Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4201/09.8TBGMR.G2
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA DE CONCESSÃO
OMISSÃO DO DEVEDOR DE ENTREGAR AO FIDUCIÁRIO RENDIMENTOS
DOLO/NEGLIGÊNCIA GRAVE DO DEVEDOR
RENDIMENTO INDISPONÍVEL INFERIOR AO SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A simples omissão do devedor de entregar ao fiduciário a parte dos rendimentos objeto de cessão não é fundamento bastante de recusa de concessão de exoneração do passivo restante, apenas a podendo fundamentar um comportamento doloso ou gravemente negligente do devedor.

II – É havida como negligência grave a “negligência grosseira, o erro imperdoável, a desatenção inexplicável, a incúria indesculpável”, vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes.

III – É contrária à Constituição a fixação de um rendimento indisponível de valor inferior ao do salário mínimo nacional, já que o direito ao salário se afirma como um direito fundamental de qualquer trabalhador, sendo de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, e aquele valor mínimo é o havido pelo próprio Estado como estritamente necessário a satisfazer as necessidades decorrentes da alimentação, preservação da saúde e habitação do trabalhador e do seu agregado familiar, necessidades que, inegavelmente, estão correlacionadas com a dignidade da pessoa humana, com o que se devem ter por justificadas as não entregas (pelo devedor ao fiduciário) de valores correspondentes à diferença entre aquele que foi fixado no despacho como rendimento indisponível e o valor do salário mínimo nacional vigente no ano em que se inicia o quinquénio e em cada um dos anos subsequentes.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- A insolvente M. J. requereu, nestes autos de insolvência, a exoneração do passivo restante.

Admitido liminarmente este pedido, uma das obrigações a que ficou sujeita a Insolvente foi a de entregar ao fiduciário “quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos que exceda os € 450” mensais, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, encerramento que veio a ocorrer por despacho proferido em 24/04/2013, que foi notificado aos credores em 26 do mesmo mês, e foi publicitado.

O Senhor Fiduciário remeteu aos autos os relatórios a que alude o art.º 61.º, n.º 1, ex vi do n.º 2 do art.º 240.º, ambos do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (C.I.R.E.).

Após a remessa do 3.º relatório reportado ao período de cessão, e porque se apurou que a insolvente auferiu rendimentos superiores à medida das entregas realizadas, foi proferido despacho no qual se decidiu recusar a exoneração do passivo restante, decisão que foi revogada por este Tribunal da Relação.

Foi entretanto alcançado o termo do período de cessão e o Senhor Fiduciário fez juntar aos autos o último relatório, no qual deu conta de a Insolvente apenas ter entregue, até à data, a importância de € 820,90, e de que resulta dos elementos recolhidos que a mesma tem vindo a auferir valores muito superiores ao montante fixado como rendimento indisponível.

Notificados os credores nos termos e para os fins referidos no art.º 244.º, n.º 1 do C.I.R.E., nenhum deles se pronunciou.

A Insolvente veio aos autos reiterar não lhe ter sido possível ceder outras quantias para além das cedidas já que, com a sua colocação como docente na Escola Básica e Secundária do ..., nos …, as despesas dobraram com o pagamento da renda de casa nos Açores e em Guimarães, água, gás e electricidade de ambas as casas.

Em Setembro de 2016 foi colocada a leccionar na Escola Básica Integrada de ..., Ilha de ..., nos Açores, mas, como comprovou com atestado médico que juntou aos autos em 30/01/2017, porque a doença do foro oncológico de que padece se voltou a manifestar, entrou de baixa médica, assim tendo permanecido durante todo o ano lectivo, tendo passado a ser acompanhada por médicos da especialidade de psiquiatria e de neurologia, e tido a necessidade de fazer tratamentos de fisioterapia. Mais alega que por lhe ter aparecido uma fístula na boca os dentes começaram a cair tendo tido necessidade de fazer um tratamento no que gastou a importância de € 2.750,00.

Alega que de 12/09/2016 a 18/01/2017 auferiu parcas quantias que lhe não permitiram ceder qualquer importância, situação que se manteve até 31/08/2017, data em que cessou o seu contrato de trabalho, por continuar com incapacidade para o trabalho, tendo-se visto ainda na contingência de devolver a quantia de € 1.456,52 que havia sido indevidamente paga pela Escola Básica Integrada de ....
Esteve desempregada desde 01/09/2017 a 12 dos mesmos mês e ano, regressando aos Açores para aí voltar a leccionar, tendo gasto € 547 na compra do bilhete de avião, as quantias de € 312,50 e 210,00 com a realização de uma facoemulsificação do cristalino, a aquisição de uma armação de óculos e de uma lente, com tratamento, e bem assim a quantia de € 500,00 com o arrendamento de uma habitação nos Açores. Afirma ainda que desde aquela data até Abril de 2018 continuou impossibilitada de proceder à cessão de qualquer quantia por ter de suportar despesas a dobrar e ter tido necessidade de devolver a quantia de € 315,94 indevidamente recebida pelo seu filho a título de prestações familiares.

Seguidamente foi proferido douto despacho decidindo recusar a exoneração do passivo restante requerido pela Insolvente, com fundamento no disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 243.º daquele Código.

Inconformada, traz a Insolvente o presente recurso, pedindo a revogação da supramencionada decisão.

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Colhidos, que foram, os vistos legais, cumpre decidir.
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II.- A Apelante funda o seu recurso nas seguintes conclusões:

A.1 - Por despacho datado do dia 29/04/2011, a fls. 417 e ss, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante requerido pela Recorrente, tendo-se consignado que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, a Recorrente deveria ceder mensalmente a quantia que excedesse os € 450,00.
A.2 - Contudo, salvo o devido respeito por melhor opinião, se a Recorrente não cedeu quantias superiores às cedidas, tal deveu-se ao facto de não ter qualquer possibilidade de o fazer.
A.3 - Pois, se por um lado, de Abril de 2013 a Abril de 2014, os rendimentos líquidos auferidos pela Recorrente a título de salário e de subsídio de desemprego não ultrapassaram a quantia de € 450,00 e como tal, não estava obrigada a ter que ceder qualquer quantia, por outro lado, em face dos parcos rendimentos auferidos, a Recorrente viu-se na contingência de ter de utilizar a quantia auferida a título de IRS no montante de € 187,53 e as quantias auferidas pelo seu filho a título de prestações familiares, por forma a poder proceder ao pagamento da renda da sua habitação sita na cidade de Guimarães no montante de € 240,00 e bem assim, pagar a água, luz, gás, telefone, mobília comprada, alimentar-se, vestir-se, medicamentar-se, o mesmo fazendo relativamente ao seu filho.
A.4 - Assim e atento o supra exposto, não há dúvidas absolutamente nenhumas que de 25 de Abril de 2013 a Abril de 2014 a Insolvente não tinha que proceder à entrega de qualquer quantia ao Ex.mo Sr. Fiduciário, não tendo, dessa forma, violado qualquer das obrigações a que estava vinculada.
A.5 - Acresce que, de Maio a 21 de Setembro de 2014, a Insolvente não esteve a trabalhar e não auferiu qualquer rendimento seja a que título for.
A.6 - E, apesar de no dia 22/09/2014, ter sido colocada a lecionar, tal veio a suceder nos Açores, o que obrigou a Recorrente a arrendar uma habitação naquela localidade, tendo, durante aquele período, despendido a título de renda a quantia mensal de € 300,00.
A.7 - Apesar da Recorrente não ter junto aos autos qualquer recibo de renda relativamente àquele período, para comprovar o supra alegado, é do senso comum e resulta à saciedade que neste tipo de arrendamentos precários e de curta duração, os senhorios apenas celebram contratos verbais e não emitem qualquer recibo de renda e sendo certo que, a Recorrente vivia no Continente, vendo-se na contingência de ter que ir trabalhar para o arquipélago dos Açores, obrigatoriamente, teve que arrendar uma habitação naquela localidade.
A.8 - Acresce que, conforme consta dos factos provados, em virtude da doença oncológica de que padeceu, durante o período de cessão, a Insolvente teve necessidade de se deslocar por amiúdes vezes ao Hospital Nossa Senhora da Oliveira em Guimarães para ser acompanhada nas consultas de oncologia, conforme recomendações de boas práticas clínicas, tendo, para o efeito, tido necessidade de comprar os respetivos bilhetes de avião, o que, obviamente, também fez aumentar as suas despesas.
A.9 - Pelo que, a Meritíssima Juiz a quo, deveria ter dado como provado que, não obstante, naquele período, a Recorrente ter auferido quantias superiores ao rendimento indisponível, as despesas da Insolvente passaram a ser a dobrar, pagando € 240,00 da casa de Guimarães, € 300,00 da casa dos Açores e cerca de € 80,00 em cada uma dessas casas a título de água, luz, gás e telefone, tudo no montante total de € 700,00, a que acresceram as despesas com a sua alimentação e do seu filho, com as despesas medicamentosas, de vestuário, de higiene, com o apoio ao estudo individualizado prestado ao seu filho e todas as outras despesas do dia-a-dia e como tal, não tinha qualquer possibilidade de dispor de todas as quantias auferidas acima do valor indisponível.
A.10 - Apesar de no terceiro ano de cessão, a Recorrente ter conseguido arrendar uma habitação no arquipélago dos Açores, pelo montante de apenas € 180,00, o que é certo é que a Recorrente para se deslocar para o seu local de trabalho, viu-se na contingência de ter que adquirir um passe para andar de transportes públicos, despendendo para o efeito, a quantia de mensal de € 80,00, mantendo assim todas as despesas a que supra se fez referência e que a impossibilitavam de ceder ao Ex.mo Sr. Fiduciário quantias superiores àquelas que cedeu.
A.11 - Para piorar a situação, para além da doença oncológica de que a Recorrente padece ter voltado a manifestar-se, o que a levou a estar de baixa médica durante todo o ano letivo de 2016/2017, e de várias outras doenças se terem manifestado, a Recorrente ainda se viu na contingência de ter que devolver a quantia de € 1.456,52 que havia sido indevidamente paga pela Escola Básica Integrada de ..., o que também fez aumentar exponencialmente as suas despesas.
A.12 - Findo o referido contrato de trabalho, a Insolvente esteve desempregada desde o dia 01/09/2017 ao dia 12/09/2017, data em que regressou aos Açores para lecionar novamente e desde essa data, até Abril de 2018, a Insolvente continuou impossibilitada de proceder à cessão de qualquer quantia, devido ao facto de continuar a ter que suportar despesas a dobrar e de ter tido a necessidade de ter que devolver a quantia de € 315,94, indevidamente recebida pelo seu filho, a título de prestações familiares, além de que, a quantia recebida em 09/05/2018, a título de reembolso de IRS, no montante de € 790,00, ocorreu em momento posterior ao período de cessão (24/04/2018), devendo, como tal, tal facto ser retirado dos factos provados.
A.13 - Todas estas circunstâncias e todas as outras que foram alegadas nos autos, fizeram com que a Recorrente tivesse utilizado a quase totalidade das quantias recebidas, para fazer face às despesas do dia-a-dia, impedindo-a de depositar na conta do Sr. Fiduciário a totalidade das quantias monetárias auferidas acima do rendimento indisponível.
A.14 - Motivo pelo qual, deve o despacho recorrido ser revogado e em sua substituição ser proferido outro que conceda à Insolvente a exoneração do passivo restante.
B.1 - Como se sabe, em consequência do despacho inicial da exoneração, o Insolvente fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no art.° 239° do CIRE, podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a recusa da exoneração do passivo.
B.2 - No caso que nos ocupa a recusa de exoneração foi declarada com fundamento na violação pela Insolvente da obrigação que sobre a mesma impendia e contida no art.º 239º, n.º 4, al. c), do CIRE, presumindo que essa infração foi praticada com negligência grave, dada a inexistência de qualquer justificação para a sua conduta.
B.3 - Efetivamente e apesar de justificada, está demonstrado que, meses houve, em que a Insolvente não entregou ao Sr. Fiduciário a quantia que mensalmente auferiu acima do montante de € 450,00.
B.4 - Contudo, a verificação da violação dessa condição, só por si, não conduz ao preenchimento do requisito constante do n.º 1, a), do art.º 243° do CIRE, pois é exigido que o devedor tenha atuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
B.5 - Todavia, o tribunal a quo nenhum prejuízo ou facto concretizou, nem tão pouco foi estabelecido o nexo entre o montante não entregue e o efetivo prejuízo para cada um dos credores ou para os cofres do Estado, sendo que, dos factos provados, nada a esse respeito é abordado.
B.6 - O prejuízo para os Credores, deve, em nosso entendimento, ser um prejuízo relevante, e in casu, a atuação da Insolvente não causou um verdadeiro prejuízo que coloque em causa a satisfação dos créditos sobre a insolvência, dado o valor diminuto que em face das despesas suportadas podia ceder em comparação com o valor total do seu passivo e o facto do credor reconhecido ser uma entidade bancária que tem reservas próprias para compensar créditos incobráveis.
B.7 - Como tal, a decisão do Tribunal a quo tem-se como uma consequência demasiado gravosa para a Recorrente, quando comparada com o prejuízo causado aos Credores, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente regulado no artigo 18.°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
B.8 - Sendo que, o despacho ora recorrido violou as disposições conjugadas dos artigos 243.°, n.º 1, alínea a) do CIRE e artigo 18.°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
B.9 - Pelo que, ao não se encontrar preenchido um dos pressupostos de facto para a recusa da exoneração do passivo, deverá revogar-se o despacho recorrido e em sua substituição ser proferido outro que conceda à Insolvente a exoneração do passivo restante.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Atentas as conclusões acima transcritas pretende a Apelante que:

