Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
47/20.0T8MLG-A.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: INVENTÁRIO
DOACÇÃO MANUAL E REMUNERATÓRIA
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
As verbas que integram doações manuais e remuneratórias, presumindo-se dispensadas de colação, não estão contudo dispensadas de sem relacionadas em inventário por morte dos doadores, sendo os donatários descendentes que pretendem entrar na sucessão –artºs. 2104º, 2110º, e 2113º, nº. 3, C.C..
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO (seguindo o elaborado em 1ª instância, com destaques a negrito nossos).

Os presentes autos forma intentados por AA por óbito de seus pais. Assim, admitiu-se a cumulação de inventários para partilha das heranças abertas por óbito de BB e CC, que faleceram, respetivamente, em .../.../2018 e .../.../2018, tendo tido as últimas residências no lugar de ..., da União de Freguesias ... e ..., deste concelho ....
Indicou como herdeiros, além de si, os seus irmãos DD e CC.
Assim, para exercer as funções de cabeça de casal, designou-se DD, casada com EE, sob o regime da comunhão geral de bens, residente na Viela ..., da União de Freguesias ... e ..., do concelho ...;
A cabeça-de-casal apresentou relação de bens no dia 12.7.2021, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
O interessado AA reclamou da relação de bens, alegando, em suma, que a conta número ...76, relacionado sob a verba número quatro, pertence aos interessados, CC (já falecido) e esposa FF, apenas ali constando o nome do inventariado por facilidade de movimentação da mesma, visto que os outros titulares se encontravam a residir em ...; a verba número seis é propriedade exclusiva do interessado reclamante, AA; a falta de relacionação das importâncias em dinheiro indicadas no ponto n.º 3 da reclamação e que se encontram na posse da cabeça de casal, levantados da Banco 1....
Alegou ainda o interessado que a cabeça-de-casal estava obrigada a participar os montantes em dinheiro no processo de imposto de selo sobre transmissões gratuitas, não o fazendo nesse processo, nem nos presentes, sonegando a existência de tais bens, pertença das heranças. Ocultou a existência de tais bens, tendo a obrigação de os declarar, o que fez de modo doloso, com vontade de sonegação de tais bens.
Pediu ainda a aplicação da sanção prevista no art. 2096.º, nº 1 do Código Civil à cabeça-de-casal.
A cabeça-de-casal apresentou resposta, dizendo, em suma, que os montantes depositados sob a verba n.º 4 pertenciam ao inventariado; que o imóvel relacionado sob verba n.º 6 sempre pertenceu aos inventariados e que, desde o mês de dezembro de 2012 e até ao falecimento, a cabeça-de-casal sempre prestou assistência e cuidados aos inventariados, inclusivamente, vindo de ..., no início de 2018, para o efeito.
Os montantes transferidos foram-no para que a cabeça-de-casal pudesse pagar despesas dos inventariados, sendo transferidos à cabeça-de-casal e ao seu marido com o encargo de estes lhes prestarem os serviços de assistência e cuidado no lar, e que efetivamente prestarem, fazendo-lhes, por isso, uma doação remuneratória de todos os valores que restassem, após o pagamento de todas as despesas com a sua alimentação em sentido lato com a obrigação.
Recusou ainda, pelas razões expostas, ter procedido à alegada sonegação de bens, devendo improceder o pedido dos reclamantes neste ponto.
Entretanto, face ao comprovado falecimento de CC, foram habilitados os seus sucessores GG, viúva, HH, II e CC, seus filhos.
Oficiou-se à entidade bancária para requisição documental (Banco 1...), junta aos autos a 22.7.2022.
Realizou-se audiência final, tendo as partes acordado a eliminação da verba n.º 4 da relação de bens.
Quanto à suscitada impugnação da validade e eficácia da escritura de justificação notarial que o reclamante AA juntou como prova no âmbito do presente incidente, e nessa, medida, quanto à questão da inclusão da verba n.º 6 na relação de bens, nos termos conjuntos dos artºs 7º, 547º, 1092º, nº 1 al. b) e nº 2 do CPC, o Tribunal remeteu as partes para meios comuns, sendo questão insuscetível de se decidir incidentalmente.
Determinou-se que os autos prosseguissem para apreciação das demais questões que foram suscitadas no incidente de reclamação, designadamente quanto ao pedido de declaração de sonegação de bens e aplicação da respetiva sanção, nos termos do art. 2096º do CC.
Procedeu-se à realização da audiência final do incidente.
*
O incidente culminou na seguinte decisão:

“Em face do exposto, quanto às matérias apreciadas neste incidente, julgo a reclamação apresentada pelos interessados AA e outros, parcialmente procedente, por provada e, em consequência:

1. Declaro totalmente improcedente o pedido de declaração de sonegação de bens, bem como o pedido de aplicação à interessada DD da sanção prevista no art. 2096.º, n.º 1, in fine do Código Civil formulado pelo interessado AA e outros.
2. Condeno a cabeça-de-casal a restituir o montante de €1.850,00 (mil oitocentos e cinquenta euros) ao acervo hereditário nos termos do art. 2074.º, n.º 2 do Código Civil, ou seja, uma vez que se trata de dinheiro devido por um herdeiro à herança, tal restituição será feita pela imputação do montante na sua quota;
Custas pelos reclamantes e cabeça-de-casal opoente, na proporção do respetivo decaimento, fixando-se o mesmo, respetivamente, em 99% e 1% - art. 527.º do Código de Processo Civil.
Valor do incidente, nos termos do art. 302.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, fixa-se em €215.822,36 (duzentos e quinze mil, oitocentos e vinte e dois euros e trinta e seis cêntimos), tratando-se do somatório dos valores de saldos bancários objeto do pedido de sonegação).
Notifique e registe.
*
Após transito em julgado da presente decisão, lavre termo de conclusão, de modo a ponderar eventual suspensão da instância, com fundamento na remessa para os meios comuns das partes no tocante ao pedido de impugnação da escritura de justificação.”
*
Inconformados, AA, JJ, HH, KK e CC apresentaram recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“I - A cabeça de casal apenas esteve em Portugal, para acompanhar e tratar dos pais, no ano de 2012, e, depois disso, só em 2018, quando os pais tiveram um acidente até à sua morte;
II - Naquela data, 2012, e nos anos seguintes até à morte dos inventariados, a cabeça de casal, apesar de estar em ..., não trabalhava, apenas vindo a Portugal no período de férias.
III - Estando os dois restantes filhos dos inventariados emigrados em ..., e a cabeça de casal, apesar de estar também naquele pais, tinha todo o sentido que fosse ela a disponibilizar-se no auxílio mais próximo aos pais, pois já não trabalhava, nem ela nem o marido, sendo ela a única filha do casal, essa condição de mulher permitiria que ela pudesse exercer a função de tratamento dos pais em condições melhores que os seus irmãos. Os restantes filhos não tinham essa disponibilidade, pois tal acarretaria o abandono dos seus postos de trabalho em ....
IV - Fê-lo, portanto, no cumprimento do seu dever de assistência e auxílio, tal como o estipula o disposto no artigo 1874º, do C.C. e no cumprimento de uma obrigação natural (Ac do TRG, proferido no processo 5717/17.8T8VNF.G1, de 20/09/2018, publicado em dgsi.pt).
V - Tendo em conta o atrás exposto, tem todo o sentido que a cabeça de casal tenha estado presente auxiliando nos cuidados que os pais precisaram e que admitem sejam os descritos nos pontos 15º a 26º dos factos provados.
Sendo certo que todas essas despesas foram pagas com o dinheiro dos inventariados que entraram na posse da cabeça de casal.

QUANTO AO DEMAIS

VI - Não corresponde à verdade o constante dos pontos 27 a 35 dos factos dados como provados, ou não tem o sentido e alcance que na sentença lhe foi dado;
VII- Todos esses montantes foram levantados pela cabeça de casal das contas conjuntas que existiam em nome de ambos os inventariados, seus pais, e transferidos para as suas contas;
VIII- Todas as importâncias transferidas da conta dos inventariados para a conta da cabeça de casal foram feitas como procuradora do inventariado.
IX - Não existe qualquer transferência que tenha sido feita pelo inventariado.
X - O inventariado esteve completamente lúcido praticamente até à sua morte pelo que podia ser ele a fazer as ditas transferências, se tal fosse a sua intenção.
XI - Dispõe o artigo 947º, nº 2, do C.C. que, “A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada da tradição da coisa doada; não sendo acompanhada da tradição da coisa, só pode ser feita por escrito”
XII -Ora, o inventariado não efetuou qualquer tradição do dinheiro para a posse da cabeça de casal, sendo esta que, com a procuração por ele passada, entrou na posse desse dinheiro.
XIII -A procuração passada não consubstancia uma doação, alíás, a procuração, que se encontra junta aos autos, confere poderes para administração civil do património e prover necessidades da vida corrente do inventariado, como resulta dos poderes concedidos pelas alíneas b), c), d), e), f) e g) do referido documento. Também confere poderes para movimentar as contas, mas em nenhum dos seus poderes consta que esses movimentos fossem feitos em proveito próprio da cabeça de casal, muito menos para, com base nela, fazer consigo mesmo negócio de doação.
XIV- Se tal procuração foi destinada para levantar todo o dinheiro em seu benefício próprio, porque razão confere também poderes para movimentar tais contas também a crédito e depositar quaisquer importâncias.
XV - A utilização dessa procuração para movimentar o dinheiro dos inventariados, para a conta da cabeça de casal, fazendo-o seu, e alegar que, nessa conformidade, se tratou de uma doação desses montantes por parte do inventariado, não tem suporte legal.
Dispõe o artigo 261º, nº 1, do C.C. “É anulável o negócio efetuado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses”.
XVI - A dita procuração não especifica que os poderes conferidos se destinem a que os montantes movimentados se destinem a ser depositados na conta da cabeça de casal, ou seja, na conta do procurador, muito menos que esses montantes se destinam a ser a esta doados.
XVII - Não houve, portanto, qualquer doação, por violação do disposto nos artigos 261º, nº 1 e 947º, nº 2, ambos do C.C. ou, a ter havido tal doação, no que não se concede, esta é nula, o que se invoca para todos os efeitos legais.

SEM PRESCINDIR

XVIII - O dinheiro levantado pela cabeça de casal, estava depositado em contas conjuntas de ambos os inventariados, casados sob o regime da comunhão geral de bens, o que significa que pertencia a ambos na proporção de metade para cada um.
XIX - O dinheiro transferido para as contas da cabeça de casal foi-o em altura em que a inventariada já sofria de alzeimer e sem condições para decidir sobre a administração do seu partrimónio;
XX - E nem se diga que a hipotética doação tinha sido feita por ela em data em que ainda estava lúcida. Se assim fosse, porque razão não foi feito o levantamento nessa data?
Quando foi por ela feita a tradição desses montantes para a posse da cabeça de casal, facto que é determinante para a validade da doação?
Resulta dos autos que não houve por parte da inventariada qualquer ato de transmissão do dito dinheiro para a posse da cabeça de casal.
Por isso, tinha de ser feita por escrito (artigo 947º, nº 2, do C.C.)
Como tal não foi feito, essa hipotética doação por parte da inventariada não respeita os termos da lei, sendo, por isso, nula. ( artigo 294º, do C.C.)
De qualquer modo, como supra se refere, sempre essa hipotética doação seria nula, nos termos dos artigos 261º, nº 1 e 947º, nº 2, ambos do C.C.
Pelo que a admitir-se, no que não se concede a validade da doação feita pelo inventariado à cabeça de casal, só poderá respeitar à metade do que foi levantado das ditas contas conjuntas.

DE QUALQUER MODO, SEM PRESCINDIR DO ACIMA ALEGADO

XXI - A admitir-se, repete-se, no que não se concede, mas por mera cautela processual se invoca, que os inventariados fizeram a doação dos referidos montantes à interessada, cabeça de casal, tratar-se-ia de uma doação remuneratória ou compensatória, como, aliás, é considerado na sentença recorrida.
Ora, “não há doação remuneratória, por falta de espírito de liberalidade, quando se trate do cumprimento de uma obrigação natural..” (Vaz Serra, RLJ 112º-112).
Pelo que tal doação sempre teria que ser relacionada para ser levada em conta na partilha.
XXII - A admitir-se no que não se concede, que tal doação, na melhor das hipótese para a cabeça de casal, e na pior para os recorrentes, no que não se concede, presume-se imputada na quota disponível.
XXIII -A ser assim, o montante tal doação terá que ser sempre relacionado para ser levado em conta na partilha a efetuar dos bens dos inventariados, nos termos dos artigos 2104º,2105º,2106º, 2108º,2109º,2113º e 3114º, todos C.C.
XXIV - Não o entendendo nos termos exposto, a douta sentença recorrida violou- se o disposto nos artigos 261º, nº 1, 294º, 974º, nº 2, 1874º, 2104º, 2105º, 2106º, 2108º, 2109º, 2113º, todos do C. C, e abundante jurisprudência e doutrina, parte dela acima citada.”
Terminam, dizendo que “Deve o presente recurso merecer provimento, de acordo com as conclusões acima formuladas…”.
*
DD e EE apresentaram contra-alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)
(…)
Terminam pugnando pelo não provimento do recurso.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:

-deve ser admitida a impugnação da matéria de facto, e na afirmativa se merece provimento;
-no caso de alteração da matéria de facto, ou mesmo sem que seja alterada, e na conjugação com a demais factualidade provada, deve ser alterada a decisão.
***
III   FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria:

1. FACTOS PROVADOS –com destaque a negrito nosso
“Factos provados (com relevo para a decisão do incidente):
1. Os autores das heranças, BB e CC, faleceram, respetivamente, em .../.../2018 e .../.../2018, tendo tido as últimas residências no lugar de ..., da União de Freguesias ... e ..., deste concelho ...
2. BB foi casada com CC, em primeiras e únicas núpcias de ambos sob o regime de comunhão geral de bens;
3. Deixaram bens situados na área desta comarca.
4. Não deixaram testamento ou qualquer disposição de última vontade
5. Deixaram como herdeiros, além do requerente, os seguintes dois filhos:
a. - DD, casada com EE, sob o regime da comunhão geral de bens, residente na Viela ..., da União de Freguesias ... e ..., do concelho ...
b. - CC, casado com GG, sob o regime da comunhão de bens adquiridos, residente na Viela ..., da União de Freguesias ... e ..., do concelho ....
6. A cabeça de casal encontra-se na posse dos seguintes montantes, levantados ou transferidos das seguintes contas dos inventariados, sediadas na Banco 1...:
a. Levantamento pela interessada DD, da conta nº  ...57, em nome do inventariado no dia 08.03.2018, no valor de 2.000,00 €
b. Levantamento pela interessada DD, da conta nº  ...57, em nome da inventariada no dia 19.03.2018, no valor de 5.000,00 €
c. Transferência da conta nº ...57 em nome do inventariado no dia 23.03.2018 para reforço da poupança nº ...19, em nome do marido dessa interessada, DD, EE, com quem aquela é casada sob o regime da comunhão geral de bens, no valor de 10.000,00 €;
d. Transferência da conta nº ...57 em nome do inventariado no dia 23.03.2018 para reforço da poupança nº ...19, em nome do marido dessa interessada, DD, EE, no valor de 10.318,46 €;
e. Transferência da conta nº ...57 em nome do inventariado no dia 23.03.2018 para a conta nº ...97, em nome do marido dessa interessada, DD, EE, no valor de 2.100,00 €;
f. Levantamento pela interessada DD, da conta nº  ...57, em nome da inventariada no dia 23-05-2018, no valor de 1.000,00 €
g. Transferência da conta nº ...57 em nome do inventariado no dia 04.06.2018 para a conta nº ...97, em nome do marido dessa interessada, DD, EE, no valor de 1.000,00 €;
h. Levantamento pela interessada DD, da conta nº  ...57, em nome do inventariado no dia 13.06.2018, no valor de 900,00 €
i. Levantamento pela interessada DD, da conta nº  ...57, em nome do inventariado no dia 05.09.2018, no valor de 1.700,00 €
j. Transferência da conta nº ...97, em nome da inventariada no dia 23.03.2018 para reforço da poupança nº ...19, em nome do marido dessa interessada, DD, EE, no valor de 10.514,64 €;
k. Transferência da conta á ordem nº ...82, em nome da inventariada no dia 23.03.2018 para reforço da poupança nº ...19, em nome do marido dessa interessada, DD, EE, no valor de 1.700,00 €
l. Transferência da conta nº ...97 em nome da inventariada no dia 23.03.2018 para reforço da poupança nº ...19, em nome do marido dessa interessada, DD, EE, no valor de 56.142,43 €;
m. Levantamento pela interessada DD, da conta nº  ...82, em nome da inventariada no dia 23.03.2018, no valor de 500,00 €
n. Transferência da conta nº ...36 em nome do inventariado no dia 23.03.2018 para reforço da poupança nº ...19, em nome do marido dessa interessada, DD, EE, no valor de 10.503,28 €;
o. Transferência da conta nº ...36 em nome do inventariado no dia 23.03.2018 para reforço da poupança nº ...19, em nome do marido dessa interessada, DD, EE, no valor de 100.343,55 €;
p. Levantamento pela interessada DD, da conta nº  ...36, em nome do inventariado no dia 23.05.2018, no valor de 1.000,00 €
q. Levantamento pela interessada DD, da conta nº  ...36, em nome do inventariado no dia 13.06.2018, no valor de 100,00 €
r. Levantamento pela interessada DD, da conta nº  ...36, em nome do inventariado no dia 05.09.2018, no valor de 1.000,00 €
7. A cabeça-de-casal não participou os referidos montantes para efeitos de liquidação de imposto de selo.
8. Desde o mês de dezembro de 2012 e até às datas dos seus óbitos que a cabeça-de-casal DD cuidou dos inventariados, prestando-lhes assistência e ajuda.
9. Desde dezembro de 2012 e até Agosto de 2013, após os inventariados terem sofrido um grave acidente de viação, a cabeça-de-casal e o seu marido regressaram de ..., onde estavam emigrados, para os acompanhar, cuidar e prestar-lhes toda a assistência médica, alimentação e demais necessidades básicas diariamente, quer enquanto permaneceram hospitalizados, quer nas sua recuperações em casa.
10. Nos anos seguintes até ao início do ano de 2018, a cabeça-de-casal e o seu marido, apesar de emigrados em ..., continuaram, com carácter regular a acompanhar os inventariados, ajudando-os sempre que estes necessitavam, quer na sua vida diária, quer quando estavam doentes, pelo que para tais fins aqueles passaram temporadas em Portugal a cuidar dos inventariados.
11. No início do ano de 2018 os inventariados estavam muito debilitados, quer devido à idade, quer por problemas de saúde.
12. Os inventariados necessitavam de quem tratasse deles, diária e permanentemente, pois já não tinham mobilidade e força suficientes, mas não queriam estar num lar de idosos.
13. Pediram a todos os seus filhos para lhe prestarem auxílio e assistência que necessitavam, recusando a ida para um lar, mas todos recusaram, com exceção da cabeça-de-casal e do seu marido.
14. A cabeça-de-casal e o seu marido, no início do ano de 2018 abandonaram a sua residência em ... e regressaram a Portugal para cuidar e zelar pela saúde e bem-estar dos inventariados.
15. Nessa altura o inventariado CC acabou por ser hospitalizado no Hospital ..., tendo sido a cabeça-de-casal que todos os dias se deslocava a ... para o acompanhar e prestar todo os cuidados e apoio que este necessitava, ao mesmo tempo que cuidava da inventariada, que já tinha levado para sua casa.
16. Após o inventariado ter alta hospitalar foi levado para a casa da cabeça-de- casal, pelo que tratou deste até à data da sua morte.
17. Desde então, a cabeça-de-casal prestou aos inventariados o auxílio e assistência médica de que estes necessitaram, comprando-lhes os medicamentos, trazendo-lhe os médicos a casa para os observarem e os enfermeiros para lhe prestarem serviços médicos, pagando a uns e a outros, com recurso aos montantes dos inventariados descritos no ponto 6).
18. Comprava-lhes a alimentação, fraldas, toalhas higiénicas, pensos e todas as demais coisas medicamentosas que estes necessitavam, e pagou com recurso aos montantes dos inventariados descritos no ponto 6).
19. Em .../.../2018, já após o falecimento da inventariada, o inventariado CC fraturou uma anca pelo que voltou a estar internado no Hospital ... e quando teve alta esteve na casa da cabeça-de-casal e fez parte da sua recuperação na Instituição Casa de Saúde ..., em ....
20. A cabeça-de casal tratou dos seus funerais, que pagou, bem como adquiriu e pagou uma sepultura onde estão sepultados, como era vontade daqueles, pagou com recurso aos montantes dos inventariados descritos no ponto 6).
21. Pagou-lhes a eletricidade e a água da casa destes, o combustível para o aquecimento da casa, os IMI e todas as demais despesas destes, pagou com recurso aos montantes dos inventariados descritos no ponto 6).
22. As despesas do funeral dos inventariados (funerária, padre, coveiro, mordomo) ascenderam às quantias totais de 1.940,00euros e 1.920,00 Euros, que a cabeça-de-casal pagou com recurso aos montantes dos inventariados descritos no ponto 6).
23. A sepultura, tal como se encontra custou a quantia de 3.350,00 euros, que a cabeça-de-casal pagou com recurso aos montantes dos inventariados descritos no ponto 6).
24. No hospital de ... foi paga a quantia de 1.639,90 Euros para tratamentos do inventariado, com recurso aos montantes dos inventariados descritos no ponto 6).
25. À Santa Casa da Misericórdia ... foi paga a quantia total de 2.000,00 Euros, com recurso aos montantes dos inventariados descritos no ponto 6).
26. Só no ano de 2018, os inventariados gastaram em despesas médicas e medicamentosas, alimentação, consultas médicas, deslocação, aquecimento da casa, água, eletricidade e demais despesas diárias uma quantia não inferior a 10.000 Euros, que a cabeça-de-casal pagou com recurso aos montantes dos inventariados descritos no ponto 6).
27. A cabeça-de-casal procedeu ao levantamento e transferências dos montantes referidos nos incisos 1 a 6, 10 a 16 do ponto 3.º da reclamação, a pedido de ambos os inventariados e com a sua autorização e conhecimento procedeu à movimentação de todas essas quantias;
28. A cabeça-de-casal procedeu ao levantamento e transferências dos montantes referidos nos incisos 7 a 9 e 17 a 18 do ponto 3.º da reclamação a pedido do inventariado marido e com a sua autorização e conhecimento.
29. As quantias indicadas em 1 a 6, 10 a 16, do ponto 3.º da reclamação, foram levantadas pela cabeça-de-casal e marido em vida dos dois inventariados por ordem destes e cumprindo as suas vontades.
30. E as quantias indicadas em 7 a 9 e 17 a 18, do ponto 3.º da reclamação, foram levantadas no próprio dia do falecimento da inventariada (ponto n.º 7) ou após essa data, mas antes do falecimento do inventariado, sempre por ordem e vontade deste último.
31. Os levantamentos das quantias indicados no ponto 3.º da reclamação foram ordenados pelos dois inventariados - ou apenas pelo inventariado marido, após o falecimento da sua mulher – em cumprimento das suas vontades de darem tais montantes à cabeça-de-casal e ao seu marido para estes pagarem todas as despesas com as suas necessidades enquanto vivos, mais as despesas dos seus funerais e guardarem o que sobrasse para eles, em reconhecimento e como recompensa pelos serviços prestados por estes desde o ano de 2012 até à data das suas mortes.
32. Os demais herdeiros sabiam que os inventariados ofereciam todo o seu aludido dinheiro a quem deles cuidasse, pois não queriam ir para o lar.
33. As quantias alegadas no artigo 3 da reclamação foram entregues pelos inventariados (ou pelo inventariado marido, após o falecimento da sua mulher) à cabeça-de-casal e ao marido como recompensa pelo encargo que estes assumiram de lhe prestarem os serviços acima referidos.
34. As transferências e levantamentos das quantias referidas nos incisos 1 a 6, 10 a 16, do ponto 3.º da reclamação, foram realizados pela cabeça-de-casal e marido foram feitas por ordem, com o conhecimento e cumprindo a vontade dos inventariados.
35. As transferências e levantamentos das quantias referidas nos incisos 1 a 6, 10 a 16, do ponto 3.º da reclamação, ocorreram em vida dos “de cujus” que ao decidirem dar e entregar-lhes os seus saldos bancários quiseram reconhecer e recompensar a cabeça-de-casal e o seu marido por todos os serviços que lhes prestaram ao longo das suas vidas e, especialmente, nos últimos anos.

