Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
759/19.1T8PTL.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: AÇÃO ESPECIAL DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
ADMINISTRAÇÃO
BENS ALHEIOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

Na ação especial de prestação de contas prevista no artº. 941º do C.P.C., o autor que as requeira tem de alegar factualmente a efetiva administração de bens alheios.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO.

A. L. intentou contra H. A. processo especial para prestação de contas.

Alega, para tanto e em súmula que: o Autor é filho de J. L. e M. P., falecidos nas datas de 9 de maio de 2010 e 31 de julho de 2012, respetivamente, e irmão da ré e de A. P.; A. P. cedeu à ré o seu quinhão hereditário. Corre termos desde 21-05-2013, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Juízo Local Cível de Ponte de Lima, sob o n.º 518/13.5TBPTL, processo de inventário nos quais a aqui ré foi designada como cabeça-de-casal. No âmbito desse processo, foram arroladas contas bancárias tituladas pelos falecidos e que se encontravam também associadas à titularidade da ré. Apurou-se no decorrer do processo, e não obstante a ré não ter elencado tais elementos na relação de bens apresentada, que a ré era cotitular das contas que discrimina, na proporção de 1/3, juntamente com os “de cujus”.
Sucede que os falecidos eram detentores de valores avultados, investimentos e produtos financeiros, os quais não constam das contas, já que os respetivos valores se foram dissipando entre 2001 e 2004.
Nos últimos anos de vida, J. L. encontrava-se acamado devido ao seu estado de saúde débil e, por isso, estava impossibilitado de gerir e movimentar as contas das quais era cotitular; M. P. também não movimentava as contas bancárias, nem sabia fazê-lo; já depois da sua morte, as contas continuaram a ser movimentadas, pelo que nunca poderia ter sido esta a fazê-lo. É notório que quem geria e movimentava as contas bancárias, tendo em conta a situação precária de saúde e a idade avançada dos “de cujus”, era a Ré. Aliás, não poderia ser outra a finalidade da sua contitularidade, que não o encargo de movimentação bancária em forma de auxílio aos “de cujus”. Ao atuar dessa forma, a ré exercia funções de administradora de bens alheios, ou, pelo menos, de bens próprios e alheios. E, no exercício dessa mesma função, a ré, na qualidade de cotitular daquelas contas, realizou movimentos bancários relativos a saldos que não lhe pertenciam.
Após a data do óbito do primeiro “de cujus”, no período compreendido entre 2010 e 2012, o saldo da conta bancária n.º .......10.001 é maioritariamente relativo a prestações do Centro Nacional de Pensões, ou seja, os proventos daquela conta pertenciam exclusivamente aos “de cujus”. O mesmo é dizer que, o dinheiro dos depósitos provinha da sua exclusiva propriedade.
Na conta bancária n.º .......10.001, sedeada no Banco ..., foram efetuados, pelo menos, os levantamentos indicados sob a epígrafe “cheque de caixa”, “transferência” e “levantamento”, de valores consideravelmente elevados, que descreve.
Após a morte da Ex.ª Sr.ª M. P., a conta bancária n.º ...... continuou a ser movimentada, possuindo na data de 10-08-2012 um saldo de 947,45€ e, à data de encerramento, a saber, 08-04-2013, um saldo de 0,00€.
Nesse período a ré já exercia funções de cabeça-de-casal de facto, pelo que, não só movimentou as contas bancárias como administradora de bens alheios em vida dos “de cujus”, mas também já na qualidade de cabeça-de-casal, após a morte da Ex.ª Sr.ª M. P..

Termina pedindo que:
-se ordene a citação da Ré para os efeitos previstos no artº. 942º e segs. do CPC, designadamente para, no prazo de 30 dias, apresentar as respetivas contas ou contestar a presente ação, sob a cominação de não poder deduzir oposição às contas que o Autor apresente;
-se condene a Ré ao pagamento do saldo que, nesse âmbito, venha a apurar-se.
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Contestou a ação a ré, por exceção invocando “erro no meio processual utilizado” e litispendência, e por impugnação. Pediu a condenação do requerente como litigante de má-fé.
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Foi consultado pelo Tribunal “a quo” o processo de inventário com o nº. 518/13.5TBPTL
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Foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido. Mais foram imputadas as custas da ação ao autor e fixado o valor da ação em € 194.808,83.
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Inconformado, o autor interpôs recurso apresentando as suas alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“I. Destina-se o presente recurso a impugnar a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, que judiciou totalmente improcedente a ação de prestação de contas proposta, absolvendo a Ré do pedido, com a qual não se conforma o aqui Apelante, tendo o presente recurso por objeto a sentença in totum.
II. Salvo o devido respeito por mais douto entendimento, mal andou o Mma. Juiz a quo na decisão proferida, mormente na subsunção jurídica da factualidade apurada nos autos, o que conduziu à prolação da decisão de que ora se recorre, estando o Apelante convicto de que Vossas Excelências, subsumindo a factualidade resultante dos autos, em confrontação com o disposto nas normas jurídicas aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de revogar a decisão recorrida e de a substituir por uma que julgue procedente a ação de prestação de contas proposta, decidindo pela obrigação de prestar contas da Ré, ou, caso assim não se entenda, determine a produção de melhor prova ao abrigo do artigo 942.º n.º 3 e 294.º e 295.º do CPC.

Primórdios:
III. Por decisão proferida na pretérita data de 08-01-2020, decidiu o Mmo. Juiz a quo julgar totalmente improcedente a ação de prestação de contas proposta, decidindo pela inexistência da obrigação de prestação de contas e pela absolvição da Ré do pedido. Ora, salvo devido respeito, que é muito, por superior e melhor entendimento, discorda o Apelante de tal decisão.

Senão vejamos,
IV. O aqui Apelante propôs, na pretérita data de 10-10-2019, ação especial de prestação de contas contra a aqui Apelada, na qualidade de herdeiro dos de cujus J. L. e M. P., requerendo a prestação de contas da Apelada, porquanto a mesma, conforme resultou apurado no processo de inventário que sob o n.º 518/13.5TBPTL corre os seus termos junto do T.J.C. Viana do Castelo- Juízo Local Cível de Ponte de Lima, era co-titular de contas bancárias detidas pelos de cujus, gerindo-as e movimentando-as na qualidade de administradora desses bens dos de cujus, tendo realizado movimentos bancários indevidos, na ordem dos milhares de euros, desconhecendo-se o paradeiro desses montantes. Mais alegou que, após a morte da de cujus M. P., as contas bancárias continuaram a ser movimentadas no período em que a aqui Apelada já detinha a qualidade de cabeça-de-casal de facto.
V. Notificada para contestar, a Apelada defendeu-se por exceção, alegando o erro no meio processual utilizado, litispendência e pedido de condenação em litigância de má-fé, e por impugnação por desconhecimento e/ou falsidade de toda a matéria exceto a elencada nos pontos 1.º a 7,º, 10.º, 11.º e 29.º da petição inicial, trazendo aos autos uma versão desvirtuada dos factos em apreço, sem se alongar nas justificações.

VI. Nessa sequência, proferiu o Mmo. Juiz a quo sentença, na qual determinou o seguinte:
“(…) O tribunal é competente. As partes são legítimas e estão devidamente representadas. (….) Perante a factualidade alegada na petição inicial (aquela que se obtém uma vez expurgado tudo o que é alegado de forma conclusiva, imprecisa ou, até, no condicional), no essencial toda ela contestada, impõe-se determinar se está ou não a ré obrigada a prestar as contas pretendidas (artigo 942.º, 3 do CPC). Adianta-se desde já que se crê que não. E por várias razões: A primeira: o autor assenta a pretensão de exigir contas da ré no disposto no artigo 573.º do Código Civil (doravante CC) e na circunstância de ser herdeiro dos falecidos, tendo por isso direito a obter informações sobre o seu património (artigos 39.º e 40.º da petição inicial). Ora, não se discute que na base do direito de exigir de outrem contas se encontra o disposto no artigo 573.º do CC. Todavia, o âmbito da obrigação de prestar contas é muito mais restrito do que o da obrigação de informação. (….) Sucede que o autor não é titular de qualquer direito que importe o pagamento de qualquer quantia por parte da ré. (….) A segunda razão, que é consequência imediata da que acabou de se expor: o autor, na qualidade de herdeiro dos falecidos (e dando de barato a existência da invocada administração de bens dos entretanto falecidos, mas em vida destes, pela ré) não tem, sozinho, invocando a sua posição sucessória dos falecidos, direito a exigir de qualquer outra herdeira – concretamente da ré – a prestação de quaisquer contas. Trata-se de direito que apenas poderia ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros. Por autora e ré, portanto. Nunca pelo autor contra a ré (artigo 2091.º, 1 do CC). O autor não tem uma posição sucessória diversa da ré ao ponto de lhe poder exigir, em representação isolada dos falecidos, a prestação de quaisquer contas. Terceira razão: do teor da petição inicial resulta ser evidente que o autor pretende com a presente ação uma de duas coisas: ou descobrir doações dos seus pais à ré que porventura possam estar sujeitas à colação ou descobrir um eventual furto ou abuso de confiança por parte da ré justificativo do aumento da massa de bens deixada em herança. O autor tem, naturalmente, direito a demonstrar uma ou ambas (daí que não se creia haver aqui litispendência). Mas tem precisamente que o alegar e demonstrar, quer por via da ação comum, quer por via da ação de petição da herança. Mas a descoberta de bens doados pelos falecidos à ré ou a descoberta de bens apropriados ilegitimamente pela ré não constitui nunca objeto da ação da prestação de contas (cfr, artigo 941.º do Código do Processo Civil). A quarta razão: o direito de exigir a prestação de contas da ré (e dando de barato que a cargo desta caberia o dever de prestar) não está minimamente circunstanciado. (….) Mas mais: pretende o autor a “prestação de contas” relativa à movimentação de contas bancárias que identifica (ainda que a forma genérica como o pedido está apresentado – “apresentar as respetivas contas” – nem isso permita dar por garantido). Mas, do mesmo passo, alega que a ré administrava bens alheios ou “pelo menos, bens próprios e alheios” (cfr. artigo 23.º da petição inicial). Pergunta-se, então: que movimentação bancária pretende o autor conhecer? Os bens (os saldos das contas) são todos alheios ou há também bens próprios da ré? E desde quando? É que em face dos termos em que o autor formulou o pedido, é totalmente omissa a justificação para o conhecimento (informação) de movimentação bancária de fundos próprios da ré… A quinta razão: não está alegada factualidade que imponha à ré a obrigação de prestação de contas a qualquer título (como acima se explicou), nem, especificamente, a título de cabeça-de-casal da herança deixada pelos pais de autor e ré. Para justificar a demanda da ré – que o autor propositadamente afastou do processo de inventário (pelas razões que lá bem se encontram) – o autor alega o seguinte sob os artigos 34.º, 35.º e 36.º da petição inicial: (….) natureza de contas solidárias ou conjuntas, e a consequente movimentação bancária a ela atinente, nem ao de leve permitem concluir pelo exercício por parte da ré de qualquer cabeçalato. Este cargo defere-se apenas em função do que se estabelece no artigo 2080.º do CC. E, quanto a tal matéria, a petição inicial é totalmente omissa. Do tal processo de inventário em relação ao qual o autor pretendeu voluntariamente alhear-se (ou tomar-se-ia por incompreensível a junção, com a petição inicial, de documentação que há muito o processo de inventário contém) apenas se pode retirar que a ré foi designada cabeça-de-casal por despacho de 6.6.2013. Este processo não é aqueloutro de inventário. E para este processo o que naquele se decide não basta. Acresce, e por outro lado, que o facto de M. P. não saber movimentar contas bancárias não lhe retira o cabeçalato por morte de J. L.… A sexta e última razão: as contas bancárias indicadas foram, de acordo com o alegado pelo autor, encerradas em 2013. Se porventura se entendesse que o autor podia, por si só, em representação dos falecidos, exigir contas da ré (retirando-lhe, nessa parte, representação dos falecidos…) com a apresentação de ação judicial em 11.10.2019, mais de seis anos volvidos, ter-se-ia então de entender também que, ao abrigo do disposto no artigo 1163.º do CC, tais contas (a movimentação dos sucessivos saldos bancários das contas) se mostram já há muito aprovadas, tornando inexigível qualquer outra prestação. Em conclusão: entende-se que o autor, em face do que alega, não tem o peticionado direito de obter da ré “as respetivas contas” nem, consequentemente, de obter dela a condenação no pagamento de qualquer quantia que do saldo das “respetivas contas” resultasse, pois para o autor nunca algum saldo resultaria. E tanto basta para a improcedência total do pedido.”
VII. Ora, não anuímos ao entendimento propalado, porquanto não assiste qualquer fundamento fático e jurídico, baseando-se a decisão a quo, salvo devido respeito por superior entendimento, num conjunto de considerações e conjeturas imbuídas num espírito que não se alheia à parcialidade de quem vivenciou os trâmites do processo de inventário, ao qual constantemente se alude, não devendo olvidar-se de que o naqueloutro se decide, para este não basta.
Contemplemos,

Das alegações stricto sensu
j) Das Nulidades da Sentença:
VIII. Principia o Mmo. Juiz a quo, na douta decisão recorrida, por considerar que “O tribunal é competente. As partes são legítimas e estão devidamente representadas.”, afirmação com a qual concordamos na íntegra.
IX. Não obstante, no corpo da decisão a quo, considera que “(…) o autor, na qualidade de herdeiro dos falecidos (e dando de barato a existência da invocada administração de bens dos entretanto falecidos, mas em vida destes, pela ré) não tem, sozinho, invocando a sua posição sucessória dos falecidos, direito a exigir de qualquer outra herdeira– concretamente da ré – a prestação de quaisquer contas. Trata-se de direito que apenas poderia ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros. Por autora e ré, portanto. Nunca pelo autor contra a ré (artigo 2091.º, 1 do CC). (…)”
X. Ora, não se depreende como poderá o Mmo. Juiz a quo considerar simultaneamente encontrar-se plenamente verificada a legitimidade de ambas as partes e, posteriormente, alegar que o Autor, aqui Recorrente, não tem direito de exigir da Ré Recorrida a prestação de contas, pois tal direito só poderia ser exercido em conjunto por todos os herdeiros, isto é, por Autor e Ré.
XI. Parece-nos que, in casu, ocorre uma nulidade ínsita no artigo 615.º n.º 1 c) do CPC, porquanto se afigura uma ambiguidade que torna a decisão, a essa parte, ininteligível.
Por outro lado,
XII. Padece a sentença a quo de vício de fundamentação, porquanto não é criticamente analisada a prova (mormente a documental), nem alegados fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão, nem são indicados os factos provados e não provados.
XIII. Ora, a exposição da matéria de facto provada e não provada constitui parte integrante do dever de fundamentação da sentença plasmado no artigo 607.º n.º 3 do CPC, segundo o qual “3 -Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.”., bem como no artigo 607.º n.º 4 do CPC.
XIV. Atendendo a que a presente decisão se trata em si mesma de uma sentença, que conhece do mérito da causa para, a partir daí, decidir, posteriormente, pela inexistência de obrigação de prestação de contas, e, bem assim, que foi carreada, pelo menos, prova documental ao processo, tendo sido inclusive consultado pelo Mmo. Juiz a quo o processo de inventário n.º 518/13.5TBPTL, impunha-se, pelo menos, e em cumprimento daquele dever de fundamentação, de forma a permitir às partes uma melhor compreensão da formação da convicção do julgador, salvaguardar os factos que se julgaram ou não provados, até para permitir às partes as efetivas garantias de recurso.
XV. Resultaram violadas as normas jurídicas constantes dos artigos 607.º n.º 3 e n.º 4 do CPC, assaltando à saciedade que a sentença a quo se encontra inquinada de nulidade, ao abrigo do artigo 615.º n.º 1 b) do CPC, porquanto omite aspetos considerados essenciais para a fundamentação da sentença. É, bem assim, o entendimento preconizado pelo Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão de 24-04-2019, pela relatora Helena Bolieiro, nos termos do qual “III – A fundamentação exigida quanto à matéria de facto tem também em vista a explicitação do processo de formação da convicção do julgador, o que pressupõe, para além da indicação dos meios de prova que relevaram nesse iter decisório, a referência ao exame crítico da prova que serviu para formar a sua convicção, dando a conhecer de modo conciso, mas com suficiência bastante, o percurso lógico e racional efectuado em sede de apreciação e valoração da prova que conduziu à demonstração (ou não) da factualidade objecto da decisão recorrida. V – Não cumprindo o tribunal de julgamento o dever de se pronunciar sobre os factos, omite aspectos considerados essenciais para a fundamentação da sentença, levando a que esta fique inquinada da nulidade.”
XVI. Outrossim, e salvo respeito por superior entendimento, padece a decisão a quo de nulidade pelos fundamentos supra expostos, a qual deverá ser declarada.
Ainda,
k) Da violação do disposto nos artigos 942.º n.º 3, 294.º e 295.º do CPC, e subsequente nulidade:
XVII. Dispõe o artigo 942.º n.º 3 do CPC que “Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º; se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, manda seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa.”.
XVIII. Ora, o Mmo. Juiz a quo proferiu imediatamente decisão findos os articulados, não tendo existido produção de prova que não a prova documental, não obstante ter sido indicada prova testemunhal e por declarações e confissão das partes, para o efeito.
XIX. Nesta sede, impunha-se, para além daquela, a produção de melhor prova, designadamente no que concerne à prestação de informações e extratos pelas instituições bancárias ao abrigo do artigo 417.º do CPC, a qual não se chegou, outrossim, a concretizar, afigurando-se tal produção de prova necessária para a aferição da obrigação de prestar contas da Ré, aqui Apelada, e do direito a exigi-las do ali Autor, aqui Apelante.
XX. Não se tendo verificado tal produção de prova, resultaram violadas as normas constantes dos artigos 942.º, 294.º e 295.º do CPC, bem como o princípio do inquisitório plasmado no artigo 411.º do CPC, devendo ter sido interpretadas e aplicadas no sentido da necessidade de produção de melhor prova para a formação da convicção e justa composição do litígio.
XXI. Atendendo a que tal omissão influiu diretamente na decisão da causa, determinando uma decisão precoce, estamos perante uma nulidade nos termos do artigo 195.º n.º 1 do CPC, a qual deverá ser declarada.
Não obstante, e ainda que assim não se entendesse,

l) Da Matéria de Facto:
XXII. Conforme sobredito, não resulta da aludida sentença, não obstante a prova documental carreada aos autos, bem como a admissão/confissão de factos por acordo ou em virtude de conhecimento pessoal, a existência de factos provados e não provados.
XXIII. Outrossim, deveriam ter sido dados como provados, com relevo para a presente causa, os factos constantes dos artigos 1.º a 5.º da petição inicial, com base nos documentos aportados como Doc. 1 a Doc. 5 carreados com a petição inicial; os factos 9.º a 11.º em virtude dos documentos carreados como Doc. 6 e Doc. 7 e da não impugnação; os factos 13.º a 15.º e 17.º, em virtude dos documentos aportados como Doc. 8 a Doc. 11 da petição inicial e Doc. 1 da Resposta à contestação; os factos 28.º e 29.º resultantes do Doc. 13 e da não impugnação; como confessados os factos articulados no artigo 40.º e 42.º da contestação, porquanto são factos de conhecimento pessoal cujo desconhecimento equivale a confissão.
XXIV. Pelo que, deveriam ter sido considerados como provados tais factos, em cumprimento do disposto no artigo 607.º n.º 3, n.º 4 e n.º 5 do CPC.
m) Do âmbito da obrigação de informação e do âmbito da obrigação de prestar contas (1.ª razão da sentença a quo):
XXV. Considerou o Mmo. Juiz a quo que a obrigação de prestação de contas é mais restrita que a obrigação de informação, asseverando que “O obrigado a informar acerca de um direito sobre o qual o seu titular tenha, quanto a sua existência ou conteúdo, fundadas dúvidas, é apenas aqueloutro que esteja em condições de as dissipar. Já assim não se passa na obrigação de prestar contas. O obrigado a prestar contas presta-as com o específico objetivo de apuramento e aprovação das receitas obtidas e despesas realizadas.”.
XXVI. Ora, não anuímos com o entendimento propalado, porquanto a obrigação de prestação de contas se funda, precisamente, na obrigação de informação, sendo esse o entendimento preconizado pelo Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão de 05-02-2019, pelo relator José Capacete, nos termos do qual “2. Inexistindo norma legal que genericamente determine quando é que alguém tem que prestar contas, a obrigação de as prestar decorre de uma obrigação de carácter mais geral que é a obrigação de informação prevista no art. 573º do C.C. 3. Sendo a obrigação de prestação de contas estruturalmente uma obrigação de informação- e a ação de prestação de contas, uma das formas do exercício do direito de informação, ela justifica-se sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo, e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias. (…)”
XXVII. No caso sub judice, a pretensão de prestação de contas da Ré/Apelada, formulada pelo Autor/Apelante, alicerça-se não só nessa obrigação de informação, mas igualmente na qualidade de herdeiro dos de cujus M. P. e J. L., sendo precisamente essa posição de herdeiro que legitima a sua pretensão na dúplice: ora porque, a Ré/Apelada era co-titular de contas bancárias juntamente com os de cujus, tendo movimentado o que não lhe pertencia, e administrando bens alheios pertencentes aos de cujus, ou, pelo menos, bens próprios e alheios, tendo o aqui Apelante/Autor direito a obter informação sobre os bens administrados; ora porque, a Ré/Apelada exerceu funções de cabecelato de facto, após a morte de M. P., tendo o aqui Apelante, na qualidade de herdeiro, exigir prestação de contas sobre os atos praticados pela Ré/Apelada nesse cabecelato.
XXVIII. A este propósito, veja-se o entendimento propalado pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 23-04-2020, pelo relator António Sobrinho, nos termos do qual “II - Apesar de o mandato ter natureza pessoal (daí a especificidade de caducar por morte, tanto do mandante, como do mandatário [artº. 1174º, alínea a), do CC] e estar, por isso, excluído do objeto da sucessão, não se transmitindo aos herdeiros do falecido mandante ou mandatário (artº. 2025º, nº 1 do CC) – tal cariz pessoal (intuitus personae) não se estende à obrigação de prestar contas que, por força do artº 1161º, al. d), vincula o mandatário. III - Esta prestação de contas enquadra-se numa relação jurídica de natureza patrimonial, a qual pode ser objeto de sucessão, transmitindo-se, enquanto obrigação, aos herdeiros do mandatário, e, enquanto direito, aos herdeiros do mandante - artº 2024º, do CC.”. “.
XXIX. Pelo que, falece a argumentação aduzida pelo Mmo. Juiz a quo, assistindo ao aqui Apelante o direito de, na qualidade de herdeiro, obter informação sobre administração de bens dos de cujus e, nessa mesma qualidade, obter informação sobre o cabecelato de facto da aqui Apelada, tanto mais que ambas as circunstâncias se encontram devidamente alegadas nos pontos 20.º a 24.º e 34.º a 38.º da petição inicial.
XXX. Pelo que, salvo devido respeito por superior entendimento, resultaram transgredidas as normas ínsitas nos artigos 573.º, 1161.º n.º 1 d), 2093.º n.º 1 e 2024.º do Código Civil, devendo tais normas ter sido interpretadas e aplicadas no sentido da existência de um direito a favor do aqui Apelante a obter a prestação de contas da Apelada, porquanto, na qualidade de herdeiro, e tendo-se transmitido para si a titularidade das relações jurídicas dos de cujus, tem o direito de obter informação sobre as contas bancárias dos de cujus administradas pela Apelada, das quais a mesma era co-titular e a quem, quanto muito, pertenceria apenas 1/3 dos saldos bancários,
XXXI. bem como, nessa mesma qualidade, exigir a prestação de contas da Apelada enquanto cabeça-de-casal de facto, a qual teve existência jurídica desde a morte da última de cujus e a qual realizou movimentos bancários após essa data.
n) Da Alegada Ilegitimidade (segunda razão da sentença a quo):
XXXII. Já asseveramos supra, a incongruência patente na sentença a quo, a qual julgou as partes legítimas por um lado, mas pugnou, ao diante, pelo exercício necessário do direito, no lado ativo da instância, por todos os herdeiros, o que consubstancia desde logo uma ininteligibilidade passível de nulidade.
XXXIII. Desbravando, à laia da ilegitimidade, o entendimento do Tribunal a quo segundo o qual “o autor, na qualidade de herdeiro dos falecidos (e dando de barato a existência da invocada administração de bens dos entretanto falecidos, mas em vida destes, pela ré) não tem, sozinho, invocando a sua posição sucessória dos falecidos, direito a exigir de qualquer outra herdeira – concretamente da ré – a prestação de quaisquer contas. Trata-se de direito que apenas poderia ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros. Por autora e ré, portanto. Nunca pelo autor contra a ré (artigo 2091.º, 1 do CC).”, não podemos anuir ao entendimento propalado, porquanto carece de fundamento jurídico, pois que, não se afigura lógico nem processualmente admissível que a Ré, aqui Apelada, pudesse ser simultaneamente Autora e Ré, exigindo de si própria a prestação de contas e obrigando-se a si própria, a prestá-las.
XXXIV. Estamos em crer que existe, desde logo, uma impossibilidade lógica e subjetiva da coincidência da mesma pessoa nos dois polos da ação, pronunciando-se, mesma linha de raciocínio, o douto Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 09-03-2010, pelo relator Teles Pereira, nos termos do qual “I– A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC. II- A coincidência na mesma pessoa da posição de A. e R., na mesma acção, mesmo em situações de legitimidade plural, corresponde a uma impossibilidade lógica, ofendendo o princípio da dualidade das partes. III – A verificação de tal situação impossibilita a acção logo à partida, nos casos de legitimidade singular, e gera, nos casos de legitimidade plural, a impossibilidade da configuração subjectiva que origina essa (inaceitável) coincidência da mesma pessoa nos dois lados da acção. (…) V – Nestes casos (acção de reivindicação), quando o acto ofensivo do direito de propriedade do património hereditário indiviso for subjectivamente atribuído a um co-herdeiro (por exemplo, por este ter registado em seu nome bens da herança), a posição deste último como R. (em confronto com os outros co-herdeiros reivindicantes) já preenche plenamente o fim que preside à imposição do litisconsórcio (artigo 28º, nºs 1 e 2 do CPC). VI – Com efeito, neste caso, ocorrendo a intervenção do co-herdeiro como R., está assegurada, por um lado, a participação no processo desse co-interessado na relação material controvertida (na relação respeitante à dominialidade dos bens reivindicados), conforme exige o nº 1 do artigo 28º do CPC. Da mesma forma, por outro lado, a decisão a proferir produz, relativamente ao co-herdeiro destinatário da pretensão reivindicatória (na qualidade de R.), o seu efeito útil normal (nº 2 do artigo 28º do CPC).
XXXV. Desta feita, a propositura de ação pelo aqui Apelante e ali Autor, em litisconsórcio com a ali Ré e aqui Apelada, contra esta última, configuraria uma violação do princípio da dualidade de partes que enforma o ordenamento jurídico, subvertendo a lógica processual e originando uma situação de confusão.
XXXVI. Ademais, e tal como referido no sobredito Acórdão, a intervenção da aqui Apelada na posição de Ré, assegura a sua participação na relação material controvertida e, bem assim, a finalidade que visa obter o artigo 33.º n.º 3 do CPC, verificando-se o efeito útil normal da decisão.
XXXVII. Outrossim, estamos em crer que a decisão a quo violou o princípio da dualidade de partes, bem como as normas jurídicas constantes dos artigos 30.º n.º 1 e 33.º do CPC e 2091.º n.º 1 do CC, devendo tais normas ter sido interpretadas e aplicadas no sentido em que o aqui Apelante e ali Autor tinha legitimidade para, por si só, propor ação de prestação de contas contra a aqui Apelada, porquanto a sua intervenção no processo e o efeito útil da decisão se encontra perfeitamente assegurado, e, caso contrário, resultaria transgredido o princípio da dualidade de partes e originada uma situação de confusão.
Ainda que assim não se entendesse,
XXXVIII. Sempre cumpria ao Mmo. Juiz a quo, caso pugnasse pela ilegitimidade do ali Autor para a propositura da ação, em obediência ao dever de gestão processual consagrado no artigo 6.º n.º 2 do CPC, convidar o mesmo a suprir a falta do pressuposto processual, o que não sucedeu; ou, caso assim não se entendesse, pelo menos, e ao abrigo do artigo 590.º n.º 1 do CPC, indeferir liminarmente a petição inicial, dando nova oportunidade ao ali Autor de apresentar nova petição inicial, ao abrigo do artigo 560.º do CPC.
XXXIX. Ao invés, decidiu o Mmo. Juiz a quo conhecer do mérito da causa e judiciar pela inexistência de obrigação da prestação de contas, impossibilitando agora o aqui Autor de propor nova ação ou de ver assegurada a legitimidade sobejada, resultando, outrossim, igualmente transgredidas as normas jurídicas constantes dos artigos 6.º n.º 2, 590.º n.º 1, n.º 3 e n.º 4 e 560.º do CPC.
o) Da alegada inadequação da ação de prestação de contas (terceira razão da sentença a quo):
XL. Considerou o Mmo. Juiz a quo que “do teor da petição inicial resulta ser evidente que o autor pretende com a presente ação uma de duas coisas: ou descobrir doações dos seus pais à ré que porventura possam estar sujeitas à colação ou descobrir um eventual furto ou abuso de confiança por parte da ré justificativo do aumento da massa de bens deixada em herança. O autor tem, naturalmente, direito a demonstrar uma ou ambas (daí que não se creia haver aqui litispendência). Mas tem precisamente que o alegar e demonstrar, quer por via da ação comum, quer por via da ação de petição da herança. Mas a descoberta de bens doados pelos falecidos à ré ou a descoberta de bens apropriados ilegitimamente pela ré não constitui nunca objeto da ação da prestação de contas (cfr, artigo 941.º do Código do Processo Civil).”.
XLI. Ao contrário do propalado, da factualidade alegada resulta precisamente que o Autor não pretende nenhuma das vias conjeturadas pelo Tribunal a quo, mas apenas e tão só a prestação de contas por parte da Ré, quanto aos concretos bens por si administrados, designadamente no que concerne aos saldos bancários, a fim de aferir da existência de saldo ou de débito. E para tanto não se nos afigura processualmente adequado nem uma ação declarativa comum, nem uma ação de petição da herança, porquanto a qualidade sucessória do aqui Apelante já se encontra perfeitamente reconhecida e a prova da posse de dinheiro pertencente à herança se reveste de especial complexidade.
XLII. Além disso, e se assim se entendesse, sempre deveria o Tribunal a quo ter conhecido oficiosamente do erro na forma do processo ou do meio processual utilizado, ao abrigo dos artigos 196.º e 193.º n.º 1 do CPC, determinando a anulação dos atos que não pudessem ser aproveitados, e praticando-se os necessários para a aproximação à forma de processo adequada, o que igualmente não sucedeu, não se nos afigurando processualmente aclimatado ou materialmente justo usar-se de tal argumentação e aduzir considerações na sentença que, deveriam ter sido conhecidas e corrigidas a priori.
XLIII. Ainda, prevê o artigo 941.º do CPC que “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.”, refletindo, nesta senda, precisamente o objeto da ação proposta pelo Autor e aqui Apelante, tendo sido erradamente interpretado e aplicado o disposto no artigo 941.º do CPC, porquanto a ação declarativa especial de prestação de contas se afigura a efetivamente adequada à pretensão do ali Autor, conforme alegado e comprovado em sede de petição inicial.
p) Da alegada falta de concretização temporal e dos bens próprios e alheios (quarta razão da sentença a quo):
XLIV. Considerou o Mmo. Juiz a quo não se encontrar minimamente circunstanciado o direito a exigir prestação de contas da Ré, fazendo referência aos lapsos temporais indicados na petição inicial, e concluindo pela indagação quanto aos bens próprios e alheios da Ré.
XLV. Ora, conforme se poderá aferir da petição inicial aduzida, o direito de exigir prestação de contas funda-se no exercício, pela Ré, da administração de bens alheios, designadamente bens do de cujus, quer na qualidade de co-titular das contas bancárias, quer na qualidade de cabeça-de-casal.
XLVI. Ao contrário do propalado pelo Mmo. Juiz a quo, o que resulta da petição inicial é que a obrigação de prestar contas se verifica desde a administração de bens alheios, isto é, desde, pelo menos, o ano de 2001, em que se verifica a existência de levantamentos de avultado valor, sendo o propósito da co-titularidade o auxílio aos de cujus, tal como alegado nos pontos 22.º e 23.º daquela peça processual, sendo os últimos anos de vida dos de cujus uma referência para o adensamento dessa administração e para a impossibilidade de ter sido o próprio de cujus a movimentar tais contas. Ainda assim, por “últimos anos de vida do de cujus”, dever-se-á entender, atendendo às regras da experiência comum, pelo menos, aos últimos cinco anos anteriores à sua morte.
XLVII. Além disso, o Autor e aqui Apelante formulou o pedido que lhe é exigido pela lei, sendo precisamente esse o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-06-2017 pela relatora Isoleta Almeida Costa, nos termos do qual “–Na acção de prestação de contas o pedido a formular contra o requerido deve ser o de apresentação de contas e condenação deste no respectivo saldo, havendo-o, tudo conforme o disposto no artº 941º do CPC.”.
XLVIII. Ora, salvo devido respeito por superior entendimento, encontra-se plenamente cumprida e concretizada tal formalidade.
XLIX. Mas ainda que se entendesse ser deficiente a matéria factual aportada aos autos, designadamente no que concerne ao período temporal, sempre caberia ao Mmo. Juiz a quo convidar o ali Autor e aqui Apelante ao aperfeiçoamento, ao abrigo do artigo 590.º n.º 2 a) e b) do CPC, o que não sucedeu, resultando transgredidas tais normas.
L. Ademais, não se compreende a estupefação do Mmo. Juiz a quo quando se refere que a Ré era administradora de bens alheios ou, pelo menos, de bens próprios e alheios, uma vez que a pretensão de prestação de contas exigida pelo ali Autor independentemente da administração ser de bens alheios e próprios ou apenas alheios, apenas se subsumiu no que concerne aos bens pertencentes aos de cujus, o que corresponderia, pelo menos, a 2/3 dos saldos bancários.
LI. Veja-se, a este propósito, o entendimento do douto Tribunal da Relação de Guimarães, de 18-01-2018, pela relatora Sandra Melo, nos termos do qual “(…) 4. Quer a doutrina, quer a jurisprudência afirmam a existência de um princípio geral pelo qual se compreende que "quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses". 5. Abarca, pois, os casos em que, com consequências patrimoniais, alguém trata de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios, relevando mais a existência factual de atos de gestão de bens e interesses do que a sua fonte.”.
LII. Pelo que carece de qualquer fundamento fático ou jurídico a alegação sustentada pelo Tribunal a quo.
q) Do Cabecelato de Facto (a quinta razão da sentença a quo):
LIII. Salvo respeito por superior entendimento, alegou o Autor a existência de concretos factos relativos ao exercício do cabecelato de facto, nos pontos 34.º a 36.º da petição inicial, alegando a movimentação de depósitos bancários pela ali Ré, após a morte da de cujus M. P., e juntando prova documental que sustenta tal movimentação.
LIV. Pelo que não se depreende a conclusão do Mmo. Juiz a quo, ao considerar a omissão de tais factos, tendo aplicado erroneamente o artigo 2080.º do Código Civil, porquanto se afigura demonstrado o exercício de cabecelato de facto da aqui Apelada.
r) Da alegada aprovação de contas- artigo 1163.º do CC (sexta e última razão da sentença a quo):
LV. Entendeu o Mmo. Juiz a quo que “as contas bancárias indicadas foram, de acordo com o alegado pelo autor, encerradas em 2013. Se porventura se entendesse que o autor podia, por si só, em representação dos falecidos, exigir contas da ré (retirando-lhe, nessa parte, representação dos falecidos…) com a apresentação de ação judicial em 11.10.2019, mais de seis anos volvidos, ter-se-ia então de entender também que, ao abrigo do disposto no artigo 1163.º do CC, tais contas (a movimentação dos sucessivos saldos bancários das contas) se mostram já há muito aprovadas, tornando inexigível qualquer outra prestação.”.
LVI. Ora, carece de qualquer fundamento a argumentação aduzida, porquanto dispõe o artigo 1163.º do Código Civil que “Comunicada a execução ou inexecução do mandato, o silêncio do mandante por tempo superior àquele em que teria de pronunciar-se, segundo os usos ou, na falta destes, de acordo com a natureza do assunto, vale como aprovação da conduta do mandatário, ainda que este haja excedido os limites do mandato ou desrespeitado as instruções do mandante, salvo acordo em contrário.”.
LVII. Ora, atendendo a que o mandato assume natureza pessoal, de acordo com o artigo 1174.º n.º 1 a) do Código Civil, a morte do mandante, salvo as exceções contempladas no artigo 1175.º do mesmo diploma, determina a caducidade do mandato.
LVIII. Pelo que não se afigura minimamente lógico, atenta a morte dos de cujus, que o seu silêncio equivalha a uma aprovação tácita de contas, tanto mais que, ainda em vida, não estariam em condições físicas ou psicológicas para lhes ser comunicada qualquer inexecução do mandato e aprovadas tacitamente quaisquer contas.
LIX. Nem resulta dos autos qualquer prova de que a execução ou inexecução do mandato tenha sido comunicada aos de cujus, ou de que os mesmos se tenham conformado com a mesma após tal comunicação.
LX. E ainda que se entendesse não caducar o aludido mandato, e antes transmitir-se para os sucessíveis, o aqui Apelante apenas obteve conhecimento de tais factos no âmbito do processo de inventário, não se tendo silenciado nem aprovado tal conduta, tanto mais que recorreu aos devidos mecanismos legais, quer naqueloutro processo de inventário, quer neste processo especial de prestação de contas.
LXI. Outrossim, falece a argumentação aduzida pelo Tribunal a quo, tendo o Tribunal aplicado erradamente o artigo 1163.º do Código Civil, porquanto não colhe a sua aplicação ao caso sub judice.
LXII. Alfim, judiciando V.ª Ex.ª pela revogação da sentença a quo, substituindo-a por uma outra que determine a obrigação de prestação de contas por parte da Ré/Apelada e o direito de exigi-las por parte do Autor/Apelante ou,
LXIII. Caso assim não se entenda, determinando a prossecução da instância para a produção de melhor prova, em cumprimento do disposto nos artigos 942.º n.º 3, 294.º e 295.º do CPC, farão V.ª Ex.ª inteira e sã justiça.”

Termina pedindo que a Apelação seja judiciada totalmente procedente, revogando-se a decisão a quo e, consequentemente seja substituída por uma outra que determine a obrigação de prestação de contas por parte da Ré/Apelada e o direito de exigi-las por parte do Autor/Apelante, ou, caso assim não se entenda, substituída por uma outra que determine a prossecução da instância para a produção de melhor prova, em cumprimento do disposto nos artigos 942.º n.º 3, 294.º e 295.º do CPC.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Tendo sido determinado que o Tribunal “a quo” se pronunciasse sobre as nulidades invocadas, foi proferido o seguinte despacho:

“Quanto à nulidade apontada em recurso:

- sob os artigos 11.º a 15.º das alegações de recurso. A apreciação da legitimidade inicialmente feita é processual, de regularidade da instância, permite o prosseguimento da instância. A segunda é substantiva, permitiu concluir pela improcedência do pedido, pela inexistência do direito pretendido na esfera jurídica do autor. Não há qualquer contradição na apreciação das legitimidades geradora de nulidade, porque a legitimidade processual não se confunde com a substantiva.
- sob os artigos 16.º a 27.º: na decisão escreveu-se, entre o mais, “Em conclusão: entende-se que o autor, em face do que alega, não tem o peticionado direito de obter da ré “as respetivas contas” nem, consequentemente, de obter dela a condenação no pagamento de qualquer quantia que do saldo das “respetivas contas” resultasse, pois para o autor nunca algum saldo resultaria. E tanto basta para a improcedência total do pedido”. Trata-se de uma decisão de manifesta improcedência. A ação improcede mesmo que tudo o que é alegado na petição inicial demonstrado ficasse (e a decisão ficciona a prova do que é alegado na petição). Essa a razão, aliás, para a descrição, na decisão, da factualidade alegada na petição inicial. Não se vê, por isso, que tenha sido cometida qualquer nulidade. A sentença parte do princípio de que o que é alegado ficaria provado e, portanto, evidentemente, dispensa a prova. Se não dispensasse estaria, agora sim, a praticar atos proibidos, por inúteis (em face do entendimento jurídico adotado, evidentemente).
Notifique e remeta novamente ao Tribunal da Relação de Guimarães.”
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões:
-decidir se foi cometida alguma nulidade de sentença, concretamente se enferma de falta de fundamentação de facto ou ambiguidade;
-decidir se foi cometida nulidade processual;
-assentar na factualidade assente e a considerar;
-verificar se há obstáculos, nomeadamente os apontados, ao prosseguimento da ação.
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III NULIDADE DE SENTENÇA.

Dispõe o art. 615º, nº 1, que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal “supra” citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4/10/2018 em que foi relatora a Exmª Srª Desembargadora Drª Eugénia Cunha, e do STJ de 17/10/2017, www.dgsi.pt).
Conforme Acórdão desta Relação relatado pela Exmª Srª desembargadora Drª Maria João Matos com a mesma data e igualmente publicado “As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do C.P.C. (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo nº 00858/14, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).”
Com exceção das previstas na al. a) do n.º 1 do artigo 615.º e no artigo 666.º, n.º 1, segunda parte, estas nulidades respeitam ao teor do ato decisório, nomeadamente ao cumprimento das normas processuais que determinam a estrutura, objeto e limites do julgamento; porém, não quanto ao mérito desse julgamento como se destaca no excerto (que por sua vez cita o mencionado acórdão da Exmª Srª Desembargadora Drª Eugénia Cunha) “O recurso civil, vol. I”, do Prof Rui Pinto (Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC), 2019, https://www.linkedin.com.), cuja edição terá lugar em 2020, e publicado desde já na Revista “Julgar” online de maio de 2020.
Face ao invocado no recurso em apreço, atentemos na nulidade prevista na alínea b).
Este vício encontra o seu fundamento no princípio constitucional de que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei (artº. 205º, nº. 1, da Constituição da República Portuguesa): nesse sentido consagrou o artº. 154º do C.P.C. o princípio geral segundo o qual as decisões são sempre fundamentadas. O dever de fundamentação abrange todos os pedidos controvertidos e todas as dúvidas suscitadas no processo, mas também abrange o dever de explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia em determinado sentido.
Concomitantemente com o dever geral de fundamentação, existem regras específicas que devem ser observadas na elaboração da sentença, elencadas no artº. 607º, do C.P.C.: na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção. Daí decorre a imposição do artº. 640º C.P.C. relativamente os ónus de impugnação da matéria de facto.
Esta exigência de fundamentação da decisão referente à matéria de facto provada e não provada exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da Justiça, inerente ao ato jurisdicional (cfr. “Código de Processo Civil Anotado” de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, 2º vol., pag. 707 da 3ª edição, citando Fawcett, citado por Velu-Ergec, la convention européenne des droits de l’Homme, Bruxelas, Bruylant, 1990, nº. 478 (pag. 418)).
Conforme Ac. do STJ de 26/02/2019 (www.dgsi.pt) “…na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível”.
Tem vindo a ser posição da jurisprudência que apenas a total ausência ou absoluta falta de fundamentação afeta o valor legal da sentença, provocando a respetiva nulidade por falta de fundamentação da matéria de facto. Já a fundamentação deficiente, medíocre, incompleta, não convincente ou errada, afeta o valor doutrinal da sentença e sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso por respeitar a erro de julgamento.

Ora, no caso dos autos, não se verifica esta ausência de elenco da matéria de facto, embora “prima facie” possa parecer. É que o Tribunal para decidir baseou-se na factualidade alegada pelo A., independentemente da sua prova (ainda que ficta, porque decorrente da posição da parte contrária). A necessária factualidade “assente” para a decisão é aquela que foi alegada, tal qual o foi.

Daí decorre que o elenco dos factos considerados para ser proferida a decisão, são aqueles que constam do relatório da mesma decisão.
Igualmente em relação às razões de direito que fundamentam a improcedência do peticionado, tal consta da decisão em apreço, como decorre da indicação das razões que presidiram à tomada de decisão.
Assim sendo, não se verifica a invocada nulidade de sentença.
Outra questão diferente é se estamos perante o cometimento de uma nulidade processual por ter sido proferida decisão sem consideração dos meios de prova e sem produção de prova, o que não tem que ver com as nulidades de sentença “supra” elencadas, mas antes com o disposto no artº. 195º, nº. 1, do C.P.C. também invocado em sede de recurso e que será à frente tratado.
Já a “contradição” entre a declaração (genérica) de verificação da legitimidade processual e a (segunda) razão apresentada na fundamentação jurídica quanto à necessidade de atuação de todos os herdeiros (no caso são A. e R. cfr. alínea B) dos factos que à frente se elencam) para exigir a prestação de contas no âmbito da administração levada a cabo em vida dos entretanto falecidos (na hipótese de existir essa atuação), não encerra qualquer nulidade de sentença uma vez que se pretenderam apreciar figuras jurídicas distintas em cada dos passos.
Disse Alberto dos Reis que “a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. (...) É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz” (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pag. 151).
Remédio Marques quanto à ambiguidade da sentença diz que esta “exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos”. Quanto à obscuridade, “traduz os casos de ininteligibilidade da sentença” (“Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto”, 3ª. edição, pag. 667).
Sintetizando, “obscuro” é o que não é compreensível; “ambíguo” é o que é suscetível de diferentes interpretações, que podem inclusive ter sentidos opostos.
“Em qualquer caso, fica o destinatário da decisão sem saber ao certo o que efetivamente se decidiu, ou quis decidir. Mas não é qualquer obscuridade, ou ambiguidade, que é sancionada com a nulidade do acórdão, mas apenas aquela que torne a decisão ininteligível” –cfr. Ac. desta Relação da Exmª Srª Desembargadora Drª Rosália Cunha, no processo 324/19.3T8BRG.G1.
Reportando para o caso, começamos por dizer que é sabido que a legitimidade processual afere-se pelo interesse direto em demandar, no caso da ativa, consoante a utilidade a retirar da procedência da ação, tal como decorre do alegado em sede de petição inicial –artº. 30º do C.P.C..
Na ação de prestação de contas intentada por um herdeiro vigora o princípio do litisconsórcio necessário natural –artº. 33º, nº. 2, do C.P.C.
Ora, o A. apresenta-se como herdeiro e por isso titular de um direito de informação que concretiza na obrigação da Ré lhe prestar contas. Por outro lado, decorre do alegado que o A. e a R. são os únicos herdeiros. Ora, figurando um do lado ativo e outro do lado passivo (ainda que demandada esta na qualidade de cabeça de casal), tal basta para considerar verificada a legitimidade processual pela presença de ambos na ação.
O que não se pode é confundir a legitimidade processual com a legitimidade substantiva, consistindo esta em saber se a qualidade em que o A. se apresenta lhe confere o direito de que se arroga, ou seja, se a lei (civil) dá cobertura à sua pretensão.
No caso concreto essa aferição terá de ser feita de forma diferente consoante o período a que o pedido de prestação de contas se refere, como iremos ver.
Em suma, muito embora, e salvo o devido respeito, haja confusão na decisão sob recurso entre estes dois conceitos jurídicos, cremos que se percebe que o Tribunal teve intenção de apreciar duas realidades distintas (o que resulta perceptível): a legitimidade processual que assumiu verificar-se, e a legitimidade substantiva, que entendeu não estar prevista, embora o tenha feito de forma para nós incorreta: a exigência do litisconsórcio tem que ver com as regras da legitimidade processual e o facto de a R. não poder figurar nas duas posições (ativa e passiva), para além de não ter como consequência a ilegitimidade processual, também não interfere com a legitimidade substantiva do A..
Não se verifica por isso igualmente qualquer nulidade nesta matéria, qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; verifica-se antes erro de julgamento, o que implica outra apreciação que se fará.
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IV MATÉRIA A CONSIDERAR (tal como foi considerada pelo Tribunal recorrido, conforme já mencionamos na apreciação da nulidade de sentença que foi invocada).

A. O Autor é filho de J. L. e M. P., falecidos nas datas de 9 de maio de 2010 e 31 de julho de 2012, respetivamente, e irmão da ré e de A. P..
B. A. P. cedeu à ré o seu quinhão hereditário.
C. Corre termos desde 21-05-2013, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Juízo Local Cível de Ponte de Lima, sob o n.º 518/13.5TBPTL, processo de inventário nos quais a aqui ré foi designada como cabeça-de-casal.
D. No âmbito desse processo, foram arroladas contas bancárias tituladas pelos falecidos e que se encontravam também associadas à titularidade da ré.
E. Apurou-se no decorrer do processo, e não obstante a ré não ter elencado tais elementos na relação de bens apresentada, que a ré era cotitular das seguintes contas, na proporção de 1/3, juntamente com os de cujus:
i. Conta de depósitos à ordem n.º ….34, com forma de movimentação solidária, sedeada no Banco ..., S.A. (Banco ...), encerrada em 25 de agosto de 2004;
ii. Conta de depósitos à ordem n.º ……02, com forma de movimentação solidária, sedeada no Banco ..., S.A. (Banco ...), encerrada em 16 de agosto de 2004;
iii. Conta bancária n.º ......, sedeada no Banco ..., S.A., encerrada em 26 de novembro de 2013;
iv. Conta bancária n.º ….13, sedeada no Banco ..., S.A., encerrada em 28 de dezembro de 2012;
F. À data do óbito de J. L. (..-05-2010), a conta bancária n.º ...... detinha um saldo de 3,23€;
G. Já à data do óbito de M. P. (..-07-2012), a mesma detinha um saldo de 712,97€;
H. À data do óbito de J. L. (..-05-2010), a conta bancária n.º ........ detinha um saldo de 0,10€;
I. Já à data do óbito de M. P. (31-07-2012) detinha um saldo de 0,10€;
J. Os falecidos, pessoas dignas e labutadoras durante toda a sua vida, sempre adotaram um estilo de vida contido e moderado.
K. Os falecidos receberam, na data de 23 de abril de 1997 e na sequência da celebração de acordo de indemnização com a “X- Sociedade … de Gás Natural, S.A.”, uma indemnização pela constituição de um ónus sobre o prédio identificado como “Campo da …” ou “Cova de …”, no valor de 443.636$00 (correspondente a 2.212,85€).
L. Os falecidos arrecadaram indemnizações fruto de expropriações amigáveis de parcelas de terreno, para efeitos de construção da A3- Autoestrada Porto/Valença, celebradas com a B., S.A., na data de 31 de março de 1999, e as quais ascenderam ao valor total de 24.302.410$43 (correspondente a 121.219,81€).
M. Ademais, auferiram, desde a década de 90, prestações mensais do Centro Nacional de Pensões.
N. Sendo que, no período compreendido entre meados de 2001 e finais de 2013, terão auferido na conta n.º .......10.001, conforme resulta da análise daquele documento, recebimentos totais de, pelo menos, 71.376,17€.
O. Eram ainda detentores de investimentos e subscritores de produtos financeiros, no anterior Banco …, atualmente designado como Banco …, ascendendo a valores na ordem dos 30.000,00€.
P. Nos últimos anos de vida, J. L. encontrava-se acamado devido ao seu estado de saúde débil e, por isso, estava impossibilitado de gerir e movimentar as contas das quais era cotitular;
Q. M. P. também não movimentava as contas bancárias, nem sabia fazê-lo;
R. Já depois da sua morte, as contas continuaram a ser movimentadas, pelo que nunca poderia ter sido esta a fazê-lo.
S. Ora, é notório que quem geria e movimentava as contas bancárias, tendo em conta a situação precária de saúde e a idade avançada dos de cujus, era a Ré.
T. Aliás, não poderia ser outra a finalidade da sua contitularidade, que não o encargo de movimentação bancária em forma de auxílio aos de cujus.
U. Ao atuar dessa forma, a ré exercia funções de administradora de bens alheios, ou, pelo menos, de bens próprios e alheios.
V. E, no exercício dessa mesma função, a ré, na qualidade de cotitular daquelas contas, realizou movimentos bancários relativos a saldos que não lhe pertenciam.
W. Após a data do óbito do primeiro de cujus, no período compreendido entre 2010 e 2012, o saldo da conta bancária n.º .......10.001 é maioritariamente relativo a prestações do Centro Nacional de Pensões, ou seja, os proventos daquela conta pertenciam exclusivamente aos de cujus.
X. 27. O mesmo é dizer que, o dinheiro dos depósitos provinha da exclusiva propriedade dos de cujus.
Y. Na conta bancária n.º .......10.001, sedeada no Banco ..., foram efetuados, pelo menos, os levantamentos indicados sob a epígrafe “cheque de caixa”, “transferência” e “levantamento”, de valores consideravelmente elevados, que infra se descrevem:
Z. - Cheque Caixa n.º …47, no valor de 32.300,00€, na data de 13- 08-2001;
AA. - Cheque Caixa n.º 7…04, no valor de 32.300,00€, na data de 11- 09-2001;
BB. - Cheque Caixa n.º 7.…95, no valor de 91.000,00€, na data de 10- 10-2001;
CC. - Cheque Caixa n.º 8..32, no valor de 2.649,00€, na data de 24-07- 2002;
DD. - Transferência P 14….01, no valor de 15.000,00€, na data de 03-01-2003;
EE. - Cheque Caixa n.º 1….8, no valor de 10.000,00€, na data de 10- 01-2003;
FF. - Cheque Caixa n.º 1….17, no valor de 1.500,00€, na data de 24-04-2003;
GG. - Cheque Caixa n.º 13…..20, no valor de 25.000,00€, na data de 10-07-2003;
HH. - Levantamento, no valor de 10.624,00€, na data de 21-10-2003;
II. - Cheque Caixa n.º 17…44, no valor de 1.500,00€, na data de 28-01-2004;
JJ. - Cheque Caixa n.º 1….7, no valor de 5.000,00€, na data de 15-03-2004;
KK. - Cheque Caixa n.º 17….48, no valor de 2.500,00€, na data de 26-03-2004;
LL. - Cheque Caixa n.º 19…..85, no valor de 2.500,00€, na data de 15-04-2004;
MM. - Cheque Caixa n.º 1….94, no valor de 1.100,00€, na data de 10-12-2004;
NN. - Cheque Caixa n.º 2….3, no valor de 20.000,00€, na data de 13-01-2005;
OO. - Cheque Caixa n.º 2….87, no valor de 1.230,00€, na data de 10-02-2005;
PP. - Cheque Caixa n.º 2….89, no valor de 3.080,00€, na data de 28-06-2005;
QQ. - Cheque Caixa n.º 3….55, no valor de 1.270,00€, na data de 11-08-2006;
RR. - Cheque Caixa n.º 3….65, no valor de 1.230,00€, na data de 11-01-2007;
SS. - Cheque Caixa n.º 36….7, no valor de 1.275,00€, na data de 10-07-2007;
TT. - Cheque Caixa n.º 3….70, no valor de 1.630,00€, na data de 12-11-2007;
UU. - Cheque Caixa n.º 3….1, no valor de 1.275,00€, na data de 11-12-2007;
VV. - Cheque Caixa n.º 4….12, no valor de 1.310,00€, na data de 10-07-2008;
WW. - Cheque Caixa n.º 4….17, no valor de 1.900,00€, na data de 14-01-2009;
XX. - Transferência interna, no valor de 1.500,00€, na data de 10-07-2009;
YY. - Cheque Caixa n.º 51….4, no valor de 1.495,00€, na data de 15-12-2009;
ZZ. Cheque Caixa n.º 5…..20, no valor de 3.850,00€, na data de 13-10-2010.
AAA. E, bem assim, resulta do extrato da conta n.º .........10.001:
BBB. Cheque Caixa n.º 82….2, no valor de 1.500,00€, na data de 10-07-2009.
CCC. São movimentações na ordem das centenas de milhares de euros, que nunca poderiam ter sido realizadas pelos de cujus, atento o despretensioso estilo de vida que praticavam, e relativamente às quais o autor desconhece o paradeiro ou a sua justificação.
DDD. Trata-se de uma conta na qual existiu, ab initio, um depósito em numerário de 100.000,00€, e um depósito de valores de 5.300.000,00€, tendo este último sido posteriormente aplicado financeiramente,
EEE. Chegando a atingir saldos na ordem dos 291.000,00€,
FFF. Valores que se foram dissipando no período compreendido entre 2001 e 2004.
GGG. Após a morte da Ex.ª Sr.ª M. P., a conta bancária n.º ...... continuou a ser movimentada, possuindo na data de 10-08-2012 um saldo de 947,45€ e, à data de encerramento, a saber, 08-04-2013, um saldo de 0,00€.
HHH. Nesse período a ré já exercia funções de cabeça-de-casal de facto, uma vez que, tal como apregoado pela doutrina, “o cabeça-de-casal tem existência jurídica desde a morte do autor da herança, independentemente de haver ou não lugar a inventário, sem necessidade de um ato jurídico da aceitação do cabecelato.”.
III. Pelo que, não só movimentou as contas bancárias como administradora de bens alheios em vida dos de cujus, mas também já na qualidade de cabeça-de-casal, após a morte da Ex.ª Sr.ª M. P..
***
V O MÉRITO DO RECURSO.

Em primeiro lugar há que verificar se estamos perante uma nulidade processual invocável nesta sede de recurso, pelo facto de o Tribunal “a quo” ter decidido sem análise e produção da prova apresentada (designadamente documental) –violando o disposto nos artºs. 942º, nº. 3, e 411º, do C.P.C., como é argumento do recorrente.
De facto, e como já adiantamos, situação diferente da nulidade de sentença é a nulidade processual que decorre da omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, o que só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa –artº. 195º, nº. 1, C.P.C. e que importa a declaração de nulidade dos atos posteriormente praticados –designadamente a nulidade da sentença-e a prática do ato omitido pelo Tribunal recorrido –artº. 199º, nº. 1, C.P.C.. Em causa está uma nulidade secundária, invocável pelo interessado nos termos e prazo legais.
Mantém atualidade e pertinência o brocardo segundo o qual dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se. Conforme explicava Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 2º Vol., p. 507, «a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.» Conforme Antunes Varela (“Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pag. 393) refere, “tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso(…)”. Ou seja, a nulidade processual que só é evidenciada pela prolação do despacho, torna a reação da recorrente tempestiva, pois só agora a mesmo soube que o Tribunal não adotou determinada conduta prévia que se impunha. Isto é, estando em causa uma nulidade processual e não uma nulidade do despacho ou sentença (artºs. 615º,nº1 al.d) aplicável aos despachos ex vi nº3 do art. 613º do C.P.C.), ocorrida antes de ter sido proferido o despacho (ou sentença), mas que só com a prolação desta é que aquela se evidenciou, o que torna tempestiva a sua arguição em sede de recurso (cfr. artº. 199º, nº.1, do C.P.C.). Anselmo de Castro (“Direito Processual Civil Declaratório”, III Vol., 1982, pag. 134) afirma que “se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o juiz) e passará a ser o recurso da decisão.”

Neste caso concreto, e sem nos alongarmos mais nesta questão dada a sua irrelevância para o caso, a nulidade, a verificar-se, estaria “coberta” pela sentença uma vez que é quando esta é proferida sem a prévia produção de prova relativamente ao que o recorrente se insurge, é que esta seria cometida e a parte toma conhecimento da mesma, e por isso só com a prolação da sentença fica conhecedor da omissão. Por isso a mesma pode ser invocada em sede recursiva.
No sentido de interpretar o conceito o Professor ALBERTO DOS REIS tecia as seguintes considerações:“[o]s atos de processo têm uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, atos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram atos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela“[10].
Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento.
A ação (especial) de prestação de contas comporta duas fases distintas: na inicial decide-se, antes de mais e tão só, se o réu deve prestar contas; na fase seguinte, se a decisão for afirmativa, há lugar à prestação de contas, definindo-se os termos em que a mesma se deve processar - Ac. do STJ de 30/01/2001, em www.dgsi.pt. É o que resulta do disposto no artº. 942º, nº. 3, do C.P.C.: “Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294º e 295º; se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, mandará seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa”. Esta é, portanto, como que uma ação declarativa de condenação, em que se visa apurar quem deve e aquilo que deve, sendo passível de ser desdobrada em duas fases: uma primeira, em que nos encontramos, em que se apura se existe a obrigação de prestar contas e uma segunda, verificada que seja essa obrigação, em que se calcula o saldo das mesmas.
O A. efetuou os correspondentes pedidos em conformidade.
Sucede que no caso o Tribunal não cometeu qualquer nulidade por omissão de atos que a lei prescreve, independentemente do regime de arguição e consequência a retirar, designadamente a violação da imposição de produção de prova (indicada pelas partes ou oficiosa), uma vez que o Tribunal apreciou a pretensão do A. face ao quadro fatual por si alegado e concluiu pela improcedência manifesta, ainda que se apurassem como verdadeiros todos os factos que alegava –cfr. artº. 595º, nº. 1, b), do C.P.C.. Outra coisa é se o estado dos autos –os factos alegados sem mais- permitiam essa conclusão. E caso se entenda que não permitiam, então sim os autos devem prosseguir para produção de prova.
E será esta a apreciação que nos compete agora fazer.
*
O Tribunal “a quo” considerou que no caso concreto, e face à posição expressa na petição inicial, não estamos perante um caso de obrigação legal de prestação de contas por parte da R., elencando seis ordens de razões que o A. nesta sede de recurso pretende contestar e afastar.

Começando pelo dispositivo que regula esta matéria, diz o artº. 941º do C.P.C. que “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.”
O direito de prestação de contas não se confunde com o direito mais amplo à informação previsto no artº. 573º do C.C.; havendo um direito –e ainda não vimos se o A. é titular de um direito que por esta via possa acautelar- o dever de prestação de contas pode ser uma das vertentes do dever de informação, mas este não se esgota naquele nem como ele se confunde, muito menos o direito de exigir contas pode ter por fonte a obrigação de informação. A obrigação de informação é uma obrigação de carácter geral donde decorre a obrigação de prestação de contas, mas que não dispensa nem substitui a necessidade de norma de direito substantivo que imponha essa obrigação, ou negócio jurídico que a imponha, ou ainda que decorra do princípio geral da boa fé (cfr. Vaz Serra, “Obrigação de prestação de contas e outras obrigações de informação”, BMJ nº. 79, pags. 149 a 150). Esta é a posição que advogamos.
Conforme Ac. da Rel do Porto de 7/11/2019 (www.dgsi.pt) “Deste preceito legal resulta que o direito de exigir a prestação de contas está directamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem, ou que não lhe pertencem por inteiro. Essa actividade de administrador de bens alheios é susceptível de gerar receitas, podendo também impor a realização de despesas. Do confronto das receitas e despesas decorrerá ou não o apuramento de um saldo que aquele será condenado a pagar. Este entendimento é pacífico na jurisprudência, como salienta o Ac. RL, de 15.12.94, C.J., Tomo V, pág. 139, citando vários acórdãos, entre eles o do STJ de 14.01.75, publicado no BMJ 243, no qual se afirmou que o que justifica o uso da acção com processo especial de prestação de contas “é a unilateralidade do dever de uma das partes prestar contas à outra, por imperativo da lei ou disposição do contrato, relativamente a bens ou interesses que lhe foram confiados”. O mesmo entendimento tem a doutrina, como se constata dos ensinamentos do Prof. Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. I, pág. 302 e segs., onde escreve: “Pode formular-se este princípio geral: quem administra bens alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses”. E, posteriormente, na R.LJ, ano 82º, pág. 413, escreveu: “a prestação de contas pressupõe que a pessoa a quem são pedidas as contas exerceu gerência ou administração de interesses da pessoa que as pede”.
Esta ação tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios (função inicial ou declarativa) e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se (função de prestação de contas) –cfr. Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, 1.ª edição, pag. 648.
Também se diz que este processo tem em vista ultrapassar as dificuldades de que padece o titular dos bens administrados em poder calcular o montante do saldo a que terá direito, visto que será quem administrou tais bens que terá a informação do ocorrido em tal gestão.
Afastada no caso a previsão em negócio jurídico celebrado (entre A. e R. como teria de ser), vejamos se radica em primeiro lugar em alguma norma substantiva.
Não existindo preceito legal genérico que determine quando é que a obrigação se impõe, existe um elenco vasto de casos previstos na lei, resultando sempre de casos de administração de bens alheios, pelo que temos de averiguar a fonte desta administração. E, quanto ao elenco, podem ver-se tais disposições em “Processos Especiais de Divisão de Coisa e Comum e Prestação de Contas” de Luís Filipe Pires de Sousa, 2017, pags. 120 e 121, pelo que nos dispensamos de aqui as mencionar, ficando pela análise das duas situações pertinentes face ao que o A. invoca: a obrigação do mandatário, findo o mandato ou quando o mandante as exigir (artº. 1161º, d) do C.C.); a obrigação do cabeça de casal (artº. 2093º, nº. 1, do C.C.).
De facto, na petição o autor deve dizer a razão por que pede contas ao réu, ou seja, a razão por que se julga no direito de exigir a prestação de contas e por que entende que sobre o réu impende a obrigação de prestar contas -Alberto dos Reis, “Processos Especiais”, vol. I, pag. 314- isto no caso a que se reportam os autos (prestação forçada), embora a ação também possa ser proposta por quem tem o dever de prestá-las (prestação espontânea).
Do ponto de vista da legitimidade substantiva, e tendo em conta a exigência de prestação de contas, teremos de conjugar essa norma com outra do direito substantivo que faculte o direito a um (A.) e imponha o encargo a outro (R.).
Desde já tentando delimitar o pedido do A., em causa está a alegada administração de contas co-tituladas e solidárias (R. e “de cujus”) no período anterior à morte de ambos, e no período que mediou entre a morte da primeira e do segundo a falecer, e ainda no período posterior à morte deste.
Pensamos que estes períodos têm de ser vistos separadamente, e as razões apontadas pelo Tribunal “a quo” analisadas consoante esta divisão temporal.
*
Relativamente ao período anterior ao falecimento de ambos, invoca então o A. a relação de mandato entre os falecidos e a R..
De acordo com o artº. 1157º do C.C., “Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra”.
O mandatário, de acordo com o artº. 1161º, d), do C.C., é obrigado a prestar contas findo o mandato ou quando o mandante as exigir.
Em primeiro lugar, em princípio o mandato caduca por morte do mandante –artº. 1174º, a), do C.C..
Portanto, à partida e sem que resulte outra alegação, apenas o mandante, em vida, podia exigir a prestação de contas.
Foi já decidido por esta Relação (Ac. de 23/4/2020, www.dgsi.pt) que esta obrigação do mandatário, de natureza patrimonial, constitui-se também perante os herdeiros do mandante (artº. 2024º do C.C.).
Esta posição não é contudo pacífica, como se pode ver no Ac. da Rel. de Lisboa de 4/6/2020 (www.dgsi.pt). Veja-se a alusão aí feita ao disposto no artº. 1175º do C.C..
Não anunciamos a adesão a uma ou outra, uma vez que, como veremos, é irrelevante no caso.
A questão primordial no caso concreto consiste em saber se a relação de mandato, tem base factual na petição inicial.
Com pertinência nessa matéria, o A. diz que “P. Nos últimos anos de vida, J. L. encontrava-se acamado devido ao seu estado de saúde débil e, por isso, estava impossibilitado de gerir e movimentar as contas das quais era cotitular; Q. M. P. também não movimentava as contas bancárias, nem sabia fazê-lo; R. Já depois da sua morte, as contas continuaram a ser movimentadas, pelo que nunca poderia ter sido esta a fazê-lo. S. Ora, é notório que quem geria e movimentava as contas bancárias, tendo em conta a situação precária de saúde e a idade avançada dos de cujus, era a Ré. T. Aliás, não poderia ser outra a finalidade da sua contitularidade, que não o encargo de movimentação bancária em forma de auxílio aos de cujus. U. Ao atuar dessa forma, a ré exercia funções de administradora de bens alheios, ou, pelo menos, de bens próprios e alheios. V. E, no exercício dessa mesma função, a ré, na qualidade de cotitular daquelas contas, realizou movimentos bancários relativos a saldos que não lhe pertenciam.”
Salvo o devido respeito, esta alegação não configura factualmente uma administração de bens alheios; como não decorre tal alegação da restante matéria elencada na petição inicial; como, por maioria de razão, não decorre qualquer relação de mandato, com ou sem representação (cfr. artºs. 1157º e 1178º e segs. do C.C.)., enquanto relação consensual – “Constituindo-se um vínculo de mandato sempre que uma pessoa promete a outra a sua colaboração jurídica, pondo à disposição dela a sua capacidade de agir no mundo do Direito, contratando com terceiros ou praticando outros actos jurídicos em face deles. Podendo o mandato ser conferido com representação ou sem representação, isto é, actuando o mandatário por conta e em nome de outrem, citando os poderes de representação ou, agindo o mandatário por conta de outrem, mas em nome próprio. Estabelecendo-se entre mandante e mandatário uma relação de gestão, ao abrigo da qual o mandatário coopera com o mandante, praticando actos jurídicos que este podia realizar directamente. A actividade do mandatário é sempre, portanto, substitutiva da do mandante. É uma actividade de cooperação, em que o mandatário age por conta e no lugar do mandante.” -Ac. do STJ de 12/01/2012 www.dgsi.pt, citando Galvão Telles, Bol. 83, p. 174. Ac. do STJ de 12/12/95 (Torres Paulo), Pº 087794; Henrique Mesquita, anotação ao ac. da RC de 25/11/97, RLJ Ano 131.º, p. 383; e Pessoa Jorge, O Mandato sem Representação, p. 164: “Actos jurídicos são, segundo a doutrina clássica, os actos da vontade do homem, que produzem efeitos de direito.”
Conforme se verificou na sentença em apreciação no Ac. da Rel. de Lisboa de 4/6/2020 –confirmada, também pelo motivo “supra” referido quando citamos este Ac.- também aqui o A. “presume” a relação de mandato, mas os factos que alega não suportam tal presunção, nomeadamente ficando por estabelecer a linha distintiva entre uma atuação (gestão) dos pais da R. por intermédio desta, e a incumbência feita por estes de ser a R. a proceder à administração das contas. A questão tem maior pertinência pelo facto de a R. ser co-titular das contas na proporção de 1/3 e as mesmas assumirem a forma de movimentação solidária, pelo que, mais do que apurar a titularidade dos valores em causa, o que nesta ação não compete, teria de ser concretamente alegado que a R., para além aos dos poderes que já eram inerentes à sua posição nas contas, agia em representação/mandatada pelos pais ao efetuar determinados movimentos. Como não situou o A. o momento temporal inicial dessa eventual incumbência, como bem anotou a decisão recorrida.
Relativamente ao período após a morte do primeiro elemento (o pai) em 9/5/2010, a função de cabeça de casal não pertencia legalmente à R. mas ao ex-conjuge (artº. 2080º, nº. 1, a) do C.C.), nem nada é dito no sentido de ter sido incumbida de administrar os bens do “de cujos”. Assim, a conclusão mantém-se.
Após a morte de ambos (a mãe faleceu em 31/7/2012), temos de considerar um sub período relativo à a situação da cabeça de casal de facto que se verifica desde a sua morte (por força da lei –artº. 2080º, em circunstâncias que estão aceites) e um outro que se inicia com a assunção do cargo no processo de inventário -6/6/2013. O encerramento da conta reporta-se a 8/4/2013.
Conforme se destaca no Ac. da Rel. do Porto de 7/11/2019 (www.dgsi.pt) “…a fonte primeira do cargo de cabeça-de-casal é a lei - cfr. artº 2080º do Código Civil (CC) -, pois o inventário judicial é apenas uma das formas que a lei prevê para a efectivação da partilha, que pode ser efectuada extrajudicialmente (cfr. artº 2102º do CC). Por conseguinte, a designação legal operada pelo artº 2080º do CC garante a determinação do cabeça-de-casal desde o momento em que se inicia a administração da herança. Tem sido este o entendimento predominante da doutrina (veja-se, neste sentido, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 3ª edição, vol. I, pág. 264 e vol. III, págs. 54/55; Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2ª edição, pág. 55; e Domingos Silva Carvalho de Sá, Do Inventário, Descrever, Avaliar e Partir, 3ª edição, pág. 47). Fala-se, nestes casos, de “cabeça-de-casal de facto” por contraposição ao “cabeça-de-casal investido”, ou seja, aquele que é nomeado no processo de inventário (Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume, III, pp. 55 a 57). Esta distinção não deriva da diversidade de fontes do cargo num e noutro caso. Com efeito, mesmo quando o cabeça-de-casal é nomeado por decisão judicial, no processo de inventário, a fonte pode ser a lei, se o juiz se limitar a fazer aplicação do disposto no art. 2080º do CC. Já nas hipóteses em que o cabeça-de-casal é designado pelo tribunal nos termos previstos no art. 2083º do CC, a fonte é a decisão judicial.
Em todo o caso, a referida distinção tem relevância justamente na acção para prestação de contas, pois tem sido entendimento da doutrina que a acção para prestação de contas do “cabeça-de-casal de facto” segue a tramitação geral plasmada no artº 941º e seguintes do CPC, enquanto que a acção para prestação de contas do “cabeça-de-casal investido” aplica-se o disposto no artº 947º do CPC, ou seja, está dependente do processo de inventário, no qual foi nomeado, o que significa que corre por apenso a este processo - cfr. artº 206º, nº 2, do CPC. A diferença entre uma e a outra reside apenas na apensação ou não ao processo de inventário e na determinação da competência territorial, pois a demais tramitação coincide. Mas, como se escreve no Ac da RL de 08/11/2007, Proc. nº 7652/2007-2, www.dgsi.pt), «esta regra de dependência da acção de prestação de contas do cabeça-de-casal em relação ao processo de inventário, não contende com a sua tramitação processual, nem, como se referiu, a lei prevê qualquer diferença específica nessa tramitação»”.
Desde já se adiante que entendemos que a partir do momento que existe inventário cremos que a ação de prestação de contas que incumbe ao cabeça de casal deve correr por apenso a este, abarcando os dois sub períodos, deixando de se aplicar a regra da ação autónoma e o disposto no artº. 80º do C.P.C. quanto à competência. Só assim não seria e teria de ser proposta ação autónoma antes se antes de proposto o inventário se entendesse propor a prestação de contas com base na administração de bens por parte do cabeça de casal de facto.
Os factos alegados com relevo para apreciação desta pretensão são: “GGG. Após a morte da Ex.ª Sr.ª M. P., a conta bancária n.º ...... continuou a ser movimentada, possuindo na data de 10-08-2012 um saldo de 947,45€ e, à data de encerramento, a saber, 08-04-2013, um saldo de 0,00€. HHH. Nesse período a ré já exercia funções de cabeça-de-casal de facto, uma vez que, tal como apregoado pela doutrina, “o cabeça-de-casal tem existência jurídica desde a morte do autor da herança, independentemente de haver ou não lugar a inventário, sem necessidade de um ato jurídico da aceitação do cabecelato.”. III. Pelo que, não só movimentou as contas bancárias como administradora de bens alheios em vida dos de cujus, mas também já na qualidade de cabeça-de-casal, após a morte da Ex.ª Sr.ª M. P..”
Dúvidas não há que o cabeça de casal tem a obrigação de prestar contas relativamente ao período do cabeçalato –artºs. 2079º e 2093º, nº. 1, do C.C. e 947º do C.P.C.. E o herdeiro pode pedi-las.
Ora, mais uma vez omitem-se factos donde resulte que a R., ao movimentar a conta, atuou no âmbito dos poderes de administração de bens da herança, que geriu a conta nesse contexto, de modo a que se tenha de averiguar se há receitas ou despesas.
Haveria que dizer, em primeiro lugar, que exerceu atos de administração da herança no âmbito da função de “cabeça de casal de facto”, nomeadamente no que concerne ao ato de encerramento da conta. Depois, haveria que alegar que a R., para além dos poderes que lhe assistem por força da sua posição na conta, agiu em concreto no âmbito dos poderes/deveres de administradora da herança por força do cargo de cabeça de casal.
Basicamente o que se alega é que o saldo “desapareceu” da conta, o que é diferente de se dizer, como se impunha, que o mesmo foi gerido pelo cabeça de casal no âmbito do seu dever de administração da herança e por isso que deve “dar contas” (deve/haver). Não é alegada uma atividade de gestão de proventos e frutos, nomeadamente a realização de pagamentos
Para além disso, para que se pudesse falar da prestação de contas relativa à administração da herança, teria de estar em causa o património (ativo e passivo na sua globalidade) da herança, tendo por referência os bens relacionados. Ora, para além de outras questões/óbices que não podemos aqui apreciar uma vez que não foi junta aos autos certidão de qualquer peça do inventário (mas que também não se mostra necessário face á verificação daquela outra argumentação), o que aqui está em causa face ao que se invoca é tão só a “gestão” da conta e não do património.
A prestação de contas no inventário reporta-se a atos de administração da herança, para o que poderia ser movimentada conta bancária, utilizado saldo, e nessa medida havia que dar “satisfação” dos atos realizados.
Ou seja, essa atividade de administrador de bens alheios é suscetível de gerar receitas, podendo também impor a realização de despesas. Do confronto das receitas e despesas decorrerá ou não o apuramento de um saldo que aquele será condenado a pagar.
Aqui apenas temos alegada a existência de um saldo e o saldo zero antes da nomeação em inventário da R. como cabeça de casal. Portanto, nem resulta a administração efetiva da R. enquanto cabeça de casal de facto, nem qualquer atividade após o deferimento judicial do cargo.
Ou seja, estão em causa bens objeto da devida inclusão na relação de bens, não se reportando a qualquer atividade de gestão de proventos ou frutos a cargo da R. enquanto cabeça de casal, tal como se concluiu também no Ac. desta Relação citado pelo recorrente, de 18/01/2018.
Esta situação também vale para afastar desde logo a possibilidade legal, a averiguar no caso concreto, de aproveitamento dos autos, com remessa para apensação ao inventário (que assim fica prejudicada) –cfr. artºs. 104º, nº. 1, c), 195º, nº. 3, e 576º, nº. 2, todos do C.P.C., cuja aplicação não estaria afastada.
A ausência destes factos não pode ser colmatada através da figura ao convite ao aperfeiçoamento da p.i. –artº. 590º, nº. 4, do C.P.C..
Não estamos perante uma mera insuficiência ou imprecisão de alegação; trata-se antes da ausência de uma situação que constitua aquela parte da respetiva causa de pedir (-sendo a mesma complexa e sendo o mais relativo aos pressupostos da existência do direito decorrentes do artº. 573º do C.C.: que o titular de um direito tenha fundada dúvida acerca da sua existência ou do seu conteúdo; que outrem esteja em condições de poder prestar as informações necessárias). De facto, cabe a quem se arroga o direto de ser informado o ónus da alegação e prova dos factos –todos- que conduzem à aplicação da norma jurídica que serve de fundamento à sua pretensão – artº. 342º, nº. 1, do C.C..
No caso trata-se da falta de factos essenciais relativos à (integralidade da) causa de pedir (artº. 5º, nº. 1) cuja falta não pode ser colmatada pelo Tribunal.
Apenas será de acrescentar, face ao teor das alegações de recurso, que não se trata no caso de erro na forma de processo (cfr. artº. 193º do C.P.C.). O tipo de processo a utilizar tem de ser aferido face ao pedido formulado e no caso verifica-se a exigida conformidade (-a ação de prestação de contas corresponde ou adequa-se aos pedidos feitos); a compatibilidade entre o pedido formulado e os fundamentos alegados, ou a sua falta, determina a procedência, ou improcedência da ação.
Não se mostra necessária a análise de mais argumentação que assim fica prejudicada (designadamente a sexta razão apontada pelo Tribunal recorrido).
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Por tudo o exposto, esteve bem o Tribunal recorrido ao julgar manifestamente improcedente a ação, devendo por isso ser confirmada a decisão proferida.
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VI DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso totalmente improcedente e, em consequência, negar provimento à apelação, e confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente –artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C..
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Guimarães, 23 de setembro de 2021.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)