Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3155/19.7T8VCT-A.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: INVERSÃO DO CONTENCIOSO
PRETENSÃO CORRESPONDENTE A TUTELA DEFINITIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A formulação de uma pretensão no sentido da inversão do contencioso não faculta o direito de formular num procedimento cautelar um pedido correspondente a uma tutela definitiva, como é o caso de um pedido de indemnização para reparação de lesão sofrida;
II- Ao invés: é o tipo de providência cautelar peticionado que condiciona a possibilidade de inversão do contencioso;
III- Não sendo admissível a formulação num procedimento cautelar de um pedido que tenha ab initio caracter definitivo, como sucede com um pedido de indemnização, muito menos o será a ampliação de um tal pedido.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

A. Relatório

A. L., D. L. e M. C. vieram deduzir, contra A. T., procedimento cautelar comum com inversão do contencioso, requerendo, seja decretada uma das seguintes providências:

a) Condenar a requerida na demolição imediata e total do anexo construído, com a consequente reposição da cota original do seu logradouro com a terra devidamente compactada;
ou, em alternativa:
b) Condenar a requerida na demolição imediata das paredes norte e nascente do anexo construído, com o inevitável escoramento, por forma a que aí sejam construídos muros de betão armado de suporte aos limites sul e poente do prédio dos requerentes, com uma altura não inferior a dois metros de altura a contar do atual nível do solo da requerida, tudo devidamente impermeabilizado.
Mais requereram se decida condenar a requerida, nos termos do número 2 do artigo 365º do CPC, a título de sanção pecuniária compulsória, no pagamento aos requerentes da quantia de € 100,00 (cem euros) por dia, desde o dia do trânsito em julgado da sentença que determine as providências decretadas, até ao dia em que a requerida- complete integralmente a execução de todas elas, e, ainda, na sequência da inversão do contencioso (sic), condenar a requerida a pagar aos requerentes, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais por estes sofridos, uma quantia não inferior a € 9.496,00 (nove mil quatrocentos e noventa e seis euros), acrescidos de juros à taxa de 4%/ano, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Citada, a Requerida deduziu oposição, tendo sido determinada a produção de perícia requerida nos autos.
No decurso das diligência tendentes à ultimação da dita perícia, vieram os Requerentes da providência requerer, nos termos previstos no número 2 do artigo 265º do CPC, a ampliação do pedido, condenando a requerida a pagar aos requerentes o valor de peritagem já liquidado pelo Sr. Perito, no valor de € 878,22 (oitocentos e setenta e oito euros e vinte e dois cêntimos), e ainda todas as quantias que aquele vier a liquidar, bem como o montante necessário à realização dos ensaios destrutivos e a retirada da terra nos locais determinados no douto despacho de fls., cujo valor foi estimado pela sociedade unipessoal por quotas “X, Unipessoal, Lda.” entre € 2.100,00 (dois mil e cem euros), como valor mínimo, e € 2.600,00 (dois mil e seiscentos euros), como valor máximo, quantias a que deverá ser acrescido o IVA à taxa legal em vigor.

Alegaram, para o efeito e em suma que no requerimento inicial, os requerentes peticionaram contra a requerida um valor de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos e, por outro lado, que os pagamentos dos valores da perícia e dos trabalhos a executar pelos ensaios destrutivos e pela retirada da terra nos locais determinados no douto despacho de fls., ao não poderem, em caso de ganho total ou parcial da ação, ser reclamados pelos requerentes ao Instituto de Gestão Financeira e das Infra – Estruturas da Justiça, I.P., terão necessariamente que ser peticionados contra a requerida e relevados na decisão a tomar a final, sendo esta ampliação desenvolvimento e consequência dos pedidos primitivos.

Foi, então, proferida a seguinte decisão:

No que respeita à ampliação de pedido dir-se-á o seguinte: O carácter urgente dos procedimentos cautelares e o seu formalismo processual célere não se compadece com o formalismo próprio de uma acção normal, não comportando, nem admitindo, por tal, articulado superveniente, nos termos consagrados no artº 506º (sic) do Cód. Proc. Civil, nem ampliação ou aditamento do pedido ou da causa de pedir.
Além disso, não é admissível que os requerentes queiram ser indemnizados por algo que constitui um encargo. O pagamento dos encargos processuais não se confunde com o pagamento de uma indemnização à parte por um dano patrimonial sofrido. Está apenas em causa o reembolso das despesas suportadas pela parte e que se mostraram necessárias à resolução do litígio. Este pedido não é o desenvolvimento do pedido anterior.
Indefere-se assim a requerida ampliação.

O Requerente recorreu desta decisão apresentando as seguintes conclusões:

A – Num procedimento cautelar onde é requerida a inversão do contencioso é admissível a ampliação do pedido, nos termos previstos no número 2 do artigo 265º do CPC;
B – Se os recorrentes, requerentes do procedimento cautelar, em caso de ganho total ou parcial da ação, não puderem reclamar, a título de custas de parte, os encargos suportados pela realização da perícia e pela execução dos ensaios destrutivos, nem à recorrida, nem ao Instituto de Gestão Financeira e das Infra – Es-truturas, I.P. – aquela porque goza de apoio judiciário na modalidade de “dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo”, este porque apenas é responsável pelos pagamentos das taxas de justiça pagas pela parte vencedora, nos termos do número 6 do artigo 26º do RCP -, é legítimo socorrem-se da ampliação do pedido, nos termos previstos no número 2 do artigo 265º do CPC, por forma poderem reclamar à recorrida o pagamento desses valores a título de danos patrimoniais sofridos;
C - Se assim não for há uma total perversão processual: os recorrentes, saindo vencedores, total ou parcialmente, terão que suportar encargos que apenas surgiram pela conduta da recorrida;
D - Os pedidos de pagamento, não só do valor já despendido - € 878,22 –, ou ainda a despender, na perícia ordenada pelo tribunal a quo, mas também do valor já pago pela execução dos ensaios destrutivos e pela retirada da terra nos locais determinados no douto despacho de fls. - € 3.195,54 -, por estarem intimamente ligados e relacionados com os factos alegados no requerimento inicial, tratam-se de uma ampliação que é o desenvolvimento e consequência dos pedidos primitivos.
A Recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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B. Delimitação do objeto do recurso

Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do NCPC).

Assim sendo, no caso, é a seguinte a questão a decidir:

- Saber da admissibilidade da requerida ampliação de pedido no âmbito de procedimento cautelar.
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C. Os factos a considerar são os já constantes do relatório acima elaborado.
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D. O Direito.

Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito – art. 362º, nº 1, do CPC.
Os procedimentos cautelares constituem um instrumento processual privilegiado para proteção eficaz de direitos subjetivos e de outros interesses juridicamente relevantes, mas não estão destinados a resolver autónoma e definitivamente o conflito de interesses, antes a prevenir a violação grave e definitiva de direitos, na antecipação de determinados efeitos das decisões judiciais e na prevenção de prejuízos que podem advir da demora na decisão do processo principal. A sua utilização pressupõe, portanto, a existência de um risco de lesão, uma situação de perigo, de “periculum in mora”, que visam obviar: as medidas cautelares destinam-se a tutelar uma concreta situação de perigo.
“As providências conservatórias visam manter inalterada a situação de facto que pré-existe à ação, tornando-a imune à possível ocorrência de eventos prejudiciais. As providências antecipatórias visam obstar ao prejuízo decorrente do retardamento na satisfação do direito ameaçado, através de uma provisória antecipação no tempo dos efeitos da decisão a proferir sobre o mérito da causa” – Acórdão da Relação de Coimbra, de 28.06.2005 (1345/05).
Estas últimas “excedem a natureza simplesmente cautelar ou de garantia que caracteriza a generalidade das providências”, garantindo, “desde logo, e independentemente do resultado a alcançar na acção principal, um determinado efeito que acaba sempre por ter caráter definitivo” (Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma de Processo Civil, III, Procedimento Cautelar Comum, pág. 92), nelas estando incluídas, designadamente, os alimentos provisórios e o arbitramento da reparação provisória e não estando afastada “a possibilidade de, através de providências cautelares não especificadas se poder alcançar, também, uma medida com efeitos antecipatórios da decisão definitiva, uma vez que o art. 381º (atual art. 362º do NCPC) prevê expressamente tal possibilidade” (autor e obra citados neste parágrafo, pág. 93), sendo ainda certo que, ao longo da vigência do CPC Velho, na nossa jurisprudência, diversas providências foram sendo decretadas que, na prática, permitiram a tutela definitiva da pretensão do requerente, as denominadas “providências antecipatórias de resolução definitiva do litígio”, como a proibição de realização de um evento cultural e de publicação de um determinado número de um jornal ou de lançamento de um livro (Marco Filipe Carvalho Gonçalves, in Providências Cautelares, 2017, pág. 128).
Todavia não se pode esquecer que, como enfatiza Marco Gonçalves na obra citada, pág. 103, “(..) a tutela cautelar carateriza-se por revestir um carácter instrumental e provisório, porquanto limita-se a proteger o efeito útil da sentença a ser proferida na ação principal. Significa isto que, ressalvada a possibilidade de inversão do contencioso, não é possível obter, pela via cautelar (sem a confirmação de uma sentença proferida na ação principal), a tutela definitiva de um direito”. Assim, diz o referido autor, citando Miguel Teixeira de Sousa, “As providências cautelares e a inversão do contencioso”, pág. 8, “a tutela cautelar não pode ser considerada uma forma de tutela urgente. Não há, no ordenamento jurídico português, nenhuma tutela cautelar que seja igualmente uma tutela urgente, nem nenhuma tutela urgente que seja obtida através da tutela cautelar”, entendendo-se por tutela urgente aquela que apresenta uma natureza definitiva, mas é obtida num procedimento simples e célere, como é o caso do processo especial de tutela da personalidade previsto nos artigos 878º a 880º do Código Processo Civil, regime jurídico que encerra a vantagem de dispensar o requerente da demonstração do preenchimento dos requisitos necessários para o decretamento de uma providência cautelar.
Em suma: “…as providências cautelares estão sujeitas a dois limites de fundo: por um lado, o requerente não pode obter por essa via mais do que aquilo que poderia alcançar através da sentença definitiva; por outro lado, o tribunal não pode decretar uma providência cautelar cujos efeitos sejam irreversíveis ao ponto de esvaziarem de conteúdo a ação principal” – Marco Gonçalves, pág. 120.
Atualmente, no art. 369º, nº1, do CPC, mostra-se consagrada a mencionada possibilidade de inversão do contencioso, que permite que em determinados casos a providência cautelar proceda à composição definitiva do litígio, desse modo se economizando os meios judiciais. Ali se prevê que, mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, possa dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
A inversão do contencioso só pode, portanto, ser concedida nas situações em que pela natureza da providência, a tutela cautelar seja suscetível de se substituir à tutela definitiva mediante uma convolação ex legge, sendo este um “requisito evidente” que faz com que o campo privilegiado da inversão do contencioso se centre na tutela cautelar de natureza antecipatória (Marco Gonçalves, obra citada, pág. 158).
Aqui chegados e tendo em consideração que a ampliação visada pelos Requerentes do procedimento cautelar, no sentido da condenação da Requerida a pagar aos requerentes o valor de peritagem já liquidado pelo Sr. Perito, no valor de € 878,22 (oitocentos e setenta e oito euros e vinte e dois cêntimos), e ainda todas as quantias que aquele vier a liquidar, bem como o montante necessário à realização dos ensaios destrutivos e a retirada da terra nos locais determinados no douto despacho de fls., cujo valor foi estimado pela sociedade unipessoal por quotas “X, Unipessoal, Lda.” entre € 2.100,00 (dois mil e cem euros), como valor mínimo, e € 2.600,00 (dois mil e seiscentos euros), como valor máximo, quantias a que deverá ser acrescido o IVA à taxa legal em vigor, corresponder, segundo os mesmos Requerentes, à ampliação do pedido por eles inicialmente formulado e consistente em, na sequência da inversão do contencioso (sic), condenar a requerida a pagar aos requerentes, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais por estes sofridos, uma quantia não inferior a € 9.496,00 (nove mil quatrocentos e noventa e seis euros), acrescidos de juros à taxa de 4%/ano, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento, logo se descortina que o erro primordial dos Requerentes residiu no facto de terem partido do princípio de que a formulação de uma pretensão no sentido da inversão do contencioso lhes facultaria o direito de formularem num procedimento cautelar um pedido correspondente a uma tutela definitiva – como é aquele que, tal como o formulado no requerimento inicial do procedimento cautelar em causa, visa a condenação (não provisória) de outrem no pagamento de uma indemnização –, pedido que, como é evidente, extravasa o direito de ação cautelar, não cabendo, consequentemente, a sua dedução no âmbito de um procedimento com essa natureza, muito menos podendo, desde já se afirma, proceder-se em fase ulterior à ampliação de um tal pedido (que tampouco assenta na existência de uma qualquer situação constitutiva de uma ameaça para o direito à reparação da alegada lesão que justifique a necessidade de tutela cautelar) no procedimento cautelar em que o mesmo foi (indevidamente) deduzido.
Na verdade, aquilo que sucede é exatamente o contrário do pressuposto pelos Recorrentes: é o tipo de providência cautelar peticionado que condiciona a possibilidade de inversão do contencioso e não o requerido neste sentido que permite a formulação de um pedido que tenha ab initio caracter definitivo.
Veja-se, por exemplo, que essa possibilidade de inversão do contencioso ocorre no caso dos alimentos provisórios, mas já não no arbitramento de reparação provisória, porquanto esta, apesar de revestir uma natureza antecipatória, não dispensa a propositura de uma ação principal – (Marco Gonçalves, obra citada, pág. 158).Recorde-se, aliás, que, no que concerne à tutela definitiva do direito à reparação de uma lesão, até no supra referido regime especial da tutela da personalidade, está vedado ao requerente fazer valer nessa sede uma pretensão indemnizatória contra o lesante.
Face ao exposto, não sendo a formulação (e, consequentemente, a cumulação) de um pedido de indemnização definitiva admissível num procedimento cautelar (constituindo a dedução de pedidos a que correspondam formas processuais diversas uma exceção dilatória atípica determinante da absolvição parcial da instância relativamente à pretensão que não se enquadre na forma que tenha sido indicada pelo autor na petição inicial - neste sentido Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma de Processo Civil, I, pág. 134 a 136 e CPC Anotado, autores citados, pág. 69), muito menos será de admitir, no âmbito de um procedimento dessa natureza, a ampliação de um tal pedido, não sendo o facto de, no caso concreto, o pedido de indemnização formulado no requerimento inicial não ter sido objeto de decisão determinante da extinção parcial da correspondente instância, impeditivo de se decidir pela inadmissibilidade da ampliação do mesmo ulteriormente requerida: entender-se de outro modo redundaria na admissão da ampliação de um erro.
E assim é independentemente de todas as razões que se possam expender no sentido da defesa, em termos abstratos, da faculdade de ampliação do pedido no âmbito dos procedimentos cautelares, questão que prejudicada fica em face do que se acaba de expor.
Improcede, pois, na medida do explanado, a apelação.

Sumário

I – A formulação de uma pretensão no sentido da inversão do contencioso não faculta o direito de formular num procedimento cautelar um pedido correspondente a uma tutela definitiva, como é o caso de um pedido de indemnização para reparação de lesão sofrida;
II – Ao invés: é o tipo de providência cautelar peticionado que condiciona a possibilidade de inversão do contencioso;
III – Não sendo admissível a formulação num procedimento cautelar de um pedido que tenha ab initio caracter definitivo, como sucede com um pedido de indemnização, muito menos o será a ampliação de um tal pedido.

E. Decisão:

Pelo exposto, julgando-se a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Guimarães, 08.07.2020

Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues