Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
134/18.5JAVRL-N.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: AGENTE ENCOBERTO
INQUIRIÇÃO COMO TESTEMUNHA EM JULGAMENTO
VIDEOCONFERÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – No caso de o tribunal determinar, por indispensabilidade da prova, a comparência em audiência de julgamento do agente encoberto, nos termos do disposto no Artº 4º, nº 4, da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, observará sempre o disposto na segunda parte do nº 1 do artigo 87º do Código de Processo Penal, sendo igualmente aplicável o disposto na Lei nº 93/99, de 14 de Julho.
II – Nessas circunstâncias, ao determinar que os agentes encobertos deponham presencialmente na audiência de discussão e julgamento, mesmo com exclusão da publicidade, nos termos do disposto no Artº 87º, nº 1, 2ª parte, do C.P.Penal, o tribunal deve ponderar devidamente o elevado risco de exposição e de retaliação a que os mesmos ficarão sujeitos, nomeadamente por banda dos próprios arguidos e de terceiros, pelo que, nesse enquadramento, deverão depor com recurso à videoconferência, com distorção de voz e imagem, nos termos do disposto nos Artºs. 4º e 5º, da Lei nº 93/99, de 14 de Julho, e com estrita observância do que a propósito se prescreve nos Artºs. 7º e sgts. do mesmo diploma legal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães
           
I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum Colectivo nº 134/18.5JAVRL, a correr seus termos pelo Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em que são arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN e OO, estando arrolados como testemunhas os agentes encobertos com os nomes fictícios ou de código “PP”, “QQ”, “RR” e “SS”, quer o Sr. Director da Unidade de Prevenção e Apoio Tecnológico da Polícia Judiciária (UPAT), quer o Ministério Público, requereram que os mesmos fossem ouvidos na audiência de discussão e julgamento com recurso à videoconferência, com distorção de voz e imagem, nos termos do disposto no Artº 4º, nº 4, da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto.
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2. Porém, tal requerimento foi indeferido pelo despacho de 03/11/2022 da Mmª Juíza Presidente do Tribunal Colectivo, cuja cópia consta de fls. 17 / 19 Vº, nos seguintes termos (transcrição [1]):
Dos pedidos de audição dos agentes encobertos por teleconferência com a cara tapada e a voz descoberta
Por requerimento com a refª ...57 veio o Sr. Director da Unidade de Prevenção e Apoio tecnológico da Polícia Judiciária (UPAT) requerer ao Tribunal que os agentes encobertos com os nomes fictícios PP, QQ, RR e SS fossem ouvidos em audiência de julgamento, com recurso à videoconferência com distorção de voz e imagem, informando que existe naquela Polícia sala com meios técnicos para esse efeito.
Para sustentar o seu pedido alega o seguinte:
No âmbito da sua actividade (os agentes encobertos) intervêm em várias situações de elevado grau de complexidade e perigosidade, relativa à sua segurança e intervêm no seio de organizações criminosas.
Deste modo, a presença física na audiência de julgamento representa um risco acrescido pois a audiência sendo pública não se restringe apenas aos arguidos em inquérito, mas a qualquer indivíduo, que deste modo fica a conhecer sem margem para dúvidas os responsáveis pela investigação (...)”
Notificado o requerimento da PJ aos demais sujeitos processuais, veio o arguido AA (refª ...54) opor-se ao requerido uma vez que não são alegados quaisquer factos concretos que justifiquem a inquirição das testemunhas naquelas condições mas meras generalidades, não estando cumpridos os pressupostos previstos nos artigos 4º e 5º da Lei nº 93/99 de 14 de Julho.
Também o arguido EE, em requerimento com a refª ...09, veio opor-se ao requerido com os mesmos fundamentos, invocado igualmente uma ilegitimidade da PJ para requer a inquirição dessa forma (cfr. artigo 6º da citada Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal).
Por sua vez, em 17/10/2022 o Tribunal proferiu o seguinte despacho:
Uma vez que a sessão da audiência de julgamento na qual se irá proceder à inquirição dos agentes encobertos irá decorrer com exclusão da publicidade, o que o Tribunal irá determinar face ao que dispõe o artigo 4º nº 4 da Lei nº 101/2001 de 25 de Agosto e 87º nº 1, segunda parte, do Código de Processo Penal, convido as referidas testemunhas a, no prazo de 3 dias, especificarem em requerimento autónomo e por si subscrito, as concretas razões pelas quais pretendem ser inquiridas por videoconferência, com a cara tapada e a voz distorcida”.
Ao despacho em causa, respondeu o Sr. Director da UPAT, em 19/10/2022 (refª ...97) dizendo que “as razões que fundamentam a audição dos agentes encobertos com distorção de voz e imagem respeitam ou visam garantir a integridade física e segurança dos agentes encobertos, bem como dos elementos integrantes do respectivo agregado familiar” e refere ainda “relativamente ao convite do Tribunal, para que sejam os próprios agentes encobertos em requerimento autónomo a explanarem a sua motivação, cumpre acrescentar que conforme decorre da Lei nº 37/2008 de 6 de Agosto, a policia judiciária, abreviadamente designada por PJ, corpo superior de policia criminal organizado hierarquicamente (negrito do subscritor) na dependência do Ministério da Justiça e fiscalizado nos termos da lei, é um serviço central da administração....”
Cumpre apenas esclarecer, para que se perceba o teor da referência no ofício da PJ, que a citada Lei foi revogada pelo Decreto-Lei nº 137/2019, de 13 de Setembro mas no artigo 1º estabelecia “A Polícia Judiciária, abreviadamente designada por PJ, corpo superior de polícia criminal organizado hierarquicamente na dependência do Ministro da Justiça e fiscalizado nos termos da lei, é um serviço central da administração directa do Estado, dotado de autonomia administrativa”.
Por requerimento com a refª ...44 veio novamente o arguido EE reiterar a existência de ilegitimidade da PJ bem como a ausência de qualquer justificação concreta para a audição doa agentes encobertos nas condições solicitadas.
Por sua vez, veio o Magistrado do Ministério Público em 24/10/2022 exarar nos autos a promoção com o seguinte teor: “P. que as testemunhas (agentes encobertos: PP, QQ, RR e SS) indicadas no Despachos de Acusação/Pronúncia sejam inquiridas, através de teleconferência com a distorção de voz e imagem, de molde a salvaguardar a integridade física dos agentes encobertos assim como dos respectivos familiares, aliás, como já havia sido requerido pelo Exo. Director da UPAT., artigo 4º, da Lei nº 101/2011, de 25 de agosto”.
E mais uma vez, por requerimento com a refª ...33 veio o arguido EE invocar a falta, na promoção do MP, de invocação de circunstâncias concretas que justifiquem a citada medida e em igual sentido se pronunciou o arguido FF nos seus requerimentos com a refª ...31 e ...44.
Também o arguido AA renovou os seus fundamentos de oposição face à promoção do MP (refª ...43).
Cumpre apreciar.
No nº 4 do artigo 4º da Lei  101/2001, artigo este sob a epígrafe “Protecção de funcionários e terceiro” preceitua-se: “No caso de o juiz determinar, por indispensabilidade da prova, a comparência em audiência de julgamento do agente encoberto, observará sempre o disposto na segunda parte do nº 1 do artigo 87º do Código de Processo Penal, sendo igualmente aplicável o disposto na Lei 93/99, de 14 de Julho.”.
Ora, remetendo, como remete, aquele nº 4 em bloco para aquela Lei nº 93/99, ou seja, para toda a disciplina desse diploma, está vedado ao intérprete distinguir onde o legislador não o fez (Ubi lex non distinguit nec nos distinguire debemus).
Ora a Lei nº 93/99 de 14 de Julho - Lei de Protecção de Testemunhas em Processo Penal - e os pressupostos aí previstos nos seus artigos 4º a 6º é portanto aplicável ex vi o referido artigo 4º nº 4 da lei nº 101/2001 de 25/08 e sempre o seria sem a mencionada remissão legal, ex vi do disposto no artigo 139º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e, ainda, porque a figura do agente encoberto se deve considerar como estando compreendida no conceito de testemunha adoptado na alínea a) do artigo 2º da citada Lei 93/93, de 14 de Julho, conceito de testemunha esse que é muito mais abrangente do que o utilizado pelo Código de Processo Penal.
Assim sendo, e tendo sido requerida a inquirição dos agentes encobertos pelo Magistrado do MP em sede de acusação, a requerida audição com ocultação da imagem e distorção da voz e bem assim por teleconferência só se justificaria se se verificassem os seguintes pressupostos previstos:
i. no - artigo 4º nº 2 (com base em factos ou circunstâncias que revelem intimidação ou elevado risco de intimidação da testemunha, o que poderá ser decidido oficiosamente, a requerimento do MP, do arguido, do assistente ou da testemunha)
ii. no nº 1 do artigo 5º (ponderosas razões de protecção da testemunha) e o nº 2 do artigo 6º da mencionada Lei 93/99 (indicação pelo requerente MP, arguido ou testemunha - das circunstâncias concretas que justifiquem o recurso à teleconferência e, se for caso disso, à distorção da imagem e do som) Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/09/2004, Proc. nº 6063/2004-5, disponível em www.dgsi.pt que aqui seguimos de perto.
Tais requisitos parecem-nos perfeitamente aceitáveis considerando o primado que a lei processual confere à imediação e concentração e não se pode prescindir dos mesmos na inquirição dos agentes encobertos, uma vez que a Lei nº 101/2001 remeteu em bloco para lei de protecção das testemunhas, não se limitando a referir que, automaticamente, os depoimentos dos agentes encobertos se fariam por teleconferência, com cara tapada e voz distorcida, atenta a simples qualidade de agente encoberto. A lei determinou a aplicação imediata da exclusão da publicidade prevista na segunda parte do nº 1 do artigo 87º do Código de Processo Penal mas não presumiu que por força dessa qualidade de agente encoberto, a testemunha em causa estaria em perigo de vida ou perigo para a sua integridade física.
Ora, no que concerne ao primeiro dos preditos requisitos (factos ou circunstâncias que revelem intimidação ou elevado risco de intimidação da testemunha - que são as constantes do artº 4º da referida Lei 93/99 -), nada há nos autos que permita configurar algo donde se possa concluir que, por causa  do contributo do agente encoberto para a prova dos factos que constituem objecto do processo, fica o mesmo em perigo a vida, ou a integridade física ou psíquica, ou a liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado, do requerente ou de seus familiares ou de quaisquer pessoas que lhe sejam próximas.
No que respeita ao segundo dos referidos requisitos, há a anotar que não foram, nem no requerimento da PJ ou do MP, indicadas circunstâncias concretas que justifiquem o recurso à teleconferência, mas, apenas meras referências genéricas às expressões contidas na lei, como se a inquirição destas testemunhas da mencionada forma, fosse a regra e não a excepção.
Ademais a PJ, não sendo um sujeito processual, não tem legitimidade para fazer o referido requerimento nos termos do disposto nos citados artigos 4º e 5º da nº Lei 93/99 de 14 de Julho, mas ainda que se lhe conferisse essa legitimidade ao abrigo do artigo 4º nº 3 da Lei nº 101/2001 de 25 de 08, em representação das testemunhas em causa (que se desconhece se são agentes da PJ ou meros particulares), aquela entidade recusou-se a dar cumprimento ao nosso despacho e invocar factos concretos a fim de fundamentar a inquirição nas circunstâncias requeridas, alegando ser “um corpo superior (...) organizado hierarquicamente na dependência do Ministério da Justiça e com autonomia administrativa....”
Já o Ministério Público, limita-se a alegar genericamente que a inquirição através de teleconferência com a distorção de voz e imagem, é de molde a salvaguardar a integridade física dos agentes encobertos assim como dos respectivos familiares (...), reproduzindo a expressão legal sem concretizar qualquer facto concreto capaz de a preencher.
Assim sendo e concluindo pela ausência dos preditos requisitos exigidos pela Lei nº 93/99 de 14 de Julho, indefere-se a inquirição das testemunhas PP, QQ, RR e SS com recurso à teleconferência, com distorção de voz e ocultação de imagem.
Devem estas testemunhas serem convocadas na sede da PJ a fim de aquela entidade as faça comparecer cem audiência no próximo dia 14 de Novembro pelas 09h30m, sendo certo que a audiência decorrerá com exclusão da publicidade como, aliás, já foi referido em anterior despacho e decorre do disposto nos artigos 87º nº 1 segunda parte do Código de Processo Penal e artigo 4º nº 4 da lei nº 101/2001 de 25 de Agosto, estando apenas presentes na sala, os arguidos (note-se que a grande maioria deles estão, até, dispensados de comparecer ao abrigo do artigo 334º nºs 2 e 4 do Código de Processo Penal), a senhora funcionária judicial, os advogados, o Magistrado do MP e o Colectivo de juízes.
(...)”.
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3. Inconformado com essa decisão judicial, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos da peça processual cuja cópia se mostra junta a fls. 22 / 32 Vº), cuja motivação os Dignos Procuradores da República subscritores rematam com as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
           
A) “O presente recurso vem interposto do douto Despacho proferido no dia 03-11-2022 (referência citius ...55), com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo da decisão [artigos 407.º, n.º1 e 408.º, n.º3, do Código de Processo Penal (doravante, apenas C.P.P.) e 3º da Lei nº 3/99, de 14 de julho];
B) Através do presente recurso, vem o Ministério Público requerer a revogação do douto despacho, proferido em 03-11-2022, que determinou a inquirição em presença, em audiência, das testemunhas “PP”, “QQ”, “RR” e “SS”, agentes encobertos, e que indeferiu a sua inquirição através de teleconferência, com distorção de voz e ocultação de imagem;
C) Na verdade, só assim se evita que ao proferir-se a decisão no Tribunal de recurso esta seja inútil por se haver já verificado a exequibilidade do decidido em primeira instância;
ACRESCE QUE, AINDA A TÍTULO DE QUESTÃO PRÉVIA,
D) Os arguidos AA, OO, CC, GG e FF encontram-se em prisão preventiva;
E) Encontram-se privados da liberdade, mas em regime de Obrigação de Permanência na Habitação, os arguidos DD, EE e II;
F) Os marcos temporais relevantes para efeitos de duração máxima destas medidas de coação são as datas dos interrogatórios judiciais dos arguidos detidos, nos dias 14 e 15 de outubro de 2020;
G) Por reporte à declarada excecional complexidade dos autos [despacho judicial proferido a 09-04-2021, referência citius ...86], o prazo máximo de duração das medidas de coação de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação, sem que tenha havido condenação em primeira instância eleva-se para 2 (dois) anos e 6 (seis) meses – artigos 215.º, n.º1, alí. c), n.º3, n.º8, e 218.º, n.º3, ambos do C.P.P., prazo este que será atingido nos dias 14 e 15 de abril de 2023;
H) Decidiu o Tribunal a quo, relativamente à inquirição dos agentes encobertos, que:
“Assim sendo e concluindo pela ausência dos preditos requisitos exigidos pela Lei nº 93/99 de 14 de Julho, indefere-se a inquirição das testemunhas PP, QQ, RR e SS com recurso à teleconferência, com distorção de voz e ocultação de imagem.
Devem estas testemunhas serem convocadas na sede da PJ a fim de aquela entidade as faça comparecer em audiência no próximo dia 14 de Novembro pelas 09h30m, sendo certo que a audiência decorrerá com exclusão da publicidade como, aliás, já foi referido em anterior despacho e decorre do disposto nos artigos 87º nº 1 segunda parte do Código de Processo Penal e artigo 4º nº 4 da lei nº 101/2001 de 25 de Agosto, estando apenas presentes na sala, os arguidos (note-se que a grande maioria deles estão, até, dispensados de comparecer ao abrigo do artigo 334º nºs 2 e 4 do Código de Processo Penal), a senhora funcionária judicial, os advogados, o Magistrado do MP e o Colectivo de juízes.“;
I) Como preceitua o art.º 1º, nº 2 da Lei nº 101/2001, de 25-08 (Ações Encobertas) consideram-se acções encobertas aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Polícia Judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua qualidade e identidade;
J) Nos autos, e como é referido no despacho recorrido, o Ministério Público indicou como testemunhas da acusação quatro indivíduos, identificados como “PP”, “QQ”, “RR” e “SS”, todas a serem notificadas no Departamento de Investigação Criminal de ... da Polícia Judiciária;
K) Notificados para comparecerem a julgamento, veio o Sr. Director da Unidade de Prevenção e Apoio Tecnológico da Polícia Judiciária (doravante, apenas U.P.A.T.) requerer ao Tribunal que essas testemunhas, agentes encobertos, fossem ouvidos em audiência de julgamento, com recurso à videoconferência, com distorção de voz e imagem;
L) Alegou neste requerimento e no requerimento que se lhe seguiu as seguintes razões:
i. no âmbito da sua atividade intervêm em várias situações de elevado grau de complexidade e perigosidade, relativas à sua segurança, e intervêm no seio das organizações criminosas;
ii. a presença física em audiência de julgamento representa um risco acrescido, pois a audiência, sendo pública, não se restringe apenas aos arguidos do inquérito, mas a qualquer indivíduo, que deste modo fica a conhecer, sem margem para dúvidas, os responsáveis pela investigação;
iii. garantir a integridade física e segurança dos agentes encobertos, bem como dos elementos integrantes do respetivo agregado familiar;
M) No despacho recorrido, o Tribunal Coletivo concluiu pela falta de legitimidade do requerente – Diretor da U.P.A.T. - para requerer a audição dos agentes encobertos nos termos pretendidos;
N) Nos termos do Decreto-Lei nº 137/2019, de 13-09, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 79/2021, de 24-11 (Nova Estrutura Organizacional da Polícia Judiciária) preceitua-se que (i) (art.º 17.º, n.º 1): a organização interna dos serviços da PJ obedece ao modelo de estrutura hierarquizada, podendo integrar unidades orgânicas flexíveis; (ii) (art.º 18.º, n.º4, alí. a) i.) a Unidade de Prevenção e Apoio Tecnológico (U.P.A.T.) é uma das unidades centrais da Polícia Judiciária; (iii) (art.º 35.º, n.º 1) compete à U.P.A.T., a nível nacional d) Desenvolver os procedimentos necessários e urgentes a assegurar o estatuto e a aplicação das medidas e programas previstos na Lei n.º 93/99, de 14 de julho, na sua redação atual e e) Desenvolver ações de controlo e proteção de agentes que atuem no âmbito da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, na sua redação atual; (iv) (Anexos I e II e art.os 49.º e 50.º) o Diretor da U.P.A.T. é um cargo de direção, de 1.º grau, competindo-lhe, além do mais, (Anexo II, n.º1, alí. i)) Autorizar o pessoal a comparecer em juízo quando requisitado ou notificado nos termos da lei do processo;
O) Sendo a Polícia Judiciária um órgão de estrutura hierarquizada e sendo o requerente o representante máximo do serviço desenvolve as ações de controlo e proteção de agentes que atuem no âmbito da Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto, pelo que o requerimento apresentado se integra nas competências que lhe estão conferidas por lei e foi apresentando por quem tem legitimidade;
P) Desde logo, o Tribunal recorrido labora em erro quando refere, “(…) que se desconhece se são agentes da PJ ou meros particulares (…)”; pois o Exmo. Diretor da U.P.A.T., ab initio, referiu o seguinte: “(…) Assim, tendo por atendível e imperiosa preocupação a segurança e integridade física dos funcionários (…)” dando a conhecer ao Tribunal que os referidos agentes encobertos se tratam de funcionários e não de quaisquer terceiros; e no âmbito da sua atividade intervêm em várias situações de elevado grau de complexidade e perigosidade, relativa à sua segurança, e intervêm no seio das organizações criminosas. (…)”;
Q) Enquanto o terceiro terá uma intervenção pontual, no caso dos funcionários, estes intervêm, porquanto para isso exercem funções, de forma permanente e em várias investigações;
R) O já referido artº 4º da Lei nº 101/2001, de 25-08 (Ações Encobertas), regulamenta sobre a Proteção de funcionário e terceiro, no nº 4, que “(…) No caso de o juiz determinar, por indispensabilidade da prova, a comparência em audiência de julgamento do agente encoberto, observará sempre o disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 87.º do Código de Processo Penal, sendo igualmente aplicável o disposto na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho. (…)” (sublinhado nosso)
S) A letra da lei aponta no sentido da aplicabilidade automática do disposto no art.º 87º, nº 1 do C.P.P. e, bem assim, do disposto na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, visto que, aí se afirma categoricamente, “(…) sendo igualmente aplicável.”;
T) Assim não se entendendo, a expressa remissão para esta Lei seria absolutamente inútil, posto que, mesmo sem a remissão, a Lei n.º 93/99 sempre seria aplicável, pois que ela tem por objeto regular “a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo” e, portanto, sempre seria aplicável mesmo sem aquela remissão;
U) Vale tudo por afirmar que, salvo melhor entendimento, parece-nos que o legislador pretendeu, assim, que este regime se aplique, sempre e sem necessidade de ponderação de outras variantes quando se trate da audição de agentes encobertos;
V) Como, de resto, se nos afigura decorrer das Atas da Proposta de Lei nº 79/VIII, que antecedeu a Lei nº 101/2001, de 25-08 (Ações Encobertas) (Diário da Assembleia da República de 22 de junho de 2001, I Série – Número 99, págs.17 e 22), aí foi expressamente referido pelo Sr. Ministro da Justiça, na discussão do diploma, que “a segurança dos agentes é outro domínio sensível, quer por actuarem junto dos criminosos, quer por estarem sujeitos a eventuais represálias. Assim, desde logo, ninguém pode ser obrigado a participar numa actuação encoberta. Alem disso, prevêem-se regras de proteção do agente no que toca aos meios pelos quais a prova assim produzida é apresentada no processo e um regime de identidade fictícia.” “quanto à questão do risco, é um risco extraordinário. Aliás, há dias veio relatado num jornal uma ação que decorreu fora do território nacional, que envolveu a intervenção da Marinha e em circunstâncias em que os agentes estavam em situação de altíssimo risco. Não é, portanto, um risco comum. Podem ser circunstâncias de risco anormal que, em meu entender, justificam que não se possa impor ao agente que se submeta a esse risco.”;
W) E da Exposição de Motivos da Lei, consta da mesma o seguinte: “A introdução deste regime deve, no entanto, ser feita com os cuidados adequados, quer para preservar as garantias de defesa em processo criminal quer para salvaguardar a segurança dos agentes envolvidos na investigação. A primeira das preocupações traduz-se, desde logo, no princípio geral de que estas actuações estão sujeitas aos princípios da necessidade e proporcionalidade face à investigação a desenvolver. No mesmo sentido se estabelece uma supervisão jurisdicional destas actuações, que se traduz quer na necessidade de autorização prévia de magistrado quer no controlo jurisdicional a posteriori dessa mesma actuação e da prova obtida. A segurança dos agentes é outro domínio sensível, quer por actuarem junto dos criminosos quer por estarem sujeitos a eventuais represálias. Assim, desde logo, ninguém pode ser obrigado a participar numa actuação encoberta. Além disso, prevêem-se regras de protecção do agente no que toca aos meios pelos quais a prova assim produzida é apresentada no processo e um regime de identidade fictícia.(…)”;
X) Decorre expressamente da intenção do legislador que estas medidas de proteção assumem uma dupla dimensão:
- na proteção do agente encoberto (sem identidade fictícia);
- na proteção do agente encoberto com identidade fictícia [que assume um regime diferente, como se alcança do art.º 4º, nº 3 da Lei nº 101/2001, de 25-08 (Ações Encobertas)].
Y) Concluímos que a remissão para o regime da Lei nº 93/99, de 14-07, é automática, não carecendo de qualquer juízo de ponderação sobre factos que justifiquem a adoção das medidas de proteção destas concretas testemunhas;
Z) Se assim não fosse, a remissão que é feita na Lei nº 101/2001, de 25-08 (Ações Encobertas)] para o regime da Lei nº 93/99, de 14-07 (Lei de Proteção de Testemunhas), não teria qualquer aplicação;
AA) Ainda que se admita que a aplicação do regime de proteção de testemunhas depende da verificação dos requisitos aí previstos nas diversas formas de proteção, os factos que foram alegados justificam a adoção de tais medidas de proteção;
BB) Foi requerida a audição dos agentes encobertos por teleconferência, com distorção de voz e imagem, nos termos do art.º 5º da Lei nº 93/99, de 14-07;
CC) Não se descortina a razão pela qual o Tribunal considerou, também, a necessidade de verificação dos requisitos contidos no art.º 4.º desta Lei, porquanto o que está em causa é a prestação de depoimento por teleconferência e não ocultação em audiência, a que se destina o preceituado no artigo 4º;
DD) Aliás, a epígrafe do Capítulo II desta Lei é, em termos sistémicos, clara no que respeita a “Ocultação” – em audiência (art.º 4.º) - e “Teleconferência” (artº 5º);
EE) São os seguintes os fundamentos que justificam a adoção de medidas de proteção dos agentes encobertos:
i. no âmbito da sua atividade intervêm em várias situações de elevado grau de complexidade e perigosidade, relativas à sua segurança, e intervêm no seio das organizações criminosas;
ii. a presença física em audiência de julgamento representa um risco acrescido pois a audiência sendo pública não se restringe apenas aos arguidos do inquérito, mas a qualquer indivíduo, que deste modo fica a conhecer, sem margem para dúvidas, os responsáveis pela investigação;
iii. garantir a integridade física e segurança dos agentes encobertos, bem como dos elementos integrantes do respetivo agregado familiar;
FF) Atendendo ao meio em que o agente encoberto desenvolve as diligências probatórias, e à necessidade da sua manutenção em futuras ações encobertas, como de resto é invocado pela Polícia Judiciária, tal é por si só demonstrativo que corre, sem mais, um perigo concreto contra a sua vida, a sua integridade física e psíquica, e a sua liberdade e, eventualmente, dos seus familiares ou pessoas próximas;
GG) Aliás, como supra já se escreveu, esse risco é amplamente assumido pelo próprio legislador;
HH) O que o Tribunal deve atender como razões ponderosas, no caso de agentes encobertos funcionários, como é o caso dos autos, é justamente o elevado risco de exposição e de retaliação dos próprios arguidos ou terceiros e o condicionamento para ulteriores ações encobertas;
II) Tais circunstâncias foram alegadas nos requerimentos e são por si suficientes para fundamentar o deferimento do requerido. Aliás, qualquer maior pormenorização dos riscos seria contraproducente para a segurança dos agentes, na medida em que os exporia às circunstâncias que fragilizariam a sua segurança, dando-as a conhecer aos arguidos;
JJ) Este tem sido o procedimento normal nos nossos tribunais, como se alcança, entre outros, no decidido pelo nosso Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão datado de 11-12-2014 (disponível para consulta in www.dgsi.pt);
KK) Violou o douto Despacho recorrido o disposto nos artigos 1º, nº 2, 4º, n.os 3 e 4, da Lei nº 101/2001, de 25-08 (Ações Encobertas) ; 5º e 6º, da Lei nº 93/99, de 14-07 (Lei de Proteção de Testemunhas); 17º, nº 1, 18º, nº 4, alí. a) i.), 35º, nº 1, alís. d) e e), 49º, 50º e Anexos I e II do Decreto-Lei nº 137/2019, de 13-09, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 79/2021, de 24-11 (Nova Estrutura Organizacional da Polícia Judiciária).

Nestes termos, deverá proceder o presente recurso, em todas as suas vertentes de argumentação, revogando-se o douto Despacho recorrido, por ilegal, substituindo-o por outro que defira a inquirição dos agentes encobertos, nos termos do disposto no art.º 5.º da Lei n.º 93/99, de 14-07, por teleconferência e com distorção de voz e imagem, o que se requer.

Farão, contudo, Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, reiterada
JUSTIÇA.”.
*
4. Cumprido o disposto no Artº 411º, nº 6, do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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5. Subidos os autos a este tribunal da Relação, no momento processual a que alude o Artº 416º, nº 1, do C.P.Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto.
*
6. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal  [2].
Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão que importa dilucidar é a de saber se se verificam, ou não, os requisitos legais para a inquirição com recurso à videoconferência, com distorção de voz e imagem, dos agentes encobertos com os nomes fictícios ou de código “PP”, “QQ”, “RR” e “SS”, testemunhas arroladas pelo Ministério Público.
Vejamos, pois.
 Como emana dos autos, constata-se que, na sequência da acusação pública oportunamente deduzida pelo Ministério Público, e bem assim do despacho de pronúncia proferido pela Mmª JIC, neles se imputa:
a) Aos arguidos AA, BB, OO, CC, FF, GG, DD e EE, a prática, como co-autores, de um crime de tráfico e mediação de armas, p. e p. pelo Artº 87°, n° 1, da Lei n° 5/ž006, de 23 de Fevereiro, acrescendo em relação ao arguido AA a previsão da alínea c) do seu n° 2;
b) Aos arguidos AA, BB, OO, JJ e GG, a prática, como co-autores, em concurso efetivo à exceção de JJ, com o crime imediatamente antes imputado, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo Artº 21º, n° 1, do Dec.-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas l-A e I-C anexas a este diploma legal;
c) Ao arguido II a prática, em concurso efetivo, de um crime de tráfico e mediação de armas, p. e p. pelo Artº 87º, n°s. 1 e 2, al. a), da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, e de um crime de corrupção passiva, p. e p. pelo Artº 373º, n° 1, do Código Penal;
d) Ao arguido HH a prática de um crime de tráfico e mediação de armas, p. e p. pelo Artº 87º, nº 1, da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro;
e) À arguida TT a prática de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo Artº 21º, n° 1, do Dec.-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-A anexa a este diploma legal;
f) Ao arguido KK a prática, em concurso efetivo, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo Artº 21º, n° 1, do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C anexa a este diploma legal, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo Artº 86º, n° 1, al. c), da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro;
g) Ao arguido LL a prática, como autor material, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo Artº 21º, n° 1, do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C anexa a este diploma legal; e
h) Ao arguido MM a prática de um crime de tráfico e mediação de armas, p. e p. pelo Artº 87°, n° 1, da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Mais se constata que, no rol de testemunhas organizado pela acusação (para a qual remete o aludido despacho de pronúncia), foram indicados os agentes encobertos com os nomes fictícios ou de código “PP”, “QQ”, “RR” e “SS”, a serem notificados no Departamento de Investigação Criminal de ... da Polícia Judiciária.
E que, tendo o Sr. Director da Unidade de Prevenção e Apoio Tecnológico da Polícia Judiciária (UPAT), secundado pelo Ministério Público, requerido que tais testemunhas fossem ouvidas na audiência de discussão e julgamento com recurso à videoconferência, com distorção de voz e imagem, nos termos do disposto no Artº 4º, nº 4, da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, tal pretensão foi indeferida pelo tribunal a quo, nos termos do despacho supra transcrito, estribando-se a Mmª Juíza a quo basicamente nas seguintes ordens de razões:
a) Falta de elementos que permitam concluir que, por causa do contributo dos agentes encobertos para a prova dos factos que constituem objecto do processo, ficam em perigo a vida, a integridade física ou psíquica, ou a liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado dos requerentes ou de seus familiares, ou de quaisquer pessoas que lhe sejam próximas, como prescreve o Artº 4º, nº 2, da Lei nº 93/99, de 14 de Julho (diploma que regula a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal);
b) Falta de indicação, no requerimento da Polícia Judiciária, ou do Ministério Público, de circunstâncias concretas que justifiquem o recurso à teleconferência, como se e exige nos Artºs. 5º, nº 1 e  6º, nº 2, da mesma Lei nº 93/99, de 14 de Julho;
c) Falta de legitimidade da Polícia Judiciária para fazer o referido requerimento, nos termos do disposto nos citados Artºs. 4º, e 5º, da Lei nº 93/99 de 14 de Julho, por não ser um sujeito processual, sendo certo que, ainda que se lhe conferisse essa legitimidade ao abrigo do Artº 4º, nº 3, da Lei nº 101/2001 de 25 de Agosto, em representação das testemunhas em causa (que se desconhece se são agentes da PJ ou meros particulares), aquela entidade recusou-se a dar cumprimento ao despacho de 17/10/2022 [em cujo âmbito as referidas testemunhas foram convidadas a, no prazo de 3 dias, especificarem em requerimento autónomo e por si subscrito, as concretas razões pelas quais pretendem ser inquiridas por videoconferência, com a cara tapada e a voz distorcida], alegando ser “um corpo superior (...) organizado hierarquicamente na dependência do Ministério da Justiça e com autonomia administrativa....”, ao passo que o Ministério Público se limitou a alegar genericamente que a inquirição através de teleconferência com a distorção de voz e imagem, é de molde a salvaguardar a integridade física dos agentes encobertos assim como dos respectivos familiares (...), reproduzindo a expressão legal sem concretizar qualquer facto concreto capaz de a preencher.

Quid juris?

Começando pela questão da falta de legitimidade do Sr. Director da U.P.A.T. da Polícia Judiciária para solicitar a audição dos agentes encobertos, nos aludidos termos, cremos não ter consistência a razão aduzida pela Mmª Juíza a quo.
Com efeito, há que recordar que as mencionadas testemunhas actuaram no âmbito de uma acção encoberta, cujo regime jurídico se encontra plasmado na Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, em cujo Artº 1º, nº 2, se prescreve:
“Consideram-se acções encobertas aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Polícia Judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua qualidade e identidade.”.
Devendo, também, recordar-se o teor do aludido requerimento que o Sr. Director da Unidade de Prevenção e Apoio Tecnológico da Polícia Judiciária (UPAT) dirigiu ao tribunal a quo, datado de 12/10/2022, cuja cópia consta de fls. 3, e que pela sua pertinência se transcreve, na parte que ora interessa considerar:
“Na sequência do vosso ofício em referência, referente a notificação para comparência em audiência de julgamento (...) dos agentes encobertos PP; QQ; RR e SS, venho por este meio expor e requerer o que segue:
No âmbito da sua actividade intervêm em várias situações de elevado grau de complexidade e perigosidade, relativa à sua segurança e intervêm no seio de organizações criminosas.
Deste modo, a presença física na audiência de julgamento representa um risco acrescido pois a audiência sendo pública não se restringe apenas aos arguidos do inquérito, mas a qualquer indivíduo, que deste modo fica a conhecer sem margem para dúvidas os responsáveis pela investigação.
Assim, tendo por atendível e imperiosa preocupação a segurança e integridade física dos funcionários, solicita-se a V. Exa. que, nos termos do nº 4 do artigo 4º, da Lei nº 101/2001, de 25/8, o depoimento seja realizado com recurso a videoconferência, com distorção de voz e imagem, informando que existe nesta Polícia sala com meios técnicos para esse efeito.
(...)”.
Ora, como bem assinala o recorrente, de acordo com o Dec.-Lei nº 137/2019, de 13 de Setembro (que aprovou a nova estrutura organizacional da Polícia Judiciária):
a) A organização interna dos serviços da PJ obedece ao modelo de estrutura hierarquizada, podendo integrar unidades orgânicas flexíveis – Artº 17º, nº 1;
b) A Unidade de Prevenção e Apoio Tecnológico (U.P.A.T.) é uma das unidades centrais da Polícia Judiciária – Artº 18º, nº 4, al. a);
c) Compete à U.P.A.T., a nível nacional, nos termos do Artº 35º:
- Desenvolver os procedimentos necessários e urgentes a assegurar o estatuto e a aplicação das medidas e programas previstos na Lei n.º 93/99, de 14 de julho, na sua redação atual – al. d);
- Desenvolver ações de controlo e proteção de agentes que atuem no âmbito da Lei nº 101/2001, de 25 de agosto, na sua redação atual – al. e);
d) O Diretor da U.P.A.T. é um cargo de direção de 1º grau [Anexos I e II e Artºs. 49º e 50º], competindo-lhe, além do mais, [Anexo II, nº 1, al. i)] autorizar o pessoal a comparecer em juízo quando requisitado ou notificado nos termos da lei do processo.
Assim, sendo a Polícia Judiciária um órgão de estrutura hierarquizada, e sendo o director da Unidade de Prevenção e Apoio Tecnológico (U.P.A.T.) o representante máximo desse serviço, em cujo âmbito são desenvolvidas as ações de controlo e proteção de agentes que actuem no âmbito da Lei nº 101/2001, de 25 de agosto, afigura-se-nos evidente que lhe assiste legitimidade para dirigir aos autos o requerimento em causa, nos moldes em que o fez, já que enquadrado nas competências que lhe são conferidas pelo dito diploma legal.
Havendo um claro equívoco da Mmª Juíza a quo quando, no despacho recorrido, refere que se desconhece se as testemunhas em causa “são agentes da PJ ou meros particulares”.
Pois, como supra se referiu, e ora se reitera, o Sr. director da U.P.A.T., no seu aludido requerimento de 12/10/2002, teve o cuidado de referir expressamente que estava em causa uma “atendível e imperiosa preocupação a segurança e integridade física dos funcionários (…), e que os mesmos “No âmbito da sua atividade intervêm em várias situações de elevado grau de complexidade e perigosidade, relativa à sua segurança, e intervêm no seio das organizações criminosas.” (sublinhado nosso).
Dando obviamente a entender ao tribunal que estavam (e que estão) em causa funcionários daquele corpo superior de polícia criminal, que de forma permanente ou mais ou menor regular podem ter de intervir em investigação criminais que lhes forem confiadas, e não de meros terceiros, cuja intervenção terá um carácter pontual ou residual.
Ademais, também assiste razão ao recorrente no que tange à questão de fundo, que enforma, afinal, o âmbito do presente recurso.
Questão essa que, como se viu, se prende com a verificação dos requisitos legais para que os mencionados agentes encobertos com os nomes fictícios ou de código “PP”, “QQ”, “RR” e “SS” sejam inquiridos na audiência de discussão e julgamento que está em curso com recurso à videoconferência, e com distorção de voz e imagem, nos termos do disposto no Artº 5º, da Lei nº 93/99, de 14 de Julho.
A este propósito, e sob a epígrafe “Protecção de funcionário e terceiro”, estatui o Artº 4º, da citada Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto (diploma legal que estabelece o regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal):
“1 - A autoridade judiciária só ordenará a junção ao processo do relato a que se refere o n.º 5 do artigo 3.º se a reputar absolutamente indispensável em termos probatórios.
2 - A apreciação da indispensabilidade pode ser remetida para o termo do inquérito ou da instrução, ficando entretanto o expediente, mediante prévio registo, na posse da Polícia Judiciária.
3 - Oficiosamente ou a requerimento da Polícia Judiciária, a autoridade judiciária competente pode, mediante decisão fundamentada, autorizar que o agente encoberto que tenha actuado com identidade fictícia ao abrigo do artigo 5.º da presente lei preste depoimento sob esta identidade em processo relativo aos factos objecto da sua actuação.
4 - No caso de o juiz determinar, por indispensabilidade da prova, a comparência em audiência de julgamento do agente encoberto, observará sempre o disposto na segunda parte do nº 1 do artigo 87º do Código de Processo Penal, sendo igualmente aplicável o disposto na Lei nº 93/99, de 14 de Julho.” (sublinhado nosso).
Ora, como assertivamente referem os Exmos. Procuradores da República subscritores do recurso, a letra da lei aponta no sentido da aplicabilidade automática do disposto no Artº 87º, nº 1, do C.P.Penal, e bem assim do disposto na Lei nº 93/99, de 14 de Julho (diploma legal que regula a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal), dado que ali se afirma expressamente “(…) sendo igualmente aplicável.”.
Sendo certo que, “Assim não se entendendo, a expressa remissão para esta Lei seria absolutamente inútil, posto que, mesmo sem a remissão, a Lei nº 93/99 sempre seria aplicável, pois que ela tem por objeto regular  “a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo” e, portanto, sempre seria aplicável mesmo sem aquela remissão”.
O que significa que “(...) o legislador pretendeu, assim, que este regime se aplique, sempre e sem necessidade de ponderação de outras variantes quando se trate da audição de agentes encobertos”.
Afigurando-se-nos pertinente, para perscrutarmos a “mens legislatoris”, atentar na intervenção que o então Ministro da Justiça levou a cabo na reunião plenária da Assembleia da República, ocorrida no dia 21/06/2001, no âmbito da discussão conjunta, na generalidade, entre outras, da proposta de lei nº 79/VIII (atinente ao regime jurídico das acções encobertas para fins de  prevenção  e  investigação  criminal), que esteve génese da citada Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, e que pode ser consultada no Diário da Assembleia da República de 22 de junho de 2001, I Série – Número 99, págs.17 e 22 [3], na parte em que se referiu a esta problemática, quando afirmou (cfr. pág. 17):
“O agente infiltrado ou encoberto é admitido pelo actual direito  português  apenas  no  âmbito  do  combate  ao  tráfico  de droga e das medidas de combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira. A presente proposta visa, em  primeiro  lugar,  alargar  esse  âmbito  de  aplicação,  estabelecendo  para  o  efeito  um  elenco  dos  crimes  em  cuja  investigação  se  pode  recorrer  a  actuações  encobertas.  Por  outro  lado,  procura-se  criar  um  regime  jurídico  ao  abrigo  do qual essas actuações são levadas a cabo, diluindo dúvidas que a jurisprudência tem encontrado aqui ou ali. A  introdução  deste  regime  deve,  no  entanto,  ser  feita  com os cuidados adequados, quer para preservar as garantias  de  defesa  em  processo  criminal,  quer  para  salvaguardar a segurança dos agentes envolvidos na investigação. A  primeira  destas  preocupações  traduz-se,  desde  logo,  no princípio geral de que estas actuações estão sujeitas aos princípios  da  necessidade  e  da  proporcionalidade  face  à  investigação a desenvolver. No mesmo sentido, estabelece-se  uma  supervisão  por  autoridade  judiciária  destas  actuações,  que  se  traduz,  quer  na  necessidade  de  autorização  prévia  de  magistrado,  quer  no  controlo  jurisdicional  a posteriori dessa mesma actuação e da prova obtida. A  segurança  dos  agentes  é  outro  domínio  sensível,  quer  por actuarem junto dos criminosos, quer por estarem sujeitos a  eventuais  represálias.  Assim,  desde  logo,  ninguém  pode  ser  obrigado  a  participar  numa  actuação  encoberta.  Além  disso, prevêem-se regras de protecção do agente no que toca aos meios pelos quais a prova assim produzida é apresentada no processo e um regime de identidade fictícia.” (sublinhados nossos).
Acrescentando, mais à frente, quando interpelado acerca do risco das ações encobertas (cfr. pág. 22):
Quanto  à  questão  do  risco,  é  um  risco  extraordinário.  Aliás,  há  dias,  veio  relatado  num  jornal  uma  acção  que  decorreu  fora  do  território  nacional,  que  envolveu  a  intervenção da Marinha e em circunstâncias em que os agentes estavam  em  situação  de  altíssimo  risco.  Não  é,  portanto,  um  risco  comum.  Podem  ser  circunstâncias  de  risco  anormal  que,  em  meu  entender,  justificam  que  não  se  possa  impor ao agente que se submeta a esse risco. Devo  dizer  que  o  problema  não  se  põe,  porque,  se  há  coisa que a experiência nos revelou, é a grande determinação  e  a  grande  coragem  dos  agentes  da  Polícia  Judiciária  no  desempenho  das  suas  missões,  muitos  com  sacrifícios  da sua própria vida.” (sublinhados nossos).
Filosofia esta que, ademais, encontra eco na Exposição de Motivos do aludido diploma legal [4], nos seguintes termos:
“A actuação encoberta é um mecanismo importantíssimo de investigação penal, nomeadamente no que se refere à criminalidade mais grave e ao crime organizado. Consiste, essencialmente, na possibilidade de agentes da polícia criminal poderem contactar os suspeitos da prática de um crime com ocultação da sua verdadeira identidade (agentes encobertos ou agentes infiltrados), actuando de maneira a impedir a prática de crimes ou a reunir provas que permitam a efectiva condenação dos criminosos.
O agente infiltrado ou encoberto – com o sentido que acima lhe foi dado - é admitido pelo actual direito português apenas no âmbito do combate ao tráfico de droga e das medidas de combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira. A presente proposta visa, em primeiro lugar, alargar esse âmbito de aplicação, estabelecendo para o efeito um elenco dos crimes em cuja investigação se pode recorrer a actuações encobertas; em segundo lugar, cria-se um regime jurídico ao abrigo do qual essas actuações são levadas a cabo.
A introdução deste regime deve, no entanto, ser feita com os cuidados adequados, quer para preservar as garantias de defesa em processo criminal quer para salvaguardar a segurança dos agentes envolvidos na investigação.
A primeira das preocupações traduz-se, desde logo, no princípio geral de que estas actuações estão sujeitas aos princípios da necessidade e proporcionalidade face à investigação a desenvolver. No mesmo sentido se estabelece uma supervisão jurisdicional destas actuações, que se traduz quer na necessidade de autorização prévia de magistrado quer no controlo jurisdicional a posteriori dessa mesma actuação e da prova obtida.
A segurança dos agentes é outro domínio sensível, quer por actuarem junto dos criminosos quer por estarem sujeitos a eventuais represálias. Assim, desde logo, ninguém pode ser obrigado a participar numa actuação encoberta. Além disso, prevêem-se regras de protecção do agente no que toca aos meios pelos quais a prova assim produzida é apresentada no processo e um regime de identidade fictícia.” (sublinhados nossos).
Ora, como inelutavelmente resulta do exposto, dúvidas não há de que o legislador teve o propósito claro de adoptar medidas de protecção do agente encoberto que actua com identidade fictícia, demonstrando os autos, à saciedade, estar cabalmente justificada a solicitada medida de protecção dos aludidos funcionários / agentes encobertos, no sentido de prestarem os seus depoimentos na audiência de discussão e julgamento com recurso à videoconferência, com distorção de voz e imagem, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs. 4º, da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, e 4º a 15º da Lei nº 93/99, de 14 de Julho.
            Efectivamente, e salvo o devido respeito, o tribunal a quo, numa interpretação menos adequada do regime legal em causa, ao ter determinado que os ditos agentes encobertos depusessem presencialmente na audiência de discussão e julgamento, mesmo com exclusão da publicidade, nos termos do disposto no Artº 87º, nº 1, 2ª parte, do C.P.Penal, não ponderou devidamente [como justamente assinalam os Dignos Magistrados recorrentes], “(...) o elevado risco de exposição e de retaliação dos próprios arguidos ou terceiros e o condicionamento para ulteriores ações encobertas”, circunstâncias essas que “(...) foram alegadas nos requerimentos e são por si suficientes para fundamentar o deferimento do requerido (...), sendo certo que “(...) qualquer maior pormenorização dos riscos seria contraproducente para a segurança dos agentes, na medida em que os exporia às circunstâncias que fragilizariam a sua segurança, dando-as a conhecer aos arguidos”.
Tanto mais que estamos perante um processo em cujo âmbito estão a ser julgados quinze arguidos, e no qual se visa apurar factos que, em tese, consubstanciam a prática dos crimes de tráfico e mediação de armas, p. e p. pelo Artº 87°, n° 1, da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo Artº 21º, n° 1, do Dec.-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, e de corrupção passiva, p. e p. pelo Artº 373º, n° 1, do Código Penal, ilícitos esses de acentuada gravidade, e que a própria lei reputa de “criminalidade altamente organizada”, nos termos do disposto no Artº 1º, al. m), do C.P.Penal.

Em suma, cremos que, no caso vertente, a prestação de depoimento por banda das aludidas testemunhas / agentes encobertos, nos moldes requeridos, justifica-se plenamente.

Pelo que, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, impõe-se a procedência do recurso, com a inerente revogação do despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que determine a inquirição de tais testemunhas / agentes encobertos em sede de audiência de discussão e julgamento, em dia e hora a designar, com recurso à videoconferência, com distorção de voz e imagem, nos termos do disposto nos Artºs. 4º e 5º, da Lei nº 93/99, de 14 de Julho, e com estrita observância do que a propósito se prescreve nos Artºs. 7º e sgts. do mesmo diploma legal, maxime do disposto no Artº 10º, fazendo-se notar que, como referiu o Sr. director da U.P.A.T. no seu requerimento de 12/10/2022, a Polícia Judiciária dispõe de “sala com meios técnicos para esse efeito”.

III. DISPOSITIVO
           
Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogando o despacho recorrido, determinam que o mesmo seja substituído por outro que admita a inquirição em audiência de discussão e julgamento em curso das testemunhas / agentes encobertos com os nomes fictícios ou de código “PP”, “QQ”, “RR” e “SS” através de videoconferência, com distorção de voz e imagem, nos termos do disposto nos Artºs. 4º e 5º, da Lei nº 93/99, de 14 de Julho, e com estrita observância do que a propósito se prescreve nos Artºs. 7º e sgts. do mesmo diploma legal, maxime do disposto no Artº 10º.

Sem custas.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 9 de Janeiro de 2023

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Florbela Sebastião e Silva (Juíza Desembargadora Adjunta)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)


1 - Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2 - Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo) ”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.
3 - Também disponível on line, in htps://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/08/02/099/2001-06-21/16?pgs=16-31&org=PLC&plcdf=true
4 - Documento que pode ser consultado in www.parlamento.pt