Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
72/22.7YRGMR
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: RECUSADA A EXECUÇÃO E ORDENADO O CUMPRIMENTO DA PENA EM PORTUGAL
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Em matéria de reconhecimento e execução de sentenças penais europeias oriundas dos países membros da União Europeia rege o princípio do reconhecimento mútuo - cfr. artigo 1º, nº 4 da Lei nº 158/2015, de 17.09.
II – O princípio do reconhecimento mútuo significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua lei, é exequível diretamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro, produzindo efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada por uma autoridade judiciária nacional.
III – Em casos como o presente, havendo causa de recusa do MDE, o Estado da execução aceita executar a pena nos mesmos termos que ela seria executada no Estado da emissão.
IV – A possibilidade de adaptação da pena apenas é possível de ser realizada de forma muito restritiva - mais restritiva do que no regime da tradicional da revisão e confirmação de sentença estrangeira fora do âmbito dos países da União Europeia - devido ao objetivo geral do reconhecimento mútuo “…que consiste, em última análise, em conferir a uma decisão final um efeito pleno e direto em toda a União, pois reconhecer efeitos a um decisão estrangeira é também tê-la como válida quando relativa a cidadãos nacionais – e adequada, se se atender à confiança recíproca depositada em cada um dos diferentes sistemas jurídicos e judiciários, motivada pela circunstância da sua proximidade jurídico cultural e de todos estarem submetidos à proteção dos direitos fundamentais” - cfr. Ac. STJ de 13.04.2011, processo nº 53/10.3YREVR.S2 – 3ª secção.
V – No caso vertente, a pena de um ano de prisão, quer pela sua natureza, quer pela sua duração, é perfeitamente compatível com a lei interna portuguesa. A respetiva condenação reporta-se a uma pena de prisão a cumprir em meio prisional e transitou em julgado, não carecendo de ser adaptada.
VI – Por isso, não pode ter lugar uma inovação na condenação imposta, a pretexto de que apenas se trata de execução da pena, o que a lei portuguesa permite, ao menos em abstrato, quanto a penas de prisão de duração não superior a dois anos, cfr. artigo 43º do Código Penal.
VII - Em suma, a pena de um ano de prisão em causa nos presentes autos não pode ser cumprida em regime de “prisão domiciliária”, com meios técnicos de controlo à distância, por a tal se opor o princípio do reconhecimento mútuo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. O Ministério Público junto desta Relação, ao abrigo do artigo 16º, nº 1, da Lei nº 65/2003, de 23.08, requereu a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido, em 07.10.2021, pelo Juzgado de lo Penal nº 7, de Bilbao, no âmbito do processo de decisão de execução 3060/2019, contra:
J. B., português, nascido a -.12.1973, natural de …, Espanha, filho de V. S. e de F. F., titular do CC ……., residente na Travessa …, Santa Marta de Penaguião, Comarca de Vila Real, detido em -.03.2022, e atualmente sujeito a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, à ordem dos presentes autos.
2. O referido Mandado de Detenção Europeu visa o cumprimento da pena de um ano de prisão em que o requerido foi condenado por sentença nº 264/2019, de 24.10.2019 do Juzgado de lo Penal nº 3 de Bilbao, transitada em julgado, no procedimento Abreviado 224/2019, execução 3060/19, do Juzgado de lo Penal nº 7 de Bilbao, pela autoria de um crime de burla previsto e punido pelos artigos 248º e 249º do Código Penal espanhol, pela prática dos seguintes factos:
O arguido, na qualidade de administrador da empresa portuguesa X UNIOESSOAL, LDA, encetou negociações com C. P., administrador da empresa Y S.L., após as quais, C. P. decidiu comprar-lhe 6.600 Kg de filetes de bacalhau, para cuja entrega o arguido solicitou, com intenção de obter um ganho ilícito e sem nunca ter tido a intenção de fazer a entrega da encomenda, uma transferência no valor de 46.200 euros, na conta nº PT..........................33, do banco ...., conta em nome da X UNIOESSOAL, LDA. A referida transferência foi efetuada no dia 08 de julho de 2016, mas o arguido não enviou a mercadoria prometida, apesar dos sucessivos apelos de C. P. que, para reclamar a encomenda, chegou mesmo a ir pessoalmente a …, e logo a Chaves, Portugal, onde foi ameaçado telefonicamente pelo arguido- cfr. fls. 57 a 60.
O pedido está instruído com cópia do MDE e documentos.
Entretanto, foram juntos aos autos o original do MDE e a tradução dos documentos juntos com o requerimento do MP.
