Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
137/14.9TBCBT.G2
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: PODER DE FACTO
PRESUNÇÃO DE POSSE
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A posse relevante para efeitos de usucapião é a que se expressa através de um poder de facto sobre uma coisa, exercido de tal forma que a mesma se mantenha no âmbito de atuação da vontade de quem exerce esse poder, acompanhado de uma intencionalidade ou voluntariedade aquisitiva, da parte do mesmo.

2- Este último elemento, infere-se através do modo como atua quem exerce o referido poder.

3- E, na dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto correspondente ao direito.

4- Assim, exercendo os autores o seu poder de facto sobre uma determinada parcela de terreno, de modo reiterado, público, pacífico e de boa fé, durante mais de 20 anos, presume-se que o fizeram com intuito aquisitivo, pelo que não sendo ilidida esta presunção, tem de lhes ser reconhecido o direito de propriedade sobre essa mesma parcela de terreno, adquirido por usucapião.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

1- J. J. e M. R., casados entre si, residentes (quando em Portugal) na localidade de …, freguesia de …, concelho de Celorico de Basto, instauraram a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Maria, residente na mesma localidade, e ainda contra a Junta de Freguesia X, com sede na …, alegando, em breve resumo, que, são donos do prédio urbano inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo …º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...º, o qual confronta a nascente com dois prédios da 1ª Ré.
Do lado nascente do seu prédio existe uma parcela de terreno com 3 metros de largura e 15 metros de comprimento, que dele faz parte integrante.
Sucede que a 1ª Ré pretende passar com carros de bois, tratores e veículos automóveis através dessa parcela, alegando, juntamente com a 2ª Ré, que tal parcela de terreno é pública. E, assim, para por ela passar, a 1ª Ré construiu uma abertura/entrada com a largura de mais de 3 metros no lado norte-poente dos seus prédios, onde pretende colocar uma cancela, o que não pode ser por não lhes assistir esse direito.
Daí que pretendam nestes autos ver reconhecido o seu pleno direito de propriedade e ressarcidos pelos danos que a conduta das Rés lhes causou e continua a causar.
Concretamente, pedem que se declare que o seu prédio já referido, lhes pertence em exclusivo, tal como a parcela de terreno referenciada, e que se condene a 1ª Ré a tapar a abertura/portão nela aposta, abstendo-se de por aí passar com carros de bois, tratores e veículos automóveis para a parte traseira dos seus prédios.
Pedem também que se condenem ambas as Rés a reconhecer os pedidos anteriores e a absterem -se da prática de quaisquer atos que atentem contra o seu direito de propriedade.
Pedem ainda que se condenem as Rés, solidariamente, a indemniza-los pelos prejuízos sofridos, em montante a apurar em liquidação de sentença, bem como na quantia de 2.500,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescida dos respetivos juros legais até efetivo e integral pagamento.
E, por fim, pedem que se condenem as Rés a pagar-lhes, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de 50,00€ por cada dia, no caso de persistirem no uso e ocupação do dito prédio, após o trânsito em julgado da sentença e até cessarem efetivamente a dita violação.

2- Contestaram as Rés, impugnando a versão dos AA. e alegando, ao invés, que a parcela de terreno indicada por estes últimos é pública, por integrar o “caminho de P.”.
A 1ª Ré deduziu ainda pedido reconvencional, no sentido de, caso se reconheça a propriedade daquela parcela de terreno aos AA., lhes ser facultado o direito de nela passarem com veículos automóveis, tratores e toda a maquinaria necessária à atividade agrícola que desenvolvem, uma vez que o seu prédio rústico não tem outro acesso para a via pública. Ademais, há mais de 40 anos que utiliza, bem como os seus antecessores, a dita parcela de terreno para ter acesso à sua propriedade, afirmando ter servidão de passagem por usucapião sobre a mencionada parcela e para acesso aos prédios de que é proprietária.
Em consequência, formula o seguinte pedido: ser reconhecida à Ré, por usucapião, a servidão predial de passagem sobre a parcela de terreno em causa e a favor dos prédios de que é proprietária.

3- Replicaram os AA., mas a sua resposta apenas foi admitida quanto à matéria da reconvenção, impugnando-a, alegando ainda que a 1ª Ré já não passa pela referida parcela desde, pelo menos, janeiro de 1990, pelo que, a existir a servidão, deve ser declarada extinta pelo não uso. Ademais, o prédio urbano daquela Ré tem acesso direto à via pública, motivo pelo qual, a existir a servidão, deve a mesma ser declarada extinta por desnecessidade.

4- Terminada a fase dos articulados, foi proferido despacho no qual, além do mais, se dispensou a audiência prévia, se identificou o objeto do litígio e se enunciaram os temas de prova.

5- Em seguida, realizou-se a audiência final, com inspecção judicial ao local, após o que foi proferida sentença que julgou a presente ação totalmente improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolveu as Rés dos pedidos.

6- Os AA. interpuseram recurso desta sentença, mas esta, em sede de recurso, veio a ser anulada por esta instância.

7- Em nova sentença, a presente ação foi, uma vez mais, julgada improcedente e os RR. absolvidos do pedido.

8- Inconformados, reagem os AA., interpondo recurso que rematam com o seguinte quadro conclusivo:

