Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
431/19.2T8VRL.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
ESCADAS E LOGRADOURO PRIVATIVOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Sumário (elaborado pela relatora):

I – Nos termos conjugados do artigo 6.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e do artigo 6.º, n.º 2, al. a), do DL n.º 143/99, de 30 de Abril, era considerado como acidente in itinere o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do sinistrado, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública até às instalações que constituem o seu local de trabalho.
II – No entanto, a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, actualmente em vigor, veio alargar o conceito de acidente in itinere, ao estipular, nos termos dos arts. 8.º e 9.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. b), que se considera acidente de trabalho o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do sinistrado e as instalações que constituem o seu local de trabalho.
III – Atentas as referidas alterações, deve interpretar-se os actuais normativos como integrando no seu âmbito de aplicação o acidente ocorrido nos espaços exteriores à habitação do sinistrado, ainda antes de se entrar na via pública, independentemente de se tratar de espaço próprio ou de espaço comum a outros condóminos ou comproprietários, bastando para tal que já tenha sido transposta a porta de saída da residência, desde que a vítima se desloque para o local de trabalho, segundo o trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador.

Alda Martins
Decisão Texto Integral:
1. Relatório

L. M., patrocinada pelo Ministério Público, intentou acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, contra X, Companhia de Seguros, S.A., alegando, em síntese, que em 10/01/2019 foi vítima dum acidente ao serviço de CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL DE ..., enquanto ajudante de acção directa, quando, ao descer as escadas exteriores da sua residência, para se deslocar para o seu posto de trabalho, escorregou e caiu, sofrendo lesões que lhe determinaram incapacidades temporária e permanente.
Conclui, pedindo a condenação da seguradora no pagamento das indemnizações decorrentes da caracterização deste acidente como sendo de trabalho.
A seguradora veio apresentar contestação, pedindo a sua absolvição do pedido, alegando, em síntese, que na data e hora do acidente a sinistrada encontrava-se ainda no logradouro da sua residência, pelo que o mesmo não deverá ser caracterizado como sendo de trabalho, recaindo o risco sobre a sinistrada.
Ordenada a intervenção processual do empregador, este veio contestar, arguindo a sua ilegitimidade, em virtude de à data do sinistro vigorar contrato de seguro celebrado com a co-R. seguradora, mediante o qual havia transferido para esta a sua responsabilidade por acidentes de trabalho que a A. sofresse ao seu serviço, como sucedeu no caso dos autos.

Tendo os autos prosseguido, foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
«Tudo visto e nos termos expostos, julga-se a presente acção parcialmente procedente por provada e em consequência, absolve-se o R. CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL DE ... dos pedidos formulados pela A. e condena-se a aqui demandada seguradora X, Companhia de Seguros, S.A. a pagar à mesma demandante a título de indemnização devida pelo período de ITA (de 162 dias – de 11/01/2019 a 21/06/2019) a quantia de € 3.131,08 (três mil cento e trinta e um euros e oito cêntimos), e a pensão anual e vitalícia de € 211,64 (duzentos e onze euros e sessenta e quatro cêntimos), acrescidas ambas as quantias dos respectivos juros de mora vencidos nos termos do art. 135º do C.P.T., desde o dia seguinte ao da alta clínica – 22/06/2019.
Mais se condena a demandada seguradora a pagar à A. a quantia de € 25,00 (vinte e cinco euros), acrescida igualmente dos respectivos juros de mora, vencidos à taxa legal desde o auto de não conciliação de fls. 84 – 08/07/2020.
Custas pela R. seguradora.
Fixa-se à acção o valor de € 5.899,78 – cfr. art. 120º do C.P.T.»

A R. seguradora interpôs recurso da sentença e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
«I. O cerne da questão de direito ora em discussão situa-se em saber se o sinistro em apreço integra o conceito de acidente de trabalho in itinere, de acordo com o disposto nos artigos 8º e 9º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.
II. Resultou da factualidade dada como provada que a queda em apreço nestes autos - causadora das lesões na sinistrada eventualmente carecidas de ressarcimento pela ré – ocorreu nas escadas, mais especificamente no terceiro degrau após a porta da habitação da autora, de acesso ao logradouro pertencente à moradia onde a mesma habitava, espaço esse necessariamente privado e afecto à residência da autora, aqui apelada, e atenta a sua natureza, sob o âmbito de domínio e controlo da própria sinistrada, relativamente ao qual não se verifica o risco de autoridade do empregador.
III. Sendo certo que, para o preenchimento do conceito de acidente de trabalho in itinere, segundo as referidas disposições legais, não pode deixar-se de considerar que a responsabilidade por acidentes de percurso não abrange situações em que o trabalhador se encontra num espaço por ele controlado, em particular na sua vida privada.
IV. Os acidentes ocorridos na residência do trabalhador não encontram tutela neste regime por se situarem numa esfera de risco do próprio trabalhador, num espaço por este controlado e a cujos perigos sempre se exporia, mesmo sem trabalho.
V. Assim sendo, como resulta de tudo o exposto, qualquer acidente ocorrido dentro de espaço privado do trabalhador e pelo mesmo controlado não pode ser considerado, nos termos da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro, como de trabalho.
VI. Não podendo ser a apelante responsabilizada, nessa medida, pela reparação do mesmo.
VII. Não se poderá, como tal, concluir, de direito, como o fez o tribunal a quo, que a apelada sofreu um acidente de trabalho, nos termos do disposto no artigo 8º, nº 1 e 9º, nº 1 e nº 2, ambos da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, atenta a falta de verificação dos pressupostos legais para o efeito, pelo que, aplicou o tribunal a quo, salvo o devido respeito, erradamente as citadas normas, devendo, nessa medida, alterar-se, em conformidade, a sentença recorrida, absolvendo-se a recorrente do pedido formulado pela recorrida.»
A A. apresentou resposta ao recurso da R. seguradora, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.
Vistos os autos pelas Exmas. Adjuntas, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a única questão que se coloca a este tribunal é a de saber se o acidente que a A. sofreu deve ser caracterizado como sendo de trabalho, na modalidade de in itinere.

3. Fundamentação de facto

Os factos provados são os seguintes:

1. Em Janeiro de 2019, a A. prestava actividade de ajudante de acção directa sob as ordens, direcção e fiscalização da sua entidade empregadora Centro Social Paroquial de ..., com sede em ....
2. À data do acidente em apreço nestes autos, a A. auferia a remuneração anual de € 10.078,00.
3. Na mesma data, a entidade empregadora tinha transferido a totalidade da sua responsabilidade infortunística para a R. seguradora pelo contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0012-……….2.
4. A R. seguradora não pagou à A. qualquer quantia a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária.
5. No dia 10/01/2019, pelas 07h45 horas, na Rua …, em ..., quando descia as escadas exteriores da sua residência para ir trabalhar para a sua entidade empregadora, a A. escorregou e sofreu lesões.
6. Em consequência deste acidente e das lesões resultantes do mesmo, a A. sofreu um período de ITA de 11/01/2019 a 21/06/2019 (162 dias) e a partir da referida data da alta clínica (21/06/2019) ficou a padecer de IPP de 3%.
7. A A. despendeu a quantia de € 25,00 em deslocações obrigatórias ao Tribunal, em virtude do sinistro dos autos.
8. A residência acima descrita é propriedade da A. e do seu cônjuge e a demandante, ao sair dessa residência, ao descer o primeiro lanço da escadaria exterior, na direcção do logradouro particular da mesma casa, escorregou no terceiro degrau dessa escadaria, na geada que ali se tinha acumulado, caiu e ficou com o pé esquerdo preso no gradeamento ali existente, tudo ainda dentro dos limites da mesma propriedade e residência.
9. Aquela casa de habitação era constituída por moradia unifamiliar, com 2 pisos, r/c e1.º andar, com um recinto/logradouro na frente.

4. Apreciação do recurso

Como se disse, a questão a tratar é se o acidente que a A. sofreu deve ser caracterizado como sendo de trabalho, na modalidade de in itinere, como concluiu o tribunal a quo.
Com relevância, provou-se que a A., no dia 10/01/2019, pelas 07h45 horas, quando descia as escadas exteriores da sua residência, para ir trabalhar para a sua entidade empregadora, escorregou e sofreu lesões. Aquela residência é propriedade da A. e do seu cônjuge e a sinistrada, ao sair dessa residência, ao descer o primeiro lanço da escadaria exterior, na direcção do logradouro particular da mesma casa, escorregou no terceiro degrau dessa escadaria, na geada que ali se tinha acumulado, caiu e ficou com o pé esquerdo preso no gradeamento ali existente, tudo ainda dentro dos limites da mesma propriedade e residência. Aquela casa de habitação era constituída por moradia unifamiliar, com 2 pisos, r/c e 1.º andar, com um recinto/logradouro na frente.
A Recorrente insurge-se contra a consideração deste sinistro como acidente de trabalho, na medida em que o mesmo ocorreu nas escadas exteriores de ligação da residência da A. ao logradouro particular que a integrava, e, assim, no seu espaço privativo, devendo o risco correr por sua conta.
Vejamos.

Estabelece o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, no que respeita ao conceito de acidente de trabalho:

Artigo 8.º
Conceito
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
Artigo 9.º
Extensão do conceito
1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência;
e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito;
g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso;
h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.
2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 - No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.

Verifica-se, assim, que o art. 9.º enuncia situações que também se consideram como acidentes de trabalho, não obstante escaparem à definição nuclear dada pelo art. 8.º, designadamente os acidentes de trajecto ou de percurso, igualmente designados na doutrina e jurisprudência como acidentes in itinere, porquanto são os que ocorrem no caminho de ida ou de regresso do local de trabalho.

Sobre o conceito de acidente in itinere, diz-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Outubro de 2011, proferido no âmbito do Processo n.º 154/06.2TTCTB.C1.S1 (1):
“(…) Para que se esteja em face dum acidente de trajecto indemnizável, já não exige o legislador o preenchimento daqueles exigentes requisitos da lei anterior, bastando para tanto que o acidente ocorra no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer.
Trata-se da consagração das modernas teorias que consideram que o risco de acidentes neste percurso é inerente ao cumprimento do dever que incumbe ao trabalhador de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a prestação resultante do contrato de trabalho, constituindo assim uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias.
Por isso, sendo o trabalhador obrigado a fazer o percurso necessário ao cumprimento da sua obrigação de trabalhar no lugar determinado pela sua entidade patronal e usando, para tanto, as vias de acesso e os meios de transporte disponíveis, justifica-se que os acidentes ocorridos neste percurso e no tempo habitualmente gasto para o percorrer, já gozem da protecção própria dum acidente de trabalho, conforme prescrevia o artigo 6º, nº 2, do DL nº 143/99, de 30/4.”
Isto é, também de acordo com o que ensina Júlio Gomes (2), o elemento espacial e o elemento temporal inerentes à definição de acidente in itinere limitam-se a indiciar o elemento teleológico, que parece ser, ele sim, o essencial, e, assim, “(…) o trajeto tutelado é, em princípio, aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com a intenção de se deslocar para o seu local de trabalho e aqueloutro, de regresso a essa mesma residência habitual ou ocasional, a partir do seu local de trabalho, uma vez terminada a sua prestação.” (3)
Não obstante, nesta matéria dos acidentes in itinere, e no que interessa para o caso dos autos, existe no actual regime jurídico, acima delineado, uma alteração significativa em relação ao anterior, que resultava da aplicação da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e do DL n.º 143/99, de 30 de Abril, que a regulamentou, na medida em que, actualmente, resulta do n.º 1, al. a) e do n.º 2, al. b) do art. 9.º da Lei n.º 98/2009 que se considera acidente de trabalho o que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho, enquanto, nos termos conjugados do art. 6.º da Lei n.º 100/97 e do art. 6.º, n.º 2, a) do DL n.º 143/99, se esclarecia quanto à residência do sinistrado que o trajecto relevava desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública.
Relativamente ao desaparecimento deste trecho, refere o autor já citado que (4) “(…) da revogação da norma não se pode inferir, sem mais, o abandono da solução preexistente. Além da hipótese de lapso, a revogação pode ficar a dever-se, ao invés, à convicção de que a solução resultaria das regras gerais e da ratio da tutela dos acidentes in itinere e da exclusão, em princípio, dos acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador. Os acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador não são tutelados, provavelmente, por se situarem numa esfera de risco do próprio trabalhador, num espaço por este controlado e a cujos perigos sempre se exporia, mesmo sem o trabalho. Parece-nos forçado dizer que as áreas comuns do edifício são áreas sobre as quais o trabalhador enquanto condómino detém ainda algum poder, sendo titular de um direito sobre as mesmas. Com efeito, não só nada garante que o trabalhador que reside numa fracção autónoma seja condómino (pode tratar-se, por exemplo, de um arrendatário, de um hóspede ou de um comodatário), como nos parece que, ainda que o seja, esse poder mais ou menos difuso sobre as áreas comuns pode ser insuficiente para que consiga fazer valer os seus pontos de vista sobre a segurança das mesmas.”
Todavia, questão mais pertinente, nomeadamente para a solução dos presentes autos, é se o desaparecimento da menção ao trajecto desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, para além de não acarretar uma restrição do conceito de acidente in itinere, permite mesmo alargá-lo, de modo a incluir o ocorrido em trajecto para o trabalho que percorra áreas exteriores da habitação, designadamente garagens ou logradouros, em situações que não sejam de propriedade horizontal, como por exemplo se estiver em causa uma moradia, tanto mais que o sinistrado pode ser mero comproprietário, arrendatário, comodatário ou hóspede, sem pleno controlo sobre os riscos inerentes ao local.
Na verdade, é esse o entendimento que melhor se coaduna com o elemento teleológico que actualmente se entende presidir à tutela do trajecto para e do local de trabalho, a saber, a necessidade de fazer o percurso inerente ao cumprimento do dever de comparecer no local de trabalho, em benefício do empregador, independentemente de riscos específicos ou agravados do percurso em si mesmo, sendo também o que nos parece contribuir melhor para aperfeiçoar esta “(…) “alquimia de iniciados” e de distinções quase bizantinas” (5) em que muitas vezes se cai em matéria de acidentes in itinere.

Isso mesmo se decidiu no Acórdão desta Relação de Guimarães de 26 de Fevereiro de 2015, no âmbito do Processo n.º 437/11.0TUGMR.P1.G1 (6), em cujo sumário se exarou:
“A queda da sinistrada nas escadas que conduzem ao logradouro da moradia de 1.º andar, onde reside habitualmente, quando se dirigia para o local de trabalho, constitui um acidente de trabalho in itinere.
Veja-se, ainda, a respectiva fundamentação, que se acolhe inteiramente, pela cabal adequação ao caso dos autos:
“Salvo o devido respeito, no caso dos autos não está em causa a subordinação jurídica do trabalhador no momento em que ocorre o acidente. O legislador quis estender a tutela da segurança na deslocação do trabalhador desde o seu lar até ao local de trabalho que for determinado pela empregadora, estabelecendo que o risco corre por conta desta, em obediência ao princípio do ubi commoda ibi incommoda.
Na verdade, é a empregadora quem retira mais benefício da atividade do trabalhador, o qual apenas tem a sua força laboral para oferecer, pelo que é justo que seja também esta que suporte os ónus decorrentes da deslocação do trabalhador desde a residência até ao local da prestação da obrigação.
A questão está em saber onde começa fisicamente esse risco. Se a partir da transposição da habitação em sentido estrito, local onde pernoita e toma as refeições, ou se só começa quando o trabalhador está na via pública.
O trajeto para o local de trabalho é constituído por um corpus e por um animus, no sentido de que o trabalhador para ficar a coberto dos riscos em caso de acidente deve seguir o caminho habitual e ao iniciar esse percurso tem que fazê-lo com a intenção de se dirigir para o local da prestação da atividade em obediência à empregadora e não para outro local qualquer.
(…) Ninguém se alimenta, dorme ou se abriga no logradouro ou nas escadas. Estas partes da propriedade são acessórias do núcleo essencial constituído pela residência habitual.
A partir do momento em que o trabalhador transpõe a porta da residência, ou habitação, onde normalmente vive e permanece, inicia o trajeto para o local de trabalho. Os factos assentes não deixam dúvidas de que a sinistrada caiu nas escadas depois de sair da habitação e quando se dirigia para o local de trabalho.
A lei não fala em via pública. Refere apenas entre a residência habitual ou ocasional. A residência a considerar para este efeito é apenas o lugar da habitação onde se alimenta, abriga e repousa.
Daí que o início do trajeto seja desde o lado de fora da porta da residência até ao local onde por ordem expressa ou tácita da empregadora tenha de cumprir a sua obrigação de trabalho.”
Esta posição tem sido unanimemente mantida por esta Secção Social da Relação de Guimarães, conforme se alcança dos Acórdãos de 30 de Novembro de 2016, proferido no processo n.º 41/14.0Y3BRG.G1, de 20 de Abril de 2017, proferido no processo n.º 460/14.2TTBRG.G1 (não publicado), de 14 de Junho de 2017, proferido no processo n.º 797/15.3Y2GMR.G1, de 21 de Setembro de 2017, proferido no processo n.º 460/14.2TTVCT.G1, de 10 de Janeiro de 2019, proferido no processo n.º 1489/17.4T8VCT.G1, e de 6 de Fevereiro de 2020, proferido no processo n.º 3157/16.5T8VCT.G1 (7).
Entendimento semelhante foi o acolhido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2016, proferido no âmbito do Processo n.º 375/12.9TTLRA.C1.S1 (8), onde se refere:
“Estipula o art. 9.º, n.º 3, do Código Civil, que o intérprete deve presumir, na fixação e alcance da lei, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Princípio que deve nortear o intérprete quando confrontado com a tarefa de descortinar o sentido e alcance da norma.
Ora, resulta expressamente da conjugação da actual redacção do art. 9º, nº 1, alínea a), e n.º 2, alíneas a) e b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que basta que o evento danoso ocorra entre a residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o local de trabalho do sinistrado, para que, por si só, seja considerado como acidente in itinere e, como tal, tutelado pelo respectivo regime jurídico.
A norma actualmente em vigor mostra-se redigida em termos que permite desde logo excluir do conceito os acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador.
Mas já não permite que se conclua, de imediato, no sentido de que não abarca os que se verifiquem entre a residência, após transposição da porta desta, e o local de trabalho.
O que bem se compreende, na medida em que se assiste, frequentemente no dia-a-dia, atenta a normalidade da vida, que os únicos meios de ligação da habitação à própria via pública, e destas para o local de trabalho, são feitos através de percursos que incluem acessos diversos, v.g., a escadas, pátios, logradouros, garagens, etc., sejam estes espaços comuns ou próprios do trabalhador sinistrado.
(…)
É certo que ao estabelecer este conceito de acidente de trabalho, no Regime Jurídico de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais (Lei nº 98/2009), o legislador acabou por eliminar a referência discriminatória que resultava da anterior redacção do art. 6º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril. E que assentava no seguinte segmento: “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações do local de trabalho”.
Eliminação que ao ser materializada pelo legislador permite que se integre no conceito não apenas essas