Factos não provados

36. A cabeça-de-casal agiu com desígnio de ocultar a existência dos montantes referidos no ponto 6), sonegando-os da partilha.
37. A cabeça-de-casal agiu com dolo de subtração dos referidos montantes ao acervo hereditário a partilhar.
38. Todos os levantamentos e transferências referidas no ponto 3) da reclamação foram do conhecimento dos demais herdeiros, antes do óbito dos inventariados.”
***
IV   MÉRITO DO RECURSO.

-IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.

Cumpre começar por analisar se os recorrentes cumpriram os requisitos de ordem formal que permitam a este Tribunal apreciar a impugnação que faz da matéria de facto, nomeadamente se indicam os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; se especificam na motivação os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, se indicam na motivação as passagens da gravação relevantes; apreciando criticamente os meios de prova, se expressam na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; tudo conforme resulta do disposto no artº. 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, pags. 155 e 156. 
Conforme Acs. do STJ, designadamente de 29/10/2015, 03/05/2016 e de 21/03/2019 disponíveis em www.dgsi.pt, como todos os que se citarão sem indicação de outra fonte), podemos distinguir nestas exigências um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação, e um ónus secundário tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. No primeiro caso cabem as exigências de concretização dos pontos de factos que se consideram incorretamente julgados, especificação dos concretos meios de prova que sustentam a decisão errada e/ou diversa (sendo que o Tribunal pode considerar esses e ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, excepto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão, conforme artº. 607º, nº. 5 do C.P.C.), e a indicação do sentido em que se deveria ter julgado a matéria de facto, na posição do recorrente, ou da decisão a proferir (artº. 640º, nº. 1, a), b) e c)). No segundo caso cabe a exigência de indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver reapreciados (a), nº. 2, do artº. 640º). Em ambos os casos a cominação para a falta de cumprimento das exigências é a rejeição imediata do recurso (cfr. a dita disposição), sem possibilidade de prévia oportunidade de aperfeiçoamento da peça. Em ambos os casos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem orientar a decisão de rejeição (-já que a parte ficará prejudicada ao não ver apreciado o seu recurso por motivos de ordem formal). A “nuance” entre os dois casos decorrerá do bom senso com que se analisam as exigências, as quais antes de mais têm que ver com o facto de possibilitar á parte contrária um efetivo exercício do contraditório para além de serem decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso. Se as primeiras exigências são imprescindíveis a esse exercício e orientam também o Tribunal de recurso relativamente ao que se lhe pretende sujeitar, a segunda exigência, tendo em vista a melhor orientação para esse efeito, ainda que seja cumprida de forma imprecisa, caso a parte contrária tendo apreendido convenientemente o alcance do visado, e o Tribunal esteja habilitado ao pretendido reexame, não se imporá a rejeição do recurso, mas antes o seu aproveitamento. Desde modo se dará prevalência ao mérito sobre a forma, princípio informador do atual C.P.C..
Além disso, a sanção de rejeição do recurso apenas poderá abarcar o segmento relativo à impugnação da matéria de facto e, dentro deste segmento, apenas pode abranger os pontos relativamente aos quais tenham sido desrespeitadas as referidas regras.
De referir que a lei não admite a prolação de despacho de aperfeiçoamento sobre esta matéria.
Por último, e continuando a seguir a orientação do nosso STJ, face ao que se pretende assegurar com cada um dos ónus, a especificação dos pontos concretos de facto deve constar das conclusões (artºs. 635º, nº. 4, 640º, nº. 1, a), e 639º, nº. 1, do C.P.C.). No mais (meios de prova concretos e indicação das passagens das gravações) basta que contem do corpo das alegações.
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A recorrida, não obstante algumas considerações iniciais a propósito da prova produzida, chama a atenção para a falta de cumprimento da alínea c), do nº. 1, do artº. 640º do C.P.C. -indicação da decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
     
Vejamos se assim é.

Revertendo as considerações que fizemos ao caso, os recorrentes aludem aos pontos 27 a 35 como sendo aqueles que não correspondem à verdade ou não têm o sentido e alcance que a sentença lhes deu; pode aferir-se que é essa a matéria que pretendem impugnar –mas esta afirmação é apenas aparente, como veremos.
Em momento algum das suas conclusões referem qual a redação alternativa para esses pontos da matéria de facto, não se podendo inferir que simplesmente pretendem seja considerada não provada, desde logo face á consideração que resulta das suas alegações de que não correspondem na totalidade à verdade. E, lida a sua motivação, sequer decorre da mesma a versão dos factos que pretendem ver assente. Significa isto que, de outro ponto de vista, também não podemos com assertividade afirmar que aqueles pontos (com aquele conteúdo, na sua globalidade, no seu contexto) são a matéria impugnada.
Relativamente à motivação da sua pretensão, fazem alusões a trechos dos depoimentos prestados (localizando e citando) mas sem ligação a um ponto concreto da matéria impugnada, tecendo considerações que tanto passam por uma crítica ao resultado da convicção do julgador, como à aplicação do direito, tudo sem a necessária individualização que torne percetível o que pretendem.
Face ao modo como vem apresentado o recurso, também a recorrida na sua resposta mistura a defesa da prova dos factos com a aplicação do direito, tornando impraticável uma apreciação com discernimento daquilo que se pretende num e noutro caso.
Discorrem sobre estas exigências, entre muitos outros, também os Acs. do STJ de 19/2/2015 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), de 20/12/2017 (relator Ribeiro Cardoso), e de 27/9/2018 (relator Sousa Lameira).
Pelo exposto, não se podendo considerar cumpridos os ónus de impugnação do artº. 640º, nº. 1, a), b) e c), do C.P.C., rejeita-se o recurso quanto à impugnação da matéria de facto.
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Cremos no entanto que deve ser aditado um facto assente á matéria a considerar, dada a sua relevância e consideração em sede de direito, o que se faz oficiosamente ao abrigo dos poderes conferidos pelo artº. 607º, nº. 4, aplicável à Relação por força da remissão do artº. 663º, nº. 2, ambos do C.P.C., e porque se trata de um documento autêntico, assente por força de uma regra de direito probatório material porque não invocada a sua falsidade nem impugnado nos autos –artº. 371º e 372º do C.C.. Veja-se ainda abrindo esta possibilidade o artº. 5º, nº. 2, a), do C.P.C. (face à sua inclusão no decurso da audiência de julgamento).
Tal facto consiste então no seguinte: “Em 27/2/2018 CC declarou no Cartório Notarial ... constituir sua bastante procuradora a sua filha DD, conferindo poderes nomeadamente para junto de quaisquer instituições bancárias movimentar quaisquer contas de que ele mandante seja titular ou co-titular, tanto a débito como a crédito, à ordem ou a prazo, nomeadamente, emitindo e requerendo cheques, levantar e depositar quaisquer importâncias, efetuar transferências, assinar ou apresentar quaisquer documentos que se mostrem necessários; tudo conforme doc. junto por requerimento de 18/11/2022, referência citius ...70.”
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-DECISÃO DE DIREITO.

Mantendo-se a matéria de facto apurada, resta verificar se as alusões ao direito aplicável feitas pelos recorrentes em confronto com a tese do Tribunal recorrido têm sustento.
O Tribunal recorrido enquadra a atuação da cabeça de casal no âmbito dos poderes conferidos pela procuração, e, naquilo que excede as despesas dos pais e não se contabilizou, numa doação manual e remuneratória.
Quanto ao facto de ter sido movimentado dinheiro com base na procuração, a discussão em torno do facto de se interrogar porque é que não foi o próprio inventariado a fazê-lo, é, quanto a nós estéril já que daí nada de relevo se retira, face aos factos assentes, que possa por em causa a decisão recorrida. A procuração e a cobertura legal da atuação da cabeça de casal, bem como a intenção dos inventariados de compensar ou remunerar a filha (matéria a que voltaremos) afasta a aplicação do instituto da sonegação, relativamente ao que os recorrentes nada dizem.
Com essas menções os recorrentes pretendiam afastar a possibilidade de se tratar de uma doação, pois não faria sentido a atuação da cabeça de casal. Já vimos que não impugnaram com correção a matéria de facto, pelo que nessa medida impõe-se o insucesso dessa vertente recursória.
É a doação que os recorrentes “contestam”.
Quedando-nos agora exclusivamente no direito, o que interrogam os recorrentes é a validade da doação manual sem sustento escrito, excluindo daí o documento da procuração. Invocam os artºs. 261º, nº 1 e 947º, nº 2, C.C.. Insurgem-se também contra a qualificação dos atos como tratando-se de uma doação remuneratória.
Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espirito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente -artº. 940º, nº. 1, do C.C..
A lei não defina o que deve entender-se por doação manual, nomeadamente no artº. 947º do C.C. que dispõe apenas quanto à sua forma.
No Ac. do STJ de 18/5/2005 (Processo nº. 05..., não publicado na dgsi), diz-se que “doações manuais, cuja dispensa de colação a lei presume, são, por exemplo, aquelas em que o tradens, com animus donandi, entrega dinheiro ao accipiens que, pelo recebimento, revela a vontade de aceitação”.
No Ac. da Rel. do Porto de 22/4/2008 (relator Vieira e Cunha) diz-se que “Por doação manual entende-se todo o acto pelo qual o tradens, com animus donandi, entrega bem móvel, no caso, determinadas quantias em dinheiro, ao accipiens que, pelo simples facto de o receber e dele tomar posse revela a vontade de aceitar a liberalidade”.
A definição ou conceptualização da doação remuneratória consta da lei, sendo como tal considerada a liberalidade remuneratória de serviços recebidos pelo doador, que não tenham a natureza de dívida exigível -artº. 941º, do C.C..
A especificidade da doação remuneratória é a de pretender remunerar serviços em casos em que tal remuneração não é exigível jurídica, social ou moralmente, daqui emergindo o espirito de liberalidade que caracteriza a doação – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, 2º vol., 2ª ed., pag. 232.
O artº. 947º, nº. 2, do C.C. diz que a doação de coisas móveis –caso de montantes em dinheiro- não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada da tradição da coisa doada; não sendo acompanhada da tradição da coisa, só pode ser feita por escrito.
A exigência da tradição da coisa funda-se na circunstância da doação verbal poder ser imponderada se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade do acto (Vaz Serra, RLJ, nº. 110, pag.212.
Porém, a tradição dos valores objeto da doação não tem necessariamente de ser material – pela entrega da própria coisa- podendo ocorrer a tradição ficta que consiste na entrega de documentos ou na prática de atos que possam pôr a coisa na disponibilidade do donatário (Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, pag. 524).
Seria aqui o caso, já que os levantamentos e transferências forma sempre feitos por ordem e cumprindo a vontade dos inventariados/doadores e cumpridas pela cabeça de casal ou marido/donatários, ficando nesse ato o valor respetivo à sua disposição. Em sentido semelhante veja-se o Ac. da Rel. de Lisboa de 28/5/2015 (relatora Octávia Viegas).
Provou-se por isso o animus donandi, acompanhado duma entrega. A tradição é uma forma de conferir a alguém a posse de determinado bem, que se concretiza pela sua entrega feita pelo possuidor ao adquirente da posse, e desdobra-se na cessação da relação material com a coisa por parte do primeiro e no seu empossamento por parte do segundo, tal como decorre do artº. 1263º, b), do C.C. (cfr. ainda Penha Gonçalves – “Curso de Direitos Reais”, pag. 273 da 2ª edição). A tradição tanto pode ser material como simbólica. De facto, a disposição material de uma coisa - a sua posse - tanto pode resultar dum ato que confere de imediato essa disposição, como de um que apenas a torna possível; o que releva é que o ato de entrega torna efetivo o apossamento da coisa.
Afastada por isso a nulidade da doação (que em caso contrário decorria do artº. 220º, e não do artº. 294º invocado pelos recorrentes, ambos do C.C.). Note-se que quando os recorrentes aludem na parte final do recurso ao artº. 974º, nº. 2, querem antes referir-se ao 947º, nº. 2, já citado.
Não tem também sentido aludir-se ao estado da inventariada para se “retirar” o sustento da doação, pois que os factos apurados suportam a mesma –cfr. ponto 31-, independentemente da procuração passada só pelo inventariado, que, como diz o Tribunal recorrido tem a ver apenas com o modo prático de atuar.
Excluído também o âmbito do negócio consigo mesmo (artº. 261º do C.C.) a que aludem os recorrentes (através da procuração), pois os factos revelam a ordem dos inventariados.
Basicamente o que os recorrentes fazem é partir de base fatual que não consta da decisão para cogitar a errada interpretação do contexto da situação e incorreta aplicação das normas.
O Tribunal recorrido configurou a figura da doação manual para efeitos de aferição de forma do contrato, ao dizer que: “No fundo, o modo eleito para a liberalidade aproximou-se de uma “doação manual” dos montantes com a tradição dos mesmos de acordo com a vontade dos inventariados – vide art. 947.º, n.º 2 e 955.º, n.º 1 do Código Civil, mantendo-se o caráter pessoal da doação – art. 949.º, n.º 1 do Código Civil.” E depois então integra: “Neste ponto, sobre o conceito de doação remuneratória, importa considerar o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Processo n.º 5226/14.7T2SNT.L1.S1, datado de 26- 09-2017 (…) Conforme se decidiu no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo n.º 937/06.3TBCSC.L1-6, datado de 21-01-2010, consultado in www.dgsi.pt: (…) A cabeça-de-casal, tal como os demais interessados, estava vinculada ao dever de auxílio e assistência aos seus falecidos pais, sendo certo que a violação de um tal direito poderia dar origem à responsabilidade extracontratual do lesante, mormente nos termos do art. 483.º do Código Civil, o que torna, pelo menos a priori, o dever de auxílio juridicamente exigível (quanto à assistência e alimentos demonstrou-se que os inventariados detinham meios para prover ao seu sustento e segurança).
Contudo, salvo melhor entendimento, a atuação da cabeça-de-casal extravasou o campo do juridicamente exigível, em cumprimento da vontade dos seus falecidos pais.
Poderia a cabeça-de-casal, tal como os demais irmãos, não ter retornado a Portugal e ter garantido auxílio, ainda que à distância, que os progenitores recebessem todos os cuidados e assistência devidos e que seria razoável esperar que recebessem, tendo em conta a situação de emigrados de todos os filhos, nomeadamente pela realização de diligências de acompanhamento, assim os auxiliando, mediante a sua institucionalização num lar.
Nesse limite, estaria cumprido o dever de auxílio civilmente previsto nos termos do art. 1874.º do Código Civil, sendo certo que, quanto à assistência devida, designadamente quanto a alimentos nos termos do art. 2003.º, n.º 1, 2009.º, n.º 1, al. b), 2011.º do Código Civil, demonstrou-se que os inventariados detinham meios para prover ao seu sustento e segurança).
Mas, como vimos, a cabeça-de-casal, em cumprimento da específica vontade dos progenitores, que recusavam a todo o trecho a ida para o lar, mudou-se para Portugal no final de vida destes últimos (sem prejuízo do auxílio que sempre lhes prestou, mormente a partir do acidente de viação em 2012, ainda que à distância), acolhendo-os no seu próprio domicílio onde residiriam até à sua morte (podendo até dizer-se que, em particular, o acolhimento dos pais no próprio domicílio, corresponderia a uma obrigação natural de raiz moral ou social, e não a uma obrigação jurídica exigível pelos progenitores à cabeça-de-casal).
Ora, tendo em conta a vontade apurada dos doadores, cumprida pela cabeça de casal, aqueles receberam determinados serviços (acolhimento domiciliar) os quais não correspondiam a uma dívida civil exigível perante o descendente, mas a uma obrigação natural.
No entanto, o facto do doador ter ficado grato pela receção do serviço, leva-o a querer remunerar quem lho prestou, ainda que em termos jurídicos a isso não estivesse obrigado (o que também nos afasta do campo da mera doação com encargos – art. 963.º do Código Civil).
Por outro lado, o concreto montante da liberalidade remuneratória não foi definido, na medida em que parte dos levantamentos e transferências foi destinado a despesas dos próprios titulares das contas pela cabeça-de-casal e o remanescente, de acordo com a vontade daqueles, destinado à cabeça-de-casal que deles cuidou [sendo certo que tais despesas, ainda que suportadas por capitais próprios, nem foram relacionadas pela cabeça- de-casal, tendo em conta o montante global transferido ou levantado].”
Perante o que ficou dito e aqui se reproduziu, cremos que a sentença recorrida fez correta aplicação das normas, justificando cabalmente o afastamento do dever de assistência e a obrigação natural.
Estamos por isso perante a figura da doação manual e também remuneratória.
Nessa sequência decidiu o Tribunal recorrido que os valores respetivos não têm de ser relacionados.
Em primeiro lugar, diremos que quer as doações manuais quer as remuneratórias, presumem-se dispensadas de colação –tal decorre expressamente do disposto no artº. 2113º, nº. 3, do C.C..
Mas, contrariamente ao decidido, terão se ser relacionadas. A causa e função da relação de bens não pode ser confundida com a sujeição a colação.
Dispõe o artº. 2104º do C.C. que os descendentes que pretendem entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação. E que são havidas como doação, para efeitos de colação, as despesas referidas no artº. 2110º.
Dispõe o artº. 2110º do C.C. que com exceção das despesas com o casamento, alimentos, estabelecimento e colocação dos descendentes, na medida em que se harmonizem com os usos e com a condição social e económica do falecido, está sujeito a colação tudo quanto o falecido tiver despendido gratuitamente em proveito dos descendentes.
Do exposto decorre que a colação visa (r)estabelecer a igualdade da partilha, enquanto que a relacionação dos bens do autor da herança quando lhe sucedam, como é o caso, herdeiros legitimários tem por função estabelecer a integridade das legítimas.
Não deixa dúvidas Lopes Cardoso (“Partilhas Judiciais”, Vol. 1º, pag. 429 da 4ª ed.) quando expressa “(…) cumprirá, pois, relacionar as liberalidades feitas pelo inventariado a seus descendentes (artº 2110º-1), mesmo quando a colação seja dispensada ou quando a lei presume a dispensa (artº 2113º-1) , casos em que serão imputadas na quota disponível do doador (artº 2114º-1)”.
Em igual sentido a jurisprudência, citando-se a título de exemplo os Acs. da Rel. do Porto de 22/4/2008 (relator Vieira e Cunha), 27/1/2015 (Francisco Matos), da Rel. de Guimarães de 28/6/2018 (Eugénia Cunha)
Aqui chegados deparamo-nos com uma dificuldade: tal como se constata na decisão recorrida (e ultrapassada a questão do valor cuja restituição se determinou e que não está em causa no recurso) “… o concreto montante da liberalidade remuneratória não foi definido, na medida em que parte dos levantamentos e transferências foi destinado a despesas dos próprios titulares das contas pela cabeça-de-casal e o remanescente, de acordo com a vontade daqueles, destinado à cabeça-de-casal que deles cuidou [sendo certo que tais despesas, ainda que suportadas por capitais próprios, nem foram relacionadas pela cabeça- de-casal, tendo em conta o montante global transferido ou levantado].”
Salvo melhor opinião, terá a cabeça de casal de apresentar relação de bens onde inclua os valores que entende serem os que excedem as despesas tidas com os pais, portanto o dito remanescente que constitui o valor da doação, e, se for necessário sobre essa matéria terá de incidir nova produção de prova (caso se mostre controvertida). Veja-se ainda o disposto no artº. 941º do C.P.C., se necessário for, quanto à obrigação que recai sobre o procurador.
Nesta medida deve ser concedido provimento parcial ao recurso.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente, e em consequência, conceder provimento parcial à apelação, alterando a decisão recorrida no sentido de determinar que a cabeça de casal relacione o valor remanescente que integra a doação de que foi beneficiária. No mais mantem-se o decidido.
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Custas do recurso na proporção de metade para cada parte (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 11 de maio de 2023.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)