Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
209/10.9TBFAF-A.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: MÚTUO
CRÉDITO AO CONSUMO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONSIDERADA IMPROCEDENTE
Sumário: Actua com abuso do direito o mutuário que, tendo celebrado um contrato de mútuo em Outubro de 2006, só em Maio de 2013, ao deduzir os seus embargos de executado, suscita, pela primeira vez, a nulidade daquele negócio por, em devido tempo, não se ter dado "cumprimento do dever de entrega do exemplar do contrato (…) art. 7.º, n.º 1, do DL. 351/91, de 21.8", quando no entretanto o mutuante o contactou por diversas vezes tendo em vista o cumprimento das suas obrigações.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
J… deduziu, na comarca de Fafe, oposiçãoà execução que lhe move o exequente F…, S.A., pedindo que seja "desobrigado de pagar a quantia exequenda".
Alega, em síntese, que a livrança dada à execução foi preenchida de forma abusiva e que pagou mais prestações do que as mencionadas pelo exequente, além de que entregou o veículo automóvel relacionado com o mútuo. Mais alega que não lhe foi explicada qualquer cláusula do contrato, nem lhe entregaram cópia do mesmo, pelo que invoca a nulidade desse negócio.
A exequente contestou afirmando, em suma, que o executado teve conhecimento de todas as cláusulas do contrato e que recebeu uma cópia deste. Disse ainda que a arguição, agora, da nulidade consubstancia abuso do direito.
Proferiu-se despacho saneador, fixaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória.
Realizou-se julgamento e foi proferida sentença [1] que que se decidiu "julgar totalmente improcedente a oposição à execução".
Inconformado com esta decisão, o executado dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1. O contrato de mútuo celebrado entre o oponente/executado e a exequente é juridicamente enquadrável no âmbito dos contratos de crédito ao consumo - arts. 1.º e 2.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 359/91, de 21/09, teve por exclusivo objectivo possibilitar a compra, por parte daquele, de uma viatura automóvel, constituindo, dessa forma, o negócio jurídico de concessão de crédito o meio necessário e imprescindível à efectiva concretização da compra e venda realizada;
2. O DL 359/91, visou proporcionar e estabelecer regras que permitam a protecção dos direitos dos consumidores, de forma a que estes possam conhecer o verdadeiro custo total do crédito que lhes é oferecido;
3. In casu, o executado invocou a nulidade do contrato por, na ocasião em que foi assinado, não lhe ter sido entregue um exemplar e, bem assim, por não lhe terem sido lidas e explicadas as cláusulas do contrato;
4. O DL 359/91, de 21/09 prevê no seu art. 6.º os requisitos a que deve obedecer tal contrato estabelecendo no seu n.º 1 que o contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura, sob pena de nulidade;
5. Temos, assim, que não sendo entregue ao consumidor, no acto de assinatura do contrato um exemplar, tal omissão determina a nulidade do contrato e que tal omissão se presume imputável ao credor, e apenas pode ser invocada pelo consumidor;
6. Os contratos de crédito ao consumo são contratos de adesão, já que, a par de cláusulas específicas que exprimem a particularidade de cada contrato, contêm cláusulas pré-determinadas destinadas à massa dos consumidores e que não são passíveis de negociação individualizada;
7. Pelo que, a este tipo contratual, aplica-se o regime das cláusulas contratuais gerais (CCG) Decreto-Lei. 466/85, de 25.10;
8. Neste tipo de contrato, em que existe uma aceitação, não particularmente negociada pelo aderente, a lei visa a sua protecção como parte contratualmente mais fraca, assegurando de modo efectivo um "dever de informação" por parte do proponente;
9. Pelo que, o ónus de prova de que foi cumprido o dever de informação compete ao proponente das cláusulas contratuais gerais, e o certo é que o proponente/apelada não fez a prova que lhe competia, quer quanto ao dever de informação quer quanto ao dever de entrega do duplicado do contrato celebrado, como era seu ónus – artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil e artigos 6.º e 8.º, alínea a), das cláusulas contratuais gerais;