- se altere a decisão de facto, nos termos que refere nas conclusões A.6; A.7; e A.9;
- se reverta o sentido da decisão do incidente, considerando-se justificadas as não entregas das importâncias que excederam o rendimento indisponível face ao aumento das despesas que teve de suportar.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

i) Considerou provado que:

a) Por sentença datada de 02.07.2010 foi declarada a insolvência de A. R. e de M. J. na sequência do requerimento apresentado pela credora ... – Combustíveis e Lubrificantes Lda. (cfr. fls. 114ss);
b) Por despacho datado de 29.04.2011, pacificamente transitado em julgado, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência a insolvente deveria ceder mensalmente ao fiduciário a quantia que excedesse os € 450 mensais (cfr. fls. 417ss)
c) O processo de insolvência foi encerrado por despacho datado de 24.04.2013, pacificamente transitado em julgado (cfr. fls. 625);
d) Durante o 1.º ano do período de cessão a insolvente não entregou ao Exmo. Sr. Fiduciário qualquer quantia (cfr. fls. 687ss);
e) Durante o período de cessão a insolvente entregou ao Exmo. Sr. Fiduciário as seguintes quantias: (cfr. fls. 745 e 757, 819v, 835v/836 e 1147v/1148)

- Novembro de 2014 - €140;
- Janeiro de 2015 - €140;
- Março de 2015 - €40;
- Maio de 2015 - €40;
- Julho de 2015 - €100;
- Novembro de 2015 - €40;
- Dezembro de 2015 - €70,90;
- Janeiro de 2016 - €40;
- Fevereiro de 2016 - €40;
- Março de 2016 - €40;
- Abril de 2016 - €40;
- Maio de 2016 - €40;
- Agosto de 2016 - €50
f) A insolvente auferiu os seguintes rendimentos entre Abril de 2013 e Maio de 2018: (cfr. fls. 690ss, 719, 728, 733ss, 749ss 782ss, 801ss, , 829ss, 849ss, 954v, 1031, 1038v, 1153ss):
- ano de 2013 – Abril: € 734,40; Maio: € 633,50; Junho: € 633,50; Julho: € 1.144,66; Agosto: € 423,30; Setembro: € 423,30; Outubro: € 409,86; Novembro: € 419,10; Dezembro: € 419,10;
- ano de 2014 – Janeiro: € 423,30; Fevereiro: € 423,30; Março: € 423,30; Setembro: € 513,45; Outubro: € 1.421,42; Novembro: € 1.027,57; Dezembro: € 1.101,49;
- ano de 2015 – Janeiro: € 1.335,29; Fevereiro: € 1.136,22; Março: € 532,98; Abril: € 1.144,01; Maio: € 1.209,04; Junho: € 1.044,38; Julho: € 1.573,95; Agosto: € 1.157,80; Setembro: € 615,68; Outubro: € 880,81; Novembro: € 910,70; Dezembro: € 914,97;
- ano de 2016 - Janeiro: € 927,78; Fevereiro: € 937,78; Março: € 940,05; Abril: € 940,05; Maio: € 918,72; Junho: € 1.749,29; Julho: € 938,81; Agosto: € 904,65; Setembro: € 1.655,93 [€ 1.283,72 a título de vencimento (fls. 1153v) e € 372,21 a título de subsídio de doença (fls. 1038v)]; Outubro: € 1.085,52 [€ 437,29 a título de vencimento (fls. 1154) e € 648,23 a título de subsídio de doença (fls. 1038v)]; Novembro: € 723,38 [€ 82,28 a título de vencimento (fls. 1154v) e € 641,10 a título de subsídio de doença (fls. 1153v)]; Dezembro: € 800,93 [€ 78,01 a título de vencimento (fls. 1155) e € 722,21 a título de subsídio de doença (fls. 1038v)];
- ano de 2017 - Janeiro: € 818,79 [€ 45,96 a título de vencimento (fls. 1155v) e € 772,83 a título de subsídio de doença (fls. 1038v)]; Fevereiro: € 730,21 [€ 32,17 a título de vencimento (fls. 1156) e € 698,04 a título de subsídio de doença (fls. 1227)]; Março: € 818,81[€ 45,98 a título de vencimento (fls. 1156v) e € 772,83 a título de subsídio de doença (fls. 1227)]; Abril: € 779,82 [€ 31,92 a título de vencimento (fls. 1157) e € 747,90 a título de subsídio de doença (fls. 1227)]; Maio: € 822,83 [€50 a título de vencimento (cfr. fls. 1157v) e €772,83 a título de subsídio de doença (cfr. fls. 1227)]; Junho: € 1.896,25 [€1.148,35 a título de vencimento (cfr. fls. 1158) e €747,90 a título de subsídio de doença (cfr. fls. 1227)]; Julho: € 809,27 [€ 36,44 a título de vencimento (cfr. fls. 1159) e € 772,83 a título de subsídio de doença (cfr. fls. 1227)]; Agosto: € 1.582 [€408,63 a título de vencimento (cfr. fls. 1159v) e €772,83 a título de subsídio de doença (cfr. fls. 1227)]; Setembro: € 1.131,22 [€886,72 a título de vencimento (cfr. fls. 1160) e €244,50 a título de subsídio de desemprego (cfr. fls. 1227)]; Outubro: € 1.250,98; Novembro: € 1.421,34; Dezembro: € 1.236,76;
- ano de 2018 - Janeiro: € 1.209,22; Fevereiro: € 1.221,68; Março: € 1.215,45; Abril: € 343,01; Maio: € 724,05;
g) À insolvente foram efectuados reembolsos a título de IRS:
- Em 28.05.2013, no valor de € 187,53; (cfr. fls. 846)
- Em 10.06.2015, no valor de € 538,80; (cfr. fls. 772)
- Em 06.06.2016, no valor de € 956,85; (cfr. fls. 846)
- Em 09.06.2017, no valor de € 1.181; (cfr. fls. 1203 e 1225)
- Em 09.05.2018, no valor de € 790 (cfr. fls. 1203 e 1225)
