Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2449/18.3T8VRL.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: UNIÃO DE FACTO
ENCARGOS NORMAIS E CORRENTES DA VIDA FAMILIAR
BENS ADQUIRIDOS DURANTE A UNIÃO DE FACTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A união de facto juridicamente relevante pressupõe o preenchimento cumulativo de dois requisitos: que duas pessoas vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos e que, entre os membros da união, não se verifique nenhum dos impedimentos estabelecidos no artigo 2º da Lei n.º 7/2001, de 11/05 (entretanto alterada pela Lei n.º 23/2010 de 30 de agosto, e pelas Leis n.º 2/2016, de 29 de fevereiro, 49/2018, de 14 de agosto e 71/2018, de 31 de dezembro).
II- A união de facto juridicamente relevante beneficia da proteção legal que lhe é conferida pela Lei n.º 7/2001, de 11/05, mas não pode ser equiparada ao casamento, designadamente quanto aos efeitos patrimoniais.
III- A doutrina e a jurisprudência portuguesas têm recorrido ao instituto do enriquecimento sem causa, admitindo o recurso aos meios comuns por qualquer um dos conviventes para obter a restituição de bens ou valores com que o outro convivente se tenha indevidamente locupletado à custa do seu património, nos termos do disposto nos artigos 473º e seguintes do Código Civil
IV- Relativamente aos bens adquiridos bens durante a união de facto, que não se enquadrem no âmbito da satisfação dos encargos normais e correntes da vida familiar (como é o caso da aquisição de veículo automóvel ou de casa) que tenham sido pagos por ambos os conviventes, e cuja propriedade tenha ficado em nome de apenas um dos conviventes, ou que tenham sido pagos exclusivamente por um e cuja propriedade tenha ficado em nome do outro, deve entender-se que, com a cessação da união de facto, se extingue a causa jurídica justificativa da contribuição daquele que ficou sem nada, e que, por isso, deverá o outro, tendo ficado enriquecido no seu património na medida dessa contribuição, ser condenado à restituição com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

M. A. instaurou a presente ação, na forma de processo comum, contra M. M. e M. B., na qual pede:

a) a condenação dos Réus a reconhecer a existência de um crédito de €126.833,82, a que acresce metade do valor depositado na conta apólice 7600300853 – X Seguros de Vida, S.A., no valor de €39.878,51, que a Autora tem sobre a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu marido, A. M., devendo tal crédito ser satisfeito pelos bens da herança aberta pelo decesso deste, com base nas regras do enriquecimento sem causa e a pagarem juros, à taxa supletiva legal, desde a citação até pagamento;

Subsidiariamente, designadamente para o caso de, eventualmente, a partilha daquela herança vir a realizar-se antes do desfecho da presente ação, pede:

b) a condenação dos Réus, na sua qualidade de herdeiros de A. M., solidariamente, à restituição à Autora da quantia de €126.833,82, a que acresce metade do valor depositado na conta apólice 7600300853 – X Seguros de Vida, S.A., no valor de €39.878,51, com base nas regras do enriquecimento sem causa e a pagarem juros, à taxa supletiva legal, desde a citação até pagamento.

Posteriormente, em sede de réplica, a Autora veio reduzir o pedido, nos seguintes termos:

a) Que fossem os Réus condenados a reconhecer a existência de um crédito de €144.212,33, que a Autora tem sobre a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu marido, A. M., devendo tal crédito ser satisfeito pelos bens da herança aberta pelo decesso deste, com base nas regras do enriquecimento sem causa;
b) Que fossem os Réus condenados a pagarem à Autora juros, à taxa supletiva legal, desde a citação até pagamento;

Subsidiariamente, designadamente para o caso de, eventualmente, a partilha daquela herança vir a realizar-se antes do desfecho da presente ação,
c) Que fossem os Réus, na sua qualidade de herdeiros de A. M., solidariamente, condenados à restituição à A. da quantia de €144.212,33, com base nas regras do enriquecimento sem causa;
d) Que fossem os Réus condenados a pagarem à Autora juros, à taxa supletiva legal, desde a citação até pagamento.

Alega, para tanto e em síntese:

Que viveu, durante vários anos, em união de facto com A. M., com quem mais tarde viria a casar e que recentemente viria a falecer, e de quem é herdeira, juntamente com os Réus.
Que durante o período em que durou a união de facto e o casamento, a Autora, pese embora também tivesse ajudado A. M. nas limpezas e arrumações da discoteca, tratou/cuidou essencialmente das lides domésticas, do filho de ambos e dos pais de A. M. e que A. M. explorava uma discoteca que já tinha antes de se unir de facto com a Autora.
Mais alega que na pendência da união de facto, a Autora e A. M. realizaram obras de ampliação do edifício da discoteca, as quais importaram em €50.000,00, valorizando o edifício em igual valor, e num terreno que era de A. M., este e a Autora iniciaram a construção de uma moradia, importando a sua construção em €100.000,00, valorizando o terreno em igual valor.
Que tais obras realizadas na discoteca e a construção da moradia tiveram por base os rendimentos da Autora e de A. M. e o fruto do trabalho de ambos.
Alega ainda que a Autora e A. M. amealharam também ao longo da vida em comum, diversas quantias em dinheiro, depositadas em contas por este tituladas aquando da sua morte e que adquiriram também três veículos automóveis, entendendo ter contribuído para a realização das obras e aquisição dos bens e dinheiro em causa, em igual proporção à da contribuição de A. M., e ter direito a metade dos valores das obras, dos bens e do dinheiro, à luz do instituto jurídico do enriquecimento sem causa.
Regularmente citados, apenas a Ré M. M. apresentou contestação confessando parte dos factos alegados pela Autora e impugnando outros.
Em síntese, invocou que a Autora nunca contribuiu com qualquer quantia para a realização das obras na discoteca e para a construção da moradia, assim como para a compra dos veículos automóveis e não ganhou o dinheiro que à data do óbito de A. M. estava em contas por si tituladas.
Que se trata de quantias obtidas por A. M. antes da união de facto, ou posteriormente, com a exploração que fazia do seu estabelecimento de discoteca.
Concluiu pela não verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa e pela consequente improcedência da ação.
A Ré deduziu ainda reconvenção alegando que no decurso da união de facto A. M. negociou e adquiriu, com dinheiro seu, um veículo automóvel, marca Mercedes, modelo SLK, de cor vermelha, com a matrícula CK, tendo procedido ao registo da respetiva aquisição a favor da Autora e que, após o decesso de A. M., a Autora vendeu o referido veículo por €16.500,00.
Pediu a condenação da Autora a reconhecer à herança aberta por óbito de A. M., o crédito de €16.500,00, resultante da venda do veículo marca Mercedes, modelo SLK, de cor vermelha, com a matrícula CK.
A Autora replicou confessando parte da factualidade alegada na contestação/reconvenção e impugnando outra e reduziu o pedido que formulara no montante de €22.500,00.
Foi realizada a audiência prévia e foi proferido despacho saneador e despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.

Veio a efectivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
“Pelo exposto,
Julgo a ação improcedente, absolvendo os R.R. do pedido;
Julgo a reconvenção parcialmente procedente, e, em consequência, condeno a A. a reconhecer à herança aberta por óbito de A. M., um crédito de € 15.000,00 (quinze mil euros), e absolvo-a do demais peticionado.
Custas pela A. e pela R., na proporção dos respetivos decaimentos (sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que gozam) - art. 527º, n º 1 a 3, do C.P.C.
Registe – art. 153º, n º 4, do C.P.C.
Notifique - art. 220º, n º 1, do C.P.C.”

Inconformada, apelou a Autora, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“CONCLUSÕES

1. A Autora, quando se juntou ao A. M., em 1990, tinha uma profissão: empregada doméstica.
2. Emprego que manteve até meses após o nascimento do filho de ambos, M. B., ou seja, até 1995.
3. Nesses anos, a Autora trabalhava como empregada doméstica, assumia as lides de “dona de casa” e ainda ajudava a limpar e arrumar a discoteca, estabelecimento comercial explorado pelo A. M..
4. Ou seja, numa altura em que o A. M. enfrentou a separação, o divórcio, o começo de uma vida nova, a Autora “esfalfou-se” para ser o motor do sucesso do recém-formado “casal”.
5. O nascimento do filho, em finais de 1994, veio alterar a vida do A. M. e da Autora, tendo-lhe aquele pedido que deixasse o emprego, no que esta anuiu.
6. Entretanto, o A. M., poucos anos após juntar-se com a Autora, fez obras de ampliação da discoteca, que custaram quase 50 000,00 € e que permitiram que o espaço daquele estabelecimento comercial duplicasse e os lucros crescessem.
7. Mas a Autora dedicava-se também a ajudar a tratar/cuidar dos pais do A. M. (24º dos Factos Provados), sendo que o pai do A. M. esteve acamado nos últimos anos da vida dele, tendo a Autora ajudado a tratar/cuidar dele (25º dos Factos Provados).
8. Mais tarde, foi ainda construída pela Autora e pelo A. M. uma moradia, essencialmente com os proventos auferidos na discoteca, tendo o A. M. sido ajudado nos trabalhos de acabamentos pela Autora (34º dos Factos Provados).
9. Ou seja, o ano de 1995 representou um marco muito importante na vida do A. M. e da Autora.
10. O A. M. não fechou a discoteca para tratar das lides domésticas, dos pais dele, do filho M. B., permitindo que a Autora continuasse a trabalhar como empregada doméstica e a auferir um vencimento.
11. Ao invés, pediu à Autora que deixasse de exercer a sua profissão, o que efetivamente sucedeu até à sua morte, para se dedicar ao filho, ao companheiro, aos pais deste e ao lar.
12. O A. M., conforme também resultou provado (23º dos Factos Provados), beneficiou do facto da Autora ter assumido as referidas lides domésticas.
13. Perante a factualidade provada, não podemos conceder que o contributo do A. M. tenha sido mais decisivo do que o da Autora para a aquisição e engrandecimento do património granjeado ao longo das décadas em que permaneceram unidos de facto.
14. Após o seu divórcio, o A. M. partilhou com a ex-esposa os bens comuns do ex-casal (4º dos Factos Provados), tendo cabido à ex-esposa a casa e àquele a discoteca (5º e 6º dos Factos Provados).
15. Quando o A. M. faleceu em dezembro de 2018, era titular dos seguintes bens:
- Discoteca, cujas obras de ampliação importaram em 45 800,00 €;
- Moradia, cujas obras importaram em, pelo menos, 100 000,00 €;
- Dinheiro, depositado na Caixa …, BANCO ... e X, no valor global de 159 461,30;
- Veículos automóveis (1 porsche e 2 mercedes), no valor de 24 100,00 €.
16. Por sua vez, a Autora era titular, unicamente, de um veículo automóvel, que foi forçada a vender recentemente por 15 000,00 € para fazer face às despesas da vida diária.
17. A douta sentença de que se recorre negou à Autora o direito a perceber qualquer valor pela sua contribuição, ainda que maioritariamente indireta, para o património em causa, obrigando-a, ainda, a restituir integralmente à herança do marido os 15 000,00 € do produto da venda do único bem que era titulado por si.
18. Não nos parece, a menos que V. Exas., Senhores Juízes Desembargadores, assim o julguem, que se tenha feito justiça, não obstante o enormíssimo respeito que nos merece o Tribunal a quo (e não o dizemos por razões meramente protocolares).
19. Ou seja, o A. M. punha música do agrado dos clientes da discoteca, entusiasmando-os a consumirem bebidas, ao passo que a Autora amamentava o filho em casa ou ajudava o seu “sogro” acamado a voltar-se na cama.
20. O A. M. ia comprar garrafas de whisky e gin para a discoteca, ao passo que a Autora limpava a casa e fazia o almoço.
21. O A. M. assentava pavimento na casa que construiu com a Autora e esta chegava-lhe o mosaico e fazia as juntas.
22. O A. M. ia depositar o dinheiro ao banco e a Autora levava o filho à escola.
23. Volvidos 27 anos de vida em comum, o A. M., representado pelos seus herdeiros, tem tudo e a Autora não tem nada.
24. Provou-se que os bens acumulados pelo A. M. ao longo dos anos foram obtidos graças aos lucros auferidos na exploração do estabelecimento de discoteca.
25. Essa exploração foi sempre feita pelo A. M., com reduzida participação direta da Autora, com exceção de um período em que a Autora ajudou o A. M. na discoteca, limpando e arrumando o espaço.
26. Mas também se provou que durante o período em que a Autora e o A. M. viveram juntos – 27 anos – a Autora cuidou das lides domésticas, confecionou as refeições, tratou da roupa, limpou a habitação, tratou/cuidou do filho de ambos e dos pais do A. M..
27. Ou seja, enquanto o companheiro exercia a sua atividade, a Autora assegurava a “retaguarda”, proporcionando àquele o desejado equilíbrio emocional e propiciando-lhe, em concreto, a manutenção de um lar».
28. Apurado ainda ficou que a Autora deixou a sua atividade profissional e a casa onde vivia para ir viver com o A. M., dedicando-se a tempo inteiro à vida doméstica.
29. Como justamente se pondera no Acórdão do STJ de 15.11.1995 (BMJ:451º-393), « No enriquecimento sem causa, a atribuição visada pela restituição tanto pode ser direta (se se verificar uma deslocação patrimonial direta do empobrecido para o enriquecido), como indireta (caso em que o enriquecimento é apenas um reflexo ou um efeito de uma prestação diferente efetuada pelo empobrecido)» e : “ (…) não pode atender-se apenas ao montante dos rendimentos que através do seu trabalho cada um dos membros da união de facto auferia e com que é de crer contribuía para as despesas de ambos, devendo também valorizar-se o trabalho prestado pela autora no desempenho de tarefas domésticas.”
30. A vantagem adquirida pelo A. M., mercê daquele comprovado contributo indireto da Autora, estava-lhe destinada (à Autora), era-lhe atribuída segundo a ordenação jurídica dos bens, pertencia-lhe em face do «conteúdo de destinação» do direito ou posição jurídica.
31. O conceito de enriquecimento ou locupletamento que a lei aceita é o «patrimonial», correspondente à diferença entre a situação real e a situação hipotética do património do enriquecido, ou seja, a situação em que o enriquecido agora está, no momento em que é judicialmente citado para a restituição, e a situação em que ele estaria, no mesmo momento, se o facto produtivo do enriquecimento não se tivesse dado – Pereira Coelho, O Enriquecimento e o Dano, 42 e segs.
32. No caso em apreço, a Autora valorou essa diferença em 50%, na ponderação do valor do trabalho doméstico feito por si, mas, sobretudo, tomando em boa conta a relevância que implicou para o A. M. a circunstância de durante anos a fio ter tido a importante mais valia que decorre do facto de ter alguém, que sacrificando uma carreira profissional, assegurou a gestão da vida familiar, ocupando-se das pequenas tarefas da vida doméstica, tanto mais relevantes face ao nascimento e crescimento ocorrido nessa época de uma criança, filho de ambos, com o acréscimo de atividade que obviamente daí decorre.
33. Sabe bem a Autora que a fixação daquela diferença, se não for considerada equilibrada e ajustada aos factos a percentagem de 50%, pode fixar-se num valor mais baixo: 40%, 35% ou até 20%, conforme firmado pelo douto Tribunal da Relação de Guimarães (Ac. de 29-09-2004, Proc. 1289/04-1).
A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 473º e seguintes do Código Civil”.
Pugna a Recorrente pela revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que condene os Réus no pedido e absolva a Autora da Reconvenção que contra si foi dirigida, sem prejuízo de que, considerando-se que não se encontra totalmente apurado o património adquirido na constância da união de facto e/ou o seu concreto valor, poder ser relegada para liquidação em execução de sentença o seu completo apuramento/avaliação.
A Ré M. M. contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso confirmação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:

- Saber se a Autora é titular de um direito de crédito sobre a herança de A. M.;
- Saber se esta herança é titular de um direito de crédito sobre a Autora.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:

1 - A. M. foi casado com M. R..
2 - A. M. e M. R. tiveram uma filha, a R. M. M., nascida em - de Agosto de 1973.
3 - Por sentença de 1 de Fevereiro de 1994, transitada em julgado em 17 de Fevereiro de 1994, proferida pelo Tribunal de Círculo de Chaves, no âmbito do Processo n º 5796/1994, foi decretado o divórcio de A. M. e de M. R..
4 - Após o divórcio, A. M. partilhou com a ex-esposa, os bens comuns do ex-casal.
5 - À sua ex-esposa coube a moradia sita no lugar de …, inscrita na matriz predial da freguesia de ..., concelho de Chaves, sob o artigo … urbano;
6 – E a A. M. coube o estabelecimento comercial composto de discoteca e o edifício onde este se encontrava implantado, inscrito na matriz predial urbana da identificada freguesia de ..., sob o artigo … urbano.
7 - Em 1990, A. M. já não residia com a sua então esposa M. R., de quem se encontrava separado.
8 - Naquele ano, foi morar para casa de seus pais, na aldeia de ....
9 - Nesse mesmo ano, A. M. e a A. passaram a viver em comunhão de leito, dormindo na mesma cama; a relacionar-se sexual e afetivamente; a partilhar os encargos e as tarefas da vida familiar e a mesma mesa, fazendo as refeições diariamente em conjunto, na dita casa dos pais dele;
10 - Como se de marido e esposa se tratasse.
11 - Desde 1990 até à data da morte do A. M., que ocorreu em 08-12-2017, este e a A. sempre residiram juntos, nunca se tendo separado.
12 - Mantiveram residência na casa dos pais dele entre 1990 e 2007, e numa casa que posteriormente construíram, entre 2007 e 2017.
13 - Em 5 de Agosto de 2013, a A., à data com 42 anos de idade, e A. M., então com 62 anos, contraíram casamento civil;
14 - No regime imperativo da separação de bens;
15 - Tendo a A. casado em primeiras e únicas núpcias dela.
16 - A A. e A. M. viriam a ter um filho, o R. M. B., nascido em - de Dezembro de 1994.
17 - Em 1990, A. M. tinha veículos automóveis, prédios rústicos, o estabelecimento comercial denominado Discoteca … e o edifício onde este funcionava e ainda dinheiro, enquanto que a A. não tinha prédios, veículos automóveis ou outros bens, e, a ter dinheiro, tinha “muito pouco”.
18 - Antes de começar a viver com A. M., a A. trabalhava como empregada doméstica, trabalho este que abandonou, a pedido de A. M., poucos meses depois de nascer o seu filho.
19 - Desde por volta de 1980 e até à sua morte, A. M. explorou o estabelecimento comercial denominado discoteca …, em ....
20 - Inicialmente, durante algum tempo, a A. ajudou A. M. na discoteca, limpando e arrumando o espaço.
21 - Porém, a A. dedicou-se, essencialmente, às tarefas domésticas de confecionar as refeições, lavar a loiça, arrumar e limpar a casa, tratar da roupa, lavando-a, pondo-a a secar e passando-a a ferro e cuidando do filho.
22 - A. M. nunca tratou das referidas tarefas domésticas;
23 – Beneficiando, desde 1990 até 2007, da circunstância de a A. e a sua mãe (de A. M.) assumirem as lides domésticas, e depois de 2007 até à data da sua morte, beneficiando da circunstância de ser a A. a assumir essas lides.
24 - A A. ajudou também a tratar/cuidar dos pais de A. M., enquanto viveu na casa deles.
25 - O pai de A. M. esteve acamado nos últimos anos da sua vida, tendo a A. ajudado a tratar/cuidar dele.
26 - A. M. trabalhava na discoteca;
27 - E com os proventos decorrentes da sua exploração, suportava as despesas diárias do agregado familiar.
28 - Entretanto, “poucos” anos após 1990, no edifício destinado a discoteca, A. M. mandou realizar obras de ampliação.
29 - Tais obras importaram em cerca de € 45.800,00;
30 - Pagos com dinheiro de A. M.;
31 - Tendo as obras valorizado o prédio em idêntica medida.
32 - Num terreno de A. M., este mandou iniciar, por volta do ano de 2001, a construção de uma moradia;
33 - Para nela habitar com a A. e o seu filho, o que efetivamente sucedeu, desde a data da conclusão da moradia, em 2007, até à data da morte de A. M..
34 - A. M., que realizou ele mesmo alguns dos últimos trabalhos de construção da moradia, foi ajudado, nesses trabalhos, pela A.
35 - À moradia em causa, com 200 m2 de área de construção, foi atribuído o artigo matricial urbano da freguesia de ... n.º …º.
36 - As obras de construção da dita moradia, anexos, arranjos exteriores, coberto e piscina custaram, pelo menos, € 100 000,00 €;
37 - Quantia paga com dinheiro resultante da exploração da discoteca;
38 - E valorizaram o prédio rústico, no qual foram incorporadas, em igual medida.
39 - As ditas obras não podem ser levantadas sem a sua destruição e sem a desvalorização dos respetivos prédios.
40 - Quando A. M. faleceu, em contas por si tituladas, tinha depositadas as seguintes quantias:
A) Na Caixa …, a quantia de 31.914,39 €, respeitante a:
aa) Depósito à ordem, conta 0249069955830, no valor de 118,27 €;
ab) Depósito à ordem, conta 2020045452030, no valor de 4.943,81 €;
ac) Conta poupança 2020045452661, no valor de 500,00 €;
ad) Valores mobiliários, conta 2020045452244.0001, no valor de 25.777,02 € (3551,28769691 unidades de participação do …, com o valor nominal unitário à data do óbito de 7,2585) + 575,29 € (75,91861524 unidades de participação do …, com o valor nominal unitário à data do óbito de 7,5777), o que perfaz o valor global de 26.352,31 €;
B) No Banco..., a quantia de 47.789,90 €, respeitante:
ba) Depósito à ordem, conta 3-3178963/0356, no valor de 637,60 €;
bb) Depósito à ordem, conta 0-5452122/0356, no valor de 899,06 €;
bc) Valores mobiliários, conta 0-5452122/0356, no valor de 46.253,24 € (3 255,6198 unidades de participação do BANCO ... Reforma Segura PPR);
- Das referidas quantias, € 15.000,00 correspondem a um pagamento parcial feito pela venda de casa que era dos pais de A. M. - ;
C) E na X Seguros de Vida, S.A., a quantia de 79.757,01 €, depositada no Produto Financeiro/Seguro correspondente à conta apólice n º 7600300853, tendo como beneficiários M. M. e M. B..
41 - Salvo a quantia supra referida de € 15.000,00, a generalidade das demais quantias resultaram dos proventos auferidos com a exploração da discoteca.
42 - A. M., com dinheiro auferido também com a exploração da discoteca, “adquiriu”, e registou tal aquisição em seu nome, os seguintes veículos automóveis:
a) Porsche Boxter, matrícula PT, com o valor comercial, à data do óbito do A. M., de pelo menos € 15.000,00.
b) Mercedes Benz, matrícula AF, com o valor comercial, à data do óbito do A. M., de cerca de € 7.500,00;
c) Mercedes Benz, matrícula LX, com o valor comercial, à data do óbito do A. M., de cerca de € 1.600,00.
43 - No ano de 2013, antes de 05-08-2013, A. M. “negociou e adquiriu”, com dinheiro ganho na exploração da discoteca, o veículo de marca Mercedes, modelo SLK, de cor vermelha, de matrícula CK.
44 - A “aquisição” da viatura foi registada em nome da A.
45 - Após a morte de A. M., a A. vendeu a referida viatura, pela quantia de € 15.000,00, fazendo sua tal quantia.
46 - A. M. faleceu sem ter deixado testamento, nem outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido a A., sua esposa, e os seus únicos dois filhos, os R.R., que aceitaram a sua herança.
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