10. In casu, uma vez que não houve cumprimento do dever de entrega do exemplar do contrato, o regime legal prevalecente, é o do art. 7.º, n.º 1, do DL. 351/91, de 21.8 e não o artigo 9.º, n.º 1, do DL. 446/85, ou seja, a omissão da entrega de um exemplar no momento da assinatura do contrato implica a sua nulidade;
11. Na ponderação de saber se houve abuso do direito - art. 334.º do Código Civil, o Tribunal deve actuar com prudência quando se está perante uma relação de consumo, onde é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos bens ou serviços e o consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a exequente, prevalecendo-se de superioridade negocial em relação a quem recorreu ao seu crédito, não infringiu ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres cooperação, de lealdade, e informação, em suma, os princípios da boa fé;
12. Sopesada a gravidade do comportamento da exequente, profissional do mercado de crédito com o arsenal de meios logísticos, marketing e publicidade de que dispõe, o quadro factual em que o executado (a parte mais fraca no contexto negocial) invocou a nulidade, não exprime abuso do direito, por não ser clamorosa e chocantemente violadora das regras da boa-fé;
13. In casu, a pretensão do executado não deve ser paralisada pela invocação do abuso do direito, sendo certo que nas relações de consumo a regra é a protecção do consumidor, só devendo ser desconsiderada, em casos de conduta, a todos os títulos censurável e injustificada, com grave prejuízo da contraparte, o que aqui não é evidente, sendo de acentuar que a actuação da exequente evidencia contornos tais (violação do dever de informação e falta de entrega do exemplar do contrato) que conduz a considerar que a actuação do executado não cai na alçada daquele moderador instituto.
14. Pelo exposto, resulta evidente que a sentença apelada, ao julgar improcedente a oposição à execução, violou o disposto nos artigos 334.º e 342.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, os arts. 1.º, 2.º, 4.º, 6.º, 7.º, 8.º e 12.º do DL 359/91, de 21/09, e os arts. 5.º, 6.º e 8.º do Decreto-Lei. 466/85, de 25.10.
O exequente contra-alegou manifestando-se no sentido da improcedência do recurso.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber:
a) se "o quadro factual em que o executado (…) invocou a nulidade, não exprime abuso do direito"; [2]
b) e, se se concluir que inexiste abuso do direito, se o contrato celebrado entre o exequente e o executado é nulo.
II
1.º
Estão provados os seguintes factos:
1. O teor de f. 5-7 dos autos principais e 33-34 (teor da livrança e do contrato).
2. Nesta sequência a exequente recebeu a livrança em causa em branco apenas com a assinatura do opoente.
3. O opoente entregou ao exequente o veículo marca Renault, matrícula …-CI-….
4. O executado pagou, pelo menos, 3 prestações vencidas, respectivamente, em 05-12-2006, 05-02-2007 e 05-03-2007.
5. O executado aquando da celebração do acordo supra mencionado tomou conhecimento e aceitou as Condições Particulares.
6. Foi enviado ao executado, por carta, datada de 3-11-2006, o plano de pagamentos relativo ao financiamento concedido pela Exequente.
7. Foram inscritas no momento da celebração do contrato, de forma manuscrita, e na presença do executado, e para além da identificação deste, as Condições Particulares do acordo.
8. Nomeadamente o montante do empréstimo, o valor dos encargos administrativos e financeiros, o valor total de financiamento concedido, o tipo e valor percentual de taxa.
9. E o número de prestações, o seu valor unitário e a sua periodicidade, a data de vencimento da primeira prestação, o valor total de financiamento e encargos e a identificação completa do bem financiado.
10. E o executado teve perfeita noção do teor de tudo isto.
11. E foram negociadas directamente com o executado as Condições Particulares.
12. Por força dos atrasos nos pagamentos (o primeiro em 5-1-2007), a exequente interpelou, quer telefonicamente, quer por carta, o executado.
13. Face a tais interpelações (que ocorreram desde 11-1-2007 até à data da resolução, em 5-11-2009), o executado sempre se mostrou consciente das suas responsabilidades.
14. Não tendo invocando o desconhecimento das Cláusulas ou a falta de entrega do contrato.
15. Atitude esta do executado que se manteve durante cerca de sete anos.
16. A Exequente enviou ao executado a carta constante de f. 35 e datada de 11-01-2007.
17. Após a entrega do veículo, este veio a ser vendido, em Leilão, em 21-12-2007, pelo montante de € 8 300,00.
18. Correspondente à melhor proposta recebida.
19. A este valor foi deduzido o montante de € 191,18 cobrado, pela Leiloeira BCA, a título de comissão de venda.
20. O valor líquido apurado pela venda do veículo foi de € 8 108,82 tendo sido transmitido ao executado, por carta, datada de 15-02-2008, carta essa cujo teor de f. 38, verso, aqui se dá por reproduzido.
21. A exequente enviou a carta datada de 25-09-2008, constante de f. 39.
22. Tendo informado o executado que, caso, os valores em dívida àquela data não fossem regularizados, iria proceder ao preenchimento da livrança, pelo valor total em dívida.
23. Deste preenchimento notificou o executado, por carta registada com aviso de recepção, datada de 05-11-2009, carta constante de f. 41.
2.º
O Tribunal a quo concluiu que o executado actua com abuso do direito ao invocar a nulidade do contrato que, em Outubro de 2006, celebrou com o exequente. Fundou esse entendimento afirmando, designadamente, que:
" (…) estamos perante um consumidor que pagou as primeiras 3 prestações. E que assinou uma livrança que, como é sabido, é uma garantia acrescida e sinal de uma maior ponderação no acto de contrair empréstimos. Mais do que isso, interpelado para cumprir a dívida, após o vencimento de todas as prestações, decidiu entregar o veículo para o qual tinha obtido financiamento da exequente para o adquirir, entrega essa com o intuito de abater na dívida que tinha para com a exequente, já que não conseguiu cumprir com o acordado. Depois disto, a exequente reelabora o plano de pagamentos e dá conta disso ao executado. Este persistiu em nada pagar. Como continuou sem reclamar qualquer nulidade.
O que é compatível com a entrega do veículo. Só quando foi intentada a execução é que decide invocar a nulidade do contrato, desde logo, porque o mesmo não lhe foi entregue.
Melhor, só com a oposição à execução, decorridos mais 7 anos sobre a realização do contrato, o executado decide agora pôr em causa o contrato que, note-se, lhe permitiu utilizar um carro durante 1 ano e que, após impossibilidade do seu incumprimento, decidiu devolver à exequente. Isto é, enquanto cumpriu o contrato, enquanto utilizou a viatura para o qual obteve financiamento, o executado nada disse. Acresce que decidiu entregar o veículo 1 ano após com a finalidade de liquidar parcialmente a dívida que o mesmo sabia que tinha.
Isto é, o executado tentou pôr cobro à dívida que tinha, entregando o veículo para solver a sua dívida."
O executado censura este enquadramento dos factos por considerar que "nas relações de consumo a regra é a protecção do consumidor, só devendo ser desconsiderada, em casos de conduta, a todos os títulos censurável e injustificada, com grave prejuízo da contraparte, o que aqui não é evidente" [3] e que se deve "actuar com prudência quando se está perante uma relação de consumo, onde é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos bens ou serviços e o consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a exequente, prevalecendo-se de superioridade negocial em relação a quem recorreu ao seu crédito" [4].
É pacífico que o legislador entendeu por bem, e em boa hora, que em virtude de certas especificidades "nas relações de consumo", entre elas a "desigualdade de meios entre o fornecedor dos bens ou serviços e o consumidor", se justificava, plenamente, alguma "protecção" a este último. Mas, continuando a usar a linguagem do executado, já não é verdade que do nosso ordenamento jurídico resulte que só deve ser "desconsiderada" a conduta do consumidor que seja "a todos os títulos censurável e injustificada, com grave prejuízo da contraparte". Neste aspecto, para além das regras próprias que se encontram consagradas em diplomas avulsos, há também que observar os princípios gerais, entre os quais se conta o do abuso do direito [5].
Como é sabido, o abuso do direito verifica-se "quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, todavia no caso concreto aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça" [6]. Por isso, o abuso do direito "deve funcionar como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica" [7].
No abuso do direito "a ilegitimidade não resulta da violação formal de qualquer preceito legal concreto, mas da utilização manifestamente anormal, excessiva do direito" [8]. E "para haver abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito" [9].
Pode ainda «ocorrer abuso do direito, na modalidade do "venire contra factum proprium", quando existem condutas contraditórias do seu titular a frustrar a confiança criada pela contraparte em relação à situação futura» [10], pois o «"venire contra factum proprium" configura uma violação qualificada do princípio da confiança» [11], sendo certo que "as relações entre as pessoas pressupõem um mínimo de confiança sem a qual não seriam possíveis" [12].
Neste contexto, tendo presente os motivos expostos pelo Meritíssimo Juiz a quo, que se subscrevem, tem que se concluir que o executado actua com abuso do direito quando pretende colocar em crise a validade do contrato que celebrou com o exequente.
Não querendo cair em repetições, tem que se destacar que o contrato em questão foi celebrado em Outubro de 2006 e que só em Maio de 2013, ao deduzir estes embargos, é que o executado, pela primeira vez, suscita a nulidade daquele negócio por, em devido tempo, não se ter dado "cumprimento do dever de entrega do exemplar do contrato (…) art. 7.º, n.º 1, do DL. 351/91, de 21.8" [13]. No intervalo entre estes dois factos, distanciados em cerca de seis anos e meio, o executado remeteu-se ao silêncio quanto a esta matéria, não obstante tudo o que se descreve nos factos 12, 13, 16 e 20 a 23 dos factos provados.
Agindo o executado com abuso do direito fica, evidentemente, prejudicado o conhecimento da questão relativa à nulidade do contrato que por ele foi suscitada.
Nestes termos, nenhuma censura merece a posição adoptada pelo Tribunal a quo.
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo executado.
26 de Junho de 2014
António Beça Pereira
Manuela Fialho
Paulo Barreto
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[1] Em Março de 2014.
[2] Cfr. conclusão 12.ª.
[3] Cfr. conclusão 13.ª.
[4] Cfr. conclusão 11.ª.
[5] Cfr. artigo 334.º do Código Civil.
[6] Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª Edição, pág. 63. Isso implica que, como dispõe o artigo 7.º do Código Civil Espanhol, os direitos sejam exercidos conforme as exigências da boa-fé.
[7] Ac. STJ de 18-6-02, Jurisprudência Seleccionada de Teoria Geral do Direito Civil I, pág. 321.
[8] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Vol. I, pág. 13.
[9] Ac. STJ de 25-6-98, Jurisprudência Seleccionada de Teoria Geral do Direito Civil I, pág. 340.
[10] Ac. STJ de 17-1-02, Proc. 3778/01, Ref. 199/2002, www.colectaneadejurisprudencia. com.
[11] Ac. Rel. Porto de 19-1-96 no Proc. 838/96, Ref. 10216/1996, www.colectaneade jurisprudencia.com. Neste sentido Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Vol. I, pág. 1523, Ac. STJ de 25-5-99 no Proc. 409/99, Ref. 4235/1999 e Ac. Rel. Lisboa de 20-5-99 no Proc. 362/99, Ref. 10011/1999, ambos em www.colectaneade jurisprudencia.com e Ac. STJ de 12-11-2013 no Proc. 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, Ac. STJ de 11-12-2013 no Proc. 629/10.9TTBRG.P2.S1 e Ac. STJ de 11-12-2012 no Proc. 116/07.2TBMCN.P1.S1, estes em www.gde.mj.pt.
[12] Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do direito Civil, 5.ª Edição, pág. 20.
[13] Cfr. conclusão 10.ª.