Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
18/14.6T9MNC..G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO
NARRAÇÃO DE FACTOS POR REMISSÃO
DIFAMAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: ) Ao contrário do que acontece com outras peças processuais, a lei não permite que a narração dos factos da acusação seja feita por mera remissão para outras peças ou documentos do processo.
II) Estando em causa um texto com conteúdo difamatório, a acusação tem que transcrever as passagens do texto consideradas difamatórias. Se o não fizer, a acusação tem de ser rejeitada, por manifestamente improcedente, nos termos dos artº s 311º, nºs 2 al. a) e 3 al. a), b) e d), do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No Proc. 18/14.6T9MNC da Comarca de Viana do Castelo (Monção – Inst. Local – Sec. Comp. Gen. – J1), as assistentes Maria I. e Mónica Q., deduziram acusação contra a arguida Maria N. imputando-lhe um crime de difamação p. e p. pelos arts. 180 nº 1, 182 e 183 nº 2 do Cod. Penal.
No despacho de saneamento do processo (art. 311 do CPP) foi rejeitada a acusação por a mesma ser manifestamente improcedente, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 311 nºs 2 al. a) e 3 als. a), b) e d) do CPP.
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as assistentes Maria I. e Mónica Q. interpuseram recurso desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
O despacho recorrido é um erro e/ou distorção que viola objetivamente o disposto nos arts. 311 nº 3 als. a), b), c) e d) do CPP, porque a
Acusação particular deduzida:
a) Tem a identificação da arguida,
b) Numera factos.
Os factos constituem violação da honra das assistentes, para além de violarem o disposto nos arts. 180 nº 1, 182 e 193 nº 2 do Cod. Penal.
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Respondendo, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido e a arguida defenderam a improcedência do recurso.
Nesta instância, o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO
Como se referiu no relatório deste acórdão, o recurso vem interposto do despacho que rejeitou a acusação das assistentes Maria I. e Mónica Q. que imputaram à arguida Natália G. a autoria de um crime de difamação.
São duas as causas de rejeição.
A primeira: na acusação “não se identifica devidamente a arguida, já que os elementos indicados são manifestamente insuficientes para o efeito”.
O art. 283 nº 3 al. a) do CPP dispõe que a acusação contém, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido.
Na acusação a arguida foi identificada como sendo “Natália G., comerciante, com domicílio profissional em “…M…” – fls. 83.
Interessa aqui referir os antecedentes históricos da norma em causa.
O Código de Processo Penal de 1929 prescrevia que a querela deveria conter, além de outras indicações, o nome do arguido, sua profissão e morada – art. 359 nº 2.
Isto trouxe alguns sobressaltos. Por vezes o agente do crime estava inequivocamente identificado, mas não existiam certezas quanto ao seu nome exato. Era uma época em que, mais do que agora, ainda havia pessoas não registadas, não documentadas, ou que, sendo registadas, usavam alcunhas pessoais ou de família, pelas quais eram conhecidas.
Por isso, a al. a) do nº 3 art. 283 do atual CPP, não refere, sequer, o «nome», nem a «identificação» do arguido, mas apenas «indicações tendentes à identificação» do arguido. É uma redação usada de caso pensado. Essencial é que não haja equívocos quanto à pessoa que se quis acusar. No limite, isso pode até dispensar o nome, desde que através da indicação de elementos como a alcunha, sexo, descrição de aspeto físico, etc. se chegue à certeza da pessoa visada.
No caso, como se viu, identificou-se a arguida pelo nome, profissão e morada, elementos suficientes para eliminar dúvidas sobre a pessoa concreta que se acusa, pelo que, nesta parte, a acusação não contém a deficiência que lhe foi apontada pelo despacho recorrido.
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A segunda causa de rejeição (transcreve-se): “analisado o teor da acusação particular, ficamos sem saber quais os factos imputados à arguida, já que as assistentes englobam factos com juízos de valor, explicações extra processuais e até o próprio pedido de indemnização civil…”.
Nesta parte o recurso improcede.
Vejamos:
Está em causa o conteúdo dum texto que a arguida terá publicado na sua página do Facebook.
Consta do ponto nº 1 da acusação: “No dia 7 de agosto de 2014 a denunciada, publicou na sua página do Facebook o texto que se junta sob o doc. nº 1 que se junta e que assinou” – na realidade o texto foi junto com a participação criminal (sublinhado do relator).
No pontos nºs 2 e 3 refere-se que a arguida se dirigia às pessoas de R…, as quais facilmente identificariam as assistentes como sendo as visadas.
O ponto nº 4 diz que “o texto é uma soma de afirmações falsas, de má fé, com o único objetivo de difamar e molestar as assistentes”.
Nos pontos seguintes são feitas considerações sobre as razões que presidiram à atuação da arguida.
Pois bem, a acusação tem de «narrar» os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena… - art. 283 nº 3 al. b) do CPP.
Tratando-se de um texto com conteúdo difamatório tem de o mesmo ser transcrito na acusação. Ou melhor, têm de ser transcritas as passagens do texto consideradas difamatórias.
Ao contrário do que acontece com outras peças processuais, a lei não permite que a narração dos factos da acusação seja feita por mera remissão para outras peças ou documentos do processo (cfr. arts. 313 nº 1 al. a) e art. 307 nº 1 do CPP).
Num processo muito mediático, o Tribunal Constitucional considerou que “é imperativo que a acusação e a pronúncia contenham a descrição, de forma clara e inequívoca, de todos os factos de que o arguido é acusado, sem imprecisões ou referências vagas”. Considerou também que as “exigências de clareza e narração sintética dos factos imputados ao arguido” não são compatíveis com “uma mera «simplificação» da acusação…” e que não é possível uma condenação assente em “factos apenas indireta e implicitamente referidos”. Outro entendimento violaria os princípios do acusatório e do contraditório – ponto nº 67 da fundamentação do ac. 674/99 do TC de 15-12-99, disponível no sítio da internet daquele tribunal.
Os arguidos defendem-se duma acusação e não do “processo”. Não deve ser confundida a exigência de alegação de todos os factos essenciais à condenação com a prova dos mesmos. A circunstância de determinado facto poder ser provado por documento junto aos autos não dispensa a sua alegação.
Por isso, sem necessidade de outras considerações, improcede o recurso.
DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso.
Cada recorrente pagará 3 UCs de taxa de justiça.