1 – Após 2007, a A. continuou a visitar a mãe de A. M. com muita frequência, a ajudá-la nas lides da casa e a levá-la ao hospital.
2 - A A. realizou obras de ampliação da discoteca.
3 - A A. iniciou, nos anos de 2000/2001, a construção de uma moradia.
4 - As obras de ampliação da discoteca e de construção da moradia tiveram “por base” os rendimentos da A.
5 - A “vida espartana” do casal, permitiu-lhe amealhar ao longo dos anos em que viveram juntos, as quantias identificadas em 40 dos factos provados.
6 - A A. “adquiriu”, conjuntamente com A. M., os veículos automóveis supra identificados em 42 dos factos provados.
7 - A A. “negociou e adquiriu” o veículo de marca Mercedes, modelo SLK, de cor vermelha, de matrícula CK, que foi “adquirido” também com dinheiro seu.
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3.2. Do direito de crédito sobre a herança de A. M.

A questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, é a de saber, tal como já delimitamos, se é titular de um direito de crédito sobre a herança de A. M..
A Recorrente instaurou a presente acção pretendendo que lhe seja reconhecido um direito de crédito sobre a herança de A. M., baseando a sua pretensão no facto de ter vivido com A. M. em união de facto durante mais de 20 anos e no instituto do enriquecimento sem causa.
Foi entendimento do tribunal a quo plasmado na sentença recorrida que, não obstante resultar inequívoco dos autos que a Autora e o falecido A. M. viveram efetivamente em união de facto, não ficou demonstrado que tenha havido um enriquecimento daquele à custa de um correspectivo empobrecimento da Autora.
É contra este entendimento que se insurge a Recorrente.

Vejamos então se lhes assiste razão.

No ordenamento jurídico português, a Reforma de 1977 do Código Civil introduziu a expressão União de Facto na epígrafe do artigo 2020º, que estabelecia o direito a exigir alimentos da herança do falecido, por quem, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, viva com ela há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges, caso não os pudesse obter dos familiares mais próximos, aos quais se referia o artigo 2009º.
Conforme escreve Guilherme de Oliveira (Manual de Direito da Família, com a colaboração de Rui Moura Ramos, 2020, página 337) a relação, em Portugal, foi de certo modo “institucionalizada” na Lei n.º 135/99 de 28 de agosto, revogada pela Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, entretanto alterada pela Lei n.º 23/2010 de 30 de agosto (e mais recentemente pelas Leis n.º 2/2016, de 29 de fevereiro, 49/2018, de 14 de agosto e 71/2018, de 31 de dezembro), doravante designada LUF.
A Lei n.º 7/2001, na redacção introduzida pela Lei n.º 23/2010 veio definir a união de facto como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos” (artigo 1º n.º 2).
Maria Margarida Silva Pereira (Direito da Família, 3ª Edição Revista e Atualizada, 2019, página 635) descreve as uniões de facto como “uniões de casais heterossexuais e/ou homossexuais com mudo de vida tipicamente conjugal, às quais se atribuem efeitos jurídicos, mais parcimoniosos na generalidade dos casos, do que os efeitos do casamento”.
Para que se constitua a união de facto juridicamente relevante importa que exista uma comunhão de leito, mesa e habitação, criando-se, deste modo, uma “aparência externa de casamento, em que terceiros podem confiar, o que explica alguns dos efeitos atribuídos à união de facto”, distinguindo-se a união de facto de relações sexuais fortuitas, passageiras e acidentais ou de concubinato duradouro (v. Guilherme de Oliveira, ob. cit., página 337).
Uma união de facto juridicamente relevante pressupõe, por isso, o preenchimento cumulativo de dois requisitos, nos termos do n.º 1 do artigo 1º e do artigo 2º da LUF: que duas pessoas vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos e que, entre os membros da união, não se verifique nenhum dos impedimentos estabelecidos no artigo 2º da LUF.

Segundo preceitua este artigo 2º da LUF impedem a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto:

a) Idade inferior a 18 anos à data do reconhecimento da união de facto;
b) Demência notória, mesmo com intervalos lúcidos e situação de acompanhamento de maior, se assim se estabelecer na sentença que a haja decretado, salvo se posteriores ao início da união;
c) Casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens;
d) Parentesco na linha recta ou no 2.º grau da linha colateral ou afinidade na linha recta;
e) Condenação anterior de uma das pessoas como autor ou cúmplice por homicídio doloso ainda que não consumado contra o cônjuge do outro.