1- Da audição depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR. é lícito concluir que foram erradamente apreciados e valorados, pelo que ocorre notório erro de julgamento:
2- Com efeito, tais depoimentos, se devidamente analisados, autorizam resposta de provado à matéria constante das alíneas b-), c-), d-) e e) dos factos não provados, acima descritos como pontos I. a VII.;
3- E como não provada a matéria descrita na parte final do ponto 17 dos factos provados, - permite o cruzamento e estacionamento de veículos de quem quer que lá passe - ficando a constar apenas que “A parcela de terreno referida em 9.1 além de permitir o acesso aos prédios referidos em 1. a 3. e de um terceiro”
4- Da prova testemunhal e documental (fotografias) resulta provado que:
a- os autores, há mais de 15 e 20 anos, por si e antecessores, vêm praticando os atos descritos em 12 e 13 dos factos provados, na firme convicção, eles próprios, bem como toda a gente, de que são donos e lhes pertence a parcela de terreno referida em 9;
b- Na parcela de terreno plantaram uma carvalha donde durante mais de vinte anos cortaram lenha e ramos, e que, há cerca de 2 anos, a cortaram por completo e recolheram os seus ramos e tronco:
c- Parte do tronco da carvalha ainda está implantado e é visível no interior da aludida parcela de terreno.
d- Na dita parcela os AA. tratavam e cuidavam da carvalha lá implantada, que a cortaram, ainda sendo visível o pé; lá depositaram durante muitos anos restos de telha, como se verifica das fotografias juntas aos autos,
e- O que fizeram à vista e com o conhecimento de todos, inclusive das Rés, aliás, que nunca praticaram qualquer ato de posse ou fruição na aludida parcela, apesar de terem alegado tal matéria nas contestações tal matéria;
5- As Rés não provaram um único ato de posse ou fruição sobre a aludida parcela,
6- Se a parcela fosse pública, é evidente que as Rés e a população em geral, logo teria reagido contra a conduta dos AA.;
7- Actos de posse que os AA. exercem há mais de 30 anos, de maneira alguma, passariam despercebidos aos mais distraídos, tanto mais que tal parcela confina com o caminho público denominado de pereira;
8- Também resultou provado que o poste de eletricidade foi mudado para o interior dos limites da parcela já no decurso do processo, pois estava na berma do caminho público de pereira, como é visível na sequência das fotografias juntas,
9- Ficou provado (ponto 14 do factos provados) - a referida parcela de terreno só dá acesso aos prédios referidos em 2. e 3. e a um prédio de terceiro, não dando acesso a qualquer caminho público ou terreno de natureza pública;
10- Ficou provado que a parcela de terreno não permite o estacionamento, nem o cruzamento de veículos de quem quer que seja;
11- E a douta sentença, nem nenhuma das testemunhas, consegue explicar para quê, e com que desiderato, a faixa de terreno em discussão nos autos parcela de terreno permite o estacionamento, nem o cruzamento de veículo.
12- E nem podia, ficou provado que:
(12) A referida parcela de terreno tem sido utilizada, desde a partilha referida em 1., pelos autores e seus antecessores para entrarem para a casa referida em 1., e para dela saírem a pé, trator, veículos automóveis de qualquer natureza, a qualquer hora do dia e durante todo o ano, à vista e com o conhecimento de todos, sem interrupção nem oposição de ninguém;
(13.) Os autores servem-se da referida parcela de terreno para depositarem lenhas, mato, palhas, canhotos e outras coisas, à vista e com o conhecimento de todos, sem interrupção nem oposição de ninguém;
13- A prova testemunhal produzida pelos AA. é de molde a autorizar a alteração da matéria constante das alíneas b-), c-), d-) e e) dos factos não provados, para provada e não prova a parte final do ponto 17 dos factos dados como provados;
14- Na verdade, sobre tal matéria, pronunciaram-se as testemunhas: - R. M., em declarações prestadas na sessão de audiência de julgamento realizada no dia 24/02/2015 das 12:11:08 às 13:00:15, gravadas no sistema de gravação digital integrado na aplicação informática (…).
16- J. C.- em declarações prestadas na sessão de audiência de julgamento realizada no dia 04/03/2015 das 15:57:47 às 17:08:22 gravadas no sistema de gravação digital integrado na aplicação informática (…).
17- Por tudo isto, facilmente se vê que os autos indicam a existência de notório erro de julgamento, pois o Tribunal não valorou devidamente a prova testemunhal produzida;
18- Quanto ao facto 17, a Mmª Juiz a quo alicerça a sua convicção nos depoimentos das testemunhas J. C. e J. L., retirando, do contexto, afirmações vagas e sem sentido que não se coadunam com o restante depoimento, como se pode verificar do depoimento transcrito do J. C..
19- A J. L. não deve merecer credibilidade, pessoas de muita idade, nem sequer sabia quantos anos tinha, de relações cortadas com os AA., sendo que demonstrativo que toda a família (duas suas filhas E. R., C. R.) foram arroladas pela Ré Maria.
20- A J. L., que nem sequer sabia a sua idade, não deve merecer credibilidade face ao sobredito.
21- A prova em questão, foi assim erradamente apreciada e valorada, pelo que se afigura aos apelantes que ela se revela suficiente e bastante para sustentar a pretendida alteração da matéria de facto, no sentido de se dar como provados a matéria dos pontos I. a VII. e não provada a parte final do ponto VIII;
22- E, consequentemente, a ação deve ser julgada procedente por provada.
23- Ocorre contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada:
24- O facto dado como provado no ponto 4. não podia ser alterado e reformulado pelo Tribunal “a quo”, já que integra matéria assente, pois, tal matéria foi confessada pelas partes nos seus articulados (cfr. artigo 13° da Pi, e artigo 11° da contestação).
25- E como foi aceite e confessada, não pode ser retirada, nos termos do artigo 46° do CPC- deve ser considerada assente.
26- Assim, deve considerar-se assente que o prédio dos AA. e os prédios da Ré confrontam entre pelos lados nascente e poente, respetivamente.
27- Por outro lado, existe contradição evidente, com a matéria de facto dada como não provada em b), e os factos dados como provados em 12 e 13.
28- Como é possível que os AA. tenham exercido os atos de posse melhor descritos em 12 e 13, atos esses visíveis aos olhos de toda a gente, e que o tenham feito sem a convicção de que a dita parcela de terreno lhes pertencesse, sendo certo que, durante todo este tempo, nunca foram impedidos por quem quer que fosse?
29- Acresce que, a Ré Maria, sempre afirmou que tal parcela de terreno não fazia parte integrante dos seus prédios, e tanto assim é, que deduziu, em reconvenção que o prédio dos AA. (a dita parcela de terreno) estava onerada com a servidão de passagem a favor dos seus prédios.
30- Portanto, não restam dúvidas, de que a Ré parte do princípio e admite que a aludida parcela de terreno pertence efetivamente aos AA..
31- O certo é que não provou tais factos do direito de servidão, como demonstra a matéria dada como não provada sob as alíneas g-) e h-) (g) - a ré Maria e os seus antecessores sempre utilizaram a parcela de terreno referida em 9, para passar com as suas viaturas automóveis para os seus prédios e com os tratores, animais e toda a maquinaria necessária para a atividade agrícola que desenvolve; h) ( ... ) o que é feito há mais de 40 anos).
32- Ainda, no ponto 8. dos factos provados consta que o prédio referido em 3. da Ré, aquando da partilha referida em 5., confronta de poente com caminho de servidão ou seja, com tal parcela terreno em discussão e que faz parte integrante dos AA..
33- Outrossim, continua a existir contradição evidente entre a matéria dos pontos 9. 12., 13. e a matéria constante do ponto 17. parte final.
34- Evidentemente, que se a parcela estava ocupada pelos AA., nos termos referidos em 12. e 13. dos factos provados, e se a sua configuração é irregular com largura máxima de 5.20m, não é possível o estacionamento e o cruzamento de veículo automóveis.
35- Em boa verdade, o preciosismo invocado na parte final do facto dado como provado em 17. é inconcebível, tanto mais que, na aludida parcela de terreno só é possível estacionar um carro.
36- Não restam dúvidas, de que o tribunal “a quo” “inventou” a matéria de facto dada como provada na parte final do ponto 17, já que não existe uma única testemunha que refira tal matéria.
37- Portanto, o facto vertido na parte final do ponto 17 foi erradamente dado como provado, e notoriamente adaptado pelo Tribunal “a quo” de modo a poder sustentar a sua motivação, o que não é admissível.
38- Mesmo que assim não se entenda, analisando à luz do critério do bónus pater familiae, e atentas as regras da experiência comum, vislumbra-se que admitir a hipótese de circulação de veículos numa parcela de terreno (que não tem saída e era ocupada com telhas e outros objetos pelos AA.) de configuração irregular, com 5/20 metros de largura máxima, tal como foi dado como provado em 9., é de todo inimaginável.
39- Assim, entendem os apelantes que a matéria dos factos provados, reformulada pelo Tribunal “a quo”, carece de sustentação, e daí a nulidade da sentença.
40- A fundamentação da decisão está em contradição com a matéria dada como provada:
41- Decorre da motivação do Mmº Juiz “a quo”, que nenhuma das partes pôs em causa que os prédios confrontavam entre si, isto é, o tribunal admite que as partes assentaram/confessaram tal facto.
42- Como pode o tribunal dar como provado um facto, e mais tarde vir a alterá-lo, quando vem a admitir na motivação que o mesmo foi confirmado/confessado pelas partes?
43- Não restam dúvidas, de que o facto em questão é matéria assente, pois vai de encontro ao que foi admitido pelas partes, e daí a sua contrariedade.
44- Lendo atentamente o facto dado como provado pelo Tribunal “a quo” no ponto 14., percebemos que a reformulação dada Mmº Juiz, pretende tendencialmente sobressaltar a ideia de que a aludida parcela de terreno é pública.
45- Na motivação o Tribunal “a quo” primordialmente refere-se expressamente à aludida parcela de terreno como “do caminho de servidão”, e mais à frente, afirma que “tudo leva a crer que tal parcela seja continuidade de tal caminho público”.
46- Se é um caminho de servidão, é porque a Mmª Juiz considera que a dita parcela de terreno pertence a alguém, faz parte de um dos prédios confinantes. Como a Ré admite que não pertence ao seu prédio, só pode pertencer, como pertence, ao prédio dos AA. confinante (aliás, resulta da confrontação poente de um dos prédios da Ré que a pente confronta com caminho de servidão).
47- Por outro lado, se crê que tal parcela de terreno é continuidade do caminho público, dúvidas não restam, da posição do Mmº Juiz quanto ao facto de tal parcela de terreno ser pública.
48- Porém, para se atingir tal conclusão, tem de ressaltar factos nesse sentido (não se pode presumir ou adivinhar), e o certo é que não há um único facto que aponte para tal.
49- Nos presentes autos, e como já vimos supra, a Ré Maria, assevera que a parcela de terreno não é dela, tanto mais que em reconvenção, vem pedir a servidão de passagem pela mesma.
50- Assim sendo, à luz deste entendimento do Tribunal “a quo” retiramos a seguinte conclusão: ou a parcela de terreno é dos AA. ou então é pública.
51- Sucede que, a dita parcela de terreno não é pública, porque não preenche os requisitos da dominialidade pública de um caminho, a saber: a) o uso direto e imediato do mesmo pelo público: b) e a imemorial idade desse uso.
52- Portanto, se a parcela de terreno não pertence à Ré Maria, porque é a própria a admiti-lo, e se não é pública, porque não preenche os requisitos, só pode pertencer ao prédio AA., tanto mais que resulta provado dos pontos 12. e 13., de que os AA., por si e antecessores, ocupam há mais de 15 e 20 anos, a referida parcela de terreno.
53- A motivação do Mmº Juiz “a quo” não corresponde à realidade dos autos, sendo certo que, nos presentes autos não existe qualquer prova que demonstre a circulação e o cruzamento veículos na aludida parcela de terreno, nem tal é possível.
54- Como vimos supra, e como resulta provado no facto 9., a parcela de terreno possui uma configuração irregular, com 5,20 metros de largura máxima, e portanto, é inconcebível, atento os factos provados em 12. e 13., a ideia de circulação e cruzamento de carros num espaço de tal dimensão, aliás basta atender às fotografias.
55- Portanto, o facto dado como provado em 17. foi “inventado” pelo Tribunal “a quo”, e daí a contrariedade da sua motivação.
56- Considera a Mmª juiz à quo que que ilidiram a presunção de posse dos AA.;
57- Com o devido respeito entendem os apelantes que assim não sucedeu, de resto a afetação ao uso público (caminho) é uma conclusão que deve ser retirada de factos que a traduzam.
58- Os factos alegados pelas Rés nesse sentido (18° a 31º) da contestação da Ré Junta de Freguesia) não resultaram provados.
59- Refere a Mmª Juiz que tal parcela é utilizada por quem lá necessite de passar, mas foi dado como provado que os AA. praticam na mesma parcela atos de posse como descrito em 12. e 13.,
60- Resulta também provado que (ponto 14.) que a referida parcela de terreno só dá acesso aos prédios referidos em 2. e 3. e a um prédio de terceiro, não dando acesso a qualquer caminho público ou terreno de natureza pública;
61- O que é contraditório.
62- É do conhecimento geral- facto notório - que antigamente, a anteceder o portão, existe um eido (como é o caso da casa dos AA. e resulta das fotografias), onde o gado comia ... e é óbvio que se o prédio dos AA. dá servidão e passagem a terceiros, para haver privacidade vedaram o eido e as escadas de acesso à casal deixando a servidão de passagem livre.
63- Caso contrário, vedando a parcela, os consortes passariam pelo “interior” do prédio urbano.
64-Ainda, se a parcela só dá acesso aos prédios da 2ª Ré e para um prédio e terceiro, não dando acesso a qualquer caminho público ou terreno de natureza pública pergunta-se quem é que necessita de lá passar? Vai lá fazer o quê se não há saída?
65- Mais, a Mmª Juiz “a quo” vai mais além, pois diz que a parcela também é utilizada pelos consortes da água, matéria que não resulta provada, nem sequer foi alegada pelas partes nos seus articulados.
66- Pelo que a fundamentação é contraditória com a matéria dada como provada, não tendo consistência na mesma, assentando a sua convicção e decisão em matéria não alegada pelas partes.
67- Quando nas confrontações se refere caminho, tanto pode ser público como de servidão. A Mmª Juiz concluiu erradamente que caminho quer dizer público.
68- E tanto assim que a Mmª Juiz a quo não teve em consideração que o prédio rústico da 2ª Ré confronta de poente com caminho de servidão, como se constata da matéria do ponto 8. dos factos provados.
69- Se confronta com caminho de servidão, significa que a parcela (em discussão) com quem confronta faz parte integrante do prédio os AA..
70- E tanto assim é que resulta da matéria provada no ponto 4., que os prédios da 2ª Ré (urbano e rústico) confrontam com os prédios dos AA, respetivamente pelos lados poente e nascente, ou seja, são contíguos, não parcela de natureza pública que se interponha entre eles caso contrário confrontariam com terreno público ou caminho público.
71- Refere ainda na fundamentação que E se tal parcela, a norte, é contígua ao “caminho de Pereira”, tudo leva a crer que tal parcela seja a continuidade de tal caminho público.
72- A Mmª Juiz “a quo” retira uma conclusão que não advém de qualquer facto provado, deduz, conforme poderia ter deduzido o contrário, pois o prédio urbano da Ré também confronta a norte com caminho de P.
