Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
569/14.2TTGMR.G1
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL
CONTRATO DE TRABALHO
LEGITIMIDADE
MINISTÉRIO PÚBLICO
TRABALHADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário: Na ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, prevista nos Artº 186ºK e ss. do CPT, o trabalhador não tem legitimidade para, contra o Ministério Público, dispor do objeto do litígio.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Guimarães:

O MINISTÉRIO PÚBLICO, Autor, notificado da decisão proferida, que homologou o acordo celebrado entre a Ré e a Trabalhadora, D…, não se conformando com a mesma, dela interpôs recurso.
Pede a revogação da decisão recorrida.
Formula as seguintes conclusões:
1º– No âmbito de uma ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a Ré “L..., S. A.” e a Trabalhadora, D… celebraram “acordo”, considerando que a relação entre elas existentes não tem natureza de contrato de trabalho mas antes sempre foi contrato de prestação de serviços.
2 – Não obstante a oposição do Ministério Público, a M. Juíza a quo proferiu decisão homologando o referido “acordo”.
3 – Acontece que, neste tipo de ações prevalece um interesse público assente nas exigências constitucionais e legais de dignificação das relações laborais,
4 – visando, assim, o reconhecimento / regularização de situações como a dos presentes autos como relações de trabalho subordinado e assim sejam reconhecidas pelas partes.
5 – Do exposto, resulta que o acordo / conciliação a que alude o artigo 186-O do Código do Processo do Trabalho deve assentar em critérios de legalidade estrita, sendo apenas admissível para regularizar a situação laboral em apreciação, reconhecendo-a como contrato de trabalho.
6 – Para além disso, a Trabalhadora não é parte na causa, revestindo, quando muito, a sua posição processual, a qualidade de mera assistente da parte principal o MºPº, A. na ação, pelo que a sua intervenção está subordinada à intervenção do MºPº, não podendo o assistente tomar posições em oposição às da parte principal;
7 – E, não sendo parte na causa, não pode a Trabalhadora dispor do objeto do processo - possibilidade restrita do (s) Autor (es) -,transigindo quanto ao seu objeto;
8 – Assim, o Tribunal “ a quo “ ao homologar a transação entre a Trabalhadora e a Ré, com a oposição do Mª Pº, A. na ação, violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 52, n.º 2, e 186-O, ambos do Código de Processo do Trabalho 283, nº 2, 284º, 289º, 290º e 277º, alínea d), todos do Código de Processo Civil.

L…, S.A. contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.

Exaramos, abaixo, um breve resumo dos autos.
O Ministério Público intentou a presente ação de reconhecimento da existência do contrato de trabalho contra a L..., S.A., pedindo a final seja reconhecido que o contrato celebrado entre a ré e D…, o qual se mantém, consiste num contrato de trabalho enquadrável no conceito definido no artigo 12º, do Código do Trabalho.
No início desta diligência procedeu-se à audiência de partes, tendo a entidade empregadora e “trabalhadora” declarado que pretendiam transigir quanto ao objeto destes autos.
O Digno Procurador declarou opor-se.
Proferiu-se decisão que homologou a transação efetuada pelas partes, condenando e absolvendo nos seus precisos termos.

Sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, as conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, é a seguinte a questão a decidir, extraída das conclusões:
- a trabalhadora não pode dispor do objeto do processo?

Homologou-se nos autos uma transação levada a cabo entre os pretensos trabalhador e empregador, tendo-se consignado o seguinte:
“A trabalhadora D… declara que, em seu entendimento, relativamente à ré não existe qualquer contrato de trabalho, porquanto, e factos que a ré aceita, faz os turnos que pretende e quando pretende, informando todos os meses a ré das respetivas disponibilidades e indisponibilidades, podendo trocá-los livremente com outros colegas que também prestam serviço para a ré, sem ter de obter autorização desta, que aufere as quantias pecuniárias de acordo com o número de horas e os turnos que efetivamente faça e que a ré nunca exerceu o poder disciplinar sobre ela.
Assim, declaram que pretendem por fim ao litígio dos presentes autos, nos seguintes termos:
1 -D… e a ré L..., S.A., reconhecem que a relação em discussão nos presentes autos é, como sempre foi, um contrato de prestação de serviço.
2 – Atento a cláusula 1ª nada tem a reclamar da ré seja a que título for.”

A questão suscitada no recurso prende-se com a legitimidade processual da trabalhadora na ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
A legitimidade, como é sabido, traduz-se num poder. É uma posição de parte que permite a um determinado autor ou a um determinado réu ocupar-se em juízo de um determinado objeto do litígio.
Só o titular de tal poder poderá dispor do objeto do litígio.
E, se o objeto do litígio consiste numa relação material controvertida e a respetiva titularidade cabe, em regra, aos sujeitos respetivos, casos existem em que não cabe. São os casos em que é a própria lei a indicar os titulares do interesse relevante. Vejamos, então, o que se passa no caso concreto.
A ação a que nos reportamos, consagrada por introdução operada pela Lei 63/2013 de 27/08, nos Artº 186ºK e ss. do CPT, vem na sequência da introdução de mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado.
Introduziram-se na ordem jurídica nacional, por força de tal lei, dois mecanismos específicos: de um lado, o reforço da competência inspetiva da ACT, à qual se atribuíram novas competências, agora no âmbito da matéria que nos ocupa; de outro, a introdução de uma nova ação – a ação acima referida, à qual foi atribuída natureza urgente, sendo sempre admissível recurso de apelação para a Relação.
Esta não é, porém, uma ação entre trabalhador e empregador. Muito embora ambos possam discutir no âmbito do processo comum a existência de um contrato de trabalho que os ligue, aqui trata-se de conferir ao Ministério Público legitimidade para, por si e sem dependência de qualquer patrocínio, interpor a ação especial.
E só o Ministério Público pode interpô-la, conforme emerge de quanto se dispõe nos Artº 186ºK e 186ºL.
Não só apenas o Ministério Público tem legitimidade processual, como a tem independentemente da vontade, quer do trabalhador, quer do empregador, conforme bem decorre de quanto se dispõe nos Artº 186ºL/4 e 186ºM.
Trata-se, aqui, de um dos casos especiais em que o titular do interesse relevante para o efeito da legitimidade é indicado pela lei (Artº 30º/3 do CPC).
Pretendeu-se com esta ação tutelar muito mais do que o interesse privado decorrente da relação estabelecida entre trabalhador e empregador.
Visou-se por termo a um verdadeiro flagelo social – os falsos recibos verdes. Sabe-se que através de tal flagelo se introduziram mecanismos de precarização da relação laboral e inerente diminuição de garantias, se introduziram enormes desigualdades sociais entre aqueles que cumprem e os que se furtam á aplicação das leis laborais, sendo que a real relação existente entre as partes merece tutela laboral. Daí que o interesse protegido com a introdução desta ação seja essencialmente o interesse público, a par, é claro, do interesse privado subjacente á concreta relação laboral.
Ora, conferindo a lei legitimidade processual ao Ministério Público para instaurar a ação – e só a ele -, é para nós claro que só com a intervenção do Ministério Público poderá pôr-se termo á ação pela via conciliatória. Só o Mistério Público pode dispor do objeto da ação, porquanto é ele quem tem interesse na demanda. O interesse principal.
Na verdade, ao trabalhador concede-se a possibilidade de aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, a de apresentar articulado próprio e constituir mandatário. Mas, em parte alguma se prevê que a apresentação de articulado próprio e a constituição de mandatário excluam o Ministério Público da ação.
Por outro lado, a lei confere ao juiz o poder de tentar a conciliação entre o trabalhador e o empregador, caso estes estejam presentes na audiência.
Esta conciliação, contudo, não poderá deixar de ser apenas no sentido de prossecução do interesse visado na ação proposta pelo Ministério Público, único titular de legitimidade ativa. A intervenção do trabalhador nesta ação confere-lhe apenas os poderes que a posição de assistente, em regra confere – o de auxiliar a parte principal na demanda, numa atividade necessariamente subordinada à desta.
Nesta medida, o trabalhador não tem legitimidade para, como no caso concreto, reconhecer “que a relação em discussão nos presentes autos é, como sempre foi, um contrato de prestação de serviço” e com isso por fim à ação cujo pedido é reconhecer-se que o contrato consiste num verdadeiro contrato de trabalho.
Não significa isto que não possa o Ministério Público vir a transigir, porquanto, muito embora prosseguindo um interesse público, ele não é indisponível.
Ou seja, não é porque o interesse que se tutela é público que não se pode transigir. Não se pode transigir porque o titular do interesse principal está contra a transação, que, por isso, não se pode homologar.
Admitir a possibilidade de transação entre uma das partes principais – o réu – e uma parte acessória – o trabalhador-, contra a vontade da parte principal – o Ministério Público- seria deixar cair completamente o interesse principal tutelado e permitir, por esta via, o aproveitamento de eventual situação de necessidade da parte reconhecidamente mais frágil na relação contratual, o que redundaria na apologia do flagelo que se pretende combater.
E nem se diga que obstaculizando à homologação de uma transação nestes moldes se potencia alguma situação de desigualdade com o processo comum em que se discuta matéria semelhante, porquanto ambas as ações são absolutamente distintas em toda a sua configuração.
Procede, pois, a apelação.

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, ordenando o prosseguimento dos autos com o julgamento.
Custas pela Recrdª.
Notifique.
Guimarães, 12/03/2015
Manuela Fialho
Moisés Silva
Antero Veiga