h) No ano lectivo 2014/2015 a insolvente leccionou nas Escolas Secundárias da … e …, na região autónoma dos Açores (Ilha de ...); (cfr. fls. 801ss)
i) No ano lectivo 2015/2016 a insolvente leccionou na Escola Secundária do ... (ilha de ..., Região Autónoma dos Açores);(cfr. fls. 802 e 850ss);
j) No ano lectivo 2016/2017 a insolvente leccionou na Escola Básica e Secundária das ... (ilha de ..., Região Autónoma dos Açores);
k) No ano lectivo 2017/2018 a insolvente leccionou na Escola Secundária da ... (ilha de ..., Região Autónoma dos Açores);
l) A insolvente mantém uma casa arrendada na cidade de Guimarães desde pelo menos o início do período de cessão, onde afirma ter ficado a residir o seu filho menor, pagando mensalmente a título de renda a quantia de € 240 (cfr. fls. 735ss e 872ss);
m) A insolvente esteve presente nas consultas de oncologia do Hospital N. Sra. Da Oliveira em Guimarães, durante o período de cessão a considerar, nos dias: (cfr. fls. 1000v/1001)
- 30.04.2013; 27.05.2013; 29.07.2013; 28.11.2013;
- 07.04.2014; 11.08.2014; 29.12.2014;
- 30.03.2015; 03.09.2015; 28.12.2015;
- 04.04.2016; 12.09.2016; 20.09.2016; 20.10.2016; 16.11.2016; 18.11.2016 e 19.12.2016.
n) O Hospital de Ponta Delgada tem a valência de oncologia, tendo sido opção da insolvente manter as consultas no CHAA;
o) A insolvente pagou a título de “apoio a estudo individualizado” ao filho menor: (fls. 927vss)
- € 84 no mês de Junho de 2014; € 122 no mês de Julho de 2014;
- € 70 no mês Março de 2015; € 70 no mês Abril de 2015; € 70 no mês Maio de 2015; € 10 no mês de Setembro de 2015; € 42 no mês de Outubro de 2015; € 51 no mês de Novembro de 2015; € 46,50 no mês de Dezembro de 2015;
- € 60 no mês de Janeiro de 2016; € 60 no mês de Fevereiro de 2016; € 60 no mês de Março de 2016; € 60 no mês de Abril de 2016; € 60 no mês de Maio de 2016.
p) A insolvente recebeu do ISS a título de abono de família devido ao filho menor durante o período de cessão:
- ano de 2013 – Abril: € 106,41; Junho: € 106,41; Agosto: € 106,41; Setembro: € 106,41; Novembro: € 106,41; Dezembro: € 106,41.
- ano de 2014 – Janeiro: € 138,97; Fevereiro: € 138,97; Março: € 138,97; Maio: € 138,97; Junho: € 138,97; Agosto: € 138,97; Setembro: € 138,97; Novembro: € 138,97.
- ano de 2015 – Janeiro: € 138,97; Fevereiro: € 138,97; Abril: € 138,97; Maio: € 138,97; Julho: € 138,97; Agosto: € 138,97; Setembro: € 138,97; Outubro: € 138,97; Dezembro: € 138,97.
- ano de 2016 – Janeiro: € 138,97; Fevereiro: €157,33; Abril: € 161,04; Maio: € 161,04; Setembro: € 161,04; Outubro: € 161,04; Dezembro: € 161,04.
- ano de 2017 – Janeiro: € 157,97; Fevereiro: € 157,97; Abril: € 157,97; Junho: € 157,97; Julho: € 157,97.
q) O filho da insolvente encontra-se a trabalhar desde pelo menos Setembro de 2017 (cfr. fls. 985ss e 1211ss);
r) A insolvente encontra-se a ser acompanhada na especialidade de Psiquiatria desde 07.10.2016, encontrando-se medicada com Venlafaxina (150 mg/dia) e Bromazepan (3 mg/dia); (cfr. fls. 875)
s) Em 14.10.2016 a insolvente decidiu substituir a prótese esquelética (vulgo dentadura) que usava por espigões e pontes, tendo ainda efectuado um tratamento de branqueamento dentário, no que despendeu € 2.750 (cfr. fls. 887, 887v e 904);
t) A insolvente apenas iniciou tratamentos fisiátricos para omartrose bilateral de que padecerá em Janeiro de 2017 (cfr. fls. 876, 890 e 915ss);
u) À insolvente não são conhecidos antecedentes criminais (cfr. fls. 1209ss).

ii) Julgou não provado que: (não constando do original a numeração, acrescenta-se para mais fácil identificação dos factos impugnados).

1) A insolvente tivesse tomado de arrendamento uma habitação da região autónoma dos Açores, pagando mensalmente, a título de renda, a quantia de €180;
2) No ano de 2015 a insolvente tenha tido necessidade de adquirir lentes progressivas, nas quais despendeu €420;
3) Que no ano de 2015 a insolvente tenha gasto €180 na compra de umas lentes para o seu filho menor;
4) Que o filho menor da insolvente tome medicação regularmente para a hiperactividade, tendo-o feito durante todo o período de cessão a considerar;
5) Que a substituição da prótese esquelética por espigões e pontes se tenha ficado a dever ao facto de ter aparecido uma “fístula” na boca.
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V.- Como se deixou referido, a Apelante impugna a decisão de facto, mais especificamente no que se refere ao facto “não provado” n.º 1, alegando não possuir os recibos da renda porque, como acontece em situações semelhantes, nos arrendamentos de curta duração os contratos são celebrados verbalmente e os senhorios não emitem qualquer recibo.