73- Por outro lado, considera a Mmª que o facto de o portão de acesso à casa de habitação referida em 1, deitar diretamente para a referida parcela de terreno ­conforme os próprios autores alegam e as rés não contestam - é ilustrativo de que tal parcela de terreno integra o próprio caminho, pois, se a parcela de terreno fizesse parte da casa (como logradouro ou quinteiro) qual o sentido de separá-la da mesma com um portão? Nenhum.
74- É do conhecimento geral- facto notório - que antigamente, a anteceder o portão, existe um eido (como é o caso da casa dos AA. e resulta das fotografias), onde o gado comia ... e é óbvio que se o prédio dos AA. dá servidão e passagem a terceiros, para haver privacidade vedaram o eido e as escadas de acesso à casal deixando a servidão de passagem livre.
75- Caso contrário, vedando a parcela, os consortes passariam pelo “interior” do prédio urbano.
76- Afinal, a vedação, como muitas que existem pelo nosso país fora fazem sentido.
77- E concluiu que: “De todo o exposto se conclui que a parcela de terreno que os autores aqui reivindicam integra o caminho acessível a todos”
78- O que é contraditório com a matéria dada como provada no ponto 4. 12., 13 e 14.
79- E o certo é que não resultou provada a matéria alegada pela Junta de Freguesia na sua contestação (artigos 18. a 31.)
80- As Rés não provaram que tal parcela pertence ao domínio público: não há um único ato de posse por parte da Junta de Freguesia: não resulta que a mesmo fosse usufruída por quem quer que seja, ficando demonstrado que quem exerce a posse sobre as mesmas nos termos descritos em 12. e 13 são os AA.; E fizeram-no à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja.
81- E conclui a Mmª Juiz a quo “Assim, podemos afirmar que as Rés lograram ilidir a presunção de que o domínio de facto que os autores vêm demonstrando ter da parcela de terreno, não são verdadeiros atos de posse, pois carecidos de animus possidendi, já que, assumindo-se como caminho, não podiam os autores estar convictos de que se tratava de coisa sua”.
82- São considerações excessivas e nem sustentação nos factos;
83- De resto, a afetação ao uso público (caminho) é uma conclusão que deve ser retirada de factos que a traduzam.
84- Os factos alegados pelas Rés nesse sentido (18° a 31º) da contestação da Ré Junta de Freguesia) não resultaram provados.
85- Traduzindo-se o uso de uma parcela de terreno ao acesso a prédio(s) particular(es) ou parte dele(s), como in casu, não se afigura existir qualquer interesse público relevante na sua utilização nem qualquer destinação ao uso público.
86- O uso que terceiros possam eventualmente fazer dessa parcela para aceder a prédio(s) particular(es) ou parte deste(s) não traduz qualquer destinação a uso público ou afetação a uso público.
87- Não resultam dos factos provados qualquer destinação a uso público dessa parcela de terreno.
88- As Rés para provarem de que os autores não são titulares do direito de propriedade sobre a parcela, teriam de provar o domínio público de tal parcela, a dominialidade pública do caminho - ou seja, teriam de provar que nos encontramos perante um caminho e que o mesmo é público.
89- Não se provaram os requisitos fácticos para que tal parcela possa ser reconhecida como caminho público;
90- Nenhuma das testemunhas conseguiu explicar para quê, e com que desiderato, a faixa de terreno em discussão nos autos era utilizada por todos quando se lhes aprouvesse - em que é que se manifestava, pois, o uso pelo público.
91- Perante uma faixa de terreno irregular, delimitada lateralmente por prédios de particulares, que de uma das pontas tem um caminho (p.) e de outra prédios de particulares/ que tem como função exclusiva o acesso físico a tal (ou tais) prédio(s) ou a parte dele(s)/ belisca a lógica, os conhecimentos da ciência e a experiência comum que se validem mais fortemente depoimentos que atribuam a essa parcela de terreno interesse público e uso pelo público;
92- Sedimentar a convicção do julgador em depoimentos de testemunhas que atribuem dominialidade pública sobre uma exígua faixa de terreno que apenas tem por fim dar acesso e serventia a prédio(s) particular(es), ou apenas a parte deste, vai contra as regras da experiência comum.
93- Como vai contra as regras da experiência comum, e até do Direito, e sempre com reserva de melhor entendimento, que a passagem de pessoas determinadas para acesso a prédios particulares e, por deferência e tolerância dos AA., para o acesso e utilização de uma poça privada situada dentro deste, para lavagem de roupa, signifique e traduza afetação para utilização pública da faixa de terreno em causa.
94-Assim, considera-se ter havido factos que foram incorretamente julgados pelo Tribunal a quo.
95- O percurso da convicção do Tribunal “a quo” belisca as regras da experiência comum, da lógica, do direito e dos conhecimentos científicos.
96- Ou seja, não há um fio condutor do raciocínio lógico do julgador, pois os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si e, ainda, com a fundamentação da decisão.
97- Por tudo o exposto, ocorre o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão: contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada: como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto e a decisão.
98- Mesmo que assim não se entenda, sempre se dirá que, mantendo a matéria de facto, o que apenas se admite como mera hipótese académica, a posse, por um lapso de tempo, pode levar à aquisição dum direito real, por usucapião, correspondente à extensão do poder de facto sobre a coisa, de acordo com a intenção do exercício do direito correspondente (artigo 1251 e 1287 do C. Civil).
99- A posse pressupõe a existência simultânea dum poder de facto sobre a coisa (corpus) e a intenção de exercer um direito correspondente ao poder exercido (animus). A falta de qualquer um destes elementos, inviabiliza a aquisição originária.
100- Porém, é difícil provar a intenção do exercício do direito corresponde ao poder de facto que se tem sobre a coisa, quando esteja em causa uma posse em nome próprio. Daí que o artigo 1252 n.º 2 do C.Civil considere que quem tem o poder de facto sobre uma coisa, goza da presunção de posse, ou seja, não necessita de provar a intenção de exercer o direito correspondente ao poder que mantém sobre a coisa.
101- Incumbirá, a quem se arroga do direito, fazer a prova do contrário, ou seja, ilidir a presunção da posse de quem tem o poder de facto sobre a coisa - artigo 350 do C.Civil.
102- Porém, pela análise dos pontos de facto constantes da sentença recorrida, é de concluir que as Rés não ilidiram a presunção da posse dos autores sobre a referida parcela.
103- Por outro lado, mesmo que assim seja, o certo é que a ré apenas goza da presunção da propriedade sobre a mesma parcela, por força da inscrição no registo.
104- Assim, não tendo as rés ilidido a presunção da posse dos autores e gozando estes da presunção da titularidade do direito de propriedade, e estando na posse da parte da parcela já referida há cerca de trinta anos, é de concluir que adquiriram o direito de propriedade sobre a mesma, por usucapião, nos termos dos artigos nº 1251, 1252 nº2, 1263 al. a), 1287, 1288 e 1296 todos do C.Civil.
105- Deverá, pois, a ação ser julgada procedente por provada.
106- Nada impedindo o Tribunal “ad quem” de assim decidir, a revogação da douta sentença apelada impõe-se, na medida em que esta foi proferida em clara violação dos artigos 607°, nº 5 do CPC e 342, 1305, 1306, 1287, 1251, 1251, 1268° todos do CC e artigo 7 do Código do Registo Predial”.
Pedem, assim, que se revogue a sentença recorrida “alterando a matéria constante das alíneas b), c), d) e e) dos factos não provados e a parte final do ponto 17 nos termos sobreditos, bem como o direito”, julgando esta ação totalmente procedente.
9- Não consta que tivesse havido resposta.
10- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:
*
II- Mérito do recurso

1- Definição do seu objecto

O objeto dos recursos, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, nº 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil).
Assim, observando este critério no caso presente, o objeto deste recurso reconduz-se, essencialmente, às seguintes questões:

a) Em primeiro lugar, saber se a sentença recorrida é nula pelas razões invocadas pelos Apelantes;
b) E, em segundo lugar, aquilatar se ocorre o erro de julgamento (de facto e de direito) invocado pelos Apelantes e, na afirmativa, quais as respectivas consequências jurídicas.
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2- Fundamentação

A- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

1. Pela Ap. nº 3 de 2006/08/24, encontra-se inscrita a favor dos AA. a aquisição por partilha extrajudicial do prédio urbano situado no lugar de …, freguesia de …, concelho de Celorico de Basto, composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, com horta e quinteiro, inscrito na matriz sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° …;
2. Pela Ap. n° 280 de 2013/02/18, encontra-se inscrita a favor da Ré, Maria, a aquisição por doação e partilha do prédio urbano composto de morada de casas de rés-do-chão, primeiro andar e horta, a confrontar do norte, nascente e poente com caminho e a sul com J. O., inscrito na matriz sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° …;
3. Pela Ap. n° 280 de 2013/02/18, encontra-se inscrita a favor da Ré, Maria, a aquisição por doação e partilha do prédio rústico composto de cultivo, a confrontar do norte com prédio urbano de J. O., do sul com J. M., do nascente com caminho e do poente com caminho de servidão, inscrito na matriz sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° ..;
4. Os prédios referidos em 2. e 3. estão voltados para o prédio referido em 1., e este para aqueles, respetivamente, pelos lados poente e nascente;
5. Os prédios referidos em 1. a 3. pertenceram, em tempos, aos mesmos donos: J. P. e E. L., e foram objeto de partilha entre os herdeiros destes por escritura pública datada de 10/08/1984 lavrada no Cartório Notarial;
6. Aquando da partilha referida em 5., o prédio referido em 1. foi descrito como “uma morada de casas de rés do chão e primeiro andar, com horta e quinteiro”, com as seguintes confrontações: “norte nascente e poente caminhos e sul A. J.”;
7. Aquando da partilha referida em 5., o prédio referido em 2. foi descrito com as seguintes confrontações: “norte sul e nascente proprietário e poente caminhos”;
8. Aquando da partilha referida em 5., o prédio referido em 3. foi descrito com as seguintes confrontações: “norte prédio urbano do próprio, sul J.O., nascente caminho e poente caminho de servidão”;
9. Entre a casa que compõe o prédio referido em 1., do seu lado nascente, e o muro que delimita os prédios referidos em 2. e 3. do seu lado poente, existe uma parcela de terreno, de configuração irregular, com 5,20 metros de largura máxima e 13,40 metros de comprimento máximo;
10. Tal parcela de terreno confronta de sul e poente com a casa referida em 1., e de nascente com os prédios referidos em 2. e 3., sendo, a norte, contígua ao “caminho de P.”;
11. O portão de acesso à casa de habitação referida em 1. deita diretamente para a referida parcela de terreno;
12. A referida parcela de terreno tem sido utilizada, desde a partilha referida em 1., pelos AA. e seus antecessores para entrarem para a casa referida em 1. e para dela saírem a pé, trator, veículos automóveis de qualquer natureza, a qualquer hora do dia e durante todo o ano, à vista e com o conhecimento de todos, sem interrupção nem oposição de ninguém;
13. Os AA. servem-se da referida parcela de terreno para depositarem lenhas, mato, palhas, canhotos e outras coisas, à vista e com o conhecimento de todos, sem interrupção nem oposição de ninguém;
14. A partir do referido “caminho de P.”, a referida parcela de terreno dá acesso aos prédios referidos em 2. e 3. e a um prédio de terceiro, não dando acesso a qualquer caminho público ou terreno de natureza pública;
15. A Ré, Maria, reconstruiu o muro que delimita os prédios referidos em 2. e 3. do seu lado poente e nele deixou uma abertura para colocação de um portão de 2,70 metros de largura, que dá acesso ao prédio referido em 2., bem como uma porta, de 70 centímetros de largura, que dá acesso ao prédio referido em 3;
16. A Ré, Maria, pretende passar pela parcela de terreno referida em 9. para aceder aos prédios descritos em 2. e 3. com carros de bois, tratores e veículos automóveis;
17. A parcela de terreno referida em 9., além do descrito em 14, permite o cruzamento e estacionamento de veículos de quem quer que lá passe;
18. A parcela de terreno referida em 9. é utilizada como passagem e acesso a uma água de consortes;
19. A parcela de terreno referida em 9. tem nela implantado um poste eletricidade.
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B- Na mesma sentença não se julgaram provados quaisquer outros factos dos alegados, designadamente que:

a) A parcela de terreno referida em 9. tenha (para além do descrito em 9.) três metros de largura e quinze metros de comprimento;
b) Os AA., há mais de 15 e 20 anos, por si e antecessores, vêm praticando os atos descritos em 12. e 13., na firme convicção, eles próprios, bem como toda a gente, de que são donos e lhes pertence a parcela de terreno referida em 9. por fazer parte integrante do prédio referido em 1.;
c) Os AA. terão de se deslocar de França, onde trabalham e residem habitualmente, a Portugal para acompanhar os presentes autos, e depois regressar de novo a França, e de suportar as respetivas despesas de deslocação e alimentação;
d) Em consequência do descrito em c), os AA. deixarão de auferir rendimento por faltarem ao trabalho;
e) Em consequência do descrito em 15. e 16. e de a Ré, Junta de Freguesia X, andar a propalar que a parcela de terreno referida em 9. tem natureza pública, os AA. estão tristes e aborrecidos, sentem-se menosprezados, perturbados e estigmatizados, frustrados e dececionados, o que lhes retirou a habitual alegria de viver;
f) Que a Ré só tenha acesso aos prédios referidos em 2. e 3. pela parcela de terreno referida em 9.;
g) A Ré, Maria, e os seus antecessores sempre utilizaram a parcela de terreno referida em 9. para passar com as suas viaturas automóveis para os seus prédios e com os tratores, animais e toda a maquinaria necessária para a atividade agrícola que desenvolve;
h) ( ... ) o que é feito há mais de 40 anos.
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C- Apreciação dos fundamentos do recurso

1- Ao longo das suas alegações de recurso, os Apelantes imputam à sentença recorrida diversas contradições, seja entre a matéria de facto provada e não provada, seja mesmo entre a matéria de facto provada e a respetiva fundamentação, daí chegando a extrair a conclusão de que a sentença recorrida, nalguns pontos, é nula.
Lendo atentamente a argumentação dos Apelantes, no entanto, facilmente se constata que as ditas contradições não são de índole formal ou lógico, mas, sim, de natureza substantiva, porquanto o resultado probatório alcançado na sentença recorrida não foi aquele que os mesmos têm por adequado.
Assim, começam os Apelantes por alegar que a afirmação contida no ponto 4 da matéria de facto provada não podia ser alterada, como foi, na última versão da sentença recorrida, uma vez que as partes, desde sempre, se mostraram de acordo sobre as confrontações entre os seus prédios.
Mas, na verdade, só aparentemente esse consenso existe. Efetivamente, as Rés aceitaram expressamente o teor dos artigos da petição inicial em que estão descritas essas confrontações (artigos 12.º e 13.º da petição inicial e artigos 1.º de cada uma das contestações). No entanto, todo o seu subsequente discurso argumentativo é no sentido de que a parcela de terreno reivindicada pelos AA. pertence ao domínio público ou, caso assim não se entenda, defende a Ré, Maria, que essa pertença lhe deve ser reconhecida a ela.
Ou seja, segundo a tese principal das Rés, há uma dominialidade diversa da dos AA. e da 1ª Ré, que se interpõe entre os prédios de que eles são proprietários.
Por conseguinte, levando em consideração esta tese, nunca se poderia julgar consensualizada a confrontação direta do prédio dos AA. com os da Ré.
Nem, de resto, o tribunal recorrido disso ficou convencido, uma vez que, segundo disse, não conseguiu apurar a quem pertence a faixa de terreno em questão.
Neste contexto, não se pode reconhecer a referida contradição.
Por outro lado, ao contrário do pretendido pelos Apelantes, também não há qualquer contradição lógica entre o teor da al. b) do capítulo dos Factos não Provados e os pontos 12 e 13 dos Factos Provados; isto é, entre afirmar-se, por um lado, que os AA., desde 10/08/1984, sempre utilizaram, sem oposição de ninguém, a faixa de terreno por eles reivindicada, e, por outro, que não se provou que essa utilização tenha sido feita com intencionalidade possessória e aquisitiva.
São realidades diversas cuja harmonização só em sede probatória pode ser dirimida.
E também não há qualquer incoerência ou contradição com o teor do ponto 8 dos Factos Provados. Aí, com efeito, não se diz que o prédio da Ré, Maria (referido em 3) confronte com qualquer caminho de servidão, mas, antes e tão só, que, aquando da partilha dos herdeiros de J. P. e E. L., se indicou essa confrontação como verdadeira. O que não significa, naturalmente, que o seja ou sequer o fosse já à época; isto é, que tal prédio confrontasse com um caminho que tivesse, necessariamente, a natureza de servidão, que é um conceito jurídico bem preciso (artigo 1543.º, do Código Civil), que, nem sempre, as partes dominam.
Por fim, ao contrário do defendido pelos Apelantes, também não se deteta qualquer contradição lógica evidente entre a matéria constante dos pontos 9, 12, 13, e a matéria constante do ponto 17, parte final, do capítulo dos Factos Provados. Ou seja, entre a afirmação de que a parcela de terreno reivindicada se situa entre a casa que compõe o prédio dos AA. e o muro que delimita os prédios da Ré, Maria, utilizando aqueles essa parcela nos termos concretizados nos pontos 12 e 13, e, por outro, que essa parcela de terreno “permite o cruzamento e estacionamento de veículos de quem quer que lá passe”. Este discurso é perfeitamente lógico. O que os Apelantes defendem é que não corresponde à verdade. Mas, não é isso que aqui está em causa.
O que importa, para já, clarificar é que a sentença recorrida não encerra qualquer contradição que a faça incorrer nos vícios previstos no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, pelo que improcede toda a argumentação dos Apelantes, a este respeito.
2- Vejamos, agora, se deve haver lugar à modificação da matéria de facto por eles pretendida e, na afirmativa, quais as respetivas consequências jurídicas e patrimoniais.
Nesta parte, importa começar por referir que, embora ao longo das suas alegações de recurso, e mesmo nas conclusões, os Apelantes aludam a outra factualidade que reputam de incorretamente julgada, terminam aquele pedindo, como vimos, que se altere, tão só, “a matéria constante das alíneas b), c), d) e e) dos factos não provados e a parte final do ponto 17” [dos factos provados].
Ora, este pedido condiciona o nosso poder cognitivo.
Na verdade, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso e o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, vigora também neste domínio o princípio do dispositivo(1). Isto é, as partes tem o direito de conformar a instância de acordo com os seus interesses disponíveis, formulando os pedidos que têm por pertinentes para a defesa desses mesmos interesses. E os AA., como vimos, fizeram-no, nos termos já explicitados.
De modo que será apenas no âmbito referido, e não noutro, que analisaremos a pretensão dos AA., em sede de matéria de facto.

