Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1464/0.0TBGMR-H.G1
Relator: MANUELA BENTO FIALHO
Descritores: CIRE
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PRESTAÇÃO DE CONTAS
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 – A contratação, pelo administrador de insolvência, de serviços de advogado para efeitos de patrocínio judiciário, não depende de autorização.
2 – A contratação, pelo mesmo, de outros técnicos ou auxiliares carece de concordância da comissão de credores ou, na falta desta, do juiz.
3 – Criando-se, por força quer da actividade do administrador no processo, quer por força do comportamento do juiz, uma situação que permite criar expectativas no sentido de aquela actuação estar conforme ás exigências legais, devem, em obediência ao princípio da confiança, e não obstante o administrador ter negligenciado o seu dever de obtenção de prévia concordância judicial, validar-se as contas por ele apresentadas para pagamento dos serviços de terceiros a quem recorreu.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ªsecção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
F… interpôs recurso da decisão que indeferiu parte das contas que, enquanto administrador de insolvência, apresentou.
Pede que a decisão proferida no presente apenso de não aceitação das contas prestadas pelo aqui recorrente, referentes aos custos com os serviços de contabilidade, solicitadoria e advocacia seja revogada e substituída por outra que determine a aceitação de tais contas; ou, sem prescindir e se tal não for doutamente entendido, que seja a decisão proferida em Primeira Instância revogada e ordenado ao Tribunal a quo no sentido de notificar o ora recorrente no sentido de rectificar as contas apresentadas.
Após alegar, formulou as seguintes conclusões:
A. Entendeu a Mm. Sra. Dra. Juiz a quo que o aqui recorrente violou as disposições vertidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 55.º do CIRE ao não ter formulado qualquer pedido no sentido de lhe ser autorizada a ”… coadjuvação por técnicos, tendo tomado a decisão de forma isolada e sem consultar previamente os credores ou o Tribunal.”
A. Conforme resulta do requerimento junto aos autos a fls. 253 a 255, com data de 29-09-2010, o aqui recorrente logrou juntar dois orçamentos para se proceder à avaliação e peritagem de todos os bens apreendidos nos autos de insolvência, concretamente, os orçamentos das empresas “F…, Lda.” e “V…”, tendo informado o Tribunal a quo que, face aos orçamentos apresentados, o Sr. Administrador de Insolvência “…deliberou adjudicar este serviço à firma “F…, Lda. por se afigurar o mais económico, logo mais vantajoso para a massa.
B. Também, conforme resulta do requerimento junto aos autos a fls. 259 a 271, com data de 29-09-2012, o aqui recorrente logrou juntar dois orçamentos de empresas de contabilidade para a continuação do cumprimento das obrigações fiscais da massa insolvente, designadamente, em sede de IRC e IVA, concretamente, os orçamentos das empresas “S…, Lda.” e de “A…” , sendo que informou o Tribunal a quo que “…optou por adjudicar o serviço à empresa S…, Lda.” por se apresentar o mais acessível.”
C. Igualmente, por requerimento datado de 28-10-2010, o aqui recorrente logrou juntar aos autos dois orçamentos apresentados por dois escritórios de advogados, para assumir o patrocínio jurídico da massa insolvente, quer nas acções pendentes quer nas acções a interpor, concretamente, os orçamentos dos escritórios dos advogados, Dra. R… e Dra. D… e Dr. F…, tendo o aqui recorrente informado o Tribunal a quo “… que as diligencias de cobrança judicial e extrajudicial foram adjudicadas à Dra. R…, dado o seu orçamento ser o que melhor atende aos interesses da massa insolvente”.
D. Uma vez juntos os orçamentos supra referenciados, a Mm. Sra. Dra. Juiz a quo, por despacho datado de 07-10-2010, junto a fls. 273, entendeu colocar à consideração de todos os credores dos autos de insolvência os documentos juntos de fls. 253 a 259 (entenda-se os orçamentos referente à adjudicação dos serviços de peritagem e avaliação e de contabilidade).
E. Do teor do despacho junto a fls. 273 lê-se: “ fls. 253 ss e 259 ss: antes do mais, notifique os credores para se pronunciarem sobre a aprovação ou não da solicitada coadjuvação”.
F. Ou seja, quer isto dizer, com o devido e maior respeito pelo Tribunal a quo, que aquele Tribunal depreendeu da junção dos orçamentos de fls. 253 a 271 que o aqui recorrente logrou solicitar a coadjuvação de técnicos, porquanto, a entender-se que houve por parte do recorrente uma irregularidade na preterição de formalidade, a mesma encontra-se assim suprida face à prolação do despacho de fls. 273.
G. Mais importa esclarecer que, face ao douto despacho do Tribunal a quo, de fls. 273, apenas dois credores vieram responder quanto aos orçamentos juntos a fls. 253 a 271, sendo que a credora M… não se opôs à solicitada coadjuvação, isto é, à adjudicação dos serviços de Peritagem e Avaliação e dos serviços de contabilidade, conforme resulta de fls. 289.
H. Também, a credora Instituto da Segurança Social logrou responder à interpelação do Tribunal a quo, tendo informado que nada tinha a opor à adjudicação dos serviços de peritagem e avaliação, porém, não homologou a adjudicação dos serviços de contabilidade, conforme resulta de fls. 303 a 304.
I. No que concerne ao requerimento datado de 28-10-2010, onde o aqui recorrente logrou informar os autos da adjudicação dos serviços jurídicos ao escritório de advogados, Dra. R…, a Mm. Sra. Dra. Juiz a quo proferiu a fls. 327 o despacho datado de 03-11-2010, no qual pode ler-se: “ nada a ordenar”.
J. Estatui o n.º 2 do artigo 55.º do CIRE que “O administrador da insolvência exerce pessoalmente as competências do seu cargo, não podendo substabelecê-las em ninguém, sem prejuízo dos casos de recurso obrigatório ao patrocínio judiciário ou de necessidade de prévia concordância da comissão de credores, pelo que salvo o devido e maior respeito, não era sequer necessário qualquer concordância no que diz respeito à constituição de mandatário.
K. Conforme resulta dos relatórios judiciais juntos aos autos, supra elencados, todas as acções judiciais que se encontravam pendentes exigiam por parte da massa insolvente o recurso de patrocínio jurídico obrigatório, além do que o acompanhamento jurídico dos mesmos não consubstancia um ato jurídico dependente de previa concordância da Comissão de Credores, tal como se exige nos artigos 161.º, n.º 1, 56.º, n.º 1, 64.º, n.º 1, 178.º, n.º 1, todos do CIRE, ou ato que exija a intervenção do Mm. Sr. Dr. Juiz, como se encontra previsto no artigo 158.º, n.º 2 do CIRE.
L. Por outro lado, estatui o n.º 3 do artigo 55.º do CIRE que: “O administrador da insolvência, no exercício das respectivas funções, pode ser coadjuvado sob a sua responsabilidade por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão.”
M. Com efeito, face ao douto entendimento da Administração Tributaria plasmado no oficio junto a fls. 261 e 262, do apenso principal, a Administração Aduaneira e Tributária entendeu em despacho n.º 24074/2005, publicado em D.R., II Série, n.º 226, de 24 de Novembro de 2005, à data da entrada dos autos ora em causa, a massa insolvente, na pessoa do seu Administrador de Insolvência, tinha a obrigação de cumprir e manter as obrigações fiscais, facto este que justifica o recurso a apoio técnico especializado, merecedor de pronúncia favorável e expressa do credor Segurança Social.
N. Salvo o devido e maior respeito, o aqui recorrente não violou os n.ºs 2 e 3 do artigo 55.º do CIRE, tendo a preterição formal, a existir, o que não se entende, sido devidamente rectificada aquando da notificação de todos os credores, operada pelo Tribunal a quo, a fls. 274 a 282, porquanto o fundamento legal para indeferir as contas, consubstanciada no argumento da tomada de decisão de forma isolada e sem consultar previamente o Tribunal, deve assim improceder, por não provada.
O. Mais, apraz informar que no âmbito da liquidação do activo da sociedade insolvente, encontrava-se pendente a acção judicial a correr termos com o n.º 4003/09.1TBGMR, exactamente, no mesmo 5.º Juízo Cível, sendo que, face à declaração de insolvência da Autora, o seu mandatário, por requerimento junto a fls. 239 a 241 daqueles mesmos autos, veio alegar a caducidade dos seus poderes de representação.
P. A Mm. Sra. Dra. Juiz a quo logrou notificar o aqui recorrente, com cópia de fls. 240 e seguintes, sendo que este logrou requerer apensação daqueles autos aos de insolvência, dando assim origem ao apenso “C”, tendo, também, junto procuração forense a favor da Dra. R… para a prossecução dos aludidos autos, tudo fazendo na boa-fé de que o orçamento que se encontrava já junto aos autos e que mereceu a pronuncia do Tribunal a quo de fls. 327, se encontrava aceite e devidamente adjudicado.
Q. Sendo que, e enfatize-se, para o prosseguimento de tais autos era obrigatório o patrocínio judiciário, pelo que ainda que não tivesse sido proferido o despacho de fls 327, donde se depreende clara e inequivocamente que nada havia a opor à adjudicação de tais serviços, que sempre e de todo o modo, o custo inerente à constituição de mandatário para assegurar o patrocínio judiciário obrigatório, nos termos do disposto no nº2 do art. 55º do CIRE, é um custo da massa que não tem que ter a prévia anuência da comissão de credores.
R. Porém e, não obstante os factos supra elencados, certo foi que aquando da apresentação da prestação de contas do aqui recorrente -- apenso “G” --, a Mm. Sra. Dra. Juiz a quo não homologou as contas referentes aos serviços adjudicados à empresa “S…, Lda.”, à mandatária da massa insolvente e à Sra. Solicitadora de Execução, tendo como suporte legal o facto do aqui recorrente não ter obtido concordância prévia da Mm. Sra. Dra. Juiz a quo, face à inexistência de Comissão de Credores nomeada.
S. Entendendo aquele Tribunal a quo que nada obstava a que os credores agora notificados ratificassem aquela coadjuvação, promoveu a aludida notificação, conforme despacho datado de 01-10-2012, junto a fls. 89 a 100 do apenso de prestação de contas, tendo, porém, determinado que a ratificação apenas poderá operar caso haja pronuncia expressa de todos nesse sentido.
T. Apenas dois dos doze credores reconhecidos lograram pronunciar-se, sendo que, a credora G… pronunciou-se a fls. 111 do apenso de prestação de contas, no sentido de não se opor à rectificação das contas apresentadas pelo recorrente e a credora Instituto da Segurança Social logrou pronunciar-se a fls. 113 aceitando agora também as contas referente aos serviços de contabilidade, dada a recuperação de IVA €6.204,38 e as contas da Solicitadora de Execução, mas opondo-se, porém, às despesas com a advogada, as quais, como se disse, e nos termos legalmente aplicáveis, nem necessitariam de prévia concordância dos credores.
U. Face às duas pronuncias expressas recolhidas, o Tribunal a quo decidiu então indeferir as contas prestadas na parte relativa aos gastos com a sociedade “S…”, com a Sra. Solicitadora de Execução e com a Ilustre advogada, sustentando na douta sentença referente à prestação de contas que o recorrente “…não formulou qualquer pedido no sentido da coadjuvação por técnicos, tendo tomado a decisão de forma isolada e sem consultar previamente os credores ou o tribunal”, concluindo, assim, pela violação do disposto no artigo 55.º, n.º 2 e 3 do CIRE.
V. Salvo o reiterado respeito, toda a conduta do Tribunal no decorrer do presente processo foi no sentido de criar uma legítima convicção no Administrador de Insolvência, ora recorrente, que os custos por si apresentados teriam sido aceites.
W. Ou, se assim não fosse, pelo menos, seria expectável que em algum momento do processo e face aos diversos relatórios juntos aos autos, supra melhor descritos, do qual resultavam actos concretos praticados pelas entidades que estavam a coadjuvar o Administrador de Insolvência, que tivesse havido uma pronúncia no sentido da não aceitação das adjudicações efectuadas, pelo menos se tal fosse o entendimento da MM Juiz a quo.
X. Pelo que, a decisão de que ora se recorre, é manifestamente violadora dos princípios da colaboração e ainda da confiança, uma vez que todo o desenrolar do processo foi no sentido de criar no Administrador de Insolvência, ora recorrente, uma expectativa legitimamente fundada de que tais adjudicações haviam sido aceites e que, consequentemente, os gastos com a coadjuvação de tais técnicos seriam aceites.
Sem prescindir e se tal não for doutamente entendido
Y. A credora G…, aquando da notificação da prestação de contas, pronunciou-se a fls. 111 no sentido de não se opor à rectificação das contas apresentadas pelo Administrador de Insolvência.
Z. Ainda que não se entenda, deveria o Tribunal a quo ter notificado o aqui recorrente no sentido de rectificar as contas apresentadas e nunca proceder ao indeferimento das mesmas, referente aos gastos com os serviços de contabilidade, solicitadoria e advocacia.

O MINISTÉRIO PÚBLICO contra-alegou pugnando pelo bem fundado da decisão.
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O Recrte. restringiu, ao que entendemos o recurso ao indeferimento relativo aos gastos com a sociedade S…, com a SOLICITADORA DE EXECUÇÃO e com a ILUSTRE ADVOGADA.
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Os presentes autos tiveram origem no incidente de apresentação de contas pelo administrador de insolvência, relativamente ao qual o Ministério Público se pronunciou no sentido de se desconhecerem os fundamentos para que sejam pagos honorários à empresa de contabilidade, os serviços de advocacia prestados e as despesas com economato.
Na sequência de tal posição, ordenou-se a notificação do Administrador de Insolvência para prestar esclarecimentos a propósito da obtenção das autorizações ou concordâncias legais e para esclarecer determinada despesas.
O Administrador pronunciou-se no sentido de, no que concerne ás despesas de contabilidade, ter efectuado a junção de um orçamento, pelo que, em função do silêncio do juiz, entendeu que nada haveria a opor á adjudicação dos serviços; que por lapso, não procedeu à aprovação de orçamento para solicitadoria, que os actos levados a cabo pela solicitador foram essenciais ao processo.
Seguidamente, foi proferido despacho no sentido de se notificarem os credores para ratificarem os serviços de contabilidade e os que foram adjudicados á solicitadora de execução, com a expressa indicação de que a ratificação apenas poderá operar caso haja pronúncia expressa de todos nesse sentido.
Proferiu-se, após, decisão que indeferiu parte das contas apresentadas.
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Das conclusões acima exaradas, delimitadoras do objecto do recurso, extraem-se as seguintes questões a decidir:
1ª – O Recrte. não violou o Artº 55º/2 e 3 do CIRE?
2ª – A decisão é manifestamente violadora dos princípios da colaboração e da confiança?
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Exarou-se na decisão sob recurso:
“...Na situação em apreço não foi nomeada comissão de credores.
O Sr. A.I. não formulou qualquer pedido no sentido da coadjuvação por técnicos, tendo tomado a decisão de forma isolada e sem consultar previamente os credores ou o tribunal.
Porque nada obstava a que os credores ratificassem agora aquela coadjuvação, foram os mesmos notificados para se pronunciarem expressamente sobre a mesma, em termos decisivos para a determinação ou não do pagamento.
Sucede porém que não só não se pronunciaram todos (apenas dois o fizeram), como, ademais, mesmo quem se pronunciou não autorizou todos os pagamentos (vd. fls. 113).
Pelo exposto, tendo o Sr. A.I. omitido qualquer consulta aos credores ou ao tribunal e não tendo aqueles dado autorização subsequente aos gastos por si unilateralmente determinados, considero que a possibilidade de o mesmo agora se fazer cobrar desses valores nos termos habituais fica totalmente comprometida.
Pelo exposto, indefiro as contas prestadas na parte relativa aos gastos com a sociedade “S…”, com a Sr.ª S. E.. e com a Ilustre Advogada.
...”
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Comecemos, então, pela discussão da 1ª questão – a não violação do Artº 55º/2 e 3 do CIRE.
Em causa está o recurso, pelo Administrador de Insolvência, a uma empresa de prestação de serviços de contabilidade, a uma solicitadora de execução e a uma advogada.
Dispõe-se no Artº 55º/2 do CIRE que o administrador de insolvência exerce pessoalmente as competências do seu cargo, não podendo substabelecê-las em ninguém, sem prejuízo dos casos de recurso obrigatório ao patrocínio judiciário ou da necessidade de prévia concordância da comissão de credores.
Por sua vez, no nº 3, dispõe-se que o administrador de insolvência, no exercício das respectivas funções, pode ser coadjuvado sob a sua responsabilidade por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não... mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz na falta dessa comissão.
Da decisão sob recurso – bastante parca em factos – resulta que:
1º - Não existe comissão de credores nomeada;
2º - Os credores foram notificados para ratificar a coadjuvação de que o administrador de insolvência se socorreu, não a tendo ratificado;
3º - O Administrador de Insolvência omitiu consulta aos credores ou ao tribunal acerca da coadjuvação.
4º - O Administrador de Insolvência recorreu aos serviços de uma empresa de contabilidade, aos de uma solicitadora de execução e aos de uma advogada.
Como decorre do instrumento processual em apreciação o Código optou pela pessoalidade e intransmissibilidade do cargo de administrador de insolvência.
Admite-se, contudo, a constituição de mandatário forense, em caso de necessidade de representação em juízo.
Esta necessidade não vem evidenciada nos factos constantes da decisão.
Porém, como infra veremos, tudo indica que os serviços com uma advogada tiveram em vista a cobrança de dívidas, por via judicial, dívidas essas de que era credora a massa insolvente.
Donde, nos parece que não se pode, sem mais, inviabilizar a cobrança das contas respectivas, tanto mais que a contratação de advogado, contrariamente a outros técnicos, sustentando-se no nº 2 do Artº 55º, não carece de autorização.
Por outro lado, o administrador tem o dever de esclarecer acerca da actividade desenvolvida e sobre os meios utilizados para a levar a cabo.
E, na falta de comissão de credores, compete-lhe obter a prévia concordância do juiz para a coadjuvação por técnicos ou auxiliares no exercício das respectivas funções.
Como evidenciam os autos, o Administrador de Insolvência não teve o cuidado de obter, do juiz do processo, e previamente ao recurso a tais serviços – e agora reportamo-nos aos outros serviços, que não os de advocacia –, tal concordância, tendo feito uso dos serviços de uma empresa de contabilidade e dos uma solicitadora.
Donde, não se vê como não violada a disposição legal que nos ocupa.
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Passemos, agora, à 2ª questão – a violação dos princípios da colaboração e confiança.
A decisão sob recurso data de 7/11/2012.
Consta nos autos uma certidão da qual podemos inferir que:
1 – Em 17/10/2010 o Administrador de Insolvência dirigiu-se ao processo informando que “deliberou adjudicar” o serviço de avaliação e peritagem a uma empresa e a um particular “ (cfr. orçamentos em anexo)” ;
2 – Em 1/10/2010 o Administrador de Insolvência dirigiu-se ao processo alegando a necessidade de recorrer a uma empresa de contabilidade e que “optou por adjudicar o serviço à empresa S…, Ldª, por se apresentar o mais acessível”, ao mesmo tempo que juntou duas propostas;
3 – Em 7/10/2010 foi proferido despacho ordenando a notificação dos credores para que se pronunciassem sobre a aprovação ou não da solicitada coadjuvação;
4 – Um credor pronunciou-se não se opondo; outro, não se opôs à contratação para peritagem, mas opôs-se à contratação de TOC;
5 – Em 23/10/2010 o Administrador de Insolvência juntou um relatório das diligências encetadas pela ilustre mandatária da massa insolvente, Dr.ª R… e o seu parecer sobre o mesmo;
6 – Em 2/11/2010 apresentou dois orçamentos emanados de escritórios de advogados, entre os quais o daquela, informando “que as diligências de cobrança judicial e extrajudicial foram adjudicadas à Dr.ª R…”;
7 – Em 23/03/2011 o Administrador de Insolvência juntou aos autos o relatório das diligências encetadas pela ilustre mandatária da massa insolvente;
8 – Em 23/09/2011 o Administrador de Insolvência informou que não poderia encerrar a liquidação do activo por estarem em curso “acções judiciais cuja procedência é susceptível de incrementar o acervo patrimonial da massa insolvente” e juntou relatório das diligências judiciais encetadas pela advogada;
9 – Em 30/11/2011 o Administrador de Insolvência juntou novo relatório de diligências judiciais, encontrando-se “pendente uma acção judicial” e informou que “o TOC indicado pela massa insolvente já logrou recuperar a quantia de 6.204,38€ a título de IVA”.
10 –Em 18/06/2012 são apresentadas as contas.

Insurge-se o Recrte. contra o facto de o Tribunal nunca o ter informado de que as coadjuvações por si promovidas não seriam admitidas e que os montantes associados ás mesmas não seriam aceites, invocando que o silêncio do Tribunal foi no sentido de lhe criar uma legítima convicção no sentido de os custos por si apresentados serem aceites. Em consequência, a decisão recorrida é manifestamente violadora dos princípios da confiança e da colaboração, visto que todo o processo se desenrolou de forma a criar nele a expectativa de que as adjudicações haviam sido aceites.
Tendemos a concordar com tal alegação.
Na verdade, o Artº 58º do CIRE dispõe que o administrador de insolvência exerce a sua actividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação.
Contudo, parece-nos pertinente lembrar que o administrador de insolvência deve, no exercício das suas funções, considerar-se um servidor da justiça e do direito (Artº 16º da Lei 32/2004 de 22/07).
Ora, a obtenção daquelas informações e relatórios tem particular relevo na possibilidade de o juiz efectivamente controlar a legalidade da actividade desenvolvida pelo administrador. Mas não lhe confere o poder de o instruir ou impedir de actuar. E, se o poder conferido ao juiz não substitui o dever de informação do administrador de insolvência, também nos parece que aquele que tem o poder, o deve exercer efectivamente, o que implica tomar as providências adequadas quando a actividade do administrador indicie que o mesmo extravasa as competências que lhe são próprias.
Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, acentuam que “o ajustamento estratégico da posição do juiz (efectuada pelo Código) tem a virtualidade de acentuar dois vectores fundamentais no processo de insolvência” – “o da crescente privatização do processo”, que deixa aos credores uma larga margem de intervenção na tutela dos seus interesses; e o da “crescente confinação do papel do juiz ao de garante da legalidade” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Júris, 268).
Posto isto, é certo que o administrador adjudicou serviços sem obter a concordância do Tribunal – no caso, e no que para aqui releva, os serviços de contabilidade e os de patrocínio judiciário .
Porém, foi dando conhecimento dos actos a vários passos, sem que algum reparo lhe fosse feito. Ou sem que alguma decisão fosse tomada! Nem mesmo quando um credor se opôs à contratação dos serviços de contabilidade!
Apenas no momento de apresentar as contas, o Tribunal se deu conta da necessidade de ratificação dos actos e usou de um mecanismo com vista á obtenção da mesma, fazendo-a depender da expressa manifestação de vontade de todos os credores nesse sentido!
Criou, pois, uma legítima convicção – ao cabo de dois anos de actuação – de que se estava a proceder em conformidade. Significa isto que, não só foi criada uma situação objectiva de confiança – dado conhecimento da adjudicação dos serviços, nenhum reparo se efectuou –, como também se permitiu o investimento nessa confiança – o administrador continuou a relatar os actos, sem que houvesse pronúncia em contrário.
Ora, a tutela da confiança está legalmente protegida através do princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, que, como se sabe, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas. Entende-se, por via dele, que está garantida uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, pelo que a afectação de expectativas será inadmissível quando se prefigure algo com que, razoavelmente, os destinatários das normas não possam contar e quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes. Assim, porque o Estado é um estado de legalidade, em que as pessoas organizam as suas vidas tendo em conta o quadro legal existente em cada momento, também nos parece que, sendo os tribunais órgãos de soberania na organização do Estado, não podem deixar que se criem expectativas que, depois são coarctadas por força ou em consequência da sua própria inércia.
Daí que se nos afigure que, muito embora, o Recrte. tenha negligenciado os seus deveres funcionais no que se reporta à necessidade de obtenção de prévia concordância judicial acerca da contratação de serviços (no caso, de contabilidade e solicitadoria), também nos parece que o Tribunal descurou o efectivo exercício das suas competências de fiscalização, tendo permitido que se firmasse uma convicção de normalidade na actuação daquele (quer quanto a uns, quer quanto a outros serviços, os de solicitadoria excluídos).
E, por isso, não se vê que as contas relativas á prestação de serviços de contabilidade e de patrocínio judiciário devam ser indeferidas.
Já quanto às contas relativas à prestação de serviços por uma solicitadora, nunca noticiadas, nenhuma censura merece a decisão do Tribunal.
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, revogar a decisão, de forma que se julgam validamente prestadas as contas relativas aos serviços de contabilidade e patrocínio judiciário, mantendo-se a mesma quanto ao mais.
Custas pela massa insolvente.
Notifique.
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Elabora-se o seguinte sumário:
1 – A contratação, pelo administrador de insolvência, de serviços de advogado para efeitos de patrocínio judiciário, não depende de autorização.
2 – A contratação, pelo mesmo, de outros técnicos ou auxiliares carece de concordância da comissão de credores ou, na falta desta, do juiz.
3 – Criando-se, por força quer da actividade do administrador no processo, quer por força do comportamento do juiz, uma situação que permite criar expectativas no sentido de aquela actuação estar conforme ás exigências legais, devem, em obediência ao princípio da confiança, e não obstante o administrador ter negligenciado o seu dever de obtenção de prévia concordância judicial, validar-se as contas por ele apresentadas para pagamento dos serviços de terceiros a quem recorreu.
MANUELA BENTO FIALHO
EDGAR GOUVEIA VALENTE
PAULO DUARTE BARRETO FERREIRA