Com efeito, não provocou ele, nessa parte, qualquer mudança na ordem jurídica existente, que apenas reconheceu e declarou, nomeadamente sem anular fosse o que fosse nem criar qualquer direito que antes inexistisse.

Assim, mesmo sem tal acórdão, os precisos factos nele declarados existiriam, com o valor que ele lhes reconheceu. Por isso tem de se concluir que os autores, mesmo sem aquele acórdão ou sem o seu trânsito em julgado, podiam pedir com base nesses factos, logo a partir do momento em que deles tiveram conhecimento, se fosse caso disso e mantendo eles o entendimento que manifestaram de que dos mesmos factos resultavam os direitos que nesta acção se arrogam, a convalescença ou a anulação dos contratos de cessão de quotas, como agora o fizeram, tendo obviamente de suportar as consequências de diferente opção.

Portanto, não era esse acórdão nem o respectivo trânsito em julgado necessário para a instauração da acção destinada a obter essas convalescença ou anulação, o que por sua vez significa que a falta desse acórdão ou do seu trânsito em julgado não constituía também obstáculo legal ao exercício daqueles eventuais direitos, pelo que não impedia o início da contagem do prazo de caducidade, nos termos do art.º 329º do Cód. Civil, mesmo que este dispositivo fosse aplicável à hipótese dos autos (e não o era, uma vez que há disposição expressa, o dito art.º 287º, n.º 1, que fixa o momento do início do prazo para arguir a anulabilidade).

Sustentam ainda os autores que, mesmo tendo conhecimento da indicada confissão de dívida, só pelo trânsito em julgado do dito acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça podiam ter tido conhecimento seguro da validade e eficácia da mesma confissão e de que esta efectivamente originara a responsabilização da EE perante a NN, pelo que só então se podia considerar cessado o vício consistente no desconhecimento dessa responsabilidade da EE, só a partir de então podendo instaurar a competente acção de anulação.

Mas isso é o mesmo que dizer que não tinham a certeza de que desses factos resultava serem titulares do direito de pedir a convalescença ou de arguir a anulabilidade dos contratos de cessão de quotas, isto é, que ignoravam a interpretação que devia ser considerada como correcta da lei aplicável à situação.

Ora, tal não permite que se lhes reconheça razão, pois, por um lado, o disposto no art.º 6º do Cód. Civil impede que os autores se considerassem dispensados da arguição da anulabilidade no prazo de um ano a partir do momento em que tomaram conhecimento da confissão de dívida da Imobiliária à NN, e, por outro lado, nem sequer o trânsito em julgado daquele acórdão seria suficiente para dar aos autores a certeza de serem titulares do direito de anulação de tais contratos ou de exigir a sua convalescença: só mediante o trânsito em julgado da decisão final proferida na acção de anulação, se fosse procedente, é que poderiam ter a certeza de serem titulares desse direito, o que, a concordar com a sua versão, impediria que em qualquer caso de anulabilidade de negócio jurídico se verificasse a caducidade, ficando praticamente sem conteúdo nem sentido o disposto no art.º 287º, n.º 1, citado. Seria com efeito contraditório sustentar que o início do prazo de caducidade do direito de arguir a anulabilidade seria o do trânsito em julgado da decisão judicial que declarasse tal direito e anulasse em consequência o negócio que se encontrasse em causa, pois nessa acção foi precisamente exercido o direito que a caducidade pressupõe que não foi exercido e que, como o foi, não poderia ter caducado.

Donde que se deva concluir também que o exercício do direito de anulação não depende da certeza jurídica, fornecida por decisão judicial transitada em julgado, de que determinados factos originam a existência daquele direito, - tanto mais que a lei não exige, para arguição da anulabilidade, o conhecimento do direito à anulação, como exige por exemplo para a hipótese de confirmação no art.º 288º, n.º 2, do Cód. Civil -, mas apenas do conhecimento dos factos de que previsivelmente ele resulte, ainda que o titular do direito de anulação se encontre na dúvida sobre a eficácia jurídica de tais factos.”

O momento de cessação da ignorância do vício e, portanto, de tomada de consciência dele é – insiste-se – aquele em que tomou conhecimento da venda (ocorrida já em em 27-10-2009) ou cessão do quinhão hereditário (ou seja, em Novembro de 2011), e não, apesar de a reputar de simulada, o da decisão incidental proferida no âmbito da divisão de coisa comum onde a alegação de tal vício fora feita em confronto com os compradores A. M. e esposa, mas não procedeu.

Esse conhecimento reporta-se ao facto (escritura de cessão ou venda) em si certo e apto a impedir a penhora e a venda judicial (apesar de aquele ser impugnável) e não ao momento em que, considerando-o embora o Banco A, em sua perspectiva, inválido e, portanto, possível a aquisição válida na execução contra o executado a quem ele pertencia e nessa crença o adquiriu, afinal acabou desiludida porque acabou por decidir-se não a admitir na divisão a tomar a posição do B. L. como ex-titular do 1/9 àquela adjudicado.[28]

Por isto, o incidente de anulação foi deduzido extemporaneamente e como tal era, como foi, de indeferir.

4.3.Acresce que, em face das circunstâncias, bem pode até dizer-se que, com rigor, nunca o Banco A esteve em erro. Quando o anúncio da venda na execução foi feito (Junho de 2016), quando nesta apresentou a sua proposta de compra e o bem lhe foi adjudicado (Setembro de 2016), bem sabia ela da escritura de venda pelo executado outorgada a A. M. e esposa em 27-10-2009 e, portanto, que fora penhorada e estava a ser vendida coisa alheia.

Não havendo erro sobre a coisa transmitida, falece o fundamento invocado para a anulação da venda executiva, sendo inevitável a sua improcedência.

Se tivera razões para razoavelmente se convencer que a venda de 27-10-2009 era simulada, deixou de as ter e de se poder conservar e dizer nesse estado de engano pelo menos com a sentença de 12-07-2013 na qual, como nela assinalado, não houve qualquer esforço probatório daquele como lhe competida e este falhou rotundamente.

4.4.De resto, querendo agora “dar a mão à palmatória” e mostrar-se conformada com a validade da escritura para legitimar a adjudicação, não poderia deixar de se lhe opor a proibição decorrente do artº 334º, do CC, face ao seu comportamento contraditório e logo por aí vedado.

Terá sido isso que, na decisão recorrida, o tribunal a quo perspectivou ao salientar que:

“Desde Dezembro de 2011 que o Banco A é conhecedora da escritura pela qual B. L. declarava vender o seu quinhão hereditário (1/9) a A. M. e esposa, e sempre, até pelo menos ao dia 18 de Setembro de 2017, considerou o negócio entre aqueles como "nulo e de nenhum efeito".
O Banco A não trouxe qualquer elemento demonstrativo de que a escritura correspondeu a uma real venda, esta não ficou comprovada no processo de divisão nem nos apensos e nenhum argumento adiantou o Banco A que justificasse a inversão da sua posição, no sentido de passar a ter como correspondente à realidade o teor da escritura de 27 de outubro de 2009. ”

Ou seja, não justificou o venire contra factum proprium nem por que razão válida e atendível adapta os fundamentos e as pretensões ao sabor dos interesses circunstanciais, exercendo assim ilegitimamente o eventual direito de anulação.

Em suma: não existindo erro e, de todo o modo, sendo extemporânea e abusiva a sua alegação, é de confirmar, embora com fundamentação não de todo coincidente, a decisão proferida que julgou improcedente o pedido de anulação da venda executiva.

4.5.Certo que a apelante, nas alegações e conclusões, invoca ainda – mas não o fizera no requerimento inicial, por isso aqui tal se apresentando como questão nova – a nulidade decorrente, já não do fundamento que invocara e subsumira ao disposto no nº 1, do artº 838º, CPC, mas da venda de bens alheios, pedindo que esta, sendo de conhecimento oficioso, seja declarada por este Tribunal.

Sucede que este incidente é impróprio para tal se apreciar e decidir. Na execução, a consequência seria a prevista na alínea d), do nº 1, do artº 839º, CPC (ficar sem efeito). Nele não estão os interessados respectivos, nomeadamente o dono, a reivindicá-la. Tal nulidade, em função do regime previsto no artº 892º, CC, está sujeita a condições (não pode ser oposta pelo vendedor ao comprador de boa fé nem o comprador doloso ao vendedor de boa fé) que limitam o seu conhecimento oficioso. Tem de ser equacionada em função das regras de registo predial e dos conceitos de terceiro e de boa-fé (cfr. Acórdão do STJ, de 21-02-2006 [29].

5. Ampliação do recurso

Relativamente à ampliação do recurso requerida pela exequente/apelada, não havendo lugar a isso quanto à questão da intempestividade, da inexistência de erro, nem quanto ao abuso de direito (consideradas na decisão recorrida, aliás favoravelmente, como atrás de se viu, embora em relação a este sem uma qualificação jurídica precisa referida ao artº 334º, CC, mas atrás já aflorada no sentido confirmativo também, enquanto de conhecimento oficioso até e para o caso de se entender algum direito ter a apelante), restaria a da litigância de má-fé.

Esta fora pedido pela apelada na resposta ao requerimento com que o Banco A deu início ao incidente.