Pois bem, a esse respeito, estão em causa, essencialmente, três temáticas:

a) A convicção dos AA., e de toda a gente, de que a parcela de terreno por aqueles reivindicada lhes pertence (al b) dos Factos não Provados);
b) Os alegados danos sofridos pelos AA. (als. c), d) e e) dos Factos Provados);
c) E, o facto da referida parcela de terreno permitir, ou não, o “cruzamento e estacionamento de veículos a quem quer que lá passe” (Ponto 17 dos Factos Provados).
Em relação aos dois primeiros grupos de factos, os AA. pretendem que se julguem demonstrados. E, quanto ao último, pugnam para que a menção ao cruzamento e estacionamento de veículos na parcela em questão se julgue indemonstrada.
Ora, depois de auditar os excertos dos depoimentos das testemunhas indicados pelos AA. e de analisar a demais prova documental produzida, fica-nos a convicção de que nenhuma prova foi produzida capaz de certificar os apontados danos. Ignora-se a concreta situação laboral dos AA. (se é que ainda subsiste), bem como a imprescindibilidade da sua presença em Portugal (recorde-se que para serem ouvidos em juízo podiam ter requerido a sua inquirição por videoconferência), pelo que não se podem dar como demonstrados os danos associados às suas alegadas deslocações.
E também por ausência de prova devem manter-se como indemonstrados os factos relativos aos danos não patrimoniais (al. e)).
Restam a aptidão da parcela de terreno em causa para o cruzamento e estacionamento de veículos e a já referida convicção de pertença dessa mesma parcela.
Quanto ao primeiro aspeto, vem dado como provado, sem impugnação neste recurso, que a dita parcela de terreno tem uma configuração irregular e, no máximo, 5,20 metros de largura e 13,40 metros de comprimento.
Por outro lado, vem também julgado demonstrado que tem sido utilizada, desde a partilha, pelos AA. e seus antecessores para entrarem para a respetiva casa e para dela saírem a pé, de trator e em veículos automóveis de qualquer natureza. O que a Ré, aliás também pretende fazer.
É indubitável, assim, que a parcela de terreno em causa permite a circulação e cruzamento de veículos, sejam eles de quem forem. Aliás, a testemunha, J. C., também o deu a entender quando se referiu à utilização que faz de tal parcela. E igual perceção poderá ter recolhido o tribunal “a quo” quando inspecionou o local e verteu em auto as suas características (fls. 106).
Daí que não se veja, neste aspeto, qualquer erro de julgamento que cumpra suprimir.
Por fim, como vimos, está em causa a convicção da pertença de tal parcela de terreno.
Essa pertença é afirmada pelos AA., em seu benefício, por via da usucapião; ou seja, por via da sua posse reiterada, mantida por certo lapso de tempo, do direito de propriedade sobre tal parcela de terreno (artigos 1287.º, do Código Civil).
A posse relevante para o apontado efeito, no entanto, não é, “mesmo residualmente, um poder de facto qualquer nem necessariamente um poder de facto no sentido estrito da expressão: de contacto físico com a coisa”. Basta que ela, a coisa, se mantenha no âmbito de atuação da vontade do respetivo sujeito (2).
Por outro lado, a posse implica igualmente uma intencionalidade ou voluntariedade; isto é, implica aquilo que habitualmente se designa por animus (3). Que não tem de corresponder - note-se –, sempre e necessariamente, à vontade concreta e psicológica do possuidor. Na verdade, para efeitos possessórios, “não pode deixar de se ter por excluída a necessidade de indagação de uma vontade concreta, psicológica, do possuidor, sob pena de se introduzir no conceito um elemento de intolerável perturbação, que daria lugar a incertezas quase intransponíveis” (4).
Assim, ao animus basta o apuramento da vontade abstrata, correspondente à causa por que se detém. O aninums “infere-se, está implicado, é exteriorizado, exprime-se, revela-se pelo modo como ele [o sujeito] age, já que a intenção de domínio releva do agir em si mesmo considerado e não do que a seu respeito possa ser verbalizado por aquele que actua sobre a coisa” (5).
E, na dúvida, a regra é a de que se presume a posse naquele que exerce o poder de facto correspondente ao direito - artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil. Podem, por isso, “adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” (6).
Ora, é justamente neste argumento que os AA. baseiam a sua pretensão de ver demonstrada e reconhecida a sua convicção possessória.
No fundo, dizem eles: se está demonstrado que, desde as partilhas ocorridas no dia 10/08/1984, a referida parcela de terreno tem sido utilizada por eles próprios e seus antecessores para entrarem para a respetiva casa e para dela saírem a pé, de trator, em veículos automóveis de qualquer natureza, a qualquer hora do dia e durante todo o ano, à vista e com o conhecimento de todos, sem interrupção nem oposição de ninguém; se está demonstrado que eles próprios se servem da referida parcela de terreno para depositarem lenhas, mato, palhas, canhotos e outras coisas, à vista e com o conhecimento de todos, sem interrupção nem oposição de ninguém; se as Rés não lograram provar a pertença de tal parcela ao domínio público ou mesmo privado para além dos AA., é inevitável a conclusão de que o seu uso da mesma parcela só pode ter sido na convicção de que a mesma lhes pertence. E, havendo dúvidas, deve operar a presunção já indicada.
Ora, do nosso ponto de vista, este raciocínio é juridicamente inatacável.
Na verdade, provado que está o poder de facto nos termos assinalados, a convicção possessória e aquisitiva dos AA. tem necessariamente de se dar como demonstrada. Só assim não seria se as Rés tivessem logrado ilidir a presunção de que beneficiam os AA. (artigos 350.º, n.º 1, e 1252.º, n.º 2, do Código Civil). Ora, as Rés não o fizeram. Aliás, em bom rigor, nem sequer lograram provar outro domínio sobre a parcela de terreno em questão.
Não se ignora, com isto, que os próprios AA. alegaram que sobre a faixa de terreno por eles reivindicada é feito o acesso a um outro prédio, que não os das partes. E também não se ignora que está provado que, além desse acesso, a mesma faixa é utilizada também como ponto de passagem para uma água de consortes. Isto, para além de ter um poste de eletricidade nela implantado. O que poderia suscitar a dúvida sobre se a posse dos AA. foi, de facto, exclusiva, como é próprio da que é necessária para a aquisição do direito de propriedade (artigo 1305.º, do Código Civil).
A nosso ver, no entanto, essa exclusividade tem de se ter por confirmada.
É que, no contexto da alegação dos AA., a referida utilização, mesmo que confessada, só pode significar um encargo sobre o seu direito de propriedade e não uma posse concorrente com a sua; isto é, só pode significar o reconhecimento de um direito de servidão de passagem, que, como é sabido, representa um encargo sobre o prédio serviente e não um exercício possessório nos termos já assinalados (artigo 1543.º do Código Civil). Por outras palavras, o beneficiário da servidão é, em regra, um mero detentor e não um possuidor do direito de propriedade, pois que o seu intuito não é a aquisição deste direito, mas, antes e apenas, o exercício de tal servidão (artigo 1253.º, al. a), do Código Civil). Daí que a sua detenção, assim exercida, não seja apta para extinguir a posse do proprietário do prédio serviente (7).
E também não é apta para extinguir ou sequer limitar a posse dos AA. neste caso concreto, a implantação do posto de eletricidade já referenciado, que não está provado a quem pertence, nem em que circunstâncias foi colocado na dita parcela de terreno.
Em resumo: podemos concluir, com segurança, que os AA. têm a posse exclusiva sobre essa parcela e, portanto, a sua convicção possessória tem de se dar por demonstrada; ou seja, deve julgar-se provado, como por eles alegado, que “os AA. há mais de 20 anos, por si e antecessores, vêm praticando os factos descritos em 12 e 13 do capítulo dos Factos Provados, na firme convicção de que são donos da parcela de terreno referida no ponto 9 do mesmo capítulo”.
E feita esta prova, de que os AA. exerceram, e exercem, o seu domínio sobre tal parcela, com intuito aquisitivo e ainda de modo reiterado, público, pacífico e de boa fé, durante mais de 20 anos, integraram-na na sua esfera jurídica, como seus proprietários, por via da usucapião. É o que resulta do disposto nos artigos 1287.º e 1296.º, do Código Civil.
Ninguém, pois, nem, portanto, as Rés, se pode opor a exercício de semelhante direito, fora dos casos previstos na lei.
O proprietário, como resulta do disposto no artigo 1305.º, do Código Civil, “goza de modo e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com as restrições por ela impostas” – artigo 1305.º do Código Civil. O direito de propriedade é “o direito real máximo, mediante o qual é assegurada a certa pessoa, com exclusividade, a generalidade dos poderes de aproveitamento global das utilidades de certa coisa” (8).
Daí que as Rés não possam interferir ilegitimamente com o exercício de tal direito, por parte dos AA..
Isto não significa, porém, que a 1ª Ré deva ser condenada a tapar as aberturas que deitam diretamente para a referenciada parcela de terreno.
Como resulta da matéria de facto provada (ponto 15), essas aberturas foram levadas a cabo no muro que delimita os prédios da referida Ré e, portanto, os AA. não podem também interferir com o modo como essa delimitação é feita, posto que também representa um exercício legitimo do direito de propriedade, por parte da mesma.
O que podem, e têm direito, é a proibir essa mesma Ré de aceder a tais prédios pela parcela de terreno que temos estado a referenciar e, de um modo geral, ambas as Rés de praticarem qualquer ato que interfira com o seu direito de propriedade.
Já num outro plano, também não há qualquer fundamento para condenar as Rés a pagar aos AA. qualquer sanção pecuniária compulsória, como estes pretendem.
Efetivamente, não há prova de que as Rés estejam a ocupar abusivamente a parcela reivindicada pelos AA.
Mas, mesmo que houvesse, é entendimento jurisprudencial dominante que, em face da redação do artigo 829.º-A, n.º1, do Código Civil, a sanção pecuniária compulsória não é aplicável às obrigações de entrega de coisa certa, mas apenas às obrigações que implicam uma “prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado” (9).
Por isso, esse pedido terá de ser julgado necessariamente improcedente.
E improcedente se deve julgar igualmente o pedido de pagamento de uma indemnização pelos danos alegadamente sofridos pelos AA., visto que esses danos não se apuraram.
Em resumo: os AA. têm direito a ver reconhecido o direito de propriedade sobre o seu prédio e a parcela de terreno por eles reivindicada, bem como as Rés condenadas a absterem-se de praticar qualquer ato que atente contra esse direito de propriedade, designadamente, a 1ª Ré, a abster-se de passar com carros de bois, tratores e veículos automóveis para a parte traseira dos seus prédios e, no mais, os restantes pedidos devem ser julgados improcedentes.
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III- DECISÃO