Esta afirmação já havia sido produzida nos autos pela Apelante, no seu requerimento de fls. 906-907, de 04/05/2017, no qual indica a morada: “Rua ...”, e o nome da senhoria: “C. C.”, sendo certo que a primeira colocação da Apelante nos Açores foi “em regime de substituição temporária” (licença de parto) e com um horário incompleto, de 19 horas semanais – cfr. a “Declaração” de fls. 732 (2.º vol.), emitida pela Escola Secundária de ....

Sem embargo, as regras da experiência comum, o normal do acontecer em situações semelhantes à acima descrita, apenas permitem extrair que a Apelante teve de encontrar um alojamento pelo qual pagou importância não apurada, e já não a quantia invocadamente paga e nem os demais gastos alegados, relativos à água e luz.

Relativamente à demais facticidade a prova documental para a qual remete o Tribunal a quo impõe que, até por simples questão de fidelidade aos dizeres dos referidos documentos, se alterem as alíneas q) e s), nos termos que infra ficarão consignados.

A mesma motivação sustenta a decisão de introduzir um facto correctivo no rendimento da Apelante relativo a Agosto de 2017 já que, como resulta dos documentos de fls. 953v.º e 960v.º (3.º volume) a Apelante teve de devolver a importância de € 1.456,52 que lhe foi processada naquele mês.

Impõe-se ainda corrigir o que se afigura constituir um lapso relativamente ao rendimento auferido pela Apelante no mês de Abril de 2013, que, como resulta das informações prestadas pela Segurança Social, a fls. 754 (2.º vol.) e 1031 (3º vol.) e até pela Câmara Municipal de …, a fls. 728 (2º vol.) foi de € 590,45 e não os € 734,40 que constam da alínea f).

Finalmente, os autos contêm outros factos que se crêem relevantes para a decisão, para os quais a Apelante chama a atenção, designadamente os que se prendem com a origem dos créditos, e também os pagamentos que já foram feitos aos credores – no âmbito destes autos foi vendido um bem imóvel e diversos bens móveis (mobiliário de casa), tendo sido rateada pelos Credores a importância de € 63.087,08, como se vê do “Rateio Final” constante de fls. 571 (2.º volume).
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VI.- Termos em que se altera a decisão de facto como se segue:

1.- as alíneas q) e s) ficam com a seguinte redacção:

q) O filho da Apelante/Insolvente trabalhou nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2017 e 5 dias em Março e 14 dias em Abril de 2018 (cfr. informação prestada pelo ISS em 29/10/2018, constante de fls. 1211v.º e 1212 – 4.º vol.).
s) Em 14.10.2016, depois de realizada radiografia, foi recomendado à Insolvente o seguinte tratamento: Destartarização; Desvitalização dos dentes 21/13/23/24; Colocação de um espigão individualizado nos dentes 21/13/23/24; Colocação de uma ponte nos dentes 11/12/21/22/23; Restauração indirecta no dente 46, tendo ela, Insolvente, aceitado este tratamento e efectuado ainda um tratamento de branqueamento dentário, no que despendeu a quantia total € 2.750 (cfr. fls. 887, 887v e 904);
f) No mês de Abril de 2013 a Apelante recebeu, de subsídio de desemprego parcial, de remuneração e de subsídio de Natal, a importância total de € 590,45.

2.- Aditam-se à facticidade provada os seguintes factos:

v) Dos valores que recebeu, a Apelante teve de devolver a quantia de € 1.456,52 processada no recibo de vencimentos relativo ao mês de Agosto de 2017 – cfr. docs. de fls. 953v.º e 960v.º (3.º volume), que se dão aqui por reproduzidos.
x) Nestes autos de insolvência foram reconhecidos créditos no valor total de € 447.450,10, que eram dívidas de duas empresas das quais a Apelante era sócia, sendo gerente o seu ex-marido, também aqui Insolvente, A. R., tendo ambos prestado garantias pessoais por tais dívidas.
y) Nestes autos foram apreendidos um bem imóvel e diversos bens móveis (mobiliário) que foram vendidos, tendo o produto da venda, no valor total de € 64.358,65, retirado o valor das custas (€ 1.271,57), sido rateado pelos Credores (€ 63.087,08) – cfr. fls. 571 (2.º volume), que aqui se dá por reproduzido.
z) A Apelante/Insolvente nasceu em 30/08/1966.
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VII.- 1.- O instituto da exoneração do passivo restante configura uma medida especial de protecção das pessoas singulares que caíram na insolvência.

O que preside à sua ratio é o respeito pela dignidade da pessoa humana.

Como ficou a constar do n.º 45 do preâmbulo do Dec.-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, a introdução do referido instituto visou “a reabilitação económica” do devedor singular insolvente, conjugando “o princípio fundamental do ressarcimento dos credores” com a possibilidade deste se libertar “de algumas das suas dívidas”.

Durante o período de cinco anos o devedor permanece “ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos”, assumindo, “entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (...) a um fiduciário (…) que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores”.

O despacho de exoneração libertará, então, o devedor das dívidas ainda pendentes de pagamento se este, durante o referido período de cinco anos “tiver cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam”, justificando a “conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar” que lhe seja concedido o benefício da exoneração, “permitindo a sua reintegração plena na vida económica”.

Como refere CATARINA SERRA “a intenção da lei é libertar o devedor das suas obrigações … para que depois de ‘aprendida a lição’ ele possa retomar a sua vida”, dar-se-lhe oportunidade de obter um ‘fresh start’ (in “O Novo Regime Português da Insolvência” 4ª. edição, págs. 133 e sgs.).

Sendo, pois, uma situação transitória, exigir-se-á do devedor que faça um particular esforço de contenção de despesas, de modo a que se atenuem, na medida do possível, as perdas que, para os credores, advirão da exoneração do passivo.

Contudo, deverá ter-se igualmente presente que o rendimento indisponível visa garantir a satisfação de direitos de personalidade – direito à habitação e à saúde, que inclui a alimentação e o vestuário -, pelo que a determinação do seu valor há-de nortear-se pelo ponto de equilíbrio entre os interesses dos credores e o que deva ser considerado necessário para a satisfação das necessidades ditadas por aqueles direitos.

Não sendo possível conjugar os referidos direitos com estes interesses dos credores, atenta a natureza puramente económica destes, terão de ceder perante aqueles, desde que tal aconteça em termos razoáveis – cfr. art.º 335.º do C.C..

2.- Nos termos do disposto no art.º 244.º, n.º 2 do C.I.R.E. a exoneração é recusada ocorrendo alguma das situações descritas no art.º 243.º, designadamente quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe foram impostas pelo art.º 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência – alínea a) do n.º 1 do referido art.º 243.º.

Dentre as obrigações impostas ao devedor, elencadas no n.º 4 do referido art.º 239.º, importa realçar a da entrega imediata ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto da cessão – alínea c); mas também a de exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto, nos termos constantes da alínea b).

Como vem sendo pacificamente entendido, a simples omissão do devedor de entregar ao fiduciário a parte dos rendimentos objecto de cessão não é fundamento bastante de recusa de concessão de exoneração do passivo restante - cfr., por todos, o Ac. desta Relação de Guimarães de 04/05/2017 [ut Proc.º 3931/10.6TBBCL.G1, (António Sobrinho), in www.direitoemdia.pt e www.dgsi.pt].

Com efeito, por determinação legal, apenas o comportamento doloso ou gravemente negligente pode fundamentar a recusa da exoneração.

Refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 04/05/2017, que “o dolo comporta um elemento cognitivo e um elemento volitivo”, actuando o insolvente dolosamente “quando se decida pela actuação contrária ao direito”. Assim, “se a violação do dever – v.g., de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – constitui intenção específica da conduta do insolvente, há dolo directo; se essa violação não é directamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta, o dolo é necessário; finalmente, se a violação não é directamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta, há dolo eventual” [ut Proc.º 747/11.6TBTNV-J.C1, (Henrique Antunes), in www.direitoemdia.pt e www.dgsi.pt].

No que se refere à “negligência grave”, ou culpa grave, ensina INOCÊNCIO GALVÃO TELES que ela se apresenta como “uma negligência grosseira”, definindo-a os romanos como um “non intelligere quod omnes intelligunt”. E assim, “só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida” (in “Direito das Obrigações”, 5.ª ed., págs. 325-326).

ANA PRATA, citando doutrina estrangeira, refere que culpa grave é o mesmo que “negligência grosseira, erro imperdoável, desatenção inexplicável, incúria indesculpável – vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes” (in “Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual”, Reimpressão, págs. 306 a 308 e nota-de-rodapé 643 in fine).

Refere o Acórdão desta Relação de Guimarães de 11/10/2018, que a negligência grosseira “corresponde à falta grave e indesculpável, que consiste na omissão dos deveres de cuidado, por não se ter usado daquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas, pelo que se exige um dever de prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo” [ut Proc.º 3695/ 12.9TBGMR.G1, (Maria dos Anjos Melo Nogueira], in www.direitoemdia.pt e www.dgsi.pt).

O outro requisito é o do prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Ainda nos termos do Acórdão supra referido, o preenchimento deste requisito exige “a verificação de comportamentos que impossibilitem, dificultem ou diminuam a possibilidade de os credores obterem a satisfação dos seus créditos: uma diminuição do património, uma oneração do mesmo ou comportamentos geradores de novas dívidas a acrescer àquelas que já integravam o passivo que o devedor já não conseguia satisfazer”.
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VIII.- Uma das questões que a Apelante vem suscitando nos autos é a de saber se, tendo sido fixado como rendimento indisponível a importância de € 450,00, valor inferior ao do salário mínimo nacional ao tempo do termo inicial do prazo de cinco anos – em 2013 o SMN era de € 485 - não se imporá fazer uma interpretação actualizadora do valor daquele rendimento, fazendo-o coincidir com o valor do SMN vigente em cada um dos referidos cinco anos (em 2013 e 2014 - € 485; em 2015 - € 505; em 2016 - € 530; em 2017 - € 557; e em 2018 - € 580), sem necessidade de requerimento do devedor e intervenção do tribunal (actualmente vem-se afirmando como regra fazer constar nos despachos de concessão efectiva da exoneração a actualização do valor do rendimento indisponível nos termos propugnados).

Com efeito, é jurisprudência assente no Tribunal Constitucional que o salário mínimo nacional tem subjacente o juízo de ser a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades decorrentes da sobrevivência digna do trabalhador. Será o mínimo dos mínimos que consinta a um trabalhador um nível de vida acima do nível de sobrevivência que, entre nós, é dado pelo rendimento social de inserção.

É, de resto, a própria Constituição a impor ao Estado o dever de estabelecer e actualizar o salário mínimo nacional “tendo em conta, entre outros factores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento” – cfr. alínea a) do nº. 2 do artº. 59º., da Constituição.

Estas considerações conduzem à conclusão de ser contrária à Constituição a fixação de um rendimento indisponível de valor inferior ao do salário mínimo nacional, já que o direito ao salário se afirma como um direito fundamental de qualquer trabalhador, sendo de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, e aquele valor mínimo é o havido pelo próprio Estado como estritamente necessário a satisfazer as necessidades decorrentes da alimentação, preservação da saúde e habitação do trabalhador e do seu agregado familiar, necessidades que, inegavelmente, estão correlacionadas com a dignidade da pessoa humana.

Deste modo propendemos para considerar que devem ter-se por justificadas as não entregas de valores correspondentes à diferença entre aquele que foi fixado no despacho como rendimento indisponível e o valor do salário mínimo nacional vigente no ano em que se inicia o quinquénio e em cada um dos anos subsequentes.

Constituindo uma das obrigações do devedor “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo” e não recusar “desrazoavelmente algum emprego para que seja apto” (alínea b) do n.º 4 do art.º 239.º, referido), coerentemente, na fixação do valor do rendimento disponível haverão de ser tidos em consideração os gastos que se tenham por razoavelmente necessários ao exercício pelo devedor da sua actividade profissional, conforme dispõe o n.º 3, ponto ii) do mesmo art.º 239.º.
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IX.- Como estabelece o art.º 235.º do C.I.R.E., o prazo de cinco anos tem o termo inicial no momento seguinte ao do encerramento do processo de insolvência.

Ficou provado que o processo de insolvência foi encerrado por despacho datado de 24/04/2013 pelo que o início da contagem do quinquénio ocorreu no dia seguinte, consequentemente atingindo o seu termo no dia 25/04/2018 (cfr. alínea c) do art.º 279.º, ex vi do art.º 296.º, ambos do Código Civil).

Como ficou provado, no ano de 2013, de Abril a Dezembro, a Apelante auferiu rendimentos no valor total de € 4.039,97, o que perfaz uma média mensal de € 448,88, inferior, portanto, ao valor do SMN, que se situava nos € 485,00.

No ano de 2014 a Apelante não auferiu qualquer rendimento nos meses de Maio a Agosto, tendo o seu rendimento atingido o montante total de € 5.757,13, o que perfaz um rendimento médio mensal de € 479,76, também inferior ao valor do SMN, que se manteve nos € 485,00.

De Setembro a Dezembro do referido ano de 2014 a Apelante leccionou na Escola Secundária da ..., Ilha de ..., Açores, tendo sido colocada em regime de substituição temporária (licença de parto) e com um horário incompleto, de 19 horas semanais.

Em Setembro foram-lhe pagos € 513,45 em Setembro; € 1.421,42 em Outubro; € 1.027,57 em Novembro; e € 1.101,49 em Dezembro, tendo a Apelante, no mês de Novembro, feito uma entrega no valor de € 140 ao Senhor Fiduciário.
No ano de 2015 a Apelante auferiu rendimentos no valor global de € 12.455,83, sendo os valores mensais recebidos superiores ao SMN que neste ano era de € 505,00.
A Apelante fez entregas ao Senhor Fiduciário nos meses de Janeiro (€ 140); Março (€ 40); Maio (€ 40); Julho (€ 100); Novembro (€ 40); Dezembro (€ 70,90).
Em 2016 a Apelante auferiu rendimentos no valor global de € 12.522,89, sendo os valores mensais recebidos superiores ao SMN que neste ano era de € 530,00.
Fez entregas ao Senhor Fiduciário nos meses de Janeiro (€ 40); Fevereiro (€ 40); Março (€ 40); Abril (€ 40); Maio (€ 40); e Agosto (€ 60).
Ficou doente no mês de Setembro, permanecendo com incapacidade para o trabalho até Dezembro, passando a receber subsídio de doença.
No ano de 2017 a Apelante auferiu rendimentos no valor global de € 11.841,86, sendo os valores mensais recebidos superiores ao SMN que neste ano era de € 557,00.
Continuou doente, incapacitada para o trabalho, até ao mês de Setembro, inclusive, recebendo o subsídio de doença.
No ano de 2018 a Apelante recebeu rendimentos superiores ao SMN, que era de € 580,00, nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março, mas em Abril recebeu apenas a importância de € 343,01.
A Apelante alega não lhe ter sido possível fazer outras entregas ao Senhor Fiduciário, nem entregas de valores mais elevados porquanto a partir do mês de Abril de 2013 teve de arrendar uma casa para aí morar com o seu filho, tendo ainda que comprar e pagar a respectiva mobília.
Estando em causa a satisfação do direito à habitação julga-se dever ter-se por justificada a não entrega, nestes meses, de qualquer quantia ao Senhor Fiduciário, tanto mais que a partir do mês Agosto os montantes percebidos são bem inferiores ao valor do rendimento indisponível fixado no despacho, maior sendo a diferença para o SMN.
Os valores dos rendimentos aumentaram consideravelmente sobretudo a partir de Outubro de 2014, com a colocação da Apelante a leccionar nos Açores.
A Apelante justifica as não entregas ao Senhor Fiduciário (fez uma entrega em Novembro, no valor de € 140) com o aumento das despesas alegando ter tido a necessidade de arrendar uma casa na referida Região Autónoma, mantendo a que havia arrendado em Guimarães por aí ter permanecido o seu filho.

O Tribunal a quo considerou esta alegação improcedente, não aceitando igualmente o invocado “aparecimento de (novos) problemas de saúde e deslocações ao Continente para consultas oncológicas”, deixando assim referido:

Comece-se por dizer que não se afigura curial que uma pessoa que se encontre insolvente (e com a obrigação de entregar determinadas quantias monetárias a um fiduciário) mantenha tomadas de arrendamento duas habitações, com as despesas a ela inerentes. Se a insolvente foi colocada a leccionar na Região Autónoma dos Açores, mal se compreende que mantenha tomada de arrendamento uma habitação em Guimarães.

Afirma a insolvente que tal se deveu à circunstância de o seu filho menor se ter mantido a residir sozinho na cidade berço - explicação que não só não se mostra verosímil como para alguém que se encontra insolvente se revela descabida: se a insolvente resolveu não se fazer acompanhar do seu filho quando colocada profissionalmente na Região Autónoma dos Açores, a normalidade do acontecer seria que a respectiva guarda fosse confiada ao progenitor ou aos avós maternos, ao invés de estes, e segundo a própria, se limitarem a efectuar deslocações à habitação para procederem à limpeza desta e cozinharem! A manutenção desta despesa com renda, água, luz e gás mostra-se a todos os títulos injustificada.

Mas mais: alega ainda a insolvente que teve ainda problemas acrescidos de saúde, que importaram o aumento das despesas, mormente com o reaparecimento de doença oncológica.

Segundo os relatórios médicos juntos aos autos (cfr., nomeadamente, fls. 999), a doença oncológica não reapareceu: até Setembro de 2016 (portanto, durante os 2.º e 3.º anos do período de cessão e parte do 4.º ano do aludido período) nenhuma anomalia de saúde se verificou; apenas em Setembro de 2016 terá sido detectado novo nódulo mamário mas que se revelou benigno, e não maligno.

Acresce que, e segundo as informações médicas prestadas (mormente no mesmo relatório), não foi a insolvente que teve de se deslocar ao Continente para realizar consultas de rotina no âmbito do seguimento oncológico que vinha fazendo desde 2010: foi, ao invés, o CHAA quem diligenciou pelo agendamento dessas consultas, a pedido da insolvente, nos períodos em que esta se deslocou a Guimarães para gozo das férias lectivas (e resultando das datas das consultas que efectivamente estas tiveram sempre lugar durante os períodos de interrupção lectiva do natal, páscoa ou verão). Mas mais: a insolvente poderia ter efectuado as consultas de rotina no Hospital de Ponta Delgada, por tal hospital ter a valência de oncologia; foi opção sua manter o seguimento rotineiro em Guimarães.

Para além disso, as outras patologias indicadas (depressão, omartrose) apenas foram diagnosticadas e iniciado o respectivo tratamento a partir de Janeiro de 2017, pelo que não poderão ter sido a causa das não entregas verificadas entre Setembro de 2014 e Agosto de 2016.”.

Contra esta argumentação insurge-se a Apelante.

E, de facto, tem de se lhe reconhecer pelo menos alguma razão.

Com efeito, como é do conhecimento comum, até pela discussão gerada na comunicação social sobre a contagem do tempo de serviço dos professores, um contratado nunca sabe se, findo o contrato, obterá colocação e muito menos lhe é possível prever em que Escola ficará colocado.

