Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
520/11.1IDBRG.G1
Relator: CRUZ BUCHO
Descritores: ACÇÃO PENAL FISCAL
ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – O dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de proteção penal, por atipicidade do facto.
II – O efetivo recebimento da prestação tributária é pressuposto essencial do crime de abuso de confiança fiscal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:


I - Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º520/11.1IDBRG, do 1º Juízo Criminal do Tribunal judicial de Braga, por sentença de 31 de Outubro de 2010, as arguidas Lígia R... e M... Consultoria, Sociedade Unipessoal, Lda foram condenadas, a primeira como autora material de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p.p. artº 105º, nº 1 do RGIT, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 10,00 (dez euros), perfazendo a multa de 1.800,00 (mil e oitocentos euros) e a segunda pela prática de um crime de crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. p. artº 105º, nº 1, 7º, nº 1 do RGIT, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 10,00 (dez euros), perfazendo a multa de 3.000,00 (três mil euros).

Inconformado com tal decisão, as arguidas dela interpuseram recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
A. O Tribunal recorrido condenou a arguida Lígia como autora material de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. p. art. 105º nºl do RGIT, na pena de 180 dias de multa à taxa de 10,00€.
B. Em relação à arguida M..., o Tribunal recorrido condenou pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p.p. 105º nº 1, art. 7º nº1, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 10,00€.
C. Na douta sentença ficou como provado que a arguida M... recebeu dos seus clientes em percentagem a 77,33% (equivalente a €8.004,00 de IVA efectivamente recebido).
D. Sucede que, esse valor está em contradição com a prova testemunhal (Inspector Tributária e Técnica Oficial de Contas).
E. Segundo esses testemunhos até à data de pagamento do imposto em causa, a arguida M... apenas recebeu a quantia de € 5.750,00.
F. No caso IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal.
G. Assim sendo, a douta sentença entra, na modesta opinião dos recorrentes, em contradição da fundamentação, na medida que não foi dado como provado o valor exacto que a arguida M... recebeu dos clientes, nem o que foi pago posteriormente, nem o valor que ainda está em dívida.
H. Pelo que as arguidas só poderiam ser condenadas pelo facto de não terem entregue nos cofres do Estado a quantia que efectivamente receberam até à data limite de pagamento.
I. Assim parece existir contradição insanável na fundamentação, verificando-se o vício da alínea b) do nº 2 do art. 410º do CPP. Sem prescindir,
J. Em sede julgamento, a arguida Lígia confessou que não entregou ao Estado a quantia de € 5.750,00 que efectivamente havia recebido por parte dos seus clientes (G... e Lar de Idosos).
K. Para além disso, também afirmou que a arguida M... tinha acordado um plano de pagamento, em prestações, do IVA.
L. Esses factos deveriam ter sido considerados como atenuantes na aplicação da medida
da pena.
M. O que não aconteceu!
N. Originando assim em penas de multa extremamente gravosas para as arguidas.
O. Nestes termos, as penas aplicadas às arguidas são extremamente gravosas, perante as atenuantes supra mencionadas, violando o disposto no art. 72º nº1 e nº2 c).

O Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu aos recursos, pugnando pela manutenção do julgado.

Os recursos foram admitidos, para o Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 222.

Nesta Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer pronunciando-se pela procedência dos recursos.

Cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, foram colhidos os vistos legais.

Procedeu-se à realização da conferência.

II- Fundamentação
1. É a seguinte a factualidade apurada no tribunal a quo:
A) Factos provados (transcrição)
1- A sociedade “M... — Consultoria, Sociedade Unipessoal, Lda, denominação que veio a adoptar em 2 de Maio de 2007, em substituição da anterior, “M... — Distribuição de Bebidas e Produtos Alimentares, Sociedade Unipessoal, Lda”, constituída em 11 de Novembro de 2005, dedica-se a actividades de contabilidade, auditoria e consultoria fiscal e a actividades de arquitectura, sendo que a arguida Lígia R... é, desde o seu inicio, sua sócia e a sua única gerente.
2- A referida sociedade encontra-se enquadrada para efeitos do Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.) no regime de tributação normal, de periodicidade trimestral, tendo como competente o Serviço de Finanças de Braga -1.
3- A arguida, enquanto gerente da sociedade, é a única responsável pelo seu giro comercial e pelo cumprimento das obrigações fiscais daí advenientes, designadamente pela elaboração e envio das declarações periódicas de Imposto sobre o Valor Acrescentado, estando obrigada a entregar aos cofres do Estado as importâncias que, a tal título, retinha aos seus clientes.
4- Não obstante ter remetido ao Serviço de Administração do IVA a declaração periódica respeitante ao 1º trimestre de 2011, a arguida não entregou concomitantemente a prestação tributária apurada nesse período, no montante de 9.985,55 €.
5- Também não o fez nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legal para o efeito.
6- O referido montante de IVA foi entregue à arguida pelos clientes com quem a mesma contratou em representação da sociedade “M... — Consultoria, Sociedade Unipessoal, Lda” em percentagem não inferior a 77,33 % (equivalente a € 8.004,00 de IVA efectivamente recebido).
7- A arguida agiu livre e deliberadamente, com o propósito de utilizar em proveito próprio e da sociedade que geria o montante de imposto supra indicado, deduzido nos termos da lei e que estava legalmente obrigada a entregar ao Estado, não desconhecendo que a sua posição era tão só a de assegurar, enquanto mera depositária, a sua detenção para ulterior entrega à Administração Fiscal, bem sabendo que tal conduta é proibida e punida por lei.
8- Notificada por si e na qualidade de representante legal da sociedade arguida para proceder ao pagamento da prestação tributária supra referida, juros e o valor mínimo da coima aplicável no prazo de 30 dias, nos termos do artº 105º, nº 4, al. b) do RGIT, a arguida não o fez.
9- O referido valor mantém-se até ao momento em dívida.
10-A arguida mantém-se na gerência da sociedade arguida, a qual se encontra em laboração.
11-A arguida Lígia recebe cerca de € 1.200,00 pela sua actividade profissional junto de outra empresa, da qual já foi gerente.
12-A arguida vive com um filho, com 18 anos, ainda estudante.
13-Paga uma prestação bancária no valor de € 600,00 pela aquisição de casa própria.
14-Como habilitações possui a licenciatura em gestão de empresas.
15-Por factos praticados em 07/12/2010, foi a arguida condenada, por decisão de 24/01/2012, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, em pena de multa, já declarada extinta pelo pagamento (Processo Comum Singular nº 282/11.2IDBRG, do 3º Juízo Criminal deste Tribunal).»

B) Factos não provados (transcrição)
“Não existem com relevo para a decisão».

C) Motivação da decisão de facto (transcrição)
«O Tribunal baseou a sua convicção no conjunto da prova produzida, designadamente:
- Na análise de prova documental existente nos autos, designadamente na declaração de fls 8, correspondente ao período em apreço nos autos, na certidão do registo comercial de fls 33 e sgs; nas notificações de fls 56 e 57, na nota de cadastro do contribuinte de fls 54-55, bem assim os quadros explicativos de fls 89 e 90 (com enumeração das três facturas em causa), bem assim nas facturas e respectivos comprovativos de pagamento/recebimento, constantes de fls 91 a 108.
- Nas declarações prestadas pela arguida, admitindo no essencial os factos imputados. Explica que, estando em causa três facturas, apenas recebeu integralmente o IVA dos clientes de duas delas (G... e Lar de Idosos), sendo que relativamente ao IVA da factura restante (Istra), apenas recebeu parte, por esta empresa ter entrado em débito, vindo posteriormente a ser emitida uma letra, sucessivamente reformada. Mais referiu que a não entrega do IVA se deveu a um conjunto de dificuldades económicas, potenciadas também pelo não pagamento daquela factura, o que não lhe permitiu proceder ao pagamento ao fisco, nem nos prazos legais, nem até ao momento, sendo o IVA efectivamente recebido canalizado para a satisfação de outras despesas da empresa.
- Filipe Ezequiel, inspector tributário, explicou ter tido a seu cargo, no decurso do processo, a tarefa de proceder ao apuramento dos valores de IVA efectivamente recebidos pela empresa, através nomeadamente dos elementos que obteve junto dos clientes da sociedade arguida em causa, respeitantes às (três) facturas emitidas, na forma que se mostra documentada nos autos, ou seja, que o IVA relativo às facturas dos clientes G... e Lar de Idosos foi integralmente recebido e, relativamente, à empresa Istra, apenas existiram recebimentos parciais (até Nov/2011), na sequência de sucessivas reformas de letra.
- A testemunha Marisa M..., que foi técnica oficial de contas na sociedade arguida, entre 2008 a Junho de 2012, referindo também que a 3ª factura não foi paga (do cliente Istra), sendo emitida uma letra para Junho e depois reformada, encontrando-se ainda em dívida, cerca de 12.000,00.
- Nas declarações prestadas pela arguida quanto à sua situação socio-económica.
- No teor do certificado de registo criminal junto aos autos.»


2. Conforme é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida [artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal (CPP) e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98].

As recorrentes suscitaram as seguintes questões:
- contradição insanável da fundamentação (artigo 410.ºn.º2, alínea b) do CPP);
- medida das penas.
*
3. No despacho liminar a que alude o artigo 417.º, n.º1 do CPP o relator suscitou a questão da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

§1. Como é sabido o conceito de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” constantes da alínea a) do n.º 2 do artigo 410º do Código de processo Penal, foi já suficientemente trabalhado pela doutrina e pela jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal.

À luz de tais ensinamentos é hoje pacífico que só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando se faz a formulação incorrecta de um juízo em que a conclusão extravasa as premissas ou quando há omissão de pronúncia pelo tribunal, sobre os factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.

Como se observou no Ac. do S.T.J. de 20-4-2006 (proc.º n.º 363/03, rel. Cons.º R. Costa):
“A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.”

Por outro lado, conforme resulta do n.º2 daquele artigo 410º, os vícios da matéria de facto enumerados no artigo 410º do Código de Processo Penal têm, de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, por conseguinte, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo, nem podem basear-se em documentos juntos ao processo (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 71 os quais salientam “que não se pode ir fora da decisão buscar outros elementos para fundamentar o vício invocado, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento”; no mesmo sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 324 e a jurisprudência do STJ citada naquela primeira obra).

À luz dos ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais que acima deixámos mencionados, é forçoso reconhecer que existem lacunas ao nível da matéria de facto provada para fundamentar a decisão de direito a que o tribunal recorrido chegou.

§2. Vejamos.

As arguidas foram acusadas da prática de um de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p.p. artº 105º do RGIT.

É o seguinte o teor do referido preceito legal, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.° 64-A/2008, de 31 de Dezembro
“1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado pela Lei n.° 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

Na sua configuração actual, a conduta incriminada consiste na mera não entrega à administração fiscal, dentro de determinado prazo, das quantias pecuniárias envolvidas.

O crime de abuso de confiança fiscal é, deste modo, um crime de omissão pura [cfr., v.g., Nuno Lumbrales, O abuso de confiança fiscal no Regime Geral das Infracções Tributárias, n.º13/14, (2003), pág. 86, Costa Andrade, O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional, pág. 311, Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra, 2006, pág. 123, Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ªed, Coimbra 2007, pág. 179, Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Lisboa, 2009, pág. 244, Paulo Marques, Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Coimbra, 2011, pág 75], que se consuma na data em que terminar o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários, conforme disposição expressa do art. 5.º, n.º2 do RGIT (“As infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em qu termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários”).

Segundo consta da acusação e resultou provado, a sociedade arguida encontra-se enquadrada para efeitos do Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.) no regime de tributação normal, de periodicidade trimestral, tendo como competente o Serviço de Finanças de Braga -1.

Nestes autos está em causa a falta de entrega do IVA respeitante ao 1ª trimestre de 2011.

Como é sabido, o IVA opera pelo método do crédito de Imposto, ou seja, cada operador I económico assume a qualidade de devedor ao Estado pelo valor do imposto facturado aos seus clientes nas transmissões de bens e prestação de serviços efectuadas em determinado período (imposto liquidado ou imposto a favor do Estado) e, em contra partida, é credor do Estado pelo imposto suportado nas compras efectuadas nesse mesmo período (imposto dedutível ou imposto a favor do Sujeito Passivo). Assim, o valor do imposto a entregar ao Estado será a diferença entre aquele débito e aquele crédito.

Este apuramento do IVA faz-se de acordo com o preceituado nos artigos 19° a 260 do Código do IVA (Decreto-Lei n.o 394-B/84 e as respectivas alterações e aditamentos).

Assim, segundo o n.ºl do art.º270.º do referido Código, os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante de imposto exigível, apurado nos termos acima referidos, nos locais de cobrança legalmente autorizados, enviando a declaração periódica acompanhada do respectivo meio de pagamento nos prazos previstos no artigo do citado diploma legal.

Estando em causa o IVA respeitante a sujeito passivo com um volume de negócios inferior a €650.000 no ano civil anterior, a prestação devida deve ser entregue até ao 15.º dia do 2º mês seguinte àquele a que disserem respeito as operações (cfr. artigos 27.º e 41º, n.º1, alínea b), ambos do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado), no caso até 15 de Maio de 2011.

A sentença recorrida parece perfilhar o entendimento segundo o qual, tratando-se o crime de abuso de confiança fiscal de um crime omissivo, o pagamento do IVA liquidado e declarado à Administração Fiscal, é exigível assim que decorra o prazo para o efeito mesmo que o sujeito tributário não tenha recebido a quantia do cliente/devedor.

Trata-se de um entendimento com algum apoio jurisprudencial cfr. v.g. os Acs da Rel. de Guimarães de 20-11-2006, proc.º n.º 1796/06-2, rel. Anselmo Lopes, da Rel do Porto de 1-10-2008, proc.º n.º 0842659/08, rel. Cravo Roxo, da Rel. de Coimbra de 21-9-2011, proc.º n.º 142/09.7IDCBR. C1, rel. Alice Santos e de 24-10-2012, proc.º n.º 314/09.4IDAVR.C1, rel. Elisa Sales, e da Rel. de Lisboa de 4-2-2009, proc.º n.º 11036/2008-3, rel Nuno Garcia, todos disponíveis in www.dgsi.pt, o último dos quais citado na sentença recorrida.

Não sufragamos, porém, tal posição

È certo que o IVA é devido desde a respectiva venda, facturação, liquidação e declaração aos serviços, e não desde o momento do pagamento da transacção que lhe deu origem. Por isso, o pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível logo que decorra o respectivo prazo, tenha ou não sido recebido do devedor seguinte.

Mas se as coisas se passam assim a nível fiscal, não é, porém, lícito concluir que para efeitos criminais, isto é da consumação de um crime de abuso de confiança fiscal, é indiferente saber se ocorreu ou não efectiva a cobrança do imposto aos clientes.

Salvo o devido respeito, importa não confundir a responsabilidade tributária pelo imposto devido com a responsabilidade penal tributária. O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal: a obrigação tributária existe independentemente do crime.

Como bem esclarece o Prof. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário , Lisboa, 2009, pág. 113:
«O facto gerador da dívida de imposto existe independentemente da prática de qualquer crime: a obrigação tributária é autónoma relativamente `responsabilidade penal pela prática de crime tributário e é geralmente proveniente da prática de facto ilícito, ainda que entre a dívida tributária e a responsabilidade pelo crime exista conexão».

Ora, afigura-se-nos - conforme de resto constitui doutrina e jurisprudência amplamente maioritárias - que o crime de abuso de confiança fiscal tem, como um dos seus elementos objectivos, a dedução ou o recebimento da prestação tributária, o que, no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária, se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente.

Neste sentido se pronunciaram, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-12-2011, processo n.º 01P3749, rel. Cons.º Hugo Lopes, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-6-2001, proc.º n.º 127/2001, rel. Ferreira Diniz, de 15-12-2010, proc.º n.º 24/06.4IDGRD, rel. Mouraz Lopes (cfr.Colectânea Jurisprudência, Ano XXXV, V, 2010 p. 61) e de 29-2-2012, proc.º n.º 1638/09.6IDLRA.C1, rel. Paulo Guerra, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 3-12- 2009, proc.º n.º 1358/06.3TDLSB.E1, rel. Fernando Ribeiro Cardoso, os acórdãos deste Tribunal da Relação de Guimarães de 9-6-2005, proc.º n.º 203/04-1, rel. Ricardo Silva, de 13-6-2011, proc. n.º 137/09.0IDBRG, rel. Fernando Ventura (cfr. Colectânea de Jurisprudência Ano XXXVI, 2011, III, p. 299), de 3-12-2012 proc.ºn.º 103/11.6IDBRG.G1, rel. Fernando Monterroso e de 18-3-2013, proc.º n.º 412/11.4IDGRG.G1, rel. João Lee Ferreira, todos in www.dgsi.pt.

Como escreveu Isabel Marques da Silva, no âmbito do IVA, não tem aplicação o n.º 1 mas o n.º 2 do artigo 105.º do RGIT, que estabelece uma extensão do tipo nele incluindo também a prestação tributária “(…) que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”. O que permite considerar subsumível no tipo legal de crime a não entrega do IVA liquidado que tenha sido recebido. O recebimento da prestação tributária é, pois, em face do tipo legal de crime, pressuposto essencial do crime de abuso de confiança, sendo o que dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de protecção penal, por atipicidade do facto (Nullum Crimen, Nulla Poene, Sine Lege Praevia: Inexistência de infracção tributária nos casos de não entrega de IVA não recebido, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, volume II, Coimbra, 2010, pág. 260.

No mesmo sentido de que no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, do R.G.I.T., aquele sujeito passivo que, tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja, por isso, obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal, se pronunciaram Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, cit., pág. 244 e nota 93, Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, cit pág. 124, Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, cit, págs.169 e 181 e Paulo Marques, Infracções Criminais, vol. I, Direcção Geral dos Impostos (Centro de Formação), Lisboa, 2007, págs 138-139, Paulo Marques, Crime de Abuso de Confiança Fiscal, cit., pág. 75 e págs. 101 e ss.

«O que bem se compreende: se o tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, então só existe desvalor da acção (rectius, desvalor de omissão) quando um agente económico que liquida, recebe e detém precária temporariamente o imposto, omite a entrega ao Estado-Fisco do IVA efectivamente recebido.

Se essa prestação tributária não chegou a ficar retida na empresa, não há possibilidade real de se cumprir a obrigação de entrega ao credor. Não há sequer a existência de depositário legal, e, por isso, não pode haver qualquer quebra de fidúcia ou confiança, nem conduta censurável. A atribuição de dignidade penal a uma omissão de entrega de quantia não recebida e de que o agente não tem disponibilidade, significaria uma insustentável violação do princípio da proibição de punição de uma conduta sem culpa» (cit. Ac.da Rel. de Guimarães de 18-3-2013, proc.º n.º 412/11.4IDGRG.G1, rel. João Lee Ferreira).

Como também muito justamente se observou no Ac. desta Relação de Guimarães de 3-12-2012, rel. Fernando Monterroso:
«Este enquadramento não é incompatível com a obrigação legal do responsável tributário pagar à administração fiscal todo o IVA que facturou, independentemente de o ter efectivamente recebido. Ao direito civil e ao direito fiscal não repugna a existência de antecipações de pagamento.
Porém, como se disse, só haverá crime quando o agente tiver recebido os valores e lhes der destino diferente daquele a que se estava obrigado. Outro entendimento poderia levar à condenação em casos em que o faltoso, que ainda não recebeu, estava em situação económica que o impedia, em absoluto, de cumprir a prestação. Isso violaria o princípio da culpa, que implica a proibição de punição criminal por facto não culposo. Só existe «culpa» se sobre o agente for possível formular um juízo de censura ético-jurídico por ter actuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pag. 316). Facilmente se conjecturam casos em que não é possível censurar alguém por não ter entregue valores que ainda não recebeu, nomeadamente por estar em situação de carência económica.
Termina-se transcrevendo do acórdão desta relação proferido no recurso 194/08.7IDBRG.G2 (relatora Nazaré Saraiva), citando Paulo Marques: o recebimento da prestação tributária «está pelo menos implícito no tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, mesmo no Regime Geral das infracções Tributárias (RGIT)», pois, caso contrário, avança o mesmo autor, «se o agente a não tiver recebido previamente, como poderemos falar em incumprimento ilícito e doloso do dever de restituição ou entrega? Aquele precede necessariamente este último. (…) Apenas se pode recusar a entrega de algo que se recebeu previamente, que se teve em mãos. De outro modo, como exigir um comportamento diferente do agente? Como então justificar a sua punição severa consubstanciada em pena de prisão?» Cfr. Crime de Abuso de Confiança Fiscal – Problemas do Actual Direito Penal Tributário, Coimbra Editora, págs. 57-58. E, acrescenta o mesmo autor: «Quando, por exemplo, o contribuinte não recebeu previamente o IVA, resulta claro que não lhe é possível entregar o imposto, logo não poderia ter agido de outro modo, não se podendo falar em abuso de confiança, nem em crime omissivo doloso. A omissão dolosa pressupõe a decisão voluntária de não fazer nada quando podia e devia fazer o que a lei impõe. A não ser assim, um agente económico que nada recebesse dos seus clientes poderia inclusivamente ser condenado com pena de prisão apesar de não poder proceder de outro modo – não pode entregar o que nunca recebeu -. Daqui decorre a improcedência do sancionamento criminal, sem prejuízo da responsabilidade tributária, uma vez que o imposto é devido ao Estado independentemente de ter existido ou não recebimento prévio, assim como a dedução é permitida mesmo que o contribuinte não tenha pago a aquisição ao seu fornecedor». Cfr. Ob. cit., pág. 64.»

Por último, salienta-se que também a jurisprudência dos Tribunais Tributários, com o aplauso da doutrina (cfr. Isabel Marques da Silva, Nulla poena sine lege ou a não punibilidade da não entrega do IVA não recebido, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano 1, nº3, Outubro de 2008, págs. 237-243 e Nuno Lumbrales e Paula Machado, Responsabilidade contra-ordenacional pela entrega tardia de IVA não recebido, Revista Fiscalidade, nº34, Abril-Junho de 2008, págs. 107-116), é hoje uniforme e pacífica no sentido de que não existe infracção contra-ordenacional relativamente à omissão de entrega ao Estado de IVA liquidado mas não recebido do adquirente da mercadoria ou beneficiário do serviço, pois essa obrigação subsume-se à parte final do nº3 do art.º 114º do RGIT, e não ao conceito de “prestação tributária deduzida” do nº1 do preceito, o qual faz depender a tipicidade do efectivo pagamento do IVA liquidado em factura pelo cliente (cfr. o Ac. do STA de 28-05-2008, proc.º n.º 0279/08, rel. Cons. Jorge de Sousa, seguido por muitas outras decisões, v.g., os acórdãos do STA de 18-09-2008, proc.º n.º 483/08, rel. Cons. António Calhau, de 15-10-2008, proc.º n.º 481/08, rel. Cons. Borges de Pinho, de 11-02-2009, proc.º n.º 578/08, rel. Cons. Lúcio Barbosa, de 18-11-2009, proc.º n.º 0593/09, rel. Cons. Pimenta do Vale e de 02-12-2009, proc.º n.º 0887/09, rel. Cons. Miranda de Pacheco, os acs. do TCAN de de 28-01-2010, proc.º n.º 1163/06, rel. Álvaro Dantas, de 10-12-2010, proc.º n.º 1204/09, Rel. Vicente Torrão, e de 11-02-2011, proc.º n.º 513/08, rel. Francisco Rothes, e do TCAS de 17-10-2008, proc.º n.º 2316/08, rel. Ascensão Lopes, e de 20-10-2009, proc.º n.º 3206/09, rel. José Correia, todos disponíveis em em www.dgsi.pt.).

Segundo a acusação está em causa o não pagamento do IVA respeitante ao 1ª trimestre de 2011, no montante de 9.985,55 €.

Efectivamente, conforme resultou provado:
« 4- Não obstante ter remetido ao Serviço de Administração do IVA a declaração periódica respeitante ao 1º trimestre de 2011, a arguida não entregou concomitantemente a prestação tributária apurada nesse período, no montante de 9.985,55 €.
5- Também não o fez nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legal para o efeito.
6- O referido montante de IVA foi entregue à arguida pelos clientes com quem a mesma contratou em representação da sociedade “M... — Consultoria, Sociedade Unipessoal, Lda” em percentagem não inferior a 77,33 % (equivalente a € 8.004,00 de IVA efectivamente recebido).»

A fórmula constante da sentença recorrida, reproduzida da acusação pública, reedita a fórmula constante do parecer constante de fls. 119, a qual por seu turno tem a sua origem na informação de fls. 87 na qual se concluiu que “…do total de IVA liquidado de 10.350,00 a firma arguida recebeu, pelo menos, €8.004,00, uma vez que em Novembro de 2011, apenas tinha por receber €2.346, ou seja terá havido uma apropriação por parte do sujeito passivo em análise de, pelo menos, 77,33% do IVA liquidado no período em causa” (itálicos nossos).

Simplesmente, para efeitos criminais, mais exactamente para efeitos de imputação de um crime de abuso de confiança fiscal previsto pelo artigo 105.º do RGIT, não interessava saber qual a situação tributária do arguida em Novembro de 2011.

O que verdadeiramente interessava saber, o que se tornava imprescindível saber era, antes, qual o valor da quantia devida a título de IVA, por facturação emitida no 1.º trimestre de 2010, que o arguido efectivamente recebera até ao dia 15 de Maio de 2011.

Não tendo sido apurado aquele valor conclui-se, deste modo, que o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto relevante para a decisão da questão que foi submetida à sua consideração.

A falta de elementos de facto relacionados com a questão acima indicada integra, claramente, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada da alínea a) do n.º2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Tal vício que resulta do texto da decisão recorrida e é de conhecimento oficioso (Assento 7/95, de 9 de Outubro de 1995, DR I-A, de 28 de Dezembro de 1995 e BMJ n.º 450, pág. 72)

Nos termos do n.º 1 do artigo 426.º do CPP “Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º2 do artigo 410.º , não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio”.

§3. No caso dos autos, porém, não se justifica o reenvio do processo por ser possível decidir da causa.

Conforme resulta da fundamentação da matéria de facto e se encontra devidamente documentado nos autos, o IVA relativo ao 1.º trimestre de 2010 é referente a três facturas emitidas pela sociedade arguida em nome de G... Engenharia SA, Lar de Idosos E... Lda e I... Indústria e Comércio Hotelaria Lda, nos montantes de €18.450,00, €12.300,00 e de €24.600,00, respectivamente, sendo o IVA liquidado de €3.450,00, €2.300,00 e de €4.600,00, também respectivamente.

Resulta dos recibos e cheques fotocopiados a fls. 94-95 e 96-97, também referidos na fundamentação da matéria de facto, que aquelas quantias de €18.450,00 e de €12.300,00 foram integralmente recebidas pela arguida M... no primeiro trimestre de 2011.

Já quanto à factura de €24.600,00 referente a Indústria e Comércio Hotelaria Lda, apenas existiram pagamentos e recebimentos parciais na sequência de sucessivas reformas de letra.

Na verdade, conforme resulta do quadro anexo constante de fls. 90, também mencionado na motivação da decisão de facto, o primeiro recebimento parcial, no montante de €2.460,00, apenas ocorreu em 30-6-2011.

Portanto, em 15 de Maio de 2011, data limite do pagamento do IVA respeitante ao 1º trimestre de 2011, a arguida M... apenas recebera de IVA o montante de € 5.750,00 (= €3.450,00 + € 2.300,00).

A percentagem de 77,33% equivalente a €8.004,00 de IVA que na sentença recorrida se diz efectivamnte recebido pelas arguidas, só corresponde ao total de IVA recebido pelas arguidas se nela se incluir o recebido para além daquela data limite de 15 de Maio de 2011.

Simplesmente, os valores relevantes para a punição da conduta omissiva prevista nos n.ºs 1 e 2 do artigo 105.º do RGIT não são os valores globais, totais, mas sim, nos termos do n.º 7 daquele preceito, os montantes relativos a cada declaração periódica, no caso o IVA liquidado e recebido correspondente a cada uma.

Como bem conclui a Exma PGA no seu esclarecido parecer, “à data da entrega do IVA relativo ao período em causa, o valor recebido pela arguidas era inferior a € 7500.”

Conclui-se, deste modo, que a condenação criminal das arguidas não pode subsistir por o valor do IVA respeitante ao primeiro trimestre de 2011, recebido até 15 de Maio de 2011 e não entregue, ser inferior a €7500.


III Decisão
Em face do exposto, embora por fundamentos não totalmente coincidentes com os invocados, acordam os juízes desta Relação em julgar procedentes os recursos, em consequência do que revogam a sentença recorrida e absolvem as arguidas dos crimes por que vinham acusadas.
Sem tributação.
Guimarães, 22 de Abril de 2013