O tribunal a quo decidiu também que a intervenção do Banco A não “enferma” de tal vício processual.

Trata-se de questão autónoma, aliás considerada também de conhecimento oficioso.

Não tendo dela recorrido a apelada, a título principal, uma vez que tal não integra fundamento da defesa, cremos não poder ser ela objecto da ampliação, por extravasar a previsão do artº 636º, CPC.

Ela é, pois, inadmissível.

O decidido em 1ª instância quanto a tal questão transitou, assim, em julgado.

De resto, em sede de instância recursiva, não se vê que, face aos termos da sentença e aos da apelação, o Banco A esteja a proceder ilícita e dolosa ou negligentemente de maneira a merecer, nos termos dos artºs 542º e 543º, CPC, censura pela sua conduta processual, ao propô-lo e sustentá-lo, tanto mais que não pode deixar de se reconhecer alguma pertinência, como decorre de tudo quanto acima se expôs, aos termos e razões com que o faz, apesar de improcedentes.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
*

Custas da apelação pela Banco A recorrente – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
*
Custas da ampliação pela recorrida C. M..
*
*

Notifique.
Guimarães, 14 de Junho de 2018

José Fernando Cardoso Amaral
Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Pedro Damião e Cunha



1. Nessa acção especial de divisão de coisa comum.
2. Tal decisão fundamentou-se no facto de, no apenso A, o B. L. já ter sido substituído e, portanto, não ser parte na acção de divisão, sendo que, quanto ao mais, o tribunal se absteve de apreciar e decidir, por considerar tratar-se de objecto alheio à habilitação, o pedido formulado pelos requeridos no sentido de declarar nula a venda executiva aqui em causa.
3. A acção de divisão de coisa comum foi inicialmente (27-04-2010) instaurada pelo Banco A contra A. B., B. F. e B. L., alegando ter-lhe já sida adjudicadas noutra execução anterior “2/9 partes indivisas” de 21 prédios descritos por aos executados “lhes ter sido adjudicado em partilha por óbito dos seus antepassados”, sendo os réus referidos “comproprietários das restantes partes indivisas” dos mesmos. Em 24-11-2011, apresentaram-se em tal acção A. M. e esposa E. M. a deduzir articulado de “contestação/reconvenção com incidente de habilitação de cessionários”, colocando este como “questão prévia” e começando por alegar que adquiriram ao co-réu B. L. por escritura de compra e venda de 27-10-2009 o quinhão hereditário dele na herança ilíquida e indivisa (ainda por partilhar) de sua avó e de que fazem parte os bens “a dividir”, na proporção de 1/9.
4. Na acção, o Banco A contestou em 15-12-2011, alegando, entre outras circunstâncias de facto justificativas, que a escritura foi simulada, que o negócio foi “maquinado” e “no intuito de enganar os credores do referido B. L.”, nunca este tendo querido ceder nem o A. M. comprar tal quinhão nem receber/pagar o preço. É a contestação aludida no ponto de facto 17.
5. Depreende-se que o incidente de habilitação deduzido como questão prévia na contestação de A. M. e esposa apresentada na acção de divisão de coisa comum acabou por seu autuado como apenso A.
6. No dito apenso A.
7. Assim remeteu a Banco A para sua contestação referida na nota 3, antecedente.
8. Consta do relatório da respectiva sentença (apenso A), a respeito da escritura de 27-10-2009: “Sucede que o Autor [Banco A] contestou este pedido, sendo que nele, não questionando a validade formal da dita escritura, diz todavia que ela é nula por simulada, visto que outro objectivo não teve que não fosse «enganar os credores do referido B. L. ». Em seguida concretiza esta afirmação, sendo que não junta documentos ou arrola prova testemunhal”. Salientando, depois, que, por força do regime dos artºs 302º a 304º, do CPC, na oposição deve a parte oferecer o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova e que “Pese embora tal alegação [da simulação] a Autora, em tal oposição ao incidente de habilitação, não arrolou qualquer tipo de prova, documental ou testemunhal, tão pouco requereu qualquer diligência de prova”, concluiu que, não sendo caso de qualquer actuação oficiosa do tribunal para colmatar a falha do Banco A, “a oposição não pode senão improceder” e que, portanto, prevalece como válida e eficaz a escritura de 27-10-2009 e assim demonstrada a aquisição pelo A. M. e esposa do quinhão hereditário, não se mostrando “inquinada a legitimidade substantiva dos habilitandos, como donos e legítimos possuidores do quinhão hereditário daquele B. L.”.
9. Além de variados lapsos de exposição, de escrita, de pontuação e de formatação do texto da decisão recorrida, parece também derivar de lapso informático a inserção desta parte discriminatória dos factos alegados julgados não provados só depois da respectiva motivação, já que essa não é a prática nem parece ser a ordem estabelecida no nº 4, do artº 607º, CPC.
10. Cfr. F. Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, 1999, páginas 252 a 259.
11. Neste preciso sentido, o Acórdão da Relação do Porto, de 10-11-2005, processo nº 0534856, reltado pela Desembª Deolinda Varão, em cujo texto se salienta estar4-se ante “actos do processo executivo” e assim dever ser entendida a venda “como um procedimento jurisdicional”, apesar disso com efeitos de direito substantivo equiparados ao negócio típico.
12. Releva, comparando com o regime do artº 905º, do CC, quando ao segundo fundamento de anulação da venda executiva previsto no artº 838º, nº1, do CC “a simples desconformidade entre o objecto anunciado (declarado e, consequentemente, querido) e o objecto real, justificada com a consideração de que a tutela do comprador, induzido em erro pela descrição do objecto da venda que é feita no próprio processo (e assim garantida pelo tribunal), não pode estar dependente da prova de requisitos acessórios respeitantes ao processo de formação psicológica da sua vontade e à protecção do declaratário […]; trata-se, neste caso, de conceito próximo do utilizado pela lei civil no instituto da venda de coisas defeituosas (artº 913º […]) […], mas agora para o efeito (diverso) da anulação.” – Acórdão da Relação do Porto, de 12-11-2008, proferido no processo nº 0856206, relatado pelo Desemb. Caimoto Jácome, que concluiu, então à luz ainda do artº 908º, do CPC anterior, que “Resulta do indicado normativo que a anulação da venda judicial, por parte do comprador, com base no erro-vício da vontade, apenas pode ocorrer verificando-se erro sobre a coisa transmitida por falta de conformidade com o que foi anunciado.” No caso concreto apreciado em tal aresto, o comprador requerente da anulação da venda executiva através da qual lhe fora adjudicado (vendido) o direito à meação e quinhão hereditário (sobre certos prédios) do executado por óbito de sua mulher (como tal ali penhorado), alegando que entendeu que a venda judicial se referia aos próprios imóveis da herança e não ao direito sobre esta), que com base nesse entendi mento formou e manifestou a sua vontade de os adquirir, pelo que não sendo assim e tal transmissão não tendo, afinal, abrangido, ocorreu erro sobre a coisa transmitida por falta de conformidade com o que fora anunciado. Porém, a Relação do Porto, corroborando o decidido em 1ª Instância, com aqueles fundamentos, que “Carece […], de fundamento, factual e legal, a anulação da venda judicial com base em alegado erro sobre os motivos, face ao estatuído no artº 908º, do CPC, pois que se verifica manifesta conformidade entre o que foi anunciado e o que foi transmitido.
13. Idem, página 247.
14. Proferido no processo nº 388-E/2001.L1.S1, relatado pelo Consº Alvers Velho).
15. Processo nº 2900/07.8TVPRT.P1, relatado pela Desemb. Maria João Areias.
16. O artº 287º, CC, refere “só dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento.” Consistindo o vício relevante para o caso do nº 1, do artº 838º, CPC (segundo fundamento), na desconformidade entre o que, quanto ao objecto ou à coisa transmitida, foi anunciado e de cuja realidade o comprador se convenceu e o que efectivamente lhe foi vendido e entregue (no que diz respeito à sua identidade física, aptidões e qualidades), a ignorância da desconformidade cessa quando dela toma conhecimento e é, portanto, a partir desse momento de tomada de consciência do vício (em que termina o desconhecimento deste) que se conta o prazo.
17. Notas ao Código de Processo Civil, III, 249.
18. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141.
19. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, página 239 e notas.
20. Proferido no processo 1764/12.4TBVCD-A.P1, relatado pelo mesmo relator deste.
21. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, 5º, página 141.
22. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, páginas 689 e 690.
23. Relator: Consº Álvaro Rodrigues (corrigiu-se o manifesto lapso de referência à alínea, no ponto I).
24. Antunes Varela, Manual, cit, página 686.
25. Sublinhados nossos.
26. Processo nº 2344/12.0TBVNG-A.P1, relatado pelo Desemb. Carlos Gil.
27. Processo nº 03A4156, relatado pelo Consº Silva Salazar.
28. Desde que soube da escritura, ela não pode dizer ignorar a realidade dela decorrente nem que na ignorância desta ou erro sobre esta se motivou para adquirir o bem penhorado. O que a determinou foi, no fundo, bem sabendo daquela, a crença temerária de que os efeitos da sua alegada simulação se imporiam.
29. Revista nº 4353/05, relatada pelo Consº Alves Velho, publicado no site da PGDL.