A Apelante, na primeira colocação, em Escola da Ilha de …, foi substituir uma docente que se encontrava em gozo de licença de maternidade, decerto não sabendo então que, cumprido este contrato, iria obter nova colocação na Região Autónoma dos Açores, ainda que desta vez na Ilha de ....

Esta incerteza quanto ao futuro imediato justifica, pensa-se, que não tenha largado mão da casa que arrendou em Guimarães por ter aí instalado o núcleo do seu agregado familiar, ou seja, o seu lugar estável, aí permanecendo o seu filho.

A idade deste, na altura já um jovem, e a incerteza acima referida, aliada ao facto de frequentar o ensino, constituiriam, à luz do normal do acontecer, uma desmotivação suficientemente forte para seguir com a sua mãe para os Açores, para mais tendo o apoio próximo dos avós.

Também se sabe, porque é do conhecimento público e está documentado nos autos, que os voos para os Açores, pelo menos à altura dos factos, eram caros porque não havia companhias de aviação low cost a operar com aquele destino (a fls. 914 – 3.º vol. - está junto o recibo electrónico de duas passagens de avião da Ilha de ... para o Porto, e inverso, realizadas em 08/09/2016 e 24/02/2017, cujo valor, de € 543,85, é superior ao do SMN de 2016 e próximo do de 2017).

Relativamente ao estado de saúde da Apelante, seja qual for a perspectiva de análise importa sempre ter presente tratar-se de uma doente oncológica, bastando recorrer às estatísticas para se concluir que o cancro da mama, para além do sofrimento físico, provoca um enorme sofrimento psicológico. A frequência com que ocorrem as recidivas origina enormes níveis de ansiedade e insegurança, e daí que quando em Setembro de 2016 lhe surgiu um novo nódulo a Apelante tenha ficado doente durante um ano inteiro, estando ainda a ser seguida em psiquiatria.

Dizer que a Apelante podia ter efectuado as consultas de rotina em Ponta Delgada será, ressalvado o devido respeito, desconsiderar o que acima se deixa referido.

Com efeito, a mesma médica que subscreve o relatório a que o Tribunal a quo alude, de fls. 999, igualmente subscreve o “aditamento” de fls. 1000, aí deixando referido: “Em Novembro de 2016 a doente foi re-operada, com exérese de nódulo mas de natureza benigna e não maligna. Manteve seguimento em consultas de Oncologia e Cirurgia deste Hospital conforme recomendações de boas práticas, e sempre que necessário”, acrescentado que a Apelante se encontra “a realizar hormonoterapia com tamoxifeno, medicação fornecida pelo Hospital” e sobre a possibilidade de seguimento pelo Hospital de Ponta Delgada, referiu ainda “parece-me lícito que a doente em causa queira manter o seu habitual seguimento, junto da equipa médica que sempre a orientou e com quem mantém relação de confiança”, considerações que merecem inteira adesão a ter-se presente, como se impõe, que a relação de confiança com o médico é talvez um dos factores mais importantes no processo de “cura” do doente.

Ora, tendo ficado demonstrado que a Apelante esteve doente e incapacitada para o trabalho desde Setembro de 2016 a Setembro de 2017, período durante o qual os seus “rendimentos” foram sobretudo provenientes de subsídio de doença, não pode deixar de considerar-se o natural aumento das despesas com os cuidados médicos e medicamentosos (aqui se incluindo o tratamento dentário que, tendo-lhe sido aconselhado, aceitou fazer, no qual gastou a importância de € 2.750 – cfr. alínea s) da facticidade provada).

O que acaba de ser referido afasta o dolo, em qualquer das suas formas por se não poder concluir, com o grau de certeza que se impõe, que a Apelante tenha actuado tão-somente movida pela intenção de não fazer as entregas a que estava obrigada.

Como ficou provado, o aumento das despesas da Apelante, impeditivas de fazer mais entregas e em maiores importâncias, decorreu do cumprimento do seu dever de “exercer uma profissão remunerada” (e, tendo nascido em -/-/2016, “sujeitar-se” a concorrer para os Açores, candidatando-se a contratos temporários, é demonstrativo de diligência na procura de colocação) e decorreu ainda de doença, pelo menos relativamente ao período de tempo em que esteve impossibilitada de trabalhar.

Não consta que a Apelante tivesse contraído dívidas ou feito gastos desnecessários ou supérfluos.

Tudo isto considerado torna compreensível e aceite aos olhos da pessoa comum o comportamento omissivo da Apelante, no que se refere às entregas omitidas e ao (pequeno) valor das efectuadas, o que afasta a negligência, que, como se referiu, se traduz num “erro imperdoável”, numa “incúria indesculpável” (eventualmente, assim terão entendido os Credores que, notificados, nada disseram nos autos, tendo sido da iniciativa do Tribunal a realização das (muitas) diligências investigatórias e comprovativas dos rendimentos, encargos e despesas da Apelante, ainda que, segundo se crê, estejam aqui essencialmente em causa direitos de natureza disponível).

É certo que o quadro factual acima descrito poderá não justificar, pelo menos de forma não tão evidente, a não entrega ao Senhor Fiduciário dos reembolsos do IRS, referidos na alínea g) da matéria de facto, sobretudo quanto ao último, no valor de € 790. É que ao argumento aduzido de que o reembolso ocorreu já depois de findo o prazo de cinco anos pode contrapor-se que o mesmo reembolso se reporta a rendimentos auferidos no ano anterior.

Contudo, recusar a exoneração do passivo com este fundamento afigura-se demasiado excessivo considerada a natureza dos créditos e a qualidade dos credores, tanto mais que a referida importância por suposto que terá sido destinada a compensar a exiguidade dos rendimentos auferidos no mês anterior - o reembolso ocorreu em 09/05/2018 e no mês de Abril do mesmo ano a Apelante auferiu apenas € 343,01.

Termos em que também quanto a esta parte se deverão ter por justificadas as não entregas.

Tudo considerado, impõe-se concluir que a pretensão recursiva da Apelante é merecedora de provimento.
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C) DECISÃO

Tendo presente tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação, pelo que, revogando a decisão impugnada, decidem, nos termos do disposto no art.º 244.º do C.I.R.E., conceder à Apelante a exoneração do passivo restante.
Sem custas a apelação.
Guimarães, 10/07/2019

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho