Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1221/20.5T9VNF.G1
Relator: MARIA LEONOR BARROSO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO
INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Deve ser mantida a suspensão da instância executiva porque: (i) na execução foi penhorado bem de valor significativo (pintura avaliada em 6.000,00€; (ii) na insolvência, apesar de ter sido constatada a inexistência de bens, os autos prosseguiram com incidente de exoneração do passivo restante, estando a decorrer o respectivo período de 3 anos, durante o qual nenhuma execução pode prosseguir; (iii) não há notícia de que o bem penhorado tenha sido liquidado no processo de insolvência; (iv) o crédito exequendo, resultando de coima, nunca poderá ser abrangido por eventual perdão concedido no final da exoneração do passivo restante (245º,2, c, CIRE). Só no final deste incidente da instância de insolvência haverá condições para saber se a execução perde utilidade e deve ou não ser extinta.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

O Ministério Público instaurou execução de coima (4.551,00€) contra a executada AA.
Foi penhorado um quadro a óleo do pintor BB, avaliado em 6.000,00€.
Entretanto, no processo 731/21.... do Juízo de Comércio ... - Juiz ... foi proferida sentença de declaração de insolvência da ali devedora e aqui executada.
Nessa sequência, na execução foi proferido despacho a declarar suspensa a execução-  88º, 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE.
Não obstante a existência de penhora de bem, os autos não foram remetidos para apensação ao processo de insolvência nos termos do art. 85º, 2, CIRE.
A execução ficou a aguardar que fosse proferida decisão de encerramento do processo, nos termos do disposto no artigo 230º, a) ou d) do CIRE.

PROCESSO DE INSOLVÊNCIA:

Em 11-10-2022, no referido processo de insolvência nº 731/21.... foi proferido despacho liminar “admitindo liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante” da devedora, aqui executada e declarando-se “…que nos três anos subsequentes à presente decisão, o rendimento disponível conjunto que a devedora venha a auferir considera-se cedido ao senhor administrador de insolvência já nomeado nos autos, o qual se nomeia, desde já, como fiduciário”, nos termos do art. 239º do CIRE.
Na mesma decisão fez-se constar, aludindo-se ao encerramento do processo de insolvência, que existem dois tipos de situação a considerar: caso existissem bens ou direitos a liquidar determinar-se-ia unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível prosseguindo os autos para liquidação do activo, sendo o encerramento “meramente formal, exclusivamente para determinar o inicio do período de cessão do rendimento disponível” e “nos caos em que não existam bens ou direitos liquidar, o encerramento previsto na alínea e) do artigo 230º do CIRE produzirá então já plenamente os seus efeitos”. Conclui-se que “…é este o caso, já que de harmonia com a apurado pelo administrador de insolvência não existem bens a liquidar em ordem a garantir sequer o pagamento das custas do processo e demais encargos. O que determinará o encerramento do processo de insolvência, com plenos efeitos, sem prejuízo do prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante”.
E decidiu-se: “Pelo exposto declara-se encerrado o processo de insolvência, nos termos do disposto no artigo 230º alínea e) do Código de Insolvência e de Recuperação de empresas, com os efeitos previstos no artigo 233 do mesmo código, sem prejuízo de prosseguir o incidente de exoneração do passivo restante e para os efeitos nele ressalvados”.
Mais se refere que se dispensa o administrador da insolvência da sua prestação, considerando que o processo encerrou sem qualquer apreensão de bens e que a prestação de contas redundará em acto inútil.

DESPACHO RECORRIDO

Nos autos de execução foi proferido despacho ora alvo de recurso, datado de 08.11.2022, declarando a extinção da suspensão da execução e determinando o seu prosseguimento.

A EXECUTADA RECORREU.CONCLUSÕES:

“A. Na sequência da decisão proferida quanto à extinção da suspensão da execução, em virtude de extinção do processo de insolvência com base na al. e), nº 1 do art. 230º do CIRE, vem a Recorrente apresentar alegações de recurso, uma vez que o referido despacho viola amplamente as normas estabelecidas no CIRE.
B. Tendo em consideração o objeto da decisão da qual se recorre, não poderá a Recorrente aguardar pela decisão final para apresentação de recurso, porquanto será manifestamente inútil aguardar pelo término dos presentes autos, uma vez que quando for tomada decisão final já não será possível reverter as penhoras e a retenção de importâncias que se destinavam à cessão de rendimentos que ficou estabelecida no processo insolvência, assim como já estará desrespeitado in totum o princípio de igualdade entre credores e, consequentemente, violado o disposto no art. 242º do CIRE de forma irremediável.
C. O processo de insolvência da Recorrente correu termos no Juízo de Comércio ... - Juiz ..., sob o número 731/21...., não tendo sido proferido despacho de exoneração do passivo restante, com a prolação da sentença de declaração de insolvência, mas antes no final do processo, com a decisão de encerramento.
D. Ora, a inexistência de despacho de encerramento do processo para efeito de exoneração de passivo restante, imediatamente a seguir à declaração de insolvência, levou a que o encerramento do processo tivesse ocorrido com base na al. e), do nº 1, do art. 230º do CIRE; Não obstante, não poderá o Tribunal ignorar em absoluto a restante fundamentação da decisão do processo de insolvência, que foi junta ao processo em 07.11.2022 e foi ignorada pelo tribunal a quo.
E. Da referida decisão de extinção do processo de insolvência, resulta que a Insolvente, ora Recorrente, não tem quaisquer bens, pelo que não houve lugar a liquidação no âmbito do processo de insolvência, no entanto o encerramento do processo teve como fundamento a inexistência de bens da ora Executada, conforme resulta inequívoco do processo da decisão de encerramento.
F. Efetivamente, o encerramento do processo não teve como base a d), do nº 1, do art. 230º do CIRE, uma vez que não houve despacho preliminar de exoneração do passivo restante; logo, o Tribunal teve que efetuar, em simultâneo, decisão quanto à exoneração do passivo restante, bem como quanto ao encerramento do processo de insolvência, recorrendo à al. e) do mesmo preceito.
G. Na verdade, a inexistência de bens resulta evidente, não só do despacho de exoneração e encerramento do processo de insolvência, como do relatório junto ao processo de insolvência, nos termos do art. 155º do CIRE, e requerimento posteriormente apresentado pelo Administrador de Insolvência, onde requer o encerramento do processo, nos termos do art. 232º do CIRE.
….I. Por outro lado, repare-se que, para além da Recorrente não possuir bens, conforme foi atestado pelo Sr. Administrador de Insolvência, que promoveu a extinção do processo de insolvência por insuficiência de bens, foi fixado como rendimento indisponível para o período de cessão o montante respeitante ao salário mínimo nacional, o que significa que, ainda que se considere que a presente execução deverá prosseguir, a mesma estará votada ao insucesso, porquanto não poderá haver penhora de pensão à Executada.
J. Acresce que, será necessário atentar que o processo de insolvência é um processo de execução universal, que tem como finalidade a satisfação dos credores através da liquidação do património do devedor insolvente, assim como a repartição do produto obtido pelos credores, no estrito cumprimento do princípio da igualdade entre credores - art. 1º, nº 1 do CIRE.
K. Portanto, perante um processo de insolvência, que encerra por insuficiência da massa e, no qual foi decretada exoneração do passivo restante, seria um contrassenso permitir aos credores prosseguirem com as ações executivas pendentes, porquanto estariam a efetuar penhoras nos vencimentos/pensões de insolventes, que estão destinadas a serem entregues ao fiduciário, durante o período de cessão de rendimentos, o que representaria uma total inversão do que se pretende com a exoneração do passivo restante, bem como no que respeita à ratio do período de cessão.
L. Além do supra exposto, é necessário atentar que o objetivo do período de cessão de rendimentos é a entrega dos rendimentos disponíveis, e a posterior redistribuição do montante pelos credores, respeitando os princípios da equidade impostos, motivo pelo qual se encontra previsto no art. 242º do CIRE que, durante o período de cessão de rendimentos, não são permitidas execuções sobre os bens do devedor com vista ao ressarcimento de créditos sobre a insolvência.
M. Ou seja, resulta patente que o referido preceito pretendeu evitar que os credores da insolvência possam executar os insolventes, durante o período de cessão, porquanto se assim fosse, o primeiro a registar a ordem de penhora ao vencimento ou pensão arrecadaria todo o montante, e impediria, não só que o período de cessão decorresse com toda a normalidade, mas também que os montantes conseguidos não fossem distribuídos consoante a sentença de graduação de créditos transitada em julgado no âmbito do processo de insolvência.
N. Por último, resta referir que, de acordo com o nº 1, do artigo 245º do CIRE, a decisão de exoneração do passivo restante tem como efeito a extinção dos créditos sobre a insolvência, que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não foram reclamados e verificados, pelo que também pela aplicação do referido preceito não se compreende a decisão da qual se recorre.
O. Ora, é indubitável que a decisão de levantamento de suspensão e de prosseguimento dos autos só poderá ter sido tomada pelo Tribunal, em virtude de não se ter verificado o motivo da extinção, bem como que a decisão de extinção foi, em simultâneo, uma decisão de exoneração do passivo restante e consequente período de fidúcia, caso contrário não poderia o Tribunal ter decidido como decidiu, pois tal decisão configura uma manifesta violação do art. 242º, nº 1 e do art. 245º, ambos do CIRE.
P. Em face do exposto, a decisão da qual se recorre terá que ser revogada por decisão que extinga o processo executivo, em virtude da decisão de encerramento do processo de insolvência, no qual foi deferida a exoneração de passivo restante à ora Recorrente.”
Nestes termos, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., Venerandos Relatores, deverá o despacho datado de 08.11.2022 ser revogado, por manifesta violação dos artigos , 1º, nº 1, 242º e 245º, todos do CIRE, sendo substituído por douto acórdão que determine a extinção da instância….”
CONTRA-ALEGAÇÕES DO EXEQUENTE MINISTÉRIO PÚBLICO-refere-se que deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC.
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente[1], o objecto do recurso é saber se há lugar à continuação da execução face ao despacho proferido no processo de insolvência.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos- são os constantes do relatório.

B) Direito

Insurge-se a recorrente contra despacho da juiz a quo a  determinar o prosseguimento da execução após despacho na insolvência a encerrar o respetivo processo.
A execução, donde emana o recurso, encontrava-se suspensa em decorrência da declaração de insolvência.

O preceito que regula os efeitos externos que a declaração de insolvência tem sobre as execuções é artigo 88º, 1, do CIRE, o qual dispõe:

(acções executivas)
“1-A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.”
Da norma resulta que a declaração de insolvência suspende o andamento da execução contra o insolvente. Pergunta-se: até quando se mantém a suspensão e em que casos se extingue?
A resposta é: depende da causa que leva ao encerramento do processo de insolvência.

Refere o mesmo preceito no nº 3, do art. 88º, CIRE:
“As ações executivas suspensas nos termos do n.º 1 extinguem-se, quanto ao executado insolvente, logo que o processo de insolvência seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 230.º….”.

As causas especiais (relacionadas com a insolvência) previstas na lei como suceptíveis de levar à extinção da execução são:

(i) o encerramento do processo de insolvência após a realização do rateio final (230º,1, al. a), CIRE);
(ii) o encerramento do processo de insolvência após o administrador da insolvência constatar a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente (230º, 1, al. d), CIRE).

Relembra-se que a suspensão da acção executiva tem por justificação o carácter universal e concursal da insolvência (1º e 47º, CIRE). A apontada característica de universalidade significa que todos os bens e direitos do insolvente devem ser reunidos no processo de insolvência e ali liquidados para serem distribuídos entre todos os credores de acordo com a ordem legal de preferência. Inclusive se já tiverem ocorrido actos de apreensão de bens deverá ser ordenada a apensação ao processo de insolvência - 85º, 2, CIRE. A apontada características de concursalidade significa que todos os credores do insolvente, sem exceção, devem reclamar os seus créditos na insolvência, independentemente da sua natureza e ainda que disponham já de decisão definitiva que os reconheça, sob pena de não obterem pagamento (90º, 128º, 5, ) CIRE) . Por tais motivos as acções executivas não podem prosseguir, sob pena de subtração de bens à insolvência e de privilegiamento de uns credores sobre outros.
A suspensão da instância executiva perdurará até ao encerramento do processo da insolvência, sendo este o momento regra em que os seus efeitos cessam, recuperando, então, o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios- (233º CIRE). A partir daí os credores que não obtiveram satisfação total dos seus créditos poderão, em abstracto e por princípio, exercer coercivamente os seus direitos.
 O destino futuro das execuções até ali suspensas e o seu aproveitamento ou não, depende da causa que motiva o encerramento do processo após a declaração de insolvência.
A lei regula[2]  as duas já elencadas hipóteses de extinção das execuções, sendo omissa nas restantes, cujo destino dependerá de várias circunstâncias, em especial do regime jurídico que motiva o encerramento do processo - Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, Almedina, 8ª ed.,  p. 201.
A referida previsão legal de extinção da execução motivada no encerramento do processo de insolvência por realização do rateio final (88º, 3, 230º, 1, a, CIRE), redunda em inutilidade superveniente da lide da execução no caso dos insolventes singulares, acrescendo que, no caso da insolvente sociedade comercial, esta extingue-se com o registo deste acto (234º, 3, CIRE), o que também impede a continuação da instância executiva. À segunda hipótese legal de extinção da execução motivada em insuficiência de bens da massa insolvente (88º, 3, 230º, 1, d CIRE) parece também subjazer, como fundamento, uma inutilidade superveniente da lide.
Não obstante, poderão suscitar algumas dúvidas, casos em que os bens, apesar de insuficientes para pagar as dívidas da massa insolvente e das custas, serão, eventualmente, suficientes a créditos exequendos. Bem como poderá causar estranheza a extinção da execução relativamente a credor cujo crédito não foi reclamado na insolvência- Maria do Rosário Epifânio, obra citada, p. 202 e 203. O que justificaria uma interpretação mais restritiva da norma, consoante o circunstancialismo.
Volvendo aos autos, conforme relatório deste acórdão, o processo de insolvência desembocou em incidente de exoneração do passivo restante, regulado nos artigos 235º a 248º-A, CIRE.
A exoneração do passivo restante é um mecanismo que se aplica a pessoas singulares. Consiste no perdão de dívidas que não sejam integralmente pagas no processo de insolvência nos três anos posteriores ao encerramento do processo. Após o decurso deste prazo, o devedor pode obter o que se chama de “fresh start”, ou seja, o perdão das dívidas que não foram, entretanto, pagas. Trata-se de dar ao devedor pessoa singular uma segunda oportunidade para recomeçar a sua vida económica. Durante três anos, chamado de período de cessão, o devedor terá que disponibilizar o seu rendimento disponível a um fiduciário que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No final, tendo o devedor cumprido os seus deveres, será proferido o despacho final de exoneração do passivo restante, que leva à extinção de todas as suas dívidas, com exceção de algumas, mormente os créditos tributários, da segurança social e os créditos por coimas (como o dos autos) e outras sanções pecuniárias por crimes ou contraordenações (245º, 2, CIRE).

No caso o encerramento do processo após o decretamento da insolvência foi motivado em duas causas:

(i) na prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante (230º, 1, e, CIRE), o qual exige que (caso não o tenha sido antes) seja decretado o encerramento do processo após a insolvência (haja ou não bens a liquidar), por ser este o evento a partir do qual se conta o prazo de três anos de exoneração do passivo restante - 237º, b), CIRE.    
Se a causa do encerramento tivesse somente por base este fundamento, não haveria lugar a extinção da instância executiva. Seria um encerramento meramente formal, necessário à referida contagem do prazo do incidente de exoneração do passivo - 88º, 3, CIRE. É compreensível que esta causa de encerramento não determine a extinção da acção executiva, pois desconhece-se ainda se os credores, e quais, obterão pagamento com a liquidação dos bens. Será cedo para se saber se a acção executiva perdeu a sua utilidade.

A segunda causa de encerramento motivou-se:

(ii) na insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente (230, 1, d. CIRE
Assim, aparentemente estaria verificada a previsão legal de extinção da instância pela insuficiência de bens, nos termos acima assinalados (pelo 230, al.d, CIRE). Tal pode gerar alguma perplexidade pelo facto de na execução estar penhorado um bem (pintura avaliada em 6.000, suficiente ao valor exequendo) e de, ainda assim, se extinguir a execução, não obstante não haja, por ora, notícia de liquidação deste bem no processo de insolvência.
Temos para já como certo que, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, não se pode levantar a suspensão da instância e prosseguir a acção executiva. A isso de opõe o regime específico do incidente de exoneração do passivo restante, subsequente ao encerramento da insolvência, no qual se mantêm as mesmas limitações relativamente a acções executivas que possam atingir o património do devedor.
Atente-se no que dispõe o art. 242º do CIRE :(igualdade de credores” 1 - Não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período da cessão…..)
Ademais, durante o período da cessão o rendimento disponível que o devedor venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário e o devedor fica, designadamente, obrigado a não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património, a exercer uma profissão remunerada, a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, a não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores (239º CIRE).
É ainda neste incidente que o fiduciário deve liquidar “novos bens” que apareçam.

Veja-se o que neste sentido refere o art. 241º-A, CIRE:

(liquidação superveniente)” 1 - Finda a liquidação do ativo do devedor e encerrado o processo de insolvência nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, caso ingressem bens ou direitos suscetíveis de alienação no património daquele, o fiduciário deverá, com prontidão, proceder à sua apreensão e venda, sendo para o efeito aplicável o disposto no título vi, com as devidas adaptações. …”)
Assim, além de não serem permitidas execuções sobre os bens do devedor, continua a vigorar um principio de igualdade de credores, não podendo ser concedidas vantagens especiais a qualquer credor relativamente aos demais (242º CIRE).
E passamos a ter um período de 3 anos durante o qual poderá mesmo sobrevir património.
Razão pela qual, atentas as especificidades do caso, não poderá haver lugar ao prosseguimento da execução, mas também será precoce extingui-la.
Na verdade, não tendo a execução sido apensada à insolvência, não tendo, nesta, aparentemente, sido liquidado qualquer património (tanto quanto sabemos), permanece desconhecido o futuro do bem penhorado nestes autos, um quadro avaliado no valor não despiciendo de 6.000,00€. Assim, o exequente pode vir a ter interesse no prosseguimento da execução findo que esteja o período de exoneração do passivo restante, consoante as vicissitudes que neste ocorrerem.
Como refere Artur Dionísio em “Os efeitos externos da insolvência -As acções pendentes contra o insolvente”, revista “Julgar”, nº 9, pág. 179, disponível online:
Em princípio, a suspensão da execução deve manter-se até ao encerramento do processo, com a qual cessam os efeitos da declaração de insolvência, como decorre do disposto no art. 233 do CIRE.
Esta cessação pode dar lugar à extinção da execução ou ao seu prosseguimento. Mas em determinadas situações a suspensão deverá ser prorrogada.
Tudo dependerá do motivo do encerramento do processo de insolvência…Tratando-se de uma pessoa singular, a execução deverá ser extinta se o credito tiver sido satisfeito na insolvência. No caso contrário, nada obstará ao seu prosseguimento.
Este prosseguimento poderá, todavia, estar impedido pelo regime de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no art. 242º, onde se dispõe que “não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas á satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período de cessão.” Após este período haverá que ter em conta os efeitos da exoneração, previsto no artigo 245º (onde se referem quais os créditos que se extinguem e que não se extinguem), para concluir pela extinção ou pelo prosseguimento”[3].

Em suma, deve manter-se a suspensão da instância executiva porque: (i) decorre o período de exoneração do passivo restante, durante o qual nenhuma execução pode prosseguir; (ii) na execução foi penhorado bem de valor significativo (pintura avaliada em 6.000,00€); (iii) não há notícia de que no processo de insolvência o bem tenha sido liquidado, nem consta que o MP ali tenha reclamado o crédito exequendo; (iv) o crédito exequendo, resultando de coima, não é extinto pelo eventual perdão concedido no final do incidente de exoneração do passivo restante (245º,2, c, CIRE). Só nessa altura haverá condições para saber se a execução perde utilidade e deve ou não ser extinta.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso de apelação interposto pela recorrente, revogando-se o despacho de prosseguimento da execução e mantendo-se a suspensão da instância executiva (87º do CPT e 663º do CPC).
Custas a fixar a final.
Notifique.
16-03-2023

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Antero Dinis Ramos Veiga



[1] Segundo os artigos 635º, 639º e 640% do CPC, o âmbito do recurso e a área de intervenção do tribunal ad quem é delimitado/balizado pelas questões e conclusões suscitadas pelo recorrente.
[2] Art. 88º CIRE, na redacção dada pela Lei 16/2012, de 20-04.
[3] A publicação é anterior à alteração da norma dada pela Lei 16-2012, de 20-04, que aditou a parte actualmente vigente (88, nº 3, CIRE) respeitante à extinção da instância executiva. Contudo, o estudo mantém actualidade por já preconizar, essencialmente, as soluções que vieram a ser consagradas como causa de extinção das execuções suspensas e por problematizar a razão de ser da norma, ajudando a decidir casos não lineares.