Trata-se de uma relação cuja constituição e dissolução não se encontra dependente de quaisquer formalidades ao contrário do que acontece no casamento, cuja celebração está sujeita a determinada solenidade e a sua dissolução depende da observância de determinados formalismos, não se encontrando os seus efeitos dependentes da sua inscrição num determinado registo.
A união de facto constitui uma situação materialmente diferente do casamento não assumindo os unidos de facto, por não quererem ou não poderem, o compromisso de vida em comum, mediante a sujeição a um vínculo jurídico, e não se encontrando prevista uma norma análoga ao artigo 1672º do Código Civil que obriga os cônjuges ao cumprimento recíproco dos deveres de respeito, X, coabitação, cooperação e assistência.
Por outro lado, a união de facto dissolve-se por falecimento de um dos seus membros, por vontade de um dos seus membros, ou com o casamento de um dos seus membros conforme decorre do n.º 1 do artigo 8º LUF, esclarecendo-se nos números 2 e 3 deste preceito que nos casos em que cessou a vontade de manter a comunhão de vida, que só é necessária a declaração judicial da dissolução se pretenderem fazer valer direitos que dependam dela, devendo essa declaração ser proferida na ação mediante a qual o interessado pretende exercer tais direitos, ou em ação que siga o regime processual das ações de estado.
Não vem questionado nos autos que Autora e o falecido A. M. viveram em união de facto e que tal união foi dissolvida.
Tal união de facto constitui-se efectivamente como uma relação juridicamente relevante uma vez que viveram em condições análogas às dos cônjuges durante bem mais de dois anos e não se verificou nenhum dos impedimentos estabelecidos no artigo 2º da LUF (o divórcio do falecido A. M. foi decretado por sentença de 01 de Fevereiro de 1994, transitada em julgado em 17 de Fevereiro de 1994), sendo certo que não obstante terem residido sempre juntos, nunca se tendo separado, desde 1990 até à data da morte do A. M., em 08/12/2017, a verdade é que casaram em 05/08/2013, tendo nessa data cessado a relação de união de facto por força do casamento.
Na presente acção estamos, por isso, no âmbito de uma acção que visa a tutela dos efeitos patrimoniais decorrentes dessa união de facto, a qual durou cerca de 19 anos (desde 1994, quando foi decretado o divórcio do falecido A. M., e até 2013, altura em que ocorreu o casamento).
De facto, a união de facto, enquanto relação juridicamente relevante é susceptível de produzir diversos efeitos.

Quanto aos efeitos pessoais da união de facto rege o artigo 3º da LUF que os enumera, ainda que de forma não taxativa (conforme resulta do n.º 2 deste preceito) preceituando que as pessoas que vivem em união de facto têm direito a:

a) Protecção da casa de morada de família;
b) Beneficiar do regime jurídico aplicável a pessoas casadas em matéria de férias, feriados, faltas, licenças e de preferência na colocação dos trabalhadores da Administração Pública;
c) Beneficiar de regime jurídico equiparado ao aplicável a pessoas casadas vinculadas por contrato de trabalho, em matéria de férias, feriados, faltas e licenças;
d) Aplicação do regime do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens;
e) Protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei;
f) Prestações por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, por aplicação dos regimes jurídicos respectivos e da presente lei;
g) Pensão de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, por aplicação dos regimes jurídicos respectivos e da presente lei.

A união de facto, ainda que formalmente distinta do casamento, é também ela geradora muitas vezes de património, o qual, em face da cessação da união, carece também de ser liquidado, porém, ao contrário do que se encontra previsto para o caso da dissolução do casamento, não existe legalmente previsto um qualquer regime específico que regulamente os efeitos patrimoniais decorrentes da união de facto.
O que se verifica é que muitas vezes a união de facto gera a contribuição (seja com os rendimentos do trabalho, seja com a realização de tarefas domésticas) de ambos os membros da união para a aquisição de bens e serviços, inerentes à vida em comum do casal, como sejam a alimentação, o vestuário ou da casa onde habitam, ou até para aquisição de património.
Se, tanto quanto nos é dado conhecer, cremos ser entendimento generalizado na doutrina e jurisprudência, que não é de equiparar à união de facto o regime do casamento, designadamente quanto aos efeitos patrimoniais, e que, após a cessação da união de facto a situação pessoal e patrimonial não é igual à dos casados, tal não significa, que a união de facto, para além dos seus domínios de protecção específicos e regulamentados, não possa relevar, em termos gerais, como situação de facto geradora de efeitos, designadamente no que respeita aos efeitos patrimoniais emergentes da vivência em comum e, em particular, à liquidação dos mesmos em consequência da cessação dessa vida em comum (neste sentido entre outros o Acórdão da Relação de Lisboa de 18/01/2011, Relator Desembargador Tomé Gomes e o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/04/2019, Relatora Conselheira Maria do Rosário Morgado, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Como se afirma nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07/03/2019 e 03/07/2019 (Relator Conselheiro Tomé Gomes) “I. Os regimes de bens adquiridos durante a união de facto e na constância do casamento são distintos: enquanto que, na união de facto, é aplicável o regime geral; na constância do matrimónio, o regime dos bens levados para o casamento e os adquiridos na constância deste obedece à disciplina especificamente regulada nos artigos 1721.º a 1731.º do CC, em que se diferenciam os bens próprios da cada cônjuge e os bens comuns”.
Para Guilherme de Oliveira (Ob. Cit. Página 347) na união de facto “não há um “regime de bens”, nem tem aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento independentes do regime de bens” e as relações patrimoniais dos membros da união de facto ficam “sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais”.
Isto não significa, que os unidos de facto estão impedidos de adquirir bens conjuntamente, certo que o podem fazer sem quaisquer restrições, ficando nesse caso sujeitos ao regime da compropriedade (artigos 1403.º e seguintes do Código Civil), podendo sempre ponderar-se a celebração de acordos entre os membros da união de facto para regular os aspectos patrimoniais da relação, os chamados “contratos de coabitação”.
Porém, no caso concreto, nada resulta demonstrado nos autos nesse sentido.
E, não nada tendo sido acordado sobre a propriedade dos bens adquiridos durante a união de facto, designadamente no caso da morte de um ou da rutura da relação, não existe regulamentação específica aplicável à união de facto geradora de um património comum dos conviventes.
O que aqui se nos impõe é, por isso, a questão de resolver os efeitos patrimoniais emergentes da vivência em comum da Autora e do falecido A. M. e a liquidação dos mesmos em consequência da dissolução da união de facto, designadamente se resulta para a Autora algum crédito sobre a herança conforme pretende.
E, para a liquidação do património comum, tem sido entendimento para alguns a possibilidade de se recorrer ao regime da liquidação das sociedades civis disciplinado nos artigos 1010.º e seguintes do Código Civil, se verificados os respectivos pressupostos; porém, considerando que a Lei n.º 41/2013, de 26/06, que aprovou o novo Código de Processo Civil, eliminou o Processo Especial de Liquidação Judicial de Sociedades de Facto, parece “inviável recorrer agora a um instrumento que a lei processual expressamente afastou” (Maria Margarida Silva Pereira, Ob. Cit. paginas 667 e 668).
O recurso à aplicação do regime da compropriedade também implica, como vimos, a intervenção de ambos os conviventes de facto no momento da aquisição de bens, sendo certo que o que sucede muitas vezes é que apenas um dos membros da união de facto consta como adquirente do bem no título de aquisição, não funcionando nestes casos qualquer presunção de compropriedade.
A doutrina e a jurisprudência portuguesas têm, por isso, recorrido ao instituto do enriquecimento sem causa para resolução da questão aqui suscitada, admitindo o recurso aos meios comuns por qualquer um dos conviventes para obter a restituição de bens ou valores com que o outro convivente se tenha indevidamente locupletado à custa do seu património, nos termos que defluem do disposto nos artigos 473º e seguintes do Código Civil (v. neste sentido entre outros os já citados Acórdãos da Relação de Lisboa de 18/01/2011 e do Supremo Tribunal de Justiça de 04/11/2019, e ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/07/2019 Relator Conselheiro Oliveira Abreu, também disponível em www.dgsi.pt).

No caso sub judice foi esta a via seguida pela Autora que, alegando exactamente o enriquecimento sem causa, pretende que lhe seja reconhecido ser titular de um direito de crédito sobre a herança de A. M..
Começamos por referir que é à Autora que pretende obter a restituição com fundamento em enriquecimento sem causa que incumbe o ónus de alegar e provar a verificação daqueles pressupostos, como factos constitutivos que são do respectivo direito (artigo 342º n.º 1, do Código Civil).

Dispõe o artigo 473º n.º 1 do Código Civil que “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”; e que “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (nº 2).”
Por outro lado, resulta do artigo 479.º do mesmo diploma que “A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente” (nº 1) e que “A obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de algum dos factos referidos nas duas alíneas do artigo seguinte (nº 2).”
Podemos então dizer de forma sintética que são requisitos do enriquecimento sem causa: o favorecimento de um património à custa do empobrecimento de outro e a falta de causa justificativa dessa valorização patrimonial; deve ainda salientar-se que o instituto do enriquecimento sem causa se caracteriza pela sua natureza subsidiária, só sendo de aplicar quando a lei não faculte ao empobrecido qualquer meio legal de ser indemnizado ou restituído (cfr. artigo 474.º do Código Civil).
A falta de causa justificativa, em situações de enriquecimento de prestação, verifica-se quando alguém tenha recebido coisa indevidamente, isto é, sem qualquer fonte ou título jurídico a suportá-la, ou que tendo por base causa, esta tenha deixado de existir, ou quando a prestação assim efectuada tivesse em vista um efeito que acabou por não se verificar.
Conforme refere Mário Júlio de Almeida Costa (Direito das Obrigações, 3ª Edição, páginas 334e 335) o enriquecimento diz-se sem causa quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial.
Estando em causa indagar da ausência de causa justificativa para o enriquecimento verificado, temos como certo que a união de facto é, por regra, uma verdadeira causa justificativa da criação de um património adquirido através do esforço comum de ambos os unidos de facto, no âmbito da comunhão de vida; na verdade, na vigência da união de facto as contribuições dos conviventes para a vida comum serão sempre justificadas uma vez que têm em vista o bem comum de ambos os conviventes.

E uma vez cessada a união de facto?

É entendimento jurisprudencial e doutrinal uniforme que, com a dissolução da união de facto, no caso de terem sido adquiridos bens durante a união de facto, pagos por ambos os conviventes, que não se enquadrem no âmbito da satisfação dos encargos normais e correntes da vida familiar, e cuja propriedade tenha ficado em nome de apenas um dos conviventes (como é o caso da aquisição de veículo automóvel ou de casa), mas também gastas quantias com a realização de obras de valorização da casa, se extingue a causa jurídica justificativa da contribuição daquele que ficou sem nada, e que, por isso, deverá o outro, tendo ficado enriquecido no seu património na medida dessa contribuição, ser condenado à restituição com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa (Acórdão desta Relação de 18/10/2018, Relator Desembargador José Alberto Moreira Dias, disponível em www.dgsi.pt).

Já relativamente às despesas suportadas pelos conviventes durante a união de facto, designadamente as despesas suportadas com o sustento, vestuário, transportes, saúde, educação, etc., dos elementos do agregado familiar dos conviventes, vem sendo considerado não serem restituíveis, designadamente com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa uma vez que a própria união de facto implica em si mesma o contributo de cada um dos seus elementos, devendo entender-se que “tudo o que sejam as despesas normais e correntes próprias de quem vive, embora “informalmente”, a “plena comunhão de vida” de que fala o artº 1577º do CC não é repetível, finda a relação, mediante a aplicação do regime do artº 476º deste mesmo diploma; e isto porque se considera que houve então uma causa justificativa para tais atribuições patrimoniais impeditiva da conclusão de que o prestado foi indevido; essa causa justificativa reside, precisamente, na subsistência da união de facto, para a qual cada um dos membros contribuiu em termos materiais pela forma tacitamente acordada pelo casal enquanto a relação se manteve” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/03/2014, Relator Conselheiro Nuno Cameira, disponível em www.dgsi.pt; também neste sentido o citado Acórdão desta Relação de 18/10/2018 em cujo sumário se pode ler que “Sendo a união de facto uma forma de estar em família, a mesma implica para os conviventes a obrigação de, durante a união de facto, contribuírem para as despesas normais e correntes do agregado familiar e daí que, em caso de dissolução dessa relação, os conviventes não tenham direito à restituição desses contributos, designadamente, através do instituto de enriquecimento sem causa (existe uma causa justificativa para a realização desses contributos – a união de facto)”, ou porque “não decorrendo da união de facto quaisquer obrigações decorrentes de um dever de assistência entre o casal assim formado há que entender que tudo o que possa ser prestado por ambos, mesmo a nível de trabalho doméstico terá de ser entendido como uma obrigação natural, de coercitividade e repetição impossíveis, atenta a natureza da relação instituída, e, no que que tange aos filhos, o trabalho de assistência sempre se imporia por via das responsabilidades parentais que sobre os seus membros impendiam” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2017, Relatora Conselheira Ana Paula Boularot, também disponível em www.dgsi.pt).
Porém, no que concerne à relevância a atribuir ao trabalho doméstico (não remunerado) entendemos ser de ponderar em face das circunstâncias de cada caso concreto se efectivamente se verifica uma vantagem conferida com sua prestação, a quem dela usufruiu, que deva ser compensada. Se, na maioria das vezes, o trabalho prestado no lar por um dos conviventes é, de alguma forma, compensado através do sustento económico garantido pelo outro, tal situação não deve implicar por si só o afastamento do enriquecimento sem causa, do outro cônjuge uma vez cessada a união de facto, se verificados os necessários requisitos.

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/04/2019, já citado (e citado também por Maria Margarida Silva Pereira, Ob. Cit. paginas 665 a 669) afirma-se que poderá também “haver obrigação de restituir nos casos em que o membro da união de facto, ainda que titular do direito de propriedade de bens imóveis ou móveis adquiridos na constância da união de facto (e cujo preço até pode ter sido suportado exclusivamente à custa do seu património) beneficiou em grande medida do esforço/colaboração/participação do outro membro em prol da vida em comum (v.g., por via do trabalho doméstico, da criação e educação dos filhos, etc.), proporcionando, desta forma, poupanças significativas e facilitando/incrementando na carreira profissional de um deles”.
De facto, não devemos ser alheios à questão, por vezes colocada, de eventuais vantagens patrimoniais de um dos unidos de facto adquiridas em detrimento do outro durante a união de facto que demande a “necessidade de encontrar mecanismos compensatórios que se adeqúem a tais casos” (v. Maria Margarida Silva Pereira, Ob. Cit., a propósito do referido acórdão, pagina 669), designadamente através do instituto do enriquecimento sem causa.
Tal terá necessariamente de ser aferido perante todas as circunstâncias do caso sub judice.
A realidade da vida demonstra que em alguns casos um dos membros da união abdica do seu trabalho para se dedicar em exclusivo às lides domésticas e à educação dos filhos do casal, que possam existir, apenas auferindo rendimentos o outro membro.
Nestas situações, não obstante a contribuição do membro que não trabalha não ser direta, não deixa de ser uma contribuição com o seu trabalho, ainda que não remunerado.
Nestes casos não surpreende que qualquer bem que seja adquirido pelo casal seja pago somente com os valores auferidos por um deles, ou que qualquer conta bancária tenha apenas depósitos de um deles; e, desde que, verificados os pressupostos da aplicação do enriquecimento sem causa, deverá recorrer-se a este instituto de forma a compensar o trabalho/colaboração/participação que um dos membros prestou em favor da vida comum, e a diminuir a vantagem patrimonial que por essa via o outro membro adquiriu.
A vantagem é encarada do ponto de vista do enriquecimento patrimonial, traduzindo a diferença produzida na esfera económica do enriquecido que resulta da comparação entre a sua situação efectiva (situação real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não tivesse verificado (situação hipotética).

No caso dos autos, conforme se refere na sentença recorrida, a Autora entende ter direito a metade do valor das obras realizadas na discoteca, a metade do valor da moradia construída, a quase metade do dinheiro depositado e a metade do valor dos veículos automóveis, salvaguardando agora em sede das suas conclusões de recurso que seja fixada a quantia que julga ter direito em percentagem inferior (40%, 35% ou até 20%).
Conforme decorre dos factos julgados provados o falecido A. M. foi o elemento a trabalhar e a auferir rendimentos para custear as despesas da casa, do filho e da apelante, durante a união de facto, enquanto aquela, poucos meses depois de nascer o filho de ambos, deixou o seu trabalho como empregada doméstica tendo-se dedicado essencialmente durante a união de facto às tarefas domésticas de confeccionar refeições, lavar a loiça, arrumar e limpar a casa, tratar da roupa e cuidar do filho, tendo o falecido A. M. beneficiado desde 1990 até 2007 da circunstância da sua mãe e da Recorrente assumirem as lides domesticas e desde 2007 e até à data da sua morte de ser a Autora a assumir essas lides. Em contrapartida, aquele nunca tratou das tarefas domésticas, trabalhando na discoteca, sendo com os proventos decorrentes da exploração da mesma que suportava as despesas diárias do agregado familiar.
Porém, à data do início da relação de união de facto juridicamente relevante com a Autora (que temos de situar apenas em 1994, data do divórcio e não em 1990, pois o casamento enquanto não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens, é impedimento da produção de direitos ou benefícios fundados na união de facto – cfr. artigo 2º da LUF) o referido A. M. tinha já a discoteca, sendo proprietário do edifício onde a mesma funcionava, bem como de prédios rústicos e veículos automóveis e tinha também dinheiro, não resultando demonstrado que a Autora fosse titular de qualquer património.
Da factualidade provada também não resulta que a Recorrente tenha contribuído com qualquer quantia pecuniária própria, para a obtenção do património que A. M. deixou à sua morte, ou, mais correctamente, e no que aqui releva, à data da cessação da união de facto com o casamento celebrado em agosto de 2013, designadamente para a realização das obras na discoteca, para a construção da moradia ou para a aquisição das viaturas automóveis, e nem que o dinheiro depositado nas contas tituladas pelo falecido A. M. fosse seu.
Está, por isso apenas em causa, a valoração do esforço/colaboração/participação da Recorrente em prol da vida em comum com o falecido A. M. por via do trabalho doméstico e da criação e educação do filho, durante a união de facto e aferir se essa contribuição foi determinante para gerar por parte daquele poupanças significativas e o incremento da sua vida profissional, de forma a poder falar-se em eventuais vantagens patrimoniais geradas na esfera económica do falecido A. M..
E, considerando a factualidade provada, não podemos deixar de concordar com o sentido da decisão recorrida quando conclui que não se demonstrou que tenha havido um enriquecimento de A. M. à custa de um correspetivo empobrecimento da Recorrente.

Conforme ai se escreve “tudo aponta para que, o património deixado por A. M. à sua morte, fosse o resultado do que já tinha antes de se juntar com a Autora e dos proventos que auferiu, na exploração que há anos fazia, de um estabelecimento de discoteca, sua pertença (…) é verdade que A. M. beneficiou dos trabalhos domésticos da A., dos cuidados que prestou ao seu filho e aos seus pais e das ajudas que lhe prestou nas limpezas e arrumação da discoteca e na construção da parte final da moradia. Tudo isso terá certamente um valor patrimonial. Ao ter beneficiado do referido “auxílio” por parte da A., A. M. não teve, ao menos, de suportar as despesas que tal “auxílio” certamente lhe acarretaria. Porém, também a A. beneficiou do “direito” a morar numa casa, onde viveu durante 17 anos, a casa dos pais de A. M., de que não teria beneficiado não fosse a união de facto com A. M.. E beneficiou certamente da ajuda que a mãe de A. M. lhe terá prestado nas lides domésticas enquanto com ela viveu 17 anos (certamente que o contrário também aconteceu). E beneficiou também, posteriormente, do “direito” a morar numa moradia construída num terreno de A. M., construída com dinheiro auferido por este, num estabelecimento seu. E beneficiou ainda de tudo o demais que A. M. lhe prestou, em termos de alimentação, vestuário, eletricidade, gaz…, porquanto, todas as despesas do agregado familiar eram pagas por A. M., com os proventos que auferia na exploração do estabelecimento de discoteca, sua pertença, não tendo a A. qualquer fonte de rendimento. Tais benefícios têm também certamente um valor económico. Nestas circunstâncias, poder-se-á concluir que A. M. enriqueceu à custa do empobrecimento da A.?”

De salientar apenas quanto às obras realizadas no edifício destinado a discoteca que sabemos apenas que ocorreram “poucos” anos após 1990; assim, podem ter ocorrido ainda antes do início da união de facto juridicamente relevante ou pelo menos praticamente no seu início (em 1994 conforme já referido); não vemos por isso que se possa afirmar nesta parte uma qualquer contribuição por parte da Recorrente determinante para realização das mesmas de forma a poder falar-se em eventuais vantagens patrimoniais geradas na esfera económica do falecido A. M..
E quanto aos valores depositados nas contas tituladas pelo mesmo sabemos o seu valor à data do óbito, mas desconhecemos os valores à data da cessação da união de facto, não se sabendo designadamente se foi obtido (ou parcialmente obtido) durante a pendência da união de facto ou já na constância do casamento; o mesmo sendo de referir relativamente aos veículos automóveis não constando a data da sua aquisição pelo falecido A. M., pois apenas consta dos factos provados que o veículo de matrícula CK foi adquirido antes do casamento; de todo o modo, à data do início da união de facto aquele tinha já veículos automóveis e dinheiro, prédios e explorava a discoteca desde por volta de 1980, isto é, há cerca de 14 anos.
Para se reconhecer a obrigação de restituir sustentada no enriquecimento sem causa era necessário que a Recorrente tivesse logrado demonstrar a obtenção duma vantagem patrimonial, à sua custa, por parte do falecido A. M. durante a união de facto, sem que exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, sendo que a obtenção de tal vantagem à sua custa e a falta (originária ou subsequente) de causa justificativa do enriquecimento são elementos constitutivos do direito à restituição que se arrogava pelo que se impunha à Recorrente, ao reclamar a restituição por enriquecimento sem causa, o ónus da demonstração dos respectivos factos constitutivos.
Ora, a Recorrente não demonstrou que tenha havido um enriquecimento por parte do falecido A. M. à sua custa, de onde decorre, não poder proceder nesta parte a sua pretensão, sendo de manter a decisão recorrida.
***
3.3. Do direito de crédito sobre a herança de A. M.
A Ré M. M. deduziu reconvenção e pediu a condenação da Autora a reconhecer à herança aberta por óbito de A. M., o crédito de €16.500,00, resultante da venda do veículo marca Mercedes, modelo SLK, de cor vermelha, com a matrícula CK, fundamentando também a sua pretensão no instituto jurídico do enriquecimento sem causa.
A Autora no articulado de réplica veio alegar que o valor de venda deste veículo pertence, na proporção de metade, a si e na proporção igualmente de metade, à herança aberta por óbito de A. M. e veio reduzir nessa parte o pedido em €7500,00.
Pelo tribunal a quo foi decidido julgar parcialmente procedente a reconvenção e condenar a Autora a reconhecer à herança aberta por óbito de A. M., um crédito de €15.000,00 (quinze mil euros) correspondente ao valor da venda do veículo.
Sustenta a Autora que deve ser absolvida do pedido reconvencional.
Não entendemos, contudo, que lhe assista razão.
A Recorrente alegara que o veículo em causa foi adquirido com dinheiro pertencente a ambos os então unidos de facto, porém resultou provado que o veículo foi negociado e adquirido pelo falecido A. M. com dinheiro ganho na exploração da discoteca (ponto 43 dos factos provados).
Resulta ainda de forma linear dos factos provados que o veículo foi adquirido antes do casamento celebrado em 05/08/2013, pelo que foi adquirido durante a união de facto.
Conforme supra referimos com a dissolução da união de facto, no caso de terem sido adquiridos bens durante a união de facto, pagos por um conviventes, que não se enquadrem no âmbito da satisfação dos encargos normais e correntes da vida familiar, e cuja propriedade tenha ficado em nome de apenas um dos conviventes, como é o caso da aquisição de veículo automóvel, se extingue a causa jurídica justificativa da contribuição daquele que ficou sem o bem, e que, por isso, deverá o outro, tendo ficado enriquecido no seu património na medida dessa contribuição, ser condenado à restituição com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.
Aqui já não estamos no domínio das despesas normais e correntes próprias de quem vive em união de facto, existindo, tal como consta da sentença recorrida citando o já referido Acórdão desta Relação de 18/10/2018, uma “presunção natural de não definitividade desses contributos e que os mesmos são feitos na pressuposição da manutenção da união de facto”.
Temos pois de concluir, no mesmo sentido do que consta vertido na sentença recorrida, que a união de facto constituiu a causa jurídica da contribuição monetária por parte do falecido A. M. para aquisição do veículo automóvel em causa de que não ficou proprietário pois foi registado em nome da Autora, e que, com a dissolução da união de facto, essa causa jurídica justificativa se extinguiu, estando assim verificado o pressuposto da ausência (subsequente) de causa justificativa.
E que “é evidente a verificação dos demais pressupostos do instituto jurídico em análise, concretamente, do enriquecimento da A., que viu o seu património aumentado com o veículo em questão ou com o seu valor e do correspondente empobrecimento de A. M. ou da sua herança, que empobreceu na exata medida do enriquecimento da A.”
E essa medida corresponde ao valor pelo qual a Recorrente vendeu o veículo, isto é €15.000,00, assistindo o direito à herança de A. M. a ver restituída tal quantia e, por isso, a ver reconhecido um direito de crédito sobre a Recorrente no montante de €15.000,00.
Acresce apenas dizer que no caso dos autos a união de facto cessou, não por qualquer rutura da vida em comum, mas porque a Recorrente e o falecido A. M. decidiram contrair casamento civil (no regime imperativo da separação de bens atenta a idade deste - cfr. artigo 1720º do Código Civil) sendo a Recorrente herdeira legitimária, juntamente com o seu filho e a Ré M. M..
Em face de todo o exposto, improcede, pois, integralmente a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida.
As custas são da responsabilidade da Recorrente, atento o seu integral decaimento (artigo 527º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil):

I - A união de facto juridicamente relevante pressupõe o preenchimento cumulativo de dois requisitos: que duas pessoas vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos e que, entre os membros da união, não se verifique nenhum dos impedimentos estabelecidos no artigo 2º da Lei n.º 7/2001, de 11/05 (entretanto alterada pela Lei n.º 23/2010 de 30 de agosto, e pelas Leis n.º 2/2016, de 29 de fevereiro, 49/2018, de 14 de agosto e 71/2018, de 31 de dezembro).
II - A união de facto juridicamente relevante beneficia da proteção legal que lhe é conferida pela Lei n.º 7/2001, de 11/05, mas não pode ser equiparada ao casamento, designadamente quanto aos efeitos patrimoniais.
III - A doutrina e a jurisprudência portuguesas têm recorrido ao instituto do enriquecimento sem causa, admitindo o recurso aos meios comuns por qualquer um dos conviventes para obter a restituição de bens ou valores com que o outro convivente se tenha indevidamente locupletado à custa do seu património, nos termos do disposto nos artigos 473º e seguintes do Código Civil
IV - Relativamente aos bens adquiridos bens durante a união de facto, que não se enquadrem no âmbito da satisfação dos encargos normais e correntes da vida familiar (como é o caso da aquisição de veículo automóvel ou de casa) que tenham sido pagos por ambos os conviventes, e cuja propriedade tenha ficado em nome de apenas um dos conviventes, ou que tenham sido pagos exclusivamente por um e cuja propriedade tenha ficado em nome do outro, deve entender-se que, com a cessação da união de facto, se extingue a causa jurídica justificativa da contribuição daquele que ficou sem nada, e que, por isso, deverá o outro, tendo ficado enriquecido no seu património na medida dessa contribuição, ser condenado à restituição com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelas Recorrentes.
Guimarães, 30 de abril de 2020
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Margarida Sousa (2ª Adjunta)