Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
18334/18.6T9PRT-C.G1
Relator: PEDRO CUNHA LOPES
Descritores: JUIZ JULGOU E CONDENOU ANTERIORMENTE O ARGUIDO DUAS VEZES
FACTOS DE DIFERENTE NATUREZA E SEM CONEXÃO UNS COM OS OUTROS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECUSA
Decisão: PEDIDO MANIFESTAMENTE IMFUNDADO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - Não constitui claramente fundamento de recusa, o facto de o Juiz do processo do processo ter julgado anteriormente o mesmo arguido por duas vezes e de o ter condenado.
2 - Com efeito, neste processo os factos são diferentes e não estão relacionados com aqueles.
3 - Os Juízes estão especialmente treinados para julgar tendo em conta a prova produzida em julgamento e não os antecedentes criminais dos arguidos, mesmo que por si julgados.
4 - Não estando claramente em causa a isenção e imparcialidade do Juiz, quer na versão objetiva quer na subjetiva, o pedido de recusa deve ser declarado "manifestamente infundado" e especialmente taxado como tal.
Decisão Texto Integral:
1 – Relatório

Nestes autos de Recusa, a arguida AA pede o afastamento da Senhora Juíza BB, por ter participado em julgamento anterior da mesma, no Proc.º 1 535/17.....

Nesse Proc.º 1 535/17...., foi a arguida condenada na pena única de 6 (seis) anos e 5 (cinco) meses de prisão e em 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de 7€ (sete euros), pela prática dos seguintes crimes:

- cinco crimes de abuso de confiança qualificados;
- um crime de abuso de confiança simples;
- um crime de desobediência.

Foi ainda absolvida da prática de dois crimes de abuso de confiança qualificados e condenada em vários pedidos de indemnização civil.
Considera a requerente que, por ter tido intervenção neste outro Proc.º, a Senhora Juíz não assegura condições de imparcialidade nestes autos, o que contraria as suas garantias de defesa Constitucionalmente protegidas, nos termos do disposto no art.º 32º/1 C.R.P.
A Senhora Juíza (Sr.ª Dr.ª BB) pronunciou-se nos termos do disposto no art.º 45º/3 C.P.P., referindo que teve ainda participação no julgamento da arguida no Proc.º 457/19...., mas que nada põe em causa a sua isenção e imparcialidade.
Neste Proc.º 457/19.... foi a arguida requerente condenada pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, outro de abuso de confiança simples e outro de abuso de confiança fiscal na forma continuada, na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Foi ainda absolvida da prática de um crime de abuso de confiança qualificado.
Na sua promoção, sustentou o M.P. que nada permite questionar a independência e imparcialidade da Senhora Juíza e que a participação em dois julgamentos anteriores da arguida, não é relevante só por si, para a procedência de pedido de escusa.
Refere ainda que o impedimento previsto no art.º 40º/1, c), C.P., pressupõe que ocorram semelhanças no objeto do processo, o que não acontece no caso dos autos.
Sintetizando, a questão que importa decidir é a de saber, se um Juiz que já anteriormente condenou um arguido pode participar num terceiro julgamento do mesmo.

Embora se trate de matéria irrelevante para o caso dos autos, deve desde já referir que, nos dois citados Procs.º a arguida requerente não foi apenas condenada. Com efeito:

- foi também absolvida da prática de dois crimes de abuso de confiança qualificada, no Proc.º 1 535/17....;
- foi ainda e também absolvida da prática de um crime de abuso de confiança qualificado, no Proc.º 457/19.....

Nestes nossos autos 2 965/18.... a Senhora Juíza cuja recusa se pretende recebeu a acusação e designou dias para julgamento e determinou a notificação dos sujeitos processuais, para se pronunciarem sobre determinada apensação.

Estão em causa nestes autos:
- dois crimes de abuso de confiança, nos Apensos A e B;
- um crime de burla, em coautoria, no Apenso C;
- um crime de burla qualificada, no Apenso E;
- um crime de burla qualificada, no Apenso F.

Verificadas as respetivas certidões, obviamente que todas as situações são diferentes e têm até ofendidos diferentes, apesar de se enquadrarem no tipo de atos já antes julgados.
A recusa de Juiz deve ser deferida, quando exista “motivo sério e grave”, apto a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz – art.º 43º/1 C.P.P.
Ora, o regime dos impedimentos (art.º 40º C.P.P.) e das escusas e recusas (art.º 43º C.P.P.) complementam-se, no sentido de que um Juiz não possa ser visto como parcial, objetiva (pela representação que terceiros podem fazer de atos praticados pelo Juiz, seguindo o critério do “homem médio”) ou subjetivamente (por manifestações de parcialidade praticadas por si).
A imparcialidade do Juiz é um imperativo da justiça.
E é o primeiro pressuposto do direito a uma justiça equitativa, imposta quer por pactos ou convenções Internacionais, quer pela nossa Constituição – arts.º 14º/1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, 6º C.E.D.H. e 20º/4 C.R.P.
O regime dos impedimentos está previsto através de uma tipicidade taxativa, no sentido de estabelecer atos concretos que se praticados pelo Juiz anteriormente, levam a que não possa participar em julgamento, recurso ou pedido de revisão de sentença – art.º 40º C.P.P. É de conhecimento oficioso, mas também pode ser invocado pelos sujeitos processuais, não sendo necessário produzir qualquer prova. Ou os factos em causa se inserem em alguma previsão da tipicidade e há impedimento ou não e este não existe. A questão é decidida pelo próprio Tribunal, embora suscetível de recurso em caso de improcedência, recurso que tem até efeito suspensivo (art.º 42º C.P.P.).
Pelo contrário, o regime das escusas e recusas está sujeito a uma cláusula geral ou conceito indeterminado – a existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz (art.º 43º/1 C.P.P.). A técnica legislativa é pois a oposta da usada no normativo anteriormente referido, na tentativa de através dos dois preceitos se abrangerem todos os casos em que a imparcialidade do Juiz ou a sua aparência perante terceiros na versão do “homem médio”, nunca possa ser posta em causa. Pode mesmo ser motivo de recusa, a intervenção do Juiz noutro processo ou no mesmo processo, fora dos casos previstos no art.º 40º C.P.P.
O que quer dizer que uma participação anterior noutro ou no mesmo processo pode não gerar um impedimento, mas ser motivo de escusa ou recusa.
Por outro lado, enquanto o impedimento é ou não reconhecido pelo próprio Juiz, as escusas e recusas são decididas pelo Tribunal imediatamente superior ou perante o pleno da Secção Criminal do S.T.J. sem a participação do visado, caso esteja em causa Juiz do S.T.J. O pedido de escusa é formulado pelo próprio Juiz e o de recusa pode ser formulado pelo arguido, assistente ou partes civis – art.º 43º/3 e 4), C.P.P.
Está-se assim perante um sistema de vasos comunicantes, com utilização de duas técnicas legislativas e de dois sistemas de tramitação do processo, no sentido de se alcançar a justiça equitativa, de que o princípio da imparcialidade do Juiz constitui requisito básico.
Por outro lado, a anterior participação de um Juiz noutro Proc.º não pode ser causa de impedimento (art.º 40º C.P.P.), mas pode já ser causa de deferimento de recusa/escusa (art.º 43º/2 C.P.P.).
A referência no art.º 40º/1, b), C.P.P., à participação do Juiz em julgamento anterior refere-se à participação em julgamento no mesmo Proc.º, o que é claramente inaplicável ao caso dos autos – visto estarem em causa julgamentos diferentes e até com ofendidos diferentes.
Já quanto às recusas e escusas, estas podem efetivamente fundar-se na participação do Juíz, noutro Proc.º - art.º 43º/2 C.P.P. Necessário é porém, que aí se tenha tomado qualquer decisão ou atitude que possa ser entendível como um pré-julgamento destes autos ou aí se denuncie uma visão antecipada da decisão a proferir nestes.
Vejamos pois os factos concretos, no caso dos autos.

2 – Fundamentação

2.1. – Questão a Resolver
- 2.1.1. – Do Motivo Sério e Grave que Gera Desconfiança sobre a Imparcialidade do Juiz

2.1.1. - Do Motivo Sério e Grave que Gera Desconfiança sobre a Imparcialidade do Juiz

A Recusa é um incidente de suspeição sobre o Juiz e que visa acautelar os sentimentos de segurança e imparcialidade que sobre o mesmo impendem. A sua procedência determina a desafetação do Proc.º ao Juíz competente mediante processo aleatório – a distribuição - o que determina uma postergação do “princípio do Juíz Natural”, Constitucionalmente protegido (art.º 32º/9 C.R.P.).
Daí que um Juiz só possa ser recusado num Proc.º, quando corra o “risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” – art.º 43º/1 C.P.P.

A Jurisprudência tem dividido estes motivos, em dois tipos:
- os subjetivos, decorrentes de tratamentos ostensivos do Juiz contra o sujeito processual, que o farão ter dúvidas sobre a sua imparcialidade;
- os objetivos, decorrentes de qualquer anterior tomada de posição pelo Juiz, no mesmo ou em outro Proc.º, conexionada com o objeto do Proc.º e que podem também afetar a credibilidade na objetividade e imparcialidade do Juíz, por parte de terceiros, com referência ao “homem médio”.

Por outras palavras, está em causa o “ser” e o “parecer”, no sentido da afirmação da justiça e credibilidade das decisões judiciais.
Estando em causa tão lídimo objetivo e pressuposto da realização de justiça, tem-se também decidido que tais incidentes devem proceder se, ao comum dos cidadãos, no caso em concreto se puderem pôr dúvidas, sobre a isenção e imparcialidade do Juiz. A referida independência dos Juízes e dos Tribunais é também garantida Constitucionalmente (arts.º 203º e 216º C.R.P.).
Mas e como se disse, a referida Recusa só deve proceder, se ocorrer “motivo sério e grave” que possa criar dúvidas, sobre a imparcialidade do Juiz.
Ora, no caso concreto e relativamente à Senhora Juíza recusada, de modo algum pode pôr-se em causa, por qualquer motivo a sua imparcialidade e isenção. Julgou a arguida noutros dois processos, sempre em Coletivo e como Juíza Adjunta e é verdade que o tribunal coletivo em que interveio a condenou, mas também a absolveu em alguns dos crimes. Para além disso, não lhe é imputada qualquer atitude, alocução ou decisão de onde se possa retirar que não manteve sempre uma atitude de imparcialidade para com a arguida.
Veja-se até que é a própria que revela ter julgado a arguida em mais um processo, o 457/19...., em que a mesma também foi condenada – e também, parcialmente absolvida.
Aliás, a própria requerente imputa-lhe apenas a participação no julgamento realizado no Proc.º 1 535/17.....
Ora, é muito comum que em pequenos tribunais e mesmo nos de maior dimensão, arguidos com vários Procs.º sejam várias vezes julgados pelo mesmo Juíz, sendo que é claro que só por isso, não se pode pôr em causa a imparcialidade e isenção do Juiz.
Nem ao nível do inconsciente, pois os Juízes estão por demais treinados para julgar tendo em conta a prova produzida em julgamento e não tendo em conta os antecedentes criminais dos arguidos. O que se revela também no caso, pois a própria requerente foi também absolvida de alguns crimes, nos anteriores Procs.º 1 535/17.... e 457/19.....
Em termos subjetivos, a isenção e imparcialidade da Senhora Juíza não surge pois e de forma evidente, afetada.
Façamos agora a análise, nos citados termos subjetivos.
Não estamos ao nível da honorabilidade, independência e imparcialidade do Senhor Juiz, mas no da imagem que os sujeitos processuais afetados e a comunidade em geral iriam ter deste julgamento. Estamos como no caso da “Mulher de César”.
A questão é tão-só a de saber se, em termos sociais, a comunidade fica apreensiva quanto á isenção e imparcialidade do Juiz, quando ele já julgou o mesmo arguido em dois julgamentos anteriores, para mais não por decisão singular, mas coletiva.

Como se disse no Acórdão do S.T.J. de 6 de Julho de 2 005, em “C.J. – S.T.J.”, A. XIII, T. 2, pág. 236,
“A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospetivo e externo e de tal sorte que um interessado – ou mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão – possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vistas pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança entre os interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do Juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão”.
Ora, a verdade é que este tipo de situações acontece múltiplas vezes, em grandes e em pequenos tribunais, sem que alguém ponha, só por isso em causa, a isenção e imparcialidade do Juiz.
Por outras palavras, em termos sociais tais factos não implicam qualquer juízo de suspeição sobre o Magistrado e muito menos aqui, que está em causa um julgamento em tribunal coletivo.
O arguido mantém todas as garantias de defesa, podendo requerer, alegar e recorrer do que houver por conveniente, não se podendo pois dizer que esteja em causa o seu núcleo de defesa Constitucionalmente protegido, pelo art.º 32º/1 C.R.P. – como invocado pelo arguido requerente.
Consideramos pois, que nos termos do disposto nos arts.º 45º/1 C.P.P., a presente Recusa deve ser recusada, por manifestamente infundada..
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Termos em que, se decide

3 – Decisão

a) considerar manifestamente infundado o pedido de recusa da arguida CC, que assim é recusado.
b) Custas pelo requerente, com 6 (seis) U.C.`s de taxa de justiça – art.º 45º/7 C.P.P.
c) Notifique.
Guimarães, 2 de Maio de 2 023

(Pedro Cunha Lopes)
(Fátima Furtado)
(Armando Azevedo)