Pelas razões expostas, acorda-se em:

1º- Conceder parcial provimento ao presente recurso e, revogando, em parte, a sentença recorrida, julga-se parcialmente procedente, por provada, a presente ação, declaram-se os AA. proprietários do prédio urbano situado no lugar de …, freguesia de …, concelho de Celorico de Basto, composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, com horta e quinteiro, inscrito na matriz sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° …, bem como da parcela de terreno, de configuração irregular, com 5,20 metros de largura máxima e 13,40 metros de comprimento máximo, situada entre o referido prédio dos AA. e os da 1ª Ré (mencionados nos pontos 2 e 3 dos Factos Provados), e condenam-se as Rés a respeitar esse direito, abstendo-se da prática de quaisquer atos que contra ele atentem, designadamente, abstendo-se a 1ª Ré, Maria, de passar através da citada parcela de terreno com carros de bois, tratores e veículos automóveis para a parte traseira dos seus prédios.
2.º Negar parcial provimento a este recurso em relação ao mais pedido, do qual se absolvem as Rés, confirmando-se, nessa medida, a sentença recorrida.
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- As custas em ambas as instâncias serão pagas por AA. e Rés, na proporção de ¼ e ¾, respetivamente - artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.


1. Neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 83.
2. Isto porque, como afirma José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais- 4ª ed. Refundida, Coimbra Editora, pág. 90, “[o] corpus é já de si uma relação, não material, mas social”.
3. Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (coordenação de Francisco Liberal Fernandes, Maria Raquel Guimarães e Maria Regina Redinha), Coimbra Editora, pág. 262, de onde foi extraída a última citação transcrita.
4. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6ª ed. (reimpressão), Quid Juris, pág.289.
5. Ac. STJ de 13/09/2011, Processo n.º 1027/06.4TBSTR.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
6. Ac. STJ (uniformizador de jurisprudência), de 14/05/1996, Processo n.º 085204, consultável em www.dgsi.pt
7. Até porque, nos termos do artigo 1290.º, do Código Civil, “[o]s detentores ou possuidores precários não podem adquirir, para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título”, o que no caso, não se mostra ter sido feito.
8. Luis A. Carvalho Fernandes, ob cit., pág. 334.
9. Neste sentido, Ac. STJ de 30/06/2004, Processo n.º 04B1849, Ac RE de 12/07/2016, Processo n.º 3066/13.0TBFAR-A.E1, bem como a doutrina e jurisprudência neles citada, sendo aqueles Arestos consultáveis em www.dgsi.pt.