3. Em 18/03/2022, procedeu-se à audição do requerido, como consta do “Auto de Audição de Requerido”, de fls. 26 a 29, salientando-se que:
- o requerido foi assistido por defensor nomeado;
- foi satisfeito o disposto no artigo 18º, nº 5, da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, tendo o requerido sido esclarecido sobre a existência e conteúdo do mandado de detenção europeu, sobre o direito de se opor à execução do mandado ou de nele consentir e os termos em que o podia fazer, bem como sobre a faculdade de renunciar ao benefício da regra da especialidade. O requerido declarou que não renunciava ao benefício da regra da especialidade e que não consentia na sua entrega à autoridade judiciária da emissão do mandado, pretendendo cumprir a pena em Portugal;
- foi concedido ao requerido prazo para apresentar fundamentação à sua oposição ao pedido de entrega;
- o requerido, na fundamentação que apresentou, alegou, em síntese, que é cidadão português; vive em união de facto com S. D., desde há cerca de sete anos; e com ela reside em Portugal há três anos, fazendo também parte do agregado familiar uma filha menor da companheira; a sua companheira trabalha no Centro Social e Paroquial de …, em Santa Marta de Penaguião; e, até à sua detenção, trabalhava como mecânico na empresa W, contribuindo para pagamento das despesas do agregado familiar. Terminou, requerendo o cumprimento da pena em Portugal;
- o requerido, no sentido de comprovar os factos que alegou apresentou documentos, cfr. fls. 70 a 78.
4. O Ministério Público, tendo em conta a posição assumida pelo requerido e os factos apurados relativo à sua situação pessoal, a fls.99 a 101, requereu o seguinte (transcrição):
a) Que na decisão final, a proferir, se recuse a entrega do mencionado J. B. por se achar verificada a causa de recusa facultativa prevista na alínea g) do n.º1 do art.º 12 da Lei 65/2003, de 23/08 em face da sua comprovada inserção social, profissional e familiar, cidadão português; e
b) Para efeitos de reconhecimento e execução da pena constante do MDE, se solicite à autoridade emitente deste a emissão e transmissão da certidão (formulário-tipo) a que alude o art.º 4, números 1 e 5 da Decisão-Quadro 2008/909/JAI, bem assim da sentença condenatória, com tradução em língua portuguesa – artigo 19.º, n.º 2, da Lei n.º 158/2015.
5. Foi solicitado e junta certidão (formulário-tipo) a que alude o art.º 4, números 1 e 5 da Decisão-Quadro 2008/909/JAI, e a sentença condenatória, com tradução em língua portuguesa – artigo 19.º, n.º 2, da Lei n.º 158/2015, do que foi notificado o defensor do requerido.
6. O Ministério Público requereu o reconhecimento e a execução da decisão condenatória.
7. O Ministério Público e o requerido foram notificados para apresentarem alegações finais por escrito, em 10 dias. Apenas o M.P. alegou, tendo concluído do seguinte modo (transcrição):
“deve-se, por um lado, recusar a entrega do requerido como é pretendido no MDE emitido pelo Tribunal Penal n.º7 de Bilbao, Espanha, em face da verificação da circunstância prevista na alínea g) do n.º1 do art.º 12 da Lei 65/2003, de 23/08, e, por outro, porque não se mostram verificados quaisquer motivos de recusa do reconhecimento da sentença e da execução da condenação do requerido, motivos previstos no art.º 17 da citada Lei 158/2015, deverá proferir-se acórdão que ordene o cumprimento da pena de prisão em causa em Portugal, todavia em regime de “prisão domiciliária” com meios técnicos de controlo à distância, assim se dando acatamento ao disposto no n.º. 4 do art.º 12 acima referido – “A decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo à revisão e confirmação de sentenças condenatórias estrangeiras”.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. Os factos

Dos documentos constantes dos autos, cuja autenticidade não oferece dúvidas e das declarações prestadas pelo requerido, considera-se provado que:

1 - Por sentença nº 264/2019, de 24.10.2019 do Juzgado de lo Penal nº 3 de Bilbao, transitada em julgado, no procedimento Abreviado 224/2019, o requerido foi condenado, pela autoria de um crime de burla previsto e punido pelos artigos 248º e 249º do Código Penal Espanhol, na pena de um ano de prisão;
2- os factos em que se baseou a sobredita condenação foram, essencialmente os seguintes:
O arguido, na qualidade de administrador da empresa portuguesa X UNIOESSOAL, LDA, encetou negociações com C. P., administrador da empresa Y S.L., após as quais, C. P. decidiu comprar-lhe 6.600 Kg de filetes de bacalhau, para cuja entrega o arguido solicitou, com intenção de obter um ganho ilícito e sem nunca ter tido a intenção de fazer a entrega da encomenda, uma transferência no valor de 46.200 euros, na conta nº PT..........................33, do banco ...., conta em nome da X UNIOESSOAL, LDA. A referida transferência foi efetuada no dia 08 de julho de 2016, mas o arguido não enviou a mercadoria prometida, apesar dos sucessivos apelos de C. P. que, para reclamar a encomenda, chegou mesmo a ir pessoalmente a …, e logo a Chaves, Portugal, onde foi ameaçado telefonicamente pelo arguido- cfr. fls. 118 e 119.
