Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
43/13.4TMBRG.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: INCUMPRIMENTO DO REGIME DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
OBRIGATORIEDADE DA AUDIÇÃO DO MENOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. O princípio da audição do menor constante em preceitos do direito interno e do direito internacional a que o Estado Português está vinculado, tem como pressuposto a consideração de que o menor deve ser ouvido nas decisões que lhe dizem respeito, pelo respeito pela sua personalidade.
II. Este princípio é extensivo ao incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, em que está em causa a violação do direito de visita.
III. A audição prévia do menor, tendo em conta a sua idade e grau de maturidade reveste natureza obrigatória (cf. artº 4º al. i) LPPCJP ex vi artº 147º-A OTM), pelo que a não realização dessa audição, determina a nulidade da decisão.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório
J… veio requerer contra M… incidente de incumprimento do regime convivial, fixado por acordo de regulação das responsabilidades parentais em processo de divórcio, alegando em síntese que:
Nos termos do acordo celebrado entre ambos os progenitores e porque o pai já se encontrava a residir no estrangeiro por motivos profissionais, a menor ficou confiada à guarda da mãe e a residir com esta. Ficou também definido que o pai podia visitar a filha quando quisesse, desde que não perturbasse os períodos de descanso e um regime específico para as épocas festivas, podendo os períodos de férias e dias festivos ser alterados desde que a alteração fosse atempada e comummente acordada.
No entanto, a requerida tem vindo a obstar à convivência entre pai e filha, não o tendo informado da profissão de fé da filha e tendo-o impedido de conviver com a filha numa altura em que este foi passar férias à Suiça, a poucas dezenas de quilómetros da sua residência.
A requerida impediu ainda a menor de ir passar a passagem de ano com o pai conforme estava acordado.
Requer que a requerida seja condenada a cumprir o acordo entre ambos celebrado, a pagar 249,90 euros de multa e a indemnizar o requerente pelas despesas de viagem que suportou no montante de 531,93 euros.
A requerida contestou, negando opôr-se a que a menor conviva com o pai. O que ocorre é que o pai da menor nos momentos em que tem a menor consigo, leva a mesma a frequentar discotecas, deixando-a entregue a si própria e impõe à menor o convívio com homens/mulheres casados.
Não deixou a menor ficar com o pai quando esteve com esta de férias na Suíça porque o requerente não lhe garantiu que a filha ficasse em quarto independente, de modo a evitar quaisquer susceptibilidades por parte da menor, pois já em ocasião anterior, numa altura em que o requerente foi passar férias ao Algarve com a filha a casa de uns amigos, a menor teve que pernoitar no mesmo espaço que os amigos do pai.
A ida da menor para a Suíça carecia de comum acordo dos pais e não existiu esse acordo.
Conclui pela improcedência do peticionado.
Realizada conferência de pais, não se logrou obter acordo.
As partes ofereceram alegações.
Foram indicadas testemunhas e realizada a sua inquirição.
Foram juntos documentos.
Realizado o julgamento foi proferida decisão que declarou incumprida a decisão de regulação do exercício das responsabilidades parentais de S… por M…, no que concerne ao regime convivial fixado nos autos, relativas às saída do país na companhia dos progenitores, a qual não necessita, conforme acordaram de consentimento prévio, mas apenas de indicação prévia das datas; condenou a guardiã M… em multa que fixou em €249,90 para o incumprimento ocorrido e mais determinou que a mesma procedesse ao pagamento de indemnização ao requerido de metade do valor por este gasto nas viagens de avião (€531,93: 2= €265,96).

A requerida não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, onde apresentou as seguintes conclusões:
(…)
O Exmº Magistrado do MºPº respondeu ao recurso (…)

II - Objecto do recurso
Considerando que:

. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,

. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões a decidir são as seguintes:

. se ocorre causa justificativa para o incumprimento do regime de visitas por parte da requerida; e,

. se o tribunal da Relação deve ordenar a inquirição da menor.

III – Fundamentação

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1. Por acordo de regulação das responsabilidades parentais de 23 de maio de 2012, foi, além do mais, decidido que a guarda de S…, “é confiada à guarda e cuidados mãe a residir com esta”, sendo as responsabilidades parentais exercidas em conjunto por ambos os progenitores;
2. Na mesma decisão, e quanto a férias de Verão, determinou-se que “O pai pode visitar a filha quando quiser, desde que não perturbe os períodos de descanso do mesmo (a) e desde que avise previamente a mãe”;
3- “O pai, quando estiver em Portugal, tem o direito de passar com a menor fins de semana alternados, indo busca-la à residência da mãe às 19h de Sexta-feira e aí a entregando às 19h de Domingo;
4- E ainda que “Nos dias de natal e fim de ano, a menor ficará alternadamente com cada um dos progenitores, passando o próximo natal com a mãe e o fim de ano com o pai, desde que o pai esteja em Portugal. Quando com o pai, a menor permanecerá durante os períodos seguintes: - das 19h do dia 24 às 21h do dia 25 de Dezembro; - das 19h do dia 31 de Dezembro às 21h do dia 1 de janeiro”.
5- Quanto à Páscoa a menor passará com o pai e com a mãe de forma alternada, desde que o Pai esteja em Portugal, passando o feriado de sexta-feira com um e o Domingo de Páscoa com o outro.
6- Os progenitores acordaram também que o progenitor tem o direito de passar 15 dias seguidos de férias de Verão devendo avisar a mãe para esse efeito até 31 de Maio de cada ano.
7. Mais acordaram reciprocamente nas cláusulas 19º e 20º que se autorizavam reciprocamente a viajar com a menor nas respetivas companhias (mãe e pai), ficando consignado relativamente ao progenitor que: “ A mãe desde já autoriza a menor a viajar na companhia do pai para o estrangeiro dentro dos limites temporais definidos no presente acordo, sem prejuízo do calendário escolar, não necessitando de autorização prévia, devendo contudo, o pai informar a mãe da data, contato e destino da viagem com a antecedência mínima de 15 dias;
8- Na passagem de ano de 2012, o progenitor não guardião solicitou à guardiã a entrega da menor, para o acompanhar na ida para a Suíça, tendo adquirido os competentes bilhetes para a jovem e para si e se deslocado a Portugal para que a jovem pudesse acompanhá-lo.
9- Quando se deslocou a casa da progenitora no dia 29.12.2012 para recolher a menor foi impedido pela mesma, que não autorizou a menor a viajar com o pai;
10- Foi chamado o OPC competente que lavrou o auto de ocorrência com o NPP: 592621/2012;
11- O progenitor já havia adquirido bilhetes para si e para a menor que lhe custaram (ambos) €531,93.

Factos não provados:
1- Que a progenitora requerida não tenha informado o pai, nem permitido que a menor o fizesse relativamente à Profissão de Fé da menor;
2- Na Páscoa de 2012, o progenitor não guardião tenha solicitado à guardiã a entrega da menor, por dois dias, uma vez que esta havia se deslocado à Suíça (sem o conhecimento prévio do pai) na companhia da mãe e de uns tios, que tendo sido aceite num primeiro momento, foi impedido quando chegou a casa dos tios de ver a jovem;
3- A guardiã recusou entregar a menor ao progenitor alegando que o pai não tinha qualquer direito a estar com a menor pois fora a irmã e o cunhado que custearam a viagem.

Da alteração da matéria de facto:
(…)

Antes de entrarmos na apreciação da impugnação da matéria de facto, importa que apreciemos uma outra questão suscitada pela apelante. Esta pretende que este tribunal ordene a inquirição da menor a ter lugar na 1ª instância. Esta questão não constando concretamente nos 11 pontos inseridos nas conclusões, acaba por ser suscitada na parte final do recurso, imediatamente a seguir às conclusões, ao requerer-se a substituição da decisão recorrida por outra que ordene ao tribunal a quo que notifique a menor para inquirição, pelo que a consideramos, abrangida pelas conclusões, embora a boa técnica jurídica aconselhasse a sua autonomização nos diversos pontos conclusivos.

A apelante refere no corpo alegatório do seu recurso que o Tribunal ao não ouvir a menor, violou o disposto nos artºs 6º e 411º do CPC (artº 22º das alegações), mas não retira desta violação qualquer consequência jurídica. Ao invocar o disposto nestes artigos, mormente o artº 411º do CPC, inserido no Titulo V denominado instrução do processo, referindo que a menor deveria ter sido ouvida, para aferir da violação do direito ao repouso e aos bons costumes, afigura-se-nos que a audição da menor, na perspectiva da apelante, reveste o carácter de diligência probatória que o tribunal deveria ter ordenado.

O princípio da audição do menor constante em preceitos do direito interno e do direito internacional a que o Estado Português está vinculado, tem como pressuposto a consideração de que o menor deve ser ouvido nas decisões que lhe dizem respeito, por deferência pela sua personalidade e não encara a sua audição como testemunha dos factos alegados por um ou por ambos os progenitores, partes no processo.

O actual artº 1901º nºs 1 e 2 do CC, na redacção introduzida pela Lei 61/2008 impõe a audição das crianças e jovens na decisão das questões que lhes digam respeito, em caso de pais casados e que não cheguem a acordo sobre questões de particularidade importância relativas à vida dos filhos, suprimindo o limite dos 14 anos como idade mínima para o fazer.

É também entendimento pacífico na doutrina, decorrente da lei, de regulamentos da União Europeia e de convenções internacionais vinculantes do Estado Português que nos casos em que haja necessidade de regular o exercício de responsabilidades parentais se impõe a audição prévia da criança, tendo em conta a sua idade e grau de maturidade [1]. – cf. artº 4º al.i) LPPCJP ex vi artº 147º-A OTM (na redacção da Lei nº 133/99 de 29 de Agosto), artº 24º nº2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[2] (aprovada em protocolo anexo ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, tal como resultou do Tratado de Lisboa) e artº 12º nº2[3] da Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos da Criança[4]. No mesmo sentido, o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro, relativo à competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental, que suprimiu pela primeira vez o exequatur, com base no princípio da confiança mútua, vindo permitir a dispensa do processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, desde que a decisão sobre o direito de visita ou relativa ao retorno da criança em casos de rapto parental, tenha sido antecedida da audição do menor.

Tal audição deverá pressupor a adequada preparação técnica dos profissionais nela envolvidos, ser realizada com discrição, em termos adaptados ao específico fim processual visado, e ser concretizada em clima de confiança, adaptado às circunstâncias pessoais do menor e, em particular, à sua idade, podendo ser levada a cabo pelo juiz, pela técnica da Segurança Social encarregue de elaborar um relatório ou por psicólogo[5].

Afigura-se-nos que no caso de incumprimento do direito de visita, as razões que determinam a audição do menor nas regulações das responsabilidades parentais e nos casos de desacordo quanto a questões de particular importância da vida do menor, têm aplicação ao incidente de incumprimento.

No caso em apreço não se procedeu a essa audição que reveste carácter obrigatório (alínea i) do artº 4º da LPPCJP ex vi do art º 147º-A OTM). A inobservância desta formalidade que tem reflexo na decisão da causa, determina a nulidade da decisão, pelo que se impõe a sua anulação para que se proceda à audição da menor e após deve ser proferida nova decisão, onde deverá ser tido em conta o resultado da diligência ora ordenada, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

Sumário:

. O princípio da audição do menor constante em preceitos do direito interno e do direito internacional a que o Estado Português está vinculado, tem como pressuposto a consideração de que o menor deve ser ouvido nas decisões que lhe dizem respeito, pelo respeito pela sua personalidade.

. Este princípio é extensivo ao incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, em que está em causa a violação do direito de visita.

. A audição prévia do menor, tendo em conta a sua idade e grau de maturidade reveste natureza obrigatória (cf. artº 4º al. i) LPPCJP ex vi artº 147º-A OTM), pelo que a não realização dessa audição, determina a nulidade da decisão.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar procedente o recurso e em anular a sentença recorrida, determinando-se, que se proceda à audição da menor, após o que se proferirá nova sentença.

Custas pela parte vencida a final.

Notifique.

Guimarães, 20 de Novembro de 2014

Helena Melo

Heitor Gonçalves

Amílcar Andrade

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[1] Conforme se defende nos Ac. do TRP de 14.01.2014, P. 21/05.

[2] Cujo texto é o seguinte: 1. As crianças têm direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. Podem exprimir livremente a sua opinião que será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito.

[3] Cuja redacção é a seguinte “(…é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representantes ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional)”.

[4] Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990.

[5] Poder Paternal e Responsabilidades Parentais, p.41