Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ CRAVO | ||
Descritores: | INDEMNIZAÇÃO PRISÃO PREVENTIVA ERRO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 04/20/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
Sumário: | I – Nas situações de privação de liberdade indemnizáveis ... termos do nº 2 do art. 225º do CPP, na redacção resultante da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, pressupondo a legalidade da prisão preventiva, esta só é considerada materialmente injustificada, e por isso mesmo constitutiva da obrigação de indemnizar, quando tivesse sido decretada por erro grosseiro na avaliação dos respectivos pressupostos de facto. II – Perante uma situação de sujeição a prisão preventiva legal, aplicada a um arguido que depois vem a ser absolvido, não por ter ficado demonstrado que não foi o agente do crime ou actuou justificadamente, mas por se ter procedido a uma diferente interpretação dos factos, considerando-se que não estavam preenchidos os elementos do tipo legal do crime de violência doméstica, competia ao autor, na respectiva acção de indemnização, demonstrar a existência de erro grosseiro. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães 1 – RELATÓRIO O A. AA, residente na Praça ... (... Andar), em ..., intentou a presente acção declarativa com processo comum[1] contra o R. Estado Português, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 72.844,10. Para tanto, o A. alegou que no âmbito do Processo Comum Singular nº1405/19.... do Juízo Local Criminal ... (Juiz ...) esteve em prisão preventiva desde o dia .../.../2019 até ao dia 23 de Novembro de 2020. A decisão que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva assentou numa inadequada valoração dos factos. Acresce que, no referido processo foi deduzida acusação imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica e um crime de detenção de arma proibida, previstos no art. 152º do Código Penal e no art. 86º da Lei nº5/2006 de 23 de Fevereiro. Após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que o absolveu pela prática de crime de violência doméstica e determinou a sua colocação em liberdade. O Ministério Público interpôs recurso desta sentença, mas o recurso foi rejeitado por ser manifestamente improcedente. O período em que esteve em prisão preventiva causou-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais pelos quais pretende ser indemnizado. * O R. contestou, alegando que o despacho que aplicou ao A. a medida de coacção de prisão preventiva valorou correctamente os factos. O A. interpôs recurso deste despacho, mas o recurso foi julgado improcedente, tendo sido mantida a decisão do senhor juiz de instrução. A absolvição não é condição suficiente para a indemnização por prisão preventiva, exigindo-se que seja comprovado que o arguido não foi o agente do crime ou actuou justificadamente. O A. foi absolvido pela prática do crime de violência doméstica com fundamento no princípio in dubio pro reo o que não confere o direito a ser indemnizado. * Findos os articulados, tendo sido dispensada a realização da audiência prévia, seguiu-se a prolação do despacho saneador, que fixou o valor da acção, o objecto do litígio e os temas da prova, tendo sido admitidos os róis de testemunhas e designada data para a audiência de julgamento. * Audiência de julgamento que se prolongou por duas sessões, com observância do legal formalismo, como consta das respectivas actas. * No final, foi proferida sentença, que decidiu ... seguintes termos: Pelo exposto, decido julgar a presente acção integralmente improcedente e, em consequência, absolvo o réu do pedido contra si formulado. * Custas a cargo do autor, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.* Registe e notifique.* Inconformado com essa sentença, apresentou o A. AA recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou, com a apresentação das seguintes conclusões: 1. O recorrente não se conforma com a sentença do Tribunal a quo, nomeadamente quanto à improcedência da ação e ao dar como justificada a decisão de aplicação da medida de coação ao, então, arguido. 2. O arguido foi submetido a prisão preventiva de 29/11/2019 a 23/11/2020, por indícios do crime de violência doméstica contra a sua ex-mulher. 3. A sentença no âmbito desse processo decretou a absolvição do ora recorrente. 4. Por causa da sua absolvição e porque a aplicação da prisão preventiva foi injustificada, o ora recorrente intentou uma ação contra o Estado a requerer uma indemnização ... termos do art.º 255.º do CPP. 5. Durante o período em que o arguido esteve privado da sua liberdade, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais, fixando-se a quantia para o respetivo ressarcimento em € 72.844,10. 6. Não esteve bem o Tribunal a quo ao dar como justificada a aplicação da medida de coação, pois esta padece de erro grosseiro. 7. O Juiz de Instrução formula conclusões e tira ilações que em nada têm que ver com as provas existentes ... autos na data de aplicação da medida de coação. 8. O despacho de aplicação da prisão preventiva é injustificado e arbitrário. 9. Estão preenchidos os pressupostos de aplicação do disposto no art.º 255.º, n.º 1, al. c) do CPP. Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, devendo o estado ser condenado no pagamento de uma indemnização ... termos do art.º 255.º do CPP. Decidindo o Venerando Tribunal nestes termos estará a fazer a habitual JUSTIÇA! * Notificado das alegações de recurso apresentadas pelo A., o R. Estado Português apresentou as suas contra-alegações, que finalizou com a apresentação das seguintes conclusões: 1º- Por sentença transitada em julgado proferida no processo comum singular nº 1405/19.... do Juízo Local Criminal ... (Juiz ...), o arguido aqui autor/apelante foi absolvido da prática de um crime de violência doméstica de que também vinha acusado, não porque tenha ficado demonstrado que não foi ele o autor dos factos que motivaram a sua detenção e pelos quais lhe foi imposta a prisão preventiva pelo juiz de instrução aquando do seu primeiro interrogatório judicial, nem que tenha atuado justificadamente, mas porque aos factos que lhe vinham imputados na acusação considerados provados foi atribuída relevância jurídica diversa. 2º- Não obstante, na mesma sentença, o arguido aqui autor/apelante foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida na pena de 200 dias de multa à taxa de 6,00€, por factos que se encontravam em estreita relação de conexão com o imputado crime de violência doméstica e que, só por si, representavam perigo para a vida da vitima. 3º- A decisão do Mº Juiz de Instrução que aplicou ao arguido aqui autor/apelante a medida de coação de prisão preventiva, aquando do seu primeiro interrogatório judicial como arguido detido, foi objeto de recurso, tendo o tribunal superior confirmado a mesma integralmente, designadamente, quando à existência de fortes indícios da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica e à verificação dos perigos de continuação da sua atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, só possível acautelar com a imposição da referida medida de coação mais gravosa. 4º- A sentença que absolveu o arguido do crime de violência doméstica foi objeto de recurso interposto pelo Ministério Público relativamente à matéria de facto, sem que tenha cumprido o ónus da impugnação prescrito no artigo 412º, nº 3, 4 e 6 do CPP pelo que foi o recurso rejeitado por manifesta improcedência. 5º- Tal sentença não é, assim, pacífica quanto à absolvição do arguido – aqui autor/apelante – da prática do crime de violência doméstica e o tribunal superior apenas dela não conheceu por meras razões formais. 6º- No caso, o facto da sentença penal ter absolvido o arguido do crime de violência doméstica em nada inquina a decisão do Mº Juiz de Instrução que lhe aplicou a medida de coação de prisão preventiva aquando do seu primeiro interrogatório judicial, mas apenas traduz a realidade histórica e dinâmica do identificado processo penal. 7ª- A aferição a fazer relativamente à decisão do Mº Juiz de Instrução que aplicou ao arguido a medida de coação de prisão preventiva tem de ser apreciada de acordo com o concreto momento histórico indiciário ou probatório em que foi proferida (29-11-2019) e não como o que veio a ser apurado no futuro. 8º- Neste contexto, tendo a decisão do juiz de instrução que aplicou a prisão preventiva ao arguido (aqui autor/apelante) sido confirmada – como foi – pelo tribunal superior em sede de recurso, difícil se mostra (senão, quase impossível) afirmar a existência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. 9º- De todo o modo, o arguido aqui autor/apelante não alega nem demonstra e muito menos se concebe ter sido cometido no caso dos autos erro grosseiro na aplicação da sua prisão preventiva. 10º- Por outro lado, a absolvição do arguido – aqui autor/apelante – relativamente ao crime de violência doméstica também não resultou de ter ficado demonstrado que não foi ele o agente do crime ou atuou justificadamente. Ao invés, a materialidade dos factos que lhe vinham imputados na acusação resultou provada. O que se passou foi que na sentença se procedeu a uma diferente interpretação dos factos, considerando-se que não estavam preenchidos os elementos do tipo legal do crime de violência doméstica. 11º- A prisão preventiva do arguido aqui autor/apelante não é injustificada no caso dos autos. 12º- Não se verificam assim os pressupostos do direito à indemnização invocados do artigo 225º, nº1, al. b) e c) do CPP 13º- Bem andou, assim, a douta sentença recorrida em julgar a ação improcedente e, em consequência, ao absolver o Réu Estado Português do pedido. 14ª- Negando provimento ao recurso deverá a douta sentença recorrida ser confirmada. Contudo, V.as Ex.as, Venerandos Desembargadores, farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA * O Exmº Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida. * Foram facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos. * Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir. * 2 – QUESTÕES A DECIDIR Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso. Consideradas as conclusões formuladas pelo apelante, este pretende que seja reapreciada a decisão de mérito da acção que absolveu o R. Estado da peticionada indemnização do A. pelo período em que esteve em prisão preventiva, ... termos do art. 255º do CPP. * 3 – OS FACTOS Factos provados: Resultaram provados os seguintes factos: 1. O autor foi constituído arguido no âmbito do Processo Comum Singular nº 1405/19.... do Juízo Local Criminal ... (Juiz ...); 2. Neste processo era ofendida BB com a qual o autor havia sido casado; 3. No dia 29 de Novembro de 2019, o autor foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido; 4. O Ministério Público promoveu que fosse aplicada ao autor a medida de coacção de proibição de contacto com a ofendida, por qualquer meio ou por interposta pessoa, e de se aproximar da mesma, do seu local de trabalho, residência e imediações num raio de 400 metros, com recurso a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância; 5. O senhor juiz de instrução aplicou ao autor a medida de coacção de prisão preventiva por despacho que consta de fls. 40 a 47, que aqui se dá por integralmente reproduzido, com o seguinte teor: Por ter sido detido na sequência de mandados de detenção emitidos pelo MP (fls. 54/56), por verificados os pressupostos legais e a apresentação mostra-se tempestiva ao juiz de instrução para primeiro interrogatório judicial, julgo válida a detenção. I. Factos imputados: 1. O arguido AA casou com BB em ... de 1994. 2. Do casamento de ambos nasceram dois filhos: CC, nascida em .../.../1995, e DD, nascido em .../.../2003. 3. Desde 20 de Setembro de 2019, encontrando-se o arguido transtornado com o fato do irmão estar preso preventivamente, suspeito de homicídio da mulher, passou a ameaçar de morte BB, utilizando para o efeito o filho de ambos para que o mesmo lhe transmita as suas intenções, propósito esse concretizado. 4. Assim, no dia 20 de setembro de 2019, à noite, por volta 20h30, o arguido disse ao filho, através de telefone, referindo-se a BB que se a mesma estava viva era graças ao irmão dele, mas agora não tem mais quem a avise, escapou da primeira, mas não escapa da segunda'. 5. No dia 13 de outubro de 2019, por volta das 20h30, o arguido, através do telefone, disse para o filho 'quero ir para a beira do meu irmão', que se encontra preso, 'eu quero ir para a cadeia, passam vinte e cinco anos, mas já não saio de lá vivo, não te peço perdão, nem à tua irmã, estou a ajudar o meu irmão, mas não quero que ninguém me defenda' querendo com isto dizer que iria matar a BB. 6. No dia 28 de outubro de 2019, pelas 20h30, o arguido voltou a dizer ao filho, através do telefone, que tinha intenção de matar a mãe deste, BB, referindo que vai para a prisão e que morre. 7. No dia 02 de novembro de 2019, pelas 20h30, o arguido voltou a falar com o filho ... mesmo moldes do dia 13 de outubro de 2019. 8. No dia 03 de novembro de 2019, o arguido disse, pelo telefone, por volta da mesma hora, ao filho, 'estou cheio da vida, cheguei ao fim, quando fizer o testamento a teu favor, vou acabar com isto, não se vão ficar a rir, o último a rir é quem ri melhor, só tenho pena de ti porque tu vais para uma escola', querendo com isto dizer que iria matar BB. 9. No dia 05 de novembro de 2019, o arguido voltou a falar com o filho à mesma hora, pelo telefone, tendo-lhe dito que precisava falar com a mãe para tratar das águas das terras para fazer o testamento e que precisava de arranjar alguém para limpar a casa. 10. Todos estes factos foram praticados pelo arguido com o propósito concretizado de deixar a BB num clima de constrangimento e terror permanentes, impedindo-a de reger livremente a sua vida. 11. O arguido teve na sua posse, na sua residência sita na Praça ..., em ..., desde data não determinada, mas até ao dia 28 de novembro de 2019: - Uma pistola transformada, com o calibre de 8 mm; - Quatro munições de calibre 6,35 mm; - Um bastão extensível; - Um punhal com uma lâmina de 15,5 cm e o comprimento total de 25,5 cm; - Uma arma de ar comprimido. 12. E assim, ainda como consequência direta e necessária das suas condutas, deu causa o arguido a que BB, tendo tomado conhecimento de todos os dizeres proferidos pelo denunciado, se sinta num permanente estado de terror, receando pelas atitudes que o arguido possa tomar, nomeadamente em relação a si. 13. Agiu o arguido com o propósito concretizado de amedrontar, controlar e manter num permanente estado de constrangimento BB, indiferente à relação que com esta mantem e aos deveres que dessa relação para si nasceram quanto à mesma, nomeadamente de respeito, relação e deveres de que estava bem ciente, bem como ao facto de terem filhos em comum. 14. Sabia o arguido que não podia ter, nas referidas circunstâncias, por não ser detentor de qualquer licença ou por tal detenção lhe estar vedada de qualquer modo, na sua posse as armas e munições suprarreferidas, o que quis. 15. Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo proibidas as suas condutas. 16. O arguido não tem antecedentes criminais. 17. O arguido é motorista dos serviços de transportes municipais (...). 18. O arguido está de baixa. II. Elementos de prova que fundamentam os factos indiciados: O arguido prestou declarações, por elas não se insurgindo contra os factos imputados, ou seja não afirmando a inveracidade dos mesmos, apenas dando a sua versão de contexto da sua realização e motivação, revelando não ter intenção de concretização do mal – no caso atentar contra a vida da ex-mulher – afirmando que os dizeres que verbalizou ocorreram numa altura de instabilidade psicológica, seja por o irmão ter sido preso por ter matado a mulher, seja por a vítima, ... seus dizeres, ter 'gozado' com essa situação. Adianta que se quisesse matar a mulher já o teria feito porquanto vive próximo da mesma, em prédios muito próximos, vendo-a frequentemente no supermercado e na rua, cumprimentando-se. Pese embora as declarações do arguido, o certo é que ouvidos os registos das comunicações telefónicas, entre o arguido e o filho menor (DD), cujo suporte técnico se encontra junto aos autos desde 19/11/2019, tal como resulta do auto de extracção de registos áudios (fls. 53), pese embora até ao momento não tenha sido extraído documentalmente o seu conteúdo, o certo é que não sofre qualquer dúvida que o arguido tem um propósito firme de matar a ex-mulher. O teor das conversas que manteve com o filho (menor) não deixa qualquer dúvida, estando apenas a aguardar a realização das condições que entende ideias para o fazer, as quais passam designadamente por deixar os bens ao referido menor e assegurar que mesmo por si tenha condições de vida futura, como herdeiro, mesmo que numa instituição, porquanto a irmã, no seu entendimento, não tem condições, e mãe será morta. Aliás ao ouvir o registo das referidas comunicações fica claramente a ideia de se estar a ouvir em directo o anúncio próximo da morte da vítima. Pode até dizer-se que a vítima já teria sido morta não fosse a ideia fixa do arguido realizar previamente o testamento a favor do filho menor. Ou seja, só por força desta ideia é que ainda não atentou contra a vida da ex-mulher, embora tivesse já reunidas todas as condições materiais de execução do propósito, em face da detenção das armas que lhe foram apreendidas aquando da busca domiciliária. E, reitera-se, ouvido o registo das comunicações, bem como as declarações ora prestadas pelo arguido em sede de interrogatório, torna-se evidente que o mesmo está instável psicologicamente, sente-se só, desamparado, infeliz, deprimido e incapaz de controlar no seu isolamento o impulso homicida relativamente à ex-mulher. A pressão que sobre si pende, seja pela prisão do irmão e do contexto dos factos subjacentes a essa prisão, seja pela situação em que particularmente se encontra, de baixa médica, isolado, de ideia fixa no testamento e de tudo deixar ao filho, afirmando que 'alguém acordou o leão dentro de si…' da primeira vez escapou…agora vamos ver…cheguei ao fim… não aguento mais esta situação…não tenho nada a perder…' e outras expressões, alguma ... termos que afirma a vítima a fls. 50, fará seguramente que num futuro muito próximo mate a vítima, do que esta tem plena consciência quando diz que 'no momento em que o suspeito tiver conhecimento desta denúncia, vai matá-la'. Pode assim concluir-se que o arguido só agora - aquando da realização da busca domiciliária e da consequente detenção - tomou conhecimento da existência deste processo, pelo que tendo estado preso dessa essa data (28/11/2019) até ao presente não teve ainda as condições para, em liberdade, atentar contra a vida da vítima. Concluindo, vistas as declarações da vítima, as declarações do arguido, os registos áudio das conversações que este manteve com o filho menor, o risco elevado da ficha RVD, bem como o relatório da APV de fls. 41, documentado pelo contacto directo com a vítima, tem de afirmar-se os factos imputados pelo MP como fortemente indiciados. III. Qualificação jurídica dos factos imputados: Dispõe o artigo 152º do Código Penal que '1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensa sexuais: a) ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. (…) O tipo legal em apreço visa proteger a saúde, o que abrange a saúde física ou psíquica e mental, bem jurídico que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afecte a dignidade pessoal da vítima (cfr. Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 332). As condutas típicas podem ser de várias espécies: maus-tratos físicos (ofensas corporais voluntárias simples) e maus-tratos psíquicos (humilhações, injúrias, provocações, ameaças, etc.), incluindo castigos corporais e privações da liberdade, bem como ofensas sexuais, exigindo-se sempre, contudo, que tenham intensidade suficiente para colocar em crise o bem jurídico protegido. Ao nível do tipo subjectivo, estamos perante um crime doloso, o qual será variável em função da espécie do comportamento adoptado pelo agente mas que deverá sempre abarcar o conhecimento da relação de protecção ou subordinação do sujeito passivo. Os factos fortemente indiciados permitem afirmar a existência de um comportamento padrão unificado, reiterado e persistente, por parte do arguido e dirigido contra a vítima, o que permite neste momento afirmar que os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica se mostram fortemente preenchidos, na medida em que a actuação do arguido atingiu o bem jurídico protegido pela referida incriminação, ao reconduzir de certa forma a vítima a uma permanente vivência de tensão e medo, a que nenhum ser humano deve estar sujeito, desde logo em face do fundado receio que tem, por si e pelos demais elementos do agregado familiar, de que o arguido atente essencialmente contra a vida da mesma, em face do forte e sério pendor ameaçador das ameaças que a tem como alvo. O contexto, reiteração e forma de anúncio do mal (a morte da vítima) ultrapassam categoricamente o quadro típico da ameaça agravada, criando na vítima um estado psicológico de terror permanente, de insegurança e desproteção absoluta. Em face dos factos supra encontra-se o arguido fortemente indiciado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido p. e p. pelo artigo 152º/1-a), 2 do Código Penal. Como também se encontra fortemente indiciado da prática de um crime de detenção de arma proibida (artigo 86º/1-c) da lei 5/2006, punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. Sem prejuízo da não acumulação com previsão do nº 2, pode ainda dizer-se que em face dos factos, praticados perante o menor (filho de 15 anos), relativamente ao mesmo pode vir a ser entendido que cometeu também o arguido um crime de violência doméstica, porquanto sabendo perfeitamente que ao anunciar ao menor a prática dos factos (a morte da mãe) o deixava doravante num estado permanente de medo paralisante do seu desenvolvimento como ser humano em pleno crescimento, ao ponto de lhe dizer que, após a morte da mãe, teria de ser institucionalizado. Este quadro de verbalização, em princípio, não pode deixar de ser entendido como maus tratos psíquicos (pelo menos) e como tal não pode deixar de ser visto à luz da previsão do artigo 152º/1-al. c), por estar em causa pessoa particularmente indefesa (menor de 15 anos). E não se diga que o menor não 'coabita' com o arguido, porquanto enquanto progenitor afirmou que o menor convive com ele, importando de qualquer forma - o que a investigação não deixará de fazer seguramente - melhor concretizar os possíveis actos de coabitação ao nível do exercício das responsabilidades parentais. IV. Factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida de coacção: Como é sabido as medidas de coacção são meios processuais de limitação/privação da liberdade processual que têm por finalidade acautelar os fins do processo, seja para garantir a execução da decisão final condenatória, seja para assegurar o regular desenvolvimento do procedimento (não são penas). Daí que, para além de em concreto deverem ser necessárias e adequadas para acautelar aqueles fins, nenhuma medida de coacção, com excepção do TIR, deve ser aplicada se, em concreto, não se verificar qualquer das circunstâncias referidas no artigo 204º do Código de Processo Penal. Por outro lado, enquanto que para ser aplicada uma das medidas de coacção prevista ... artigos 197º a 199º se mostra suficiente a existência de indícios, já para a aplicação das medidas de coacção previstas ... artigos 200º a 202º mostra-se necessário a existência de fortes indícios da prática do crime pelo arguido. Sendo certo que as medidas de coacção exigem actualidade de perigo, porquanto, como impõe o artigo 204º do CPP, nenhuma medida de coacção pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação, qualquer dos perigos que enuncia. Desde já se deve dizer que quanto às medidas de coacção não privativas da liberdade requeridas pelo MP - no quadro de previsão do artigo 200º do CPP - como se verá infra não acautelam o fortíssimo e actual perigo de continuação da actividade criminosa. Pois este só é possível acautelar com a prisão preventiva. Mesmo sabendo-se que esta (prisão preventiva) deve assumir uma natureza excepcional, em relação às restantes medidas, a exigir a compreensibilidade dessa excepcionalidade e a impor-se como um requisito acrescido aos fundamentos em que se sustentará, pois também ninguém deve ser preso preventivamente se não houver fortes probabilidades de o agente vir a ser condenado em pena de prisão efectiva (pois não haverá assim qualquer necessidade proporcional de garantir a execução da decisão final condenatória). Pode dizer-se que, mesmo que a medida de coacção de prisão preventiva seja a medida necessária, por ser a única adequada a prevenir qualquer dos perigos referidos no artigo 204º do Código de Processo Penal, não deverá a mesma ser decretada pelo juiz se não se verificarem os pressupostos da proporcionalidade, ... termos do artigo 193º/1 do Código Penal (cfr. v.g. acórdão do TRP de 02/12/2010, proc. 30/10.4PEVRL-A.P1, in www.dgsi.pt). No caso dos autos, sem beliscar o princípio da presunção da inocência, é possível em face dos factos e da sua gravidade formular um juízo de prognose positivo de que os factos dados como fortemente indiciados permitirão que o arguido possa vir a ser condenado em pena de prisão efectiva, no âmbito deste processo, mesmo que não tenha antecedentes, pelo que a prisão preventiva infra determinada não belisca o princípio da proporcionalidade, desde logo o comando legal ínsito no artigo 193º/1 do CPP … proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas. Uma nota ainda para afirmar que sendo o perigo de continuação da actividade criminosa aquele que justifica a prisão preventiva, está acautelado o cumprimento do disposto no artigo 194º/2 do CPP, face à posição do MP manifestada de aplicação de medidas de coacção não privativas da liberdade. Dito isto, relativamente ao perigo de continuação da actividade criminosa, o único que se identifica premente e actual no caso concreto e que importa desde já acautelar, como se disse, só a prisão preventiva o acautela. Pois a determinação do arguido de atentar num curto prazo contra a vida da vítima é enorme e não se vê que qualquer medida de cocção de proibição, mesmo com controlo electronico e mesmo que cumulada com qualquer outra medida de coacção, se mostre adequada a acautelar o referido perigo. Seja face à proximidade de residência de arguido e da vítima, seja pela determinação do arguido no seu propósito homicida, seja pelo estado de fragilidade psicológica que presentemente manifesta e que não lhe permite visualizar e determinar-se por qualquer controlo do impulso homicida com que segura e proximamente será confrontado. Como supra já se disse, ouvindo o registo das comunicações recentes estabelecidas pelo arguido com o filho menor, fica a perturbante sensação de se estar a assistir em directo ao anúncio certo da morte da vítima. E também por isso não se mostra adequada a medida de coacção de permanência na habitação, mesmo que controlo electrónico, porquanto o isolamento do arguido, a insuficiência ou quase ausência de apoio familiar de retaguarda, não deixará de, num momento de impulso não contrabalançado por autocontrolo, violar a medida de coacção de permanência na habitação e atentar contra a vida da vítima, conhecedor como é das suas rotinas e da proximidade residencial de ambos. V. Decisão: Nestes termos, o Tribunal decide: Aplicar ao arguido AA a medida de coacção de PRISÃO PREVENTIVA, ... termos conjugados ... artigos 191º/1, 192º, 193º/1, 2 e 3, 194º/1 e 2, 196º, 202º/1-b) e e) e 204º/-c), todos do Código de Processo Penal. 6. O autor interpôs recurso deste despacho, mas o recurso foi julgado improcedente pelo acórdão que consta de fls. 134 a 145, que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo sido mantida a decisão do senhor juiz de instrução; 7. Na altura em que foi proferida esta decisão constavam do processo os seguintes elementos: Participação da ofendida; Fichas de avaliação de risco; Inquirições da ofendida; Registos áudio dos telefonemas efectuados pelo autor para o filho; Auto de busca e apreensão na residência do autor, tendo sido encontradas diversas armas, designadamente uma pistola e um punhal. 8. No referido processo foi deduzida acusação contra o autor imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica e um crime de detenção de arma proibida, previstos no art. 152º do Código Penal e no art. 86º da Lei nº5/2006 de 23 de Fevereiro; 9. Após a realização da audiência de julgamento, foi proferida a sentença que consta de fls. 14 a 39 e que aqui se dá por integralmente reproduzida; 10. O autor foi absolvido pela prática do crime de violência doméstica e foi condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 6,00, no total de € 1.200,00, pela sentença que consta de fls. 14 a 39, que aqui se dá por integralmente reproduzida; 11. A sentença determinou a imediata colocação do autor em liberdade; 12. Nesta sentença foram considerados provados os seguintes factos: 1. O arguido e BB contraíram casamento em ... de 1994. 2. Divorciaram-se em ... de 2015. 3. Dessa relação nasceram dois filhos: CC, nascida em .../.../1995, e DD, nascido em .../.../2003. 4. Após a separação, o arguido ficou a residir sozinho naquela que era a casa de morada da família, e, ainda em 2015, a BB e os filhos foram residir para a atual habitação, que fica nas proximidades da residência do arguido. 5. À data dos factos infra descritos, o arguido e BB tinham uma relação normal de ex-casal, falando com regularidade um com o outro e relacionando-se sem incidentes. 6. O arguido é irmão de EE, que, à data dos factos infra descritos, se encontrava sujeito à medida de coação de prisão preventiva à ordem do processo nº 1555/19...., indiciado da prática de um crime de homicídio qualificado, contra a pessoa da ex-mulher FF, por factos ocorridos no dia 18 de setembro de 2019 (foi, entretanto, condenado por decisão transitada em julgado). 7. À data dos factos infra descritos, o arguido era seguido em consultas de Psiquiatria no Hospital ... desde outubro de 2014 por Síndrome Depressivo e Perturbação da Personalidade com dificuldade no controlo de impulsos e baixa tolerância à frustração. 8. BB tomou conhecimento de que o irmão do arguido havia matado a ex-mulher e, no dia 19 de setembro de 2019, cerca das 22h00, ligou ao arguido, o qual não atendeu, pois tinha o telemóvel desligado. 9. No dia 20 de setembro de 2019, pelas 10h00/11h00, a BB, a partir do seu telemóvel nº ...30, deu um toque para o telemóvel do arguido nº ...70 para que este lhe ligasse. 10. Tendo o arguido retribuído a chamada, a BB disse-lhe 'esse filho da mãe do teu irmão foi matar a mulher', ao que o arguido lhe disse que o irmão não andava bem, que ele (o arguido) e a ex-cunhada GG estavam a tentar ajudá-lo, ao que a BB lhe disse 'então agora que ele matou é que é maluco é?', tendo o arguido respondido que isso também já era para lhe ter acontecido (a ela, BB) há cinco anos atrás, referindo-se à altura em que se divorciaram. 11. Nessa sequência, a BB disse-lhe: 'eu sei disso que o teu irmão (referindo-se ao EE) veio ter comigo ao ... e disse 'BB sai daqui, vai para longe que ele (referindo-se ao arguido) não está bem; ele vai fazer asneiras'. 12. No mesmo telefonema, a BB, referindo-se ao irmão do arguido, também lhe disse: 'olha, sabes o que lhe vai acontecer? Como ele não tem trabalho, nunca trabalhou, não tem descontos, ainda se vai matar na prisão'. 13. Nessas circunstâncias, o arguido tinha passado mal a noite por causa do sucedido com o seu irmão e ficou desagrado com as palavras proferidas pela BB relativamente ao irmão. 14. No dia 20 de setembro de 2019, à noite, por volta das 20h30, o arguido telefonou ao filho (que tinha o telemóvel nº ...06). 15. Nesse telefonema, o arguido manifestou o seu desagrado com a conversa da BB ocorrida na manhã desse dia, e, referindo-se a esta, disse ao filho que ela podia fugir para onde quisesse que não tinha salvação porque já não tinha quem a avisasse. 16. BB ouviu as palavras proferidas pelo arguido em virtude de, na altura, se encontrar presente e de aquele ter colocado o telemóvel em alta voz. 17. O arguido não sabia que o filho tinha colocado o telemóvel em alta voz, nem que a BB estava presente. 18. Por volta das 22h00 desse dia, a BB telefonou ao arguido e o mesmo disse que não queria falar com ela e desligou a chamada. 19. Ligou novamente, mas o arguido rejeitou a chamada. 20. Voltou a ligar, mas o arguido não atendeu. 21. No período compreendido entre 20 de setembro e 13 de outubro de 2019, diariamente, por volta das 20h30, o arguido e o filho falaram telefonicamente; nessas conversas, o arguido não disse ao filho que queria fazer mal à BB. 22. Em 25 de setembro de 2019, o arguido deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital ... por quadro ansioso em contexto vivencial motivado pelo homicídio perpetrado pelo seu irmão; nessa altura, foi proposto internamento, que o arguido recusou; foi medicado com fármacos específicos e combinada reavaliação no Serviço de Urgência para o dia 01 de novembro de 2019. 23. No dia 13 de outubro de 2019, por volta das 20h30, o arguido telefonou ao filho e disse-lhe, além do mais, o seguinte: '(…) e ela liga-me de manhã, que eu tinha andado a noite toda a pé e ela liga-me a gozar com…? (…) Eu quero que tu fiques com relógios, tudo, tudo, tudo, o ouro, a prata, tudo. Tudo. Elas daqui…A CC só tem…se tiver, é a casa, se vocês não a perderem… Porque tu vais para uma instituição, que és menor, a tua irmã não trabalha, não pode ser tutora de ti, isso era se ela trabalhasse, é que dizia: 'não, eu sou mais velha, ele fica comigo', mas ela não trabalha, não pode ser tua tutora. (…). Metade da casa é tua e tudo o restante que está aqui dentro, eu vou descriminar tudo, tu já sabes que é aquela caixa, eu vou meter mais coisas lá para dentro. Se calhar, não vai ficar muito dinheiro porque eu agora vou gastar dinheiro com isto de papéis (…) o Advogado leva o trabalho dele (…) é tipo de um testamento (…). Porque é ele que está a defender o tio EE, mas eu não quero que (impercetível)… Eu, com a idade que tenho, apanhando 25 anos de cadeia, eu não saio vivo da cadeia. Eu estava bem, andava a trabalhar, andava-te a pagar as coisas direitinhas, andava-te a dar outras por fora. Alguém mexeu comigo e alguém acordou o leão que eu tenho dentro de mim (…). Eu tenho 53. 63, 73… Eu não…mesmo que eu (…) apanhasse só 20 anos, eu não duro até os 73 anos com os problemas de saúde que tenho (…). Eu quero é que tu… Aquilo que eu…Eu vou-te…vais levar uma carta dentro de um…tudo vedado com fita e tu guardas aquilo e não é para abrir. É eu sendo preso ou morrer. E depois vou-te dizer onde vai ficar outra carta igual. A CC só tem direito à casa e aos móveis velhos e o caralho. O resto… O que eu mencionar na carta, o relógio de pulso, de bolso, o meu ouro e não sei quê, é tudo para ti. DD, cheguei ao fim (…). Ele atraiçoou-me, mas eu já lhe… A primeira coisa que… eu fui lá, abraçou-me e pediu-me perdão. Porque ele avisou a tua mãe da primeira vez. Só que a tua mãe pode ter os Santos que tiver que, desta vez, a mim, não me interessa (…). Quero que tu tomes conta… Tu sabes ler. Tudo o que eu escrever lá… Aquilo é um documento que vale em Tribunal. Se elas te rasgarem alguma... rasgarem… Pões-te a pau, tu pões aquilo de uma maneira que tu é que sabes onde é que está. E depois vou-te dizer onde é que vai ficar outra aqui em casa (…). Filho, cheguei ao fim, não aguento mais (…). Não aguento mais esta situação de estar aqui sozinho, não arranjar ninguém para limpar a casa. Hoje era o dia de…se tivesse uma mulher a limpar a casa, era o dia de me vir fazer a cama, passar a ferro e não sei quê. Pronto, estou farto. Como eu estou farto, eu não tenho nada a perder. Eu não tenho nada a perder, mas há muito tempo (…). Quero saber qual é a validade do teu cartão, por isso não te esqueças, amanhã ou depois, tens que ver e dizer, que é para eu dizer: 'olha, tira fotocópia' (…) que é para começar…quando for ao Dr. HH, ele começar a fazer (…). Agora tenho que falar com o Dr. (…) se é melhor ser doação, para não pagarmos merdas ao Estado, se é melhor fazer testamento (…). Tu não te deixes enganar. O ouro que eu tenho todo, aquele fio que eu ando e tenho outro igual (…) tenho duas pulseiras, tenho anéis (…) quero que isso seja tudo para ti, o relógio de pulso (…). Tudo o que eu escrever no documento é para ti. E quero saber a validade do teu cartão de cidadão e pronto. Eu não sei o que é que vai acontecer com a casa porque tu não trabalhas, andas na escola, a CC não trabalha, ela não tem dinheiro para pagar estas despesas, que andam aqui em obras, condomínio e essas merdas todas… (…) A CC tem o vício do tio EE, não gosta de trabalhar (…). Se alguma coisa acontecer e se ela te apanhar essa carta… Eu vou-te entregar e tu guardas, só tu é que sabes onde é que ela está e sabes onde é que está aqui a outra. Esta é igual à outra. Em Tribunal, tanto vale a outra, como vale essa. E quero que fiques com as coisas e pronto (…). Eu não te vou pedir perdão, nem desculpa, porque tu não vives comigo, tu pouco te interessas por mim… Por isso, pouco te interessas por mim, ela, muito menos, passei fome para a criar (…) Mas isso não me interessa, estou-me a cagar para esta merda toda. Só te queria pedir uma coisa. Era a ver se tu, quando acontecer alguma coisa, vais ali à ... (…) e dizes: 'olhe, foi preso, morreu, é para cortarem o pacote da televisão', ir ali á Loja do Cidadão, à ..., a ... e o gás é a mesma coisa, para cortar e ir à água, que é para não estar aqui a acumular despesas (…). Convém ir à ..., que é ali ao pé do (…) onde é a Câmara (…). O Presidente da Câmara está ali do lado direito. Tem um gradeamento, entra-se por ali dentro, sabes o meu nome, a morada, 'olhe, morreu, foi preso' (…). Infelizmente, vou ter… é a minha grande raiva também, é deixar-lhe alguma coisas para ela, mas pronto. Agora, o que estiver escrito, tu não te deixes ficar, é para ti. É para ti (…). Depois quero saber então isso da data e essas coisas todas, que eu na terça-feira já vou falar com o Dr. HH o que é que se vai fazer, se é melhor fazer testamento, se é doação (…). Nunca faltei ao respeito à tua irmã, nunca te faltei ao respeito a ti, não te vou pedir perdão para me perdoares… não vou pedir perdão para me perdoares, muito menos a ela (…). A ti, não te vou pedir perdão. A ti, não de vou pedir perdão (…). A ela, muito menos. Passei fome para a criar (…). Não te vou pedir… não te vou pedir para me perdoares, que isso a mim não me interessa (…). O tio EE, a primeira coisa que me apareceu pediu: 'perdoa-me que eu dei cabo disto tudo'. Eu não vou pedir perdão a ninguém. E com a idade que eu tenho, o que apanhar, vou sair entre quatro…se não me limparem o sebo na cadeia, lá aqueles mafiosos do caralho… Eu vou sair de lá, se apanhar…evidente que era a máxima (…). Eu sou mais velho do que ele 5 anos, por isso…e as doenças que tenho, eu vou sair de lá em quatro tábuas, ou de outra maneira, não sei. Por isso, eu não te peço perdão (…). O Dr. HH, para mim, é um Advogado…não é fraco, nem é bom, é médio, pronto. (…). Agora, eu se tivesse dinheiro para ir buscar, por exemplo, o II e não sei quê, isso era diferente. Mas eu não quero gastar muito dinheiro porque isto… É como o tio EE, 'eu estou a gastar dinheiro…estou a gastar dinheiro'… E já antes, quando ele foi presente a Ministério Público…quando ele foi apresentado em Tribunal, foi a Guimarães, o Ministério Público pediu logo a pena máxima, os 25 anos. Por isso, a mim, também me vai tocar a mesma coisa, os 25 anos e acabou. É os 25 anos e mais nada (…). Mas eu também não estou muito preocupado com isso. Ninguém me vai ver, ninguém vai nada (…). Quem vier à minha procura… só se for ou o Advogado que me mandem, que o resto, não quero cá mais ninguém, nem nada (…). Não sei o que é que vai acontecer. Não sei como é que vocês vão tomar conta da casa. Se ela não trabalha, tu não trabalhas (…). Estou perdido, filho. Estou perdido. Esta medicação que a médica pensa que é… não me está a fazer efeito nenhum (…). Não disse nada ao meu irmão JJ (…). Se se passar alguma coisa, vocês (…) se ele perguntar, dizem: 'o (…) diz que não vem aqui' e não sei quê, pronto, que é para ele não ter outro choque. Então é que ele vai mesmo desta para melhor (…)'. 24. Nessas circunstâncias, a BB estava presente e ouviu as palavras proferidas pelo arguido, em virtude de o filho ter colocado o telemóvel em alta voz. 25. As palavras proferidas pelo arguido foram gravadas pela filha CC, com o seu telemóvel. 26. O arguido não sabia que o filho tinha colocado o telemóvel em alta voz, nem que a BB estava presente, nem que as suas palavras estavam a ser gravadas. 27. No dia 01 de novembro de 2019, o arguido não compareceu à consulta de reavaliação que havia sido agendada em 25 de setembro de 2019. 28. No dia 02 de novembro de 2019, pelas 20h30, o arguido voltou a falar com o filho e, além do mais, disse-lhe: 'É para ti. Ela só vai levar aquilo que eu não lhe puder tirar (…). Eu só quero é o testamento pronto, que é para depois eu dar rumo à minha vida, que isto… (…) Eu quero é o documento feito para te segurar as coisas e depois eu vou dar rumo a esta situação. Vou dar rumo a esta situação. Não foi à primeira vez, vai ser à segunda. Quero… Estou farto disto. Ó pá, estou farto disto, da vida, disto (…). Quero é ver se ela leva o menos possível daquilo que eu tenho. Quero é para ti. E depois já sabes como é. Elas não podem lá entrar. Deita-lhe o olho, hã? Ou não, ficas sem aquilo. Isso vai ficar no testamento. E o meu irmão mais velho…mais velho e sobrinhos…nem que seja daqui a 20 anos, se o meu irmão morrer e se ela ainda for viva, ela não pode lá entrar porque o meu sobrinho EE é novo e o KK é aqui de ... e não sei o quê (…). Só quero é a tua parte. E é nossa de sangue. A minha parte é que é a verdadeira tua parte de sangue. A tua mãe é metade. É assim que a Justiça diz. E pronto (…). Quero isto resolvido, quero o testamento… (…) O testamento diz que fica caríssimo, diz que é caríssimo. (…). Não me interessa, que é para ficar as coisas para ti. Eu depois vou resolver o assunto. E pronto (…). Eu só quero é… Quando tiver o documento…o testamento feito, eu depois vou resolver a minha vida (…). Tudo o que eu puder pôr em teu nome é tudo para ti (…).'. 29. As palavras proferidas pelo arguido foram gravadas pela filha CC, com o seu telemóvel. 30. O arguido não sabia que as suas palavras estavam a ser gravadas. 31. Nessas circunstâncias, a BB não se encontrava presente e teve conhecimento das palavras proferidas pelo arguido, em momento posterior. 32. No dia 03 de novembro de 2019, cerca das 20h30, o arguido telefonou ao filho e disse-lhe, além do mais, o seguinte: '(…) Eu só quero é que o Dr. faça os papéis e depois vou ver quanto é que ele me leva por fazer o testamento e depois vou fazer o testamento (…). Eu depois vou resolver a minha vida. Mas não se vão ficar a rir. Eu sempre disse…eu sempre disse…Na minha terra há um ditado que se diz assim: 'o último a rir é o que se ri melhor'. Na minha terra diz-se: 'o último a rir é o que se ri melhor' (…). Isso tem que ficar tudo escrito. Tudo o que é meu…Eu vou falar com o Dr.: 'o que é meu, eu quero que fique escrito que é para o meu filho' e o que não puder, então… A outra vai levar o mínimo que puder. Depois de eu ter isto tudo resolvido, eu vou resolver a minha vida, que eu estou farto de estar…andar (…). Eu sempre disse isso: só vou ter pena de ti. És menor…vais ter que ir para um colégio… Vais ter que ir para um colégio, não é? E pronto. A gente… Eu só quero…eu quero é o testamento feito. Eu depois vou dar seguimento à minha vida, que eu estou farto disto (…). O que é, eu quero que ela receba o menos possível, o menos possível e depois quero que o resto seja tudo para ti. Atenção, a tua mãe isso depois pode-te orientar. A água lá em cima (impercetível), a parte que deve ir tocar ao LL só tem um (impercetível) de água da poça da ..., daquela poça lá em cima, acho que é tapada às 8 da noite e depois até ao sol pôr… ou ao sol pôr tapa-se até ao outro dia. A leira de baixo que vai tocar metade ao EE e metade a mim, aquela leira da casa do… daquela do lado, a tua mãe… aquilo tem um (impercetível)…apesar de ser só aquela leira, tem mais água do que a de cima, que é… A água acompanha sempre o terreno. Havendo partilhas, não havendo, a água segue sempre o terreno. Eles ficam com um (impercetível) e a parte… só aquela leira fica com um (impercetível) e meio de água. Melhor do que ninguém, ela sabe essas coisas para te orientar e não sei quê. (…). Por ali abaixo, direito à casa dele, aquilo é tudo do tio Zé. Tu só não podes proibir a passagem deles. Eles não podem pôr carros, nem motas, nem nada. Fora do portão para fora. Podem vir, passam a cancela, vão à loja por baixo da casa deles e não sei quê. Isso a tua mãe depois pode-te orientar. Eu vou ver se isso fica tudo escrito e não sei quê. E eu só (impercetível) com isto e pronto porque che… Eh pá, estou num… se não foi da outra vez, desta vez… A medicação não faz nada, não… nem eu… estou-me a borrifar para a medicação, nem nada. Toma conta das coisas, não te deixes enganar (…). Eu logo que tenha a situação resolvida, eu vou resolver a minha também. Pronto'. 33. Nessas circunstâncias, a BB estava presente e ouviu as palavras proferidas pelo arguido, em virtude de o filho ter colocado o telemóvel em alta voz. 34. As palavras proferidas pelo arguido foram gravadas pela filha CC, com o seu telemóvel. 35. O arguido não sabia que o filho tinha colocado o telemóvel em alta voz, nem que a BB estava presente, nem que as suas palavras estavam a ser gravadas. 36. No dia 05 de novembro de 2019, o arguido voltou a falar com o filho à mesma hora, pelo telefone, tendo-lhe dito que precisava falar com a mãe para tratar das águas das terras, pois queria fazer o seu testamento e que também precisava de arranjar alguém para limpar a casa. 37. Nesse dia, à noite, o arguido ligou à BB, que não atendeu. 38. No dia 25 de novembro de 2019, o arguido recebeu uma carta do Tribunal de Família Menores e ligou cerca de 20 vezes à BB, mas a mesma não atendeu e bloqueou o seu número de telemóvel. 39. Nessas circunstâncias, o arguido pretendia saber o que se passava e estava preocupado, pensando, inclusive, que o filho tivesse feito alguma asneira e que a carta estivesse relacionada com isso. 40. BB e os filhos tinham conhecimento do problema de saúde mental do arguido e da sua agravação em consequência do homicídio perpetrado pelo seu irmão. 41. No dia 28 de novembro de 2019, o arguido tinha, no interior da sua residência, sita na Praça ..., ..., em ...: Uma arma de fogo transformada, semiautomática, marca ..., de calibre 6,35mm ..., com o comprimento total de 12 cm, sendo uma arma originalmente concebida com câmara para alojar e disparar munições de calibre 8mm, tendo sido transformada em arma de fogo de calibre 6,35mm através da introdução de um cano em aço de alma estriada, em boas condições de funcionamento; Seis munições, marca ..., calibre 6,35mm, de percussão central, constituídas por fulminante, carga propulsora e projétil de chumbo encamisado, para utilização em armas de fogo de alma estriada, em razoável estado de conservação; Um bastão extensível, sem marca, com 51 cm; Um punhal, sem marca, com lâmina de 15,5 cm, sendo vulgarmente conhecido como faca de mato com serrilha; Uma navalha, sem marca, com lâmina de 9,6 cm; Uma navalha, sem marca, com lâmina de 8 cm; Uma navalha, sem marca, com lâmina de 8 cm; Uma arma de ar comprimido de aquisição livre, marca ..., calibre 4.5mm, com cano de alma estriada, destinada a lançar projétil metálico, com sistema de propulsão por ar comprimido. 42. O arguido sabia que não dispunha de autorização para ter em seu poder a referida arma de fogo nem o referido bastão extensível. 43. O arguido sabia que não era titular de livrete de manifesto de arma nem de licença que lhe permitisse ter em seu poder as referidas munições. 44. O arguido sabia que não dispunha de autorização para ter em seu poder o referido punhal e não justificou a sua posse. 45. O arguido decidiu guardar os referidos objetos no interior da sua casa nas 46. condições descritas, bem sabendo que a sua detenção não lhe era permitida, tendo atuado deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a conduta era proibida e punida pela lei penal. 47. Descendente de uma família de origem socioeconómica e cultural modesta, AA nasceu num dos bairros do centro histórico da cidade ..., sendo o segundo de uma fratria de três. 48. O pai era proprietário, com mais dois sócios, de um pequeno restaurante, enquanto a mãe era empregada de limpeza em estabelecimentos de restauração e hotelaria. 49. AA cresceu numa família cuja dinâmica familiar estava centrada na progenitora, figura que cuidava e protegia, rígida, austera e disciplinadora e que impunha a sua autoridade com recurso ao castigo físico, se necessário; era à volta desta que se organizava a vida familiar e a educação da prole. 50. Por sua vez, o progenitor era uma pessoa afetivamente mais próxima, mas, igualmente, rigorosa, punitiva, ainda que menos presente na educação dos filhos, dada a ocupação quotidiana. 51. AA ingressou, em idade própria, no ensino obrigatório tendo revelado muitas dificuldades no primeiro ano de escolaridade, que viria a repetir por duas vezes, insucesso escolar que atribui ao desinteresse e fraco empenho pedagógico do professor nas atividades letivas. 52. O arguido não gostava de estudar e preferia trabalhar, sendo um aluno sem problemas de indisciplina e de absentismo, ainda que com falta de aptidão e de motivação para as atividades letivas. 53. Após novos insucessos no 2º e 3º ciclos, abandonou a escola quando frequentava o 7º ou 8º ano de escolaridade. 54. Começou a trabalhar com cerca de 14 ou 15 anos, na área da restauração, como empregado de balcão, atividade que manteve durante 4 ou 5 anos, em dois ou três estabelecimentos de restauração diferentes, que ia alterando sempre em função da procura de melhores condições de remuneração. 55. Aos 21 anos de idade, ingressou no serviço militar obrigatório, que cumpriu, por opção, nos Comandos na Amadora. 56. Durante o período de cerca de dois anos em que cumpriu serviço militar obrigatório habilitou-se com a licença de condução de automóveis pesados, o que viria a influenciar a sua futura atividade profissional. 57. Regressado à vida civil, iniciou-se como motorista profissional de transporte de mercadorias na empresa 'L...', onde permaneceu três anos. 58. Entretanto, fez formação e começou a trabalhar como motorista de transportes públicos na ... (...), na qual permaneceu cerca de 12 anos. 59. Aos 37 anos de idade, fixou residência em ... e começou a trabalhar nos ... (...). 60. Porém, decorridos alguns anos, devido aos problemas de saúde, hipertensão, diabetes e várias próteses na coluna vertebral, deixou o serviço de carreiras regulares e passou ao serviço de reserva da mesma empresa, à qual continua presentemente vinculado, mas suspenso do exercício da sua atividade desde a sua entrada no estabelecimento prisional. 61. De permeio, emigrou e permaneceu durante um curto período de tempo nos ..., onde trabalhou na área da restauração, mas não se adaptou, ao contrário da mulher que gostava de trabalhar neste país, pelo que regressaram ambos de novo a .... 62. No plano afetivo-relacional, AA, casou com BB, vizinha da casa de férias de seus pais, numa aldeia próxima de .... 63. Conhecia-a desde a infância e, após alguns anos de namoro, casou quando contava cerca de 27 anos de idade. 64. AA descreve globalmente o seu casamento como sendo uma relação positiva e gratificante, que viria a degradar-se pela elevada conflitualidade relacional e que culminou na separação do casal. 65. Decorrido cerca de um ano após a separação, AA desencantado com o sucedido desencadeou o processo de divórcio litigioso, pondo fim ao casamento. 66. Na audiência em Tribunal em que foi decretado o divórcio, ocorrida em dezembro de 2015, a filha mais velha do arguido aceitou testemunhar, contra a vontade e a determinação do pai, que queria que a filha se mantivesse afastada do conflito. 67. A partir desta data, a relação parental de AA passou a circunscrever-se exclusivamente ao seu filho mais novo, elemento de ligação, fonte de notícias e de recados para os restantes membros da família. 68. Os pós separação conjugal e o divórcio constituíram-se como um período difícil para AA no plano emocional, razão pela qual necessitou de recorrer à ajuda psiquiátrica, com toma de medicação ansiolítica e anti-psicótica, que mantém até hoje, necessitando igualmente de acompanhamento psicológico, do qual ainda beneficia presentemente. 69. À data dos factos, AA residia só, na morada supra indicada, e continuava divorciado. 70. BB residia nas proximidades. 71. O arguido encontrava-se de baixa médica e a gestão do orçamento para as despesas do quotidiano era por si organizada criteriosamente. 72. Apesar do divórcio consumado há vários anos, AA continuava a lamentar a separação conjugal e a alimentar a fantasia da reconciliação, que se reavivava e ativava de forma inversamente proporcional, numa espécie de compensação, face à fragilidade do seu escasso suporte social e afetivo, restringido, quase em exclusivo, ao irmão mais novo (atualmente condenado a pena de prisão pelo crime de homicídio qualificado) e ao filho, não mantendo qualquer tipo de relação com a filha. 73. O seu quotidiano circunscrevia-se, maioritariamente, à permanência na habitação, sem um padrão de convívio regular com amigos e/ou colegas de trabalho. 74. Na estruturação do seu projeto de vida, o arguido apresenta como prioridade retomar a atividade laboral nos ... e obter, em poucos anos, a sua reforma. 75. Pretende continuar a residir só, na morada indicada, e manter o Proc. nº 1405/19.... acompanhamento psiquiátrico a que está sujeito e a estabilização da sua saúde mental. 76. Ao longo da entrevista, manifestou angústia e desapontamento com a sua atual situação de prisão e preocupação com a perspetiva de vir a perder o emprego nos .... 77. Ao nível da saúde, mantém acompanhamento clínico pelo Hospital ..., bem como pelos serviços clínicos em meio prisional, com prescrição de terapêutica medicamentosa específica. 78. O arguido é considerado, entre amigos e colegas de profissão, como um trabalhador pontual, organizado e correto para os colegas. 79. Não tem passado criminal. 13. O Ministério Público interpôs recurso da sentença, mas o recurso foi rejeitado por ser manifestamente improcedente; 14. O autor esteve em prisão preventiva desde o dia .../.../2019 até ao dia 23 de Novembro de 2020; 15. O autor fazia tratamentos de psiquiatria, sendo acompanhado no Hospital ..., antes de ter sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva; 16. Quando foi aplicada esta medida de coacção o autor estava a fazer um tratamento para uma depressão; 17. Enquanto esteve em prisão preventiva o autor não foi visitado pelo filho com o qual mantinha uma relação próxima antes dos factos; 18. Após ser colocado em liberdade, o autor passou a isolar-se evitando o contacto com outras pessoas; 19. O autor sente vergonha, humilhação e revolta por ter estado em prisão preventiva; 20. O autor auferia o salário mensal de € 734,63, acrescido de subsídio de alimentação e subsídios de Natal e de férias; 21. No período em que esteve em prisão preventiva o autor deixou de auferir a quantia de € 11.544,10; 22. No período em que o autor esteve em prisão preventiva a sua residência foi assaltada. * Factos não provados:Com relevância para a decisão da causa não resultaram provados quaisquer outros factos, designadamente os seguintes: 1. No assalto à residência do autor foram levados relógios e dinheiro no valor de € 25.000,00; 2. No mesmo período o veículo automóvel do autor e os electrodomésticos da sua residência degradaram-se, tendo o autor que despender a quantia de € 1.300,00 para a sua reparação. * Motivação:O tribunal fundou a sua convicção nas declarações de parte do autor, no depoimento das testemunhas ouvidas e nos documentos juntos aos autos. O autor descreveu a sua situação pessoal e as consequências que resultaram do período em que esteve em prisão preventiva. As testemunhas MM e NN conheciam o autor no âmbito da sua actividade profissional. Estas testemunhas afirmaram que após ter estado em prisão preventiva o autor isolou-se e sente vergonha e revolta pelo sucedido. O autor convivia habitualmente com os colegas de trabalho e amigos e passou a recusar os convites, ficando na sua residência. As palavras destas testemunhas foram que 'penso que para ele é um peso muito grande as pessoas saberem que esteve preso' e 'ele enfia-se muito em casa'. A testemunha GG era cunhada do autor (ex-mulher de um irmão do autor). Esta testemunha afirmou que ficou com a chave da residência do autor quando foi preso preventivamente e deslocava-se várias vezes ao apartamento para ir buscar roupas que o autor pedia. Nas suas declarações confirmou que a residência do autor foi assaltada e foram levados dinheiro e outros objectos. No que respeita ao dinheiro afirmou que foi levada a quantia de € 10.000.00. A testemunha BB era a ex-mulher do autor e a ofendida no processo crime em que foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva. Esta testemunha confirmou os factos que foram considerados provados naquele processo. Além disso, demonstrou revolta com o sucedido e receio pelo comportamento do autor. Finalmente, acrescentou que os factos que foram praticados pelo autor levaram a que o filho ficasse com uma depressão profunda, sendo que após o sucedido deixou de estudar e apenas saiu de casa de cinco vezes. O tribunal não considerou provado que quando a residência do autor foi assaltada foram levados relógios e dinheiro no valor de € 25.000,00 e que no mesmo período o veículo automóvel do autor e os electrodomésticos da sua residência degradaram-se tendo o autor que despender a quantia de € 1.300,00 para a sua reparação, porque estes factos apenas foram confirmados pelas declarações do autor e da testemunha GG sem que tivesse sido apresentada qualquer outra prova, designadamente documental. No que respeita à quantia de € 25.000,00, além da divergência entre o valor que foi referido pelo autor e pela testemunha GG, não era crível que, atendendo à sua situação económica, o autor tivesse este montante na sua residência. Acresce que o autor referiu que tinha levantado esta quantia da sua conta bancária alguns dias antes do assalto e podia ter junto um extrato ou outro documento bancário que demonstrasse o levantamento. [transcrição dos autos]. * 4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Apreciemos a questão suscitada nas conclusões formuladas pelo apelante. Pretendia o A. com a presente acção ser indemnizado pelo período em que esteve em prisão preventiva, por indícios do crime de violência doméstica contra a sua ex-mulher, sendo que no âmbito desse processo veio a ser absolvido, considerando que esta medida de coacção foi ilegal ou injustificada. Entendendo que não esteve bem o Tribunal a quo ao dar como justificada a aplicação da medida de coacção, pois esta padece de erro grosseiro. Mas comecemos por rememorar a decisão recorrida: Apreciação crítica dos factos e sua subsunção ao direito: O autor pretende com a presente acção ser indemnizado pelo período em que esteve em prisão preventiva considerando que esta medida de coacção foi ilegal ou injustificada. Estando em causa uma situação de prisão preventiva é aplicável o disposto no art. 225º do Código de Processo Penal[2] e [3]. Este preceito estabelece o seguinte: Artigo 225º 1 - Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando: a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do nº1 do artigo 220º ou do nº2 do artigo 222º; b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia; c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente; ou d) A privação da liberdade tiver violado os nos1 a 4 do artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. 2 - Nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade. A indemnização por prisão preventiva ilegal ou injustificada envolve interesses conflituantes. Está em causa a necessidade de preservar a liberdade e garantir que a sua restrição é limitada ao estritamente necessário. Em sentido contrário, importa acautelar a eficácia da acção penal, a segurança e a liberdade dos demais membros da comunidade. Acresce que não pode deixar de se reconhecer que a decisão de aplicação da prisão preventiva assenta num juízo de prognose relativamente à prática pelo arguido dos factos indiciados e ao perigo de o manter em liberdade que pode não ser confirmado pela evolução posterior do processo. Esta decisão envolve necessariamente riscos tanto mais que na generalidade dos casos é tomada numa fase embrionária do processo em que existem meros indícios da prática do crime e não são conhecidos ou não estão consolidados todos os elementos que permitem uma imagem global e segura dos factos[4]. O erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a aplicação da prisão preventiva, referido na alínea b) do art. 255º nº1 do Código de Processo Penal, consiste no erro grave, contra manifesta evidência e indesculpável que torna a decisão injustificada ou arbitrária[5]. Neste sentido pode ver-se, entre muitos outros, o Acórdão da Relação do Porto de 30 de Outubro de 2014, de acordo com só constitui fundamento para indemnização o erro que ‘seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária porque assente em conclusões absurdas’[6]. Para este efeito deve proceder-se a uma análise ex ante reportada ao momento em que foi tomada a decisão de aplicação da prisão preventiva. É com base nos elementos que estavam disponíveis naquele momento que deve apreciar-se se o juízo de prognose relativamente à prática pelo arguido dos factos que lhe eram imputados e ao perigo de o manter em liberdade assentou num erro grosseiro que tornou a decisão injustificada ou arbitrária. A este propósito pode ver-se o Ac. do Tribunal Constitucional nº185/2010 de 12 de Maio, de acordo com o qual 'perante uma situação de sujeição a prisão preventiva legal cabe ao autor da acção demonstrar a existência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que determinaram a sua aplicação, sendo que o juízo, embora formulado em tempo posterior, se faz sempre em função do momento e das circunstâncias em que foi proferida a decisão, ou seja, tendo por base os factos, elementos e circunstâncias ocorridos na ocasião em que a prisão preventiva foi decretada'[7]. No caso dos autos, entendemos que não ocorreu um erro grosseiro na decisão que aplicou a prisão preventiva. O autor interpôs recurso da decisão do senhor juiz de instrução que aplicou a prisão preventiva e o recurso foi julgado improcedente, tendo a decisão sido mantida. Tratando-se de uma decisão que foi apreciada por mais do que um juiz e confirmada por um tribunal superior, torna-se particularmente difícil afirmar que ocorreu um erro grosseiro. Neste sentido pode ver-se o Ac. da Relação de Guimarães de 13 de Maio de 2021 que, numa situação em tudo idêntica, decidiu que 'o facto de o arguido ter recorrido da decisão que o prendeu preventivamente e um tribunal superior ter confirmado tal despacho torna já improvável a existência do alegado erro grosseiro'[8]. Os elementos que estavam disponíveis no processo quando foi proferida a decisão de aplicação da prisão preventiva confirmam o entendimento do senhor juiz de instrução. Na altura em que o autor foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido e foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva constavam do processo as declarações da ex-mulher do autor e as gravações dos telefonemas que o autor efectuou para o filho. Destes elementos resultava que o autor tinha a intenção de matar a ex-mulher e estava a preparar-se para as consequências deste facto. Também tinha sido realizada uma busca domiciliária à residência do autor em que foram encontradas diversas armas, incluindo uma pistola e um punhal. Finalmente, o autor residia muito próximo da ex-mulher, o que tornava particularmente intenso o perigo de ocorrer um homicídio. O senhor juiz de instrução aplicou a medida de coacção de prisão preventiva ao autor considerando que dos elementos disponíveis no processo resultava 'a perturbante sensação de se estar a assistir em directo ao anúncio certo da morte da vítima', o que era, efectivamente, verdade (cfr. fls. 46). Alguns dias antes dos factos o irmão do autor havia morto a sua mulher, tendo cometido um crime de homicídio em contexto de violência doméstica. Em momento algum foi imputada ao autor qualquer responsabilidade por este facto. O crime de homicídio que foi cometido pelo irmão do autor apenas foi referido para enquadrar a gravidade dos factos que o autor havia praticado e porque foi o acontecimento que deu origem ao seu comportamento. A alínea c) do nº1 do art. 225º do Código de Processo Penal foi introduzida pela Lei nº48/2007 de 29 de Agosto. O reconhecimento do direito a ser indemnizado ao arguido que foi absolvido quando se comprovar que não foi agente do crime ou actuou justificadamente alterou substancialmente os termos em que a questão da indemnização por prisão preventiva ilegal ou injustificada se colocava. Anteriormente era relevante apenas uma análise reportada ao momento em que foi tomada a decisão de aplicação da prisão preventiva. Agora passaram a ser relevantes aspectos ex post que nada têm a ver com aquela decisão. A prisão preventiva pode ter sido aplicada de forma legal e justificada, não se colocando qualquer questão relativamente ao acerto da decisão. O direito de indemnização é reconhecido porque posteriormente o arguido foi absolvido e comprovou-se que não foi agente do crime ou actuou justificadamente. A comprovação de que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente refere-se à questão da autoria e das causas de exclusão da ilicitude e da culpa[9]. Quando o arguido é absolvido com estes fundamentos tem direito a uma indemnização pelo período em que esteve em prisão preventiva. Quando é absolvido com outros fundamentos, designadamente porque em julgamento foram recolhidos outros elementos que permitiram um diferente enquadramento jurídico da sua conduta, terá direito a uma indemnização por prisão preventiva injustificada se esta medida de coacção tiver sido aplicada com base em erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. Tem sido discutida a questão de saber como devem ser tratados os casos de absolvição com fundamento no princípio in dubio pro reo. Uma interpretação literal da alínea c) do nº1 do art. 225º do Código de Processo Penal exclui estes casos[10]. Porém, discute-se se esta distinção pode ser aceite na medida em que consiste em fazer uma distinção relativamente às situações de absolvição baseada nos respectivos fundamentos, o que pode violar o princípio da igualdade consagrado no art. 13º nº1 da Constituição. Também se discute se pode aceitar-se a própria exigência de que o arguido comprove que não foi agente do crime ou actuou justificadamente, agora com base na violação do princípio da presunção de inocência consagrado no art. 32º nº2 da Constituição[11]. O Tribunal Constitucional começou por aceitar esta exigência, considerando que não padecia de inconstitucionalidade[12]. Recentemente, este tribunal alterou a sua posição, tendo decidido no Ac. nº284/2020 de 28 de Maio ‘julgar inconstitucional, por violação dos art. 13º nº1 e 32º nº2 da Constituição, o art. 225º nº1 al. c) do Código de Processo Penal, na redação da Lei nº48/2007 de 29 de Agosto, interpretado no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou atuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo’[13]. O sentido desta decisão não é que o direito a ser indemnizado pela prisão preventiva passou a ser admissível sempre que o arguido é absolvido. O direito de indemnização por prisão preventiva decorre do art. 27º nº5 da Constituição, nos termos do qual a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer. O Tribunal Constitucional tem salientado sempre que a Constituição não impõe a obrigatoriedade de indemnizar todos os arguidos a quem foi aplicada a prisão preventiva e são absolvidos. Com efeito, ‘nem o art. 27º nº5 da Constituição nem o art. 5º § 5 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos impõem o dever de indemnizar todo e qualquer arguido absolvido a quem anteriormente tenha sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva (…). Ou seja, a imposição de prisão preventiva, conjugada com a posterior absolvição, não é condição suficiente do dever de indemnizar’[14]. Por outro lado, é reconhecido ao legislador um amplo espaço de conformação relativamente à solução a adoptar no âmbito das suas opções políticas. O limite é apenas que esta solução deve respeitar o núcleo essencial do direito que é previsto pela Constituição. O direito à indemnização previsto no art. 27º nº5 da Constituição fundamenta-se na repartição solidária do sacrifício que decorre da prisão preventiva. Está em causa o entendimento de que o risco associado ao juízo de prognose que está subjacente à decisão de aplicação da prisão preventiva não deve correr exclusivamente por conta do arguido. Tendo a prisão preventiva sido injustificada, o sacrífico que lhe foi imposto deve ser suportado pela comunidade. Como se afirma no Acórdão do Tribunal Constitucional nº284/2020 de 28 de Maio 'a opção do legislador de 2007 significa que o risco associado àquele juízo - o qual, como mencionado, se reconduz a uma prognose que, mesmo sendo efetuada corretamente, pode não se confirmar no futuro - não deve correr exclusivamente por conta do indivíduo privado da liberdade a título cautelar, mas ser repartido por todos os membros da comunidade (enquanto dever estadual de indemnizar), uma vez e na medida em que são eles os beneficiários (…) do sacrifício imposto àquele. Por outras palavras: uma vez que a privação da liberdade a título cautelar se veio a revelar materialmente injustificada, é justo que o dano sofrido pelo indivíduo e a ele imposto para salvaguarda de bens que a todos interessam não o onere exclusivamente e seja igualmente compensado por todos’[15]. É este pensamento - ratio legis - que está subjacente à alínea c) do art. 225º nº1 do Código de Processo Penal. O direito a ser indemnizado pela prisão preventiva pressupõe que a absolvição do arguido demonstre que a aplicação desta medida de coacção foi injustificada. Entender de outra forma seria aceitar que a absolvição era condição suficiente para a indemnização por prisão preventiva, o que é recusado pelo Tribunal Constitucional e em momento algum correspondeu à opção do legislador. Transpondo estes princípios para o caso dos autos, temos que o autor não tem direito à indemnização que reclama. A prisão preventiva foi aplicada ao autor com o fundamento de que estava fortemente indiciada a prática de um crime de violência doméstica e um crime de detenção de arma proibida, previstos no art. 152º do Código Penal e no art. 86º da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro. O autor foi absolvido pela prática do crime de violência doméstica, mas foi condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida. A sentença que foi proferida não é, pois, uma sentença absolutória, o que afasta o direito do autor a ser indemnizado. Nem sequer se sustente que a condenação pelo crime de detenção de arma proibida não tem relevância. É certo que este crime não permitia que fosse aplicada ao autor a medida de coacção de prisão preventiva (art. 202º nº1 al. a) do Código de Processo Penal). Todavia, trata-se de um crime que tem uma relação muito próxima com o crime de violência doméstica sendo a detenção de armas pelo agressor um forte elemento de ameaça ou coacção da vítima e um aspecto que coloca um risco acrescido de ocorrer um crime de homicídio praticado em contexto de violência doméstica. Acresce que o facto de terem sido encontradas ao autor diversas armas foi considerado pelo senhor juiz de instrução para a opção pela prisão preventiva em detrimento de outra medida de coacção. O senhor juiz de instrução afirmou que o autor tinha o propósito de matar a ex-mulher e só ainda não o havia concretizado porque pretendia realizar um testamento a favor do filho, 'embora já tivesse reunidas todas as condições materiais de execução do propósito em face da detenção das armas que lhe foram apreendidas' (cfr. fls. 44). A absolvição do autor também não resultou de ter ficado demonstrado que não foi o agente do crime ou actuou justificadamente. A materialidade dos factos que foram praticados pelo autor resultou provada. O que se passou foi que se procedeu a uma diferente interpretação dos factos, considerando-se que não estavam preenchidos os elementos do tipo legal do crime de violência doméstica. Na sentença foi referido que 'o arguido não atuou com a intenção de causar sofrimento psíquico à BB e nunca representou tal possibilidade, sendo que também não representou a possibilidade de as palavras que dirigiu ao filho chegarem ao conhecimento da sua ex-mulher. Falecem, por isso, os elementos constitutivos do tipo. Deste modo, o arguido não cometeu o crime imputado, impondo-se a sua absolvição' (cfr. fls. 33). A expressão o arguido não cometeu o crime imputado não pode ser lida isoladamente e deve ser entendida de acordo com a restante fundamentação. Da frase falecem, por isso, os elementos constitutivos do tipo resulta que não estava em causa a autoria do crime de violência doméstica pelo autor, mas a circunstancia de se considerar que a matéria de facto provada não preenchia os elementos deste crime. Finalmente, não se verifica a razão de ser da norma, o que determina que não seja aplicada de acordo com o princípio cessione ratione cessio legis. O fundamento para aplicação da prisão preventiva foi o risco eminente de o autor matar a ex-mulher. No despacho que foi proferido pelo senhor juiz de instrução consta que 'não sofre qualquer dúvida que o arguido tem um propósito firme de matar a ex-mulher. O teor das conversas que manteve com o filho (menor) não deixa qualquer dúvida, estando apenas a aguardar a realização das condições que entende ideias para o fazer, as quais passam designadamente por deixar os bens ao referido menor e assegurar que mesmo por si tenha condições de vida futura, como herdeiro, mesmo que numa instituição, porquanto a irmã, no seu entendimento, não tem condições, e mãe será morta (…). Pode até dizer-se que a vítima já teria sido morta não fosse a ideia fixa do arguido realizar previamente o testamento a favor do filho menor. Ou seja, só por força desta ideia é que ainda não atentou contra a vida da ex-mulher, embora tivesse já reunidas todas as condições materiais de execução do propósito, em face da detenção das armas que lhe foram apreendidas aquando da busca domiciliária. E, reitera-se, ouvido o registo das comunicações, bem como as declarações ora prestadas pelo arguido em sede de interrogatório, torna-se evidente que o mesmo está instável psicologicamente, sente-se só, desamparado, infeliz, deprimido e incapaz de controlar no seu isolamento o impulso homicida relativamente à ex-mulher' (cfr. fls. 43). Este fundamento foi integralmente confirmado pela sentença, na qual se afirmou que 'algumas das suas palavras evidenciam que passou pela sua cabeça cometer um crime de homicídio. Só assim se percebem afirmações como 'Eu, com a idade que tenho, apanhando 25 anos de cadeia, eu não saio vivo da cadeia'; 'Eu tenho 53. 63, 73… Eu não…mesmo que eu (…) apanhasse só 20 anos, eu não duro até os 73 anos com os problemas de saúde que tenho'; 'O tio EE [irmão do arguido que estava preso por homicídio], a primeira coisa que me apareceu pediu: 'perdoa-me que eu dei cabo disto tudo'. Eu não vou pedir perdão a ninguém. E com a idade que eu tenho, o que apanhar, vou sair entre quatro…'; 'Eu vou sair de lá, se apanhar… evidente que era a máxima (…). Eu sou mais velho do que ele 5 anos, por isso… e as doenças que tenho, eu vou sair de lá em quatro tábuas'; 'Por isso, a mim, também me vai tocar a mesma coisa, os 25 anos e acabou. É os 25 anos e mais nada'. Muito embora o arguido negue a intenção de matar, não soube estas suas palavras, dizendo apenas que, nessa altura, não estava bem e que estava perdido. Algumas das suas palavras apontam no sentido de que a assistente seria a vítima do crime e foi, assim, que a mesma disso se convenceu. Em causa estão as seguintes afirmações: 'Porque tu vais para uma instituição, que és menor, a tua irmã não trabalha, não pode ser tutora de ti, isso era se ela trabalhasse, é que dizia: 'não, eu sou mais velha, ele fica comigo', mas ela não trabalha, não pode ser tua tutora'; 'Porque ele avisou a tua mãe da primeira vez. Só que a tua mãe pode ter os Santos que tiver que, desta vez, a mim, não me interessa'; 'Eu não sei o que é que vai acontecer com a casa porque tu não trabalhas, andas na escola, a CC não trabalha, ela não tem dinheiro para pagar estas despesas, que andam aqui em obras, condomínio e essas merdas todas…'; 'Não sei o que é que vai acontecer. Não sei como é que vocês vão tomar conta da casa. Se ela não trabalha, tu não trabalhas…'; 'só vou ter pena de ti. És menor… vais ter que ir para um colégio… Vais ter que ir para um colégio, não é?'. Contrapôs o arguido que aquilo que pretendia dizer era que se ele morresse e, por isso, deixasse de ajudar como ajuda (além de pagar a pensão de alimentos, metade das despesas escolares e metade da medicação, ainda contribui com bens alimentares), a mãe, com o ordenado do OO, não teria dinheiro suficiente para sustentar o filho e, como a irmã também não trabalhava, o mesmo teria que ir para um colégio da Segurança Social. Sucede que, para além de, no seu discurso, o arguido não fazer referência à insuficiência de meios económicos da assistente para sustentar o filho, a sua versão deixa sem explicação a expressão 'Porque ele [percebendo-se que se referia ao irmão EE] avisou a tua mãe da primeira vez. Só que a tua mãe pode ter os Santos que tiver que, desta vez, a mim, não me interessa' (cfr. fls. 28). Pese embora a absolvição pela prática do crime de violência doméstica, não pode, pois, afirmar-se que a sentença demonstrou que a prisão preventiva foi injustificada que, como referimos, é o pensamento legislativo que está subjacente à alínea c) do art. 225º nº1 do Código de Processo Penal. A presente acção é, assim, integralmente improcedente. Passemos, agora, a enquadrar a situação sub judice. O A. intentou a presente acção visando a condenação do Estado a indemnizá-lo por ter estado preso preventivamente desde o dia .../.../2019 até ao dia 23 de Novembro de 2020 por indícios do crime de violência doméstica contra a sua ex-mulher, vindo no âmbito desse processo a ser absolvido desse crime. Como já se escreveu[16], A responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas, tem consagração constitucional, estatuindo o art. 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que “O Estado e demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.” Constituindo princípio constitucional o direito à liberdade e segurança, o art. 27º prevê no nº 5 que “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.” Este comando, como escrevem Vital Moreira e Gomes Canotilho, in Constituição da República Portuguesa anotada, I, pág. 430, constitui também fundamento constitucional quanto à responsabilidade do Estado por facto de função jurisdicional: “A Constituição prescreve, expressis verbis, a indemnização no caso de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (mesmo quando decretada por um juiz) e nos casos de condenação injusta, como por hipótese de erro judiciário (arts. 27º/5 e 29º/6). Mas para além destes casos, deve valer o princípio geral da responsabilidade do Estado por facto da função jurisdicional sempre que das acções ou omissões ilícitas praticadas por titulares de órgãos jurisdicionais do Estado, seus funcionários ou agentes resultem violações de direitos, liberdades e garantias ou lesões de posições jurídico-subjectivas (ex: prisão preventiva ilícita, prescrição de procedimento, não prolação de uma decisão jurisdicional num prazo razoável). É nos casos de prisão preventiva – medida de coação em processo penal decretada por um juiz por fortes indícios de prática crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, admitia pelo art. 27º/3, alínea c) da CRP) – quando o arguido vem a ser absolvido em julgamento, que a questão da responsabilidade civil do Estado se coloca com particular acuidade. De forma inovatória, o CPP de 1987, relativamente ao CPP de 1929, veio prever no art. 225º a possibilidade de indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada O art. 225º, na redacção introduzida pela Lei nº 59/98 de 25.08, dizia: 1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização pelos danos sofridos com a privação da liberdade. 2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.” Em comentário a esta disposição, Castro e Sousa, citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, anotado, 10ª edição, teceu as seguintes considerações: “(…) regula o Código a indemnização por privação de liberdade, distinguindo os pressupostos do respectivo arbitramento consoante esta seja ilegal ou injustificada. O nº1 do art. 225º respeita à reparação quando a privação de liberdade tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção constante do nº5 do art. 27º da CRP (…). Por sua vez, o nº2 estabelece que a reparação arbitrar é extensiva aos casos de prisão preventiva formalmente legal, mas que se vem a revelar injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia.” A Lei nº 48/2007, de 29.09, alterou a redacção do art. 225º, que se mantém, dele passando a constar: 1. Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando: a) A privação for ilegal, nos termos do nº1 do art. 220º, ou do nº2 do art. 222º; b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia; c) Se comprovar que o arguido não foi o agente do crime ou actuou justificadamente; ou d) A privação da liberdade tiver violado os nºs 1 a 4 do artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. 2. Nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade. Ou seja, estendeu-se o direito a indemnização aos casos de permanência na habitação, deixou de se exigir que prisão tenha sido manifestamente ilegal, bastando a constatação da sua ilegalidade, e reconhece-se o direito de indemnização a quem for absolvido por estar comprovadamente inocente ou tiver agido justificadamente. Como referido no supra citado Acórdão da Relação do Porto de 08.05.2015, com a inovação traduzida na nova alínea c), pretendeu o legislador conceder também o direito a indemnização mesmo que não tenha havido ilegalidade ou erro grosseiro no decretamento da prisão preventiva: “o ter o arguido sofrido prisão por um crime que comprovadamente se veio a verificar não ter cometido é falha da máquina judicial que, independentemente das causas que a possam explicar e desde que estas não possam ser imputadas ao próprio arguido, reveste suficiente gravidade para que ele não deixe de ser compensado.” E que dizer da apelação? Ora, desde já se diga, antecipando a decisão, que reapreciando a decisão de mérito da acção, nenhum reparo nos merece. Com efeito, a sentença do Tribunal a quo assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova. Sendo que, do facto do A. ter estado em prisão preventiva desde o dia .../.../2019 até ao dia 23 de Novembro de 2020 por indícios do crime de violência doméstica contra a sua ex-mulher, vindo no âmbito desse processo a ser absolvido desse crime, não resulta que esta medida de coacção tenha sido ilegal ou injustificada, permitindo configurar a mesma como padecendo de erro grosseiro. Cumprindo, desde já, lembrar que o A. foi absolvido da prática de um crime de violência doméstica de que também vinha acusado, não porque tenha ficado demonstrado que não foi ele o autor dos factos que motivaram a sua detenção e pelos quais lhe foi imposta a prisão preventiva pelo juiz de instrução aquando do seu primeiro interrogatório judicial, nem que tenha atuado justificadamente, mas porque aos factos que lhe vinham imputados na acusação considerados provados foi atribuída relevância jurídica diversa. É que, nas situações de privação de liberdade indemnizáveis nos termos do nº 2 do art. 225º do CPP, na redacção resultante da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, pressupondo a legalidade da prisão preventiva, esta só é considerada materialmente injustificada, e por isso mesmo constitutiva da obrigação de indemnizar, quando tivesse sido decretada por erro grosseiro na avaliação dos respectivos pressupostos de facto. Logo, perante uma situação de sujeição a prisão preventiva legal, aplicada a um arguido que depois vem a ser absolvido, não por ter ficado demonstrado que não foi o agente do crime ou actuou justificadamente, mas por se ter procedido a uma diferente interpretação dos factos, considerando-se que não estavam preenchidos os elementos do tipo legal do crime de violência doméstica, competia ao A., na respectiva acção de indemnização, demonstrar a existência de erro grosseiro. E, in casu, isso não se passou, tendo assertivamente a decisão recorrida considerado não se poder concluir que a privação da liberdade do A. se tenha ficado a dever a um erro grosseiro, em face do que negou o direito de indemnização com base na al. b) do art. 225º e também afastou o direito à indemnização com fundamento da al. c) por não se ter provado que o A. não praticou o crime por que foi indiciado, como ali se exige, como já supra melhor esclarecido. Logo, não assistindo razão ao recorrente A., improcede o recurso, com custas a pagar pelo mesmo (art. 527º do CPC). * * 6 – DISPOSITIVO Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente e consequentemente manter a decisão recorrida. Custas pelo recorrente. Notifique. * Guimarães, 20-04-2023 (José Cravo) (António Figueiredo de Almeida) (Maria Cristina Cerdeira)
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