3- O requerido foi assistido por defensor no julgamento – cfr. aludido doc. nº 118;
4 - Os factos descritos, por cuja prática o requerido foi penalmente responsabilizado, integram o crime de burla p. e p. pelos artigos 217º e 218º, nº 2 al. a) do Código Penal Português;
5 - O requerido declarou pretender cumprir em Portugal a pena em que foi condenado. – cfr. auto de audição de fls 26 e 27;
6- O requerido tem nacionalidade portuguesa, e reside em Portugal desde há cerca de três anos, juntamente com uma companheira e uma filha desta; mantém união de facto com a companheira desde há cerca de sete anos; e, aquando da sua detenção no âmbito dos presentes autos, encontrava-se a trabalhar como mecânico de automóveis.
7- O Ministério Público requereu o reconhecimento e a execução da pena;
8. Foi solicitado e junta certidão (formulário-tipo) a que alude o art.º 4, números 1 e 5 da Decisão-Quadro 2008/909/JAI, e a sentença condenatória, com tradução em língua portuguesa.

2- O direito

Nos termos do artigo 1º da Lei nº 65/2003, de 23.08, na redação da Lei nº 115/2019, de 12.09:
“1-O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
2-O mandado de detenção europeu é excetuado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão- Quadro nº 20002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho”.

E o artigo 2º da citada Lei prescreve:
“1-O mandado de detenção europeu pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver por finalidade o cumprimento de pena ou de medida de segurança, desde que a sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses.
2- Será concedida a entrega da pessoa procurada com base num mandado de detenção europeu, sem controlo da dupla incriminação, sempre que os factos, de acordo com a legislação do estado membro de emissão, constituam as seguintes infrações, puníveis no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos:
(…)
u) Burla.
(…)
3- No que respeita às infrações não previstas no número anterior só é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infração punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação.” (negrito nosso)
O presente Mandado de Detenção Europeu tem como finalidade o cumprimento pelo requerido da pena de um ano de prisão em que foi condenado por sentença nº 264/2019, de 24.10.2019 do Juzgado de lo Penal nº 3 de Bilbao, transitada em julgado, no procedimento Abreviado 224/2019, pela autoria de um crime de burla previsto e punido pelos artigos 248º e 249º do Código Penal espanhol, sendo que os factos por cuja prática o requerido foi penalmente responsabilizado, para além de respeitarem a infração catalogada na al. u) do nº 2, do artigo 2º da Lei 65/2003, de 23.08 - não se exigindo, por isso, o controlo da dupla incriminação do facto -, também integram o crime previsto e punido pela legislação portuguesa, nos artigos 217º, 218º, nº 2 al. a) e 202º al. b) do Código Penal.
E aqui chegados, importa que nos debrucemos sobre a causa de recusa facultativa de execução do MDE, prevista no artigo 12º, nº 1, al. g), da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto, invocada pelo Ministério Público requerente e pelo requerido, uma vez que não ocorre nenhuma causa de recusa obrigatória prevista no artigo 11º da citada lei.
Dispõe o artigo 12º, nº 1, al. g), que a execução do mandado de detenção pode ser recusada quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.
A jurisprudência tem interpretado este compromisso no sentido de que “Sendo o processo de execução do MDE inteiramente jurisdicionalizado, o compromisso de execução da pena em Portugal satisfaz-se mediante decisão do tribunal da relação competente para a execução do MDE que reconheça a sentença condenatória proferida no estado de emissão, confirmando a pena aplicada, conferindo-lhe força executiva em Portugal (artigo 12.º, n.º 3, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, na redação da Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, e n.º 4, na redação da Lei n.º 115/2019, de 12 de setembro)”, cfr. Ac. STJ de 12.01.2022, processo 48/21.1YRGMR.S2, 3ª secção.
Como se refere no Ac. STJ, de 27/04/2006, procº 06P1429, disponível em www.dgsi.pt “Na construção da norma, a faculdade é de livre exercício do Estado da execução, não dependendo de qualquer compromisso específico prévio ou de pedido do Estado da emissão; o único compromisso é unilateral e dir-se-á potestativo, e consiste na execução da pena aplicada em lugar da entrega da pessoa procurada.
A questão está, pois, não em qualquer quadro de referências e na natureza pura e simples (e não receptícia) do exercício da faculdade, mas apenas na inexistência no regime do mandado de detenção europeu, de critérios gerais ou específicos para predeterminar as condições de exercício da faculdade de recusa de execução.
Mas porque a decisão de recusa da execução constitui faculdade de Estado da execução, o estabelecimento de critérios não releva da natureza dos compromissos, mas do espaço de livre decisão interna em função da reserva de soberania implicada na referida causa de recusa facultativa de execução.
Não estando diretamente fixados, tais critérios, internos, hão-de ser encontrados na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal que comandem a aplicação das penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena (o acórdão do Supremo Tribunal de 3/3/05, proc. 773/05, identificou o problema, mas não tomou posição expressa, desnecessária no contexto em que decidiu).
Uma primeira projeção sistemática poderá encontrar-se no artigo 40º, nº 1 do Código Penal e na afirmação da reintegração do agente na sociedade como uma das finalidades das penas. Nesta perspetiva, pode haver maior eficácia das finalidades das penas se forem executadas no país da nacionalidade ou da residência; a ligação do nacional ao seu país, a residência e as condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional serão índices de que é esta a sociedade em que deve (e pode) ser reintegrado, aconselhando o cumprimento da pena em instituições nacionais.”
No caso vertente, verificam-se os requisitos ínsitos na alínea g) do nº 1, do citado artigo 12º, uma vez que o requerido J. B. é português, reside em Portugal desde há três anos com uma companheira e uma filha desta, sendo que o mandado destina-se ao cumprimento de pena de prisão. A reintegração social do requerido operada através do sistema de execução da pena no nosso país é, pois, mais adequada, para além de menos penosa para o mesmo, tendo em vista o seu enraizamento familiar e nacional, cfr. artigo 40º, nº 1, do Código Penal.
Há, no entanto, que ter presente o nº 3 do citado artigo 12º, da Lei nº 65/2003, na redação dada pela Lei nº 115/2019, de 12.09, que dispõe que ”A recusa de execução nos termos da alínea g) do nº 1 depende de decisão do tribunal da relação, no processo de execução do mandado de detenção europeu, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada”.
Acresce que o nº 4, do mesmo artigo, preceitua que “A decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença.”
Ou seja, em consequência da entrada em vigor da Lei nº 158/2015, de 17.09, o regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu, em substituição do regime de revisão e confirmação de sentença estrangeira, passou a prever um enxerto que consiste no procedimento de reconhecimento da sentença condenatória, a requerimento do MP.
No caso vertente, e como já supra mencionado, o Ministério Público requereu a esta Relação o reconhecimento em Portugal da sentença nº 264/2019, de 24.10.2019 do Juzgado de lo Penal nº 3 de Bilbao, transitada em julgado, pela qual o requerido foi condenado pela autoria de um crime de burla previsto e punido pelos artigos 248º e 249º do Código Penal espanhol, e se confirme a pena de um ano de prisão, que subjaz à finalidade do MDE, pelo que se passará a apreciar tal pretensão.

Ora, recorda-se que, no caso vertente, encontra-se provado que:

1 - Por sentença nº 264/2019, de 24.10.2019 do Juzgado de lo Penal nº 3 de Bilbao, transitada em julgado, no procedimento Abreviado 224/2019, o requerido foi condenado, pela autoria de um crime de burla previsto e punido pelos artigos 248º e 249º do Código Penal Espanhol, na pena de um ano de prisão;
2- os factos em que se baseou a sobredita condenação foram, essencialmente os seguintes:
O arguido, na qualidade de administrador da empresa portuguesa X UNIOESSOAL, LDA, encetou negociações com C. P., administrador da empresa Y S.L., após as quais, C. P. decidiu comprar-lhe 6.600 Kg de filetes de bacalhau, para cuja entrega o arguido solicitou, com intenção de obter um ganho ilícito e sem nunca ter tido a intenção de fazer a entrega da encomenda, uma transferência no valor de 46.200 euros, na conta nº PT..........................33, do banco ...., conta em nome da X UNIOESSOAL, LDA. A referida transferência foi efetuada no dia 08 de julho de 2016, mas o arguido não enviou a mercadoria prometida, apesar dos sucessivos apelos de C. P. que, para reclamar a encomenda, chegou mesmo a ir pessoalmente a Verin, e logo a Chaves, Portugal, onde foi ameaçado telefonicamente pelo arguido.
3- O requerido foi assistido por defensor no julgamento;
4 - Os factos descritos, por cuja prática o requerido foi penalmente responsabilizado, integram o crime de burla p. e p. pelos artigos 217º e 218º, nº 2 al. a) do Código Penal Português;
5 - O requerido declarou pretender cumprir em Portugal a pena em que foi condenado;
6- O requerido tem nacionalidade portuguesa, e reside em Portugal desde há cerca de três anos, juntamente com uma companheira e uma filha desta;
7- O Ministério Público requereu o reconhecimento e a execução da pena;
8. Foi solicitado e junto certidão (formulário-tipo) a que alude o art.º 4, números 1 e 5 da Decisão-Quadro 2008/909/JAI, e a sentença condenatória, com tradução em língua portuguesa;
Por força do disposto no acima citado nº 4 do artigo 12º da Lei nº 65/2003, de 25.08, na redação da Lei nº 115/2009, de 12.09, e do artigo 26º al. a) da Lei nº 158/2015, de 17.09, na redação da Lei nº 115/2019, de 12.09, importa observar o regime relativo à transmissão das sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão ou outras medidas privativas da liberdade, tendo em visto o seu reconhecimento e execução em outro Estado-membro da União Europeia.
A Lei nº 158/2015, de 17.09, na redação da Lei nº 115/2019, de 12.09, transpôs para o direito interno a Decisão-Quadro 2008/909/JAI, teve por objetivo estabelecer as regras segundo as quais um Estado-Membro, tendo em vista facilitar a reinserção social da pessoa condenada, reconhece uma sentença e executa a condenação imposta.
O reconhecimento e execução de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia efetua-se com base no princípio do reconhecimento mútuo, cfr. nº 4 do artigo 1º da Lei nº 158/2015, de 17.09, na redação da Lei nº 115/2009, de 12.09.
O princípio do reconhecimento mútuo baseia-se na equivalência e num elevado grau de confiança mútua nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros da União Europeia.
O reconhecimento da sentença condenatória, de que depende a recusa de execução do MDE com base na nacionalidade, tem lugar mediante decisão que, conhecendo da regularidade formal e substancial da transmissão da sentença e da certidão que a deve acompanhar, bem como da não verificação de motivo de recusa de execução (artigos 16.º e 17.º da Lei n.º 158/2015), deve constar do acórdão em que é proferida a decisão de recusa de entrega da pessoa procurada (n.º 4 do artigo 12º da Lei n.º 65/2003); O reconhecimento da sentença condenatória é efetuado com base em certidão emitida em conformidade com o formulário constante do anexo I da Decisão-Quadro 2008/909/JAI, reproduzido no anexo I da Lei n.º 158/2015, acompanhando a sentença condenatória, e transmitida pela autoridade de emissão à autoridade de execução em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 4.º da Decisão-Quadro 2008/909/JAI, transposto pelo n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 158/2015.
O regime de reconhecimento de sentenças condenatórias no âmbito da União Europeia é inovador relativamente ao regime tradicional da revisão e confirmação de sentença estrangeira, o qual aplica-se apenas a decisões condenatórias proferidas fora do espaço da União Europeia.
De acordo com o acórdão do TJUE de 11.03.2020, processo C-314/18, “o princípio do reconhecimento mútuo implica, por força do artigo 8º, nº 1, da Decisão – Quadro 2008/909, que, em princípio, a autoridade competente do Estado de execução reconhece a sentença que lhe foi enviada e toma imediatamente todas as medidas necessárias à execução da condenação”.
O artigo 8.ª, n.º 2, da DecisãoQuadro 2008/909 permite à autoridade competente do EstadoMembro de execução adaptar a condenação pronunciada no EstadoMembro de emissão, se a duração desta for incompatível com o direito do EstadoMembro de execução. No entanto, essa autoridade só pode decidir adaptar essa condenação quando esta for superior à pena máxima prevista pelo seu direito nacional para infrações da mesma natureza, não podendo a duração da condenação adaptada ser inferior à da pena máxima prevista pelo direito nacional do EstadoMembro de execução para infrações da mesma natureza. (…) Por conseguinte, o artigo 8.º da DecisãoQuadro 2008/909 prevê requisitos estritos para a adaptação (…) da condenação proferida no EstadoMembro de emissão, que constituem as únicas exceções à obrigação de princípio que impende sobre a referida autoridade, em virtude do artigo 8.º, n.º 1, desta decisãoquadro, de reconhecer a sentença que lhe foi transmitida e de executar a condenação cuja duração e natureza correspondem às previstas na sentença proferida no Estado – Membro de emissão.
Dispõe o seu artigo 16º, n.º 1 da Lei nº 158/2015, de 17.09, que “Recebida a sentença, devidamente transmitida pela autoridade competente do Estado de emissão e acompanhada da certidão emitida de acordo com modelo que consta do anexo i à presente lei, o Ministério Público promove o procedimento de reconhecimento, observando-se o disposto no artigo seguinte.
2- (revogado)
3 - Caso a duração da condenação seja incompatível com a lei interna, a autoridade judiciária competente para o reconhecimento da sentença só pode adaptá-la se essa condenação exceder a pena máxima prevista para infrações semelhantes, não podendo a condenação adaptada ser inferior à pena máxima prevista na lei interna para infrações semelhantes.
4 - Caso a natureza da condenação seja incompatível com a lei interna, a autoridade judiciária competente para o reconhecimento da sentença pode adaptá-la à pena ou medida prevista na lei interna para infrações semelhantes, devendo essa pena ou medida corresponder tão exatamente quanto possível à condenação imposta no Estado de emissão, e não podendo ser convertida em sanção pecuniária.
5 - A condenação adaptada não pode agravar, pela sua natureza ou duração, a condenação imposta no Estado de emissão.

Por seu turno, o artigo 17º, com a epígrafe "Causas de recusa de reconhecimento e de execução", estabelece que:
“1 - A autoridade competente recusa o reconhecimento e a execução da sentença quando:
a) A certidão a que se refere o artigo 8.º for incompleta ou não corresponder manifestamente à sentença e não tiver sido completada ou corrigida dentro de um prazo razoável, entre 30 a 60 dias, a fixar pela autoridade portuguesa competente para o reconhecimento;
b) Não estiverem preenchidos os critérios definidos no n.º 1 do artigo 8.º;
c) A execução da sentença for contrária ao princípio ne bis in idem;
d) Num caso do n.º 2 do artigo 3.º, a sentença disser respeito a factos que não constituam uma infração, nos termos da lei portuguesa;
e) A pena a executar tiver prescrito, nos termos da lei portuguesa;
f) Existir uma imunidade que, segundo a lei portuguesa, impeça a execução da condenação;
g) A condenação tiver sido proferida contra pessoa inimputável em razão da idade, nos termos da lei portuguesa, em relação aos factos pelos quais foi proferida a sentença;
h) No momento em que a sentença tiver sido recebida, estiverem por cumprir menos de seis meses de pena;
i) De acordo com a certidão, a pessoa em causa não esteve presente no julgamento, a menos que a certidão ateste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos na lei do Estado de emissão:
i) Foi atempada e pessoalmente notificada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efetivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto e que foi atempadamente informada de que podia ser proferida uma decisão mesmo não estando presente no julgamento;
ii) Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor por si designado ou beneficiou da nomeação de um defensor pelo Estado, para sua defesa, e foi efetivamente representada por esse defensor; ou
iii) Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo a apresentação de novas provas, que pode conduzir a uma decisão distinta da inicial, declarou expressamente que não contestava a decisão ou não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável;
j) Antes de ser tomada qualquer decisão sobre o reconhecimento e execução da sentença, Portugal apresentar um pedido nos termos do n.º 4 do artigo 25.º, e o Estado de emissão não der o seu consentimento, nos termos da alínea g) do n.º 2 do mesmo artigo, à instauração de um processo, à execução de uma condenação ou à privação de liberdade da pessoa em causa devido a uma infração praticada antes da sua transferência mas diferente daquela por que foi transferida;
k) A condenação imposta implicar uma medida do foro médico ou psiquiátrico ou outra medida de segurança privativa de liberdade que, não obstante o disposto no n.º 4 do artigo anterior, não possa ser executada em Portugal, em conformidade com o seu sistema jurídico ou de saúde;
l) A sentença disser respeito a infrações penais que, segundo a lei interna, se considere terem sido praticadas na totalidade ou em grande parte ou no essencial no território nacional, ou em local considerado como tal.”

O artigo 3º, n.º 1, dispõe que são reconhecidas e executadas, sem controlo da dupla incriminação do facto, as sentenças que respeitem às infrações nele elencadas, desde que, de acordo com a lei do Estado de emissão, sejam puníveis como pena privativa da liberdade de duração máxima não inferior a três anos, sendo que, de acordo com o n.º 2 do mesmo preceito, no caso de infrações não referidas no número anterior, o reconhecimento da sentença e a execução da pena de prisão ficam sujeitos à condição de a mesma se referir a factos que também constituam uma infração punível pela lei interna, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação na legislação do Estado de emissão.

No caso vertente, em face da matéria supra elencada, conclui-se estarem verificados todos os pressupostos de que depende o reconhecimento da sentença estrangeira em questão e a execução, em território português, da pena aplicada ao requerido, conforme é solicitado.
Com efeito, desde logo a sentença foi transmitida a Portugal para esses efeitos, pela autoridade competente do Estado de emissão (Espanha), acompanhada da certidão cujo modelo consta do anexo I à Lei n.º 158/2015, a qual se mostra devidamente preenchida e traduzida para a língua portuguesa, correspondendo à sentença (cf. arts. 8º, n.º 1, 16º, n.º 1, 17º, n.º 1, als. a) e b), e 19º, n.ºs 1 e 2, desse diploma).
O crime pelo qual o requerido foi condenado no Estado de emissão (crime de burla faz parte do elenco do n.º 1 do artigo 3º, estando previstos na al. t).
Acresce que também não se verifica qualquer das causas de recusa de reconhecimento e de execução previstas no artigo 17º, nem qualquer dos motivos de adiamento dos mesmos nos termos do seu artigo 19º.
Refira-se, especificamente, que não há notícia de que a execução contrarie o princípio ne bis in idem, que nos termos da lei portuguesa a pena não se mostra prescrita, que não existe uma imunidade que impeça a execução da condenação, que o condenado é imputável em razão da idade (pois nasceu a 13.12.1973, tendo 43 anos na data dos factos) e que estão por cumprir mais de seis meses da pena [cfr. als. c), e), f), g) e h) do artigo 17º].
Acresce que o requerido esteve presente no julgamento e foi assistido por defensor [cfr. al. ii) do artigo 17º], e nenhuma das infrações em causa foi praticada em território nacional ou em local considerado como tal [cfr. al. l) do artigo 17º].
Refira-se ainda que o mesmo tem nacionalidade portuguesa e tem residência em Portugal, residindo com a sua companheira e uma filha desta desde há três anos, em Santa Marta de Penaguião, comarca de Vila Real.
Por outro lado, a transmissão da sentença para o seu reconhecimento e execução da condenação em Portugal foi efetuada com base o requerimento do Ministério Público nesse sentido e no pedido que o próprio condenado dirigiu a este Tribunal da Relação de que pretendia cumprir a pena em Portugal.
Nestes termos, cumpre proceder ao reconhecimento da sentença e à execução da condenação em Portugal.
Por último, importa referir que o Ministério Público, nas suas alegações finais, defendeu que deverá proferir-se acórdão que ordene o cumprimento da pena de prisão em causa em Portugal, todavia em regime de “prisão domiciliária” com meios técnicos de controlo à distância. Em sustento desta sua posição, refere que a lei portuguesa autoriza a execução da pena de prisão através da permanência na habitação, nos termos previsto no artigo 43º do CP, invocando também o vertido no Ac. STJ de 25.10.2017, processo 1208/15.1TELSB-A, sendo seu relator Lopes da Mota.
No sentido de dar resposta à questão assim enunciada, que diz respeito à possibilidade de adaptação à lei interna portuguesa de sentença transitada em julgado oriunda de Estado-Membro da União Europeia, importa fazer aqui intervir o disposto no artigo 16º, nº 3, 4 e 5 da Lei nº 158/2015, de 17.09, em particular os seus nºs 3 e 4, acima transcritos.
Em matéria de reconhecimento e execução de sentenças penais europeias oriundas dos países membros da União Europeia rege o princípio do reconhecimento mútuo, cfr. artigo 1º, nº 4 da Lei nº 158/2015, 17.09.
O princípio do reconhecimento mútuo significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua lei, é exequível diretamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro, produzindo efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada por uma autoridade judiciária nacional.
Em casos como o presente, havendo causa de recusa do MDE, o Estado da execução aceita executar a pena nos mesmos termos que ela seria executada no Estado da emissão.
A possibilidade de adaptação da pena apenas é possível de realizar-se de forma muito restritiva – mais restritiva do que no regime da tradicional do regime da revisão e confirmação de sentença estrangeira fora do âmbito dos países da União Europeia - devido ao objetivo geral do reconhecimento mútuo “…que consiste, em última análise, em conferir a uma decisão final um efeito pleno e direto em toda a União, pois reconhecer efeitos a um decisão estrangeira é também tê-la como válida quando relativa a cidadãos nacionais – e adequada, se se atender à confiança recíproca depositada em cada um dos diferentes sistemas jurídicos e judiciários, motivada pela circunstância da sua proximidade jurídico cultural e de todos estarem submetidos à proteção dos direitos fundamentais”, cfr. Ac. STJ de 13.04.2011, processo nº 53/10.3YREVR.S2 – 3ª secção.
De forma que a adaptação da pena apenas é possível em dois casos, ou seja, se pela sua duração ou natureza for incompatível com a lei interna.
Como bem se refere no Ac. STJ de 24.06.2021, processo 48/21.1YRGMR.S1, disponível em www.dgsi.pt “… não cabe ao Estado de execução exercer qualquer censura sobre o teor e os fundamentos da decisão a reconhecer, seja no âmbito da matéria de facto, seja na aplicação do direito, que se encontram definitivamente julgadas, nem tal juízo de censura se compreende no âmbito e finalidades do processo de reconhecimento de sentença estrangeira e de execução da condenação em Portugal, mas tão só, tratando-se de uma pena que ofenda princípios fundamentais da Constituição, expurgá-la na parte correspondente” (sublinhado nosso).
No caso vertente, a pena de um ano de prisão, quer pela sua natureza, quer pela sua duração, é perfeitamente compatível com a lei interna portuguesa. A respetiva condenação reporta-se a uma pena de prisão a cumprir em meio prisional e transitou em julgado, não carecendo de ser adaptada.
Por isso, não pode ter lugar uma inovação na condenação imposta, a pretexto de que apenas se trata de execução da pena, o que a lei portuguesa permite, ao menos em abstrato, quanto a penas de prisão de duração não superior a dois anos, cfr. artigo 43º do Código Penal.
O M.P. invoca um aresto do STJ, o qual se reporta a uma situação diferente daquela que agora nos ocupa, e por isso não tem aqui aplicação, bem assim o disposto no artigo 43º do Código Penal. Porém, ainda que fosse de proceder à adaptação da pena, face ao transito em julgado, o disposto na disposição legal invocada não permitiria determinar agora o seu cumprimento ou a sua execução na habitação, porque o momento próprio para o fazer se mostra ultrapassado, que seria o momento da prolação da decisão, no qual se avaliaria da verificação não apenas do seu pressuposto formal, mas também do seu pressuposto material, ou seja, se a execução da pena na habitação realizaria as finalidades da punição. A única situação em que a lei permite repensar a execução da pena é no caso de revogação de pena não privativa da liberdade, o que não é o caso, cfr. artigo 43º, nº 1 al. c) do CP.
De facto, importa salientar que a Lei nº 94/2017, de 23.08, veio redesenhar a figura jurídica do regime da permanência na habitação, conferindo-lhe maior amplitude, ou, como se refere na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 90/XIII, que deu origem à referida lei, “Pretendeu-se clarificar, estender e aprofundar a permanência na habitação, conferindo-lhe um papel político-criminal de relevo. Vinca-se, por um lado, a sua natureza de regime não carcerário de cumprimento da pena curta de prisão e alarga-se, por outro lado, a possibilidade da sua aplicação aos casos em que a prisão é concretamente fixada em medida não superior a dois anos, quer se trate de prisão aplicada na sentença, de prisão resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º do Código Penal, ou de prisão decorrente da revogação de pena não privativa de liberdade ou do não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º do mesmo diploma.”.
Acresce que a norma do nº 1 do artigo 15º da Lei nº 158/2015, de 17.09, segundo a qual “A execução de uma condenação rege-se pela lei portuguesa”, reporta-se à lei portuguesa de execução de penas em sentido estrito.
Assim, independentemente da natureza jurídica do regime da permanência na habitação ser uma pena de substituição, um incidente ou uma medida de execução da pena de prisão não superior a dois anos (1), julgamos que a questão coloca-se nos mesmos termos em que tem sido colocada a questão de saber se é ou não possível alterar a pena de prisão, aplicando uma pena de substituição, a qual tem merecido resposta uniforme em sentido negativo da jurisprudência do STJ, de que é exemplo o Ac. STJ de 07.01.2016, processo 179/15.7YRGMR, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual “..a confirmação da sentença no processo de execução do mandato de detenção europeu deve respeitar o princípio do reconhecimento mútuo e confiança recíprocas entre os estados, impedindo uma alteração da pena aplicada. Até porque não se trata mais de um “processo tradicional de validação”[4], mas de uma execução de uma decisão com efeito pleno e direto no estado português, competindo apenas a este a declaração da exequibilidade da sentença (cf. art. 12.º, n.º 3, da LMDE), de modo que a confirmação da sentença ocorre no âmbito da própria decisão de execução (ou não) do mandato de detenção europeu”.

Em suma, ao contrário do defendido pelo M.P., a pena de um ano de prisão em causa nos presentes autos não pode ser cumprida em regime de “prisão domiciliária”, com meios técnicos de controlo à distância, por a tal se opor o princípio do reconhecimento mútuo, que significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua lei, é exequível diretamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro, produzindo efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada por uma autoridade judiciária nacional. Em casos como o presente, havendo causa de recusa do MDE, o Estado da execução aceita executar a pena nos mesmos termos que ela seria executada no Estado da emissão.
Por todo o exposto, irá ser recusada a execução do mandado de detenção europeu, mas irá ser reconhecida e declarada exequível em Portugal a sentença proferida nº 264/2019, de 24.10.2019 do Juzgado de Lo Penal nº 3 de Bilbao, transitada em julgado, no procedimento Abreviado 224/2019, execução 3060/19, do Juzgado de Lo Penal nº 7 de Bilbao, confirmando a pena aplicada de 1 (um) ano de prisão.

III. DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães acordam:
1) Em reconhecer, confirmar e declarar exequível em Portugal a sentença proferida nº 264/2019, de 24.10.2019 do Juzgado de Lo Penal nº 3 de Bilbao, transitada em julgado, no procedimento Abreviado 224/2019, execução 3060/19, do Juzgado de Lo Penal nº 7 de Bilbao, bem assim a pena aplicada de 1 (um) ano de prisão, nos seus precisos termos.
2) Em recusar a execução do Mandado de Detenção Europeu identificado, ordenando que a pena que a ele respeita seja executada pelo tribunal de primeira instância português da área da residência do requerido, devendo os autos baixar à 1ª instância, após trânsito – artigos 13º, nº 2 e 16º-A, nº 7 da Lei nº 158/2015, de 17.09.
*
Considerando que se mostram inalterados os pressupostos que presidiram à aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica imposta ao requerido, determina-se que o requerido, por ora, continue a aguardar os ulteriores termos do processo na referida situação.
*
Determina-se o desconto, no cumprimento da pena, dos períodos de detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação sofridos pelo requerido (artigo 80º, nº 1 do CP).
*
Transitado, cumpra-se o disposto no artigo 28º da Lei nº 65/2003, de 23.08 e no artigo 21º, al. c) da Lei nº 158/2015, de 17.09.
Sem tributação.
Guimarães, 06.06.2022

Armando Azevedo – Relator
Teresa Coimbra – Adjunta
Cândida Martinho - Adjunta


1 - Cfr. Maria João Antunes, in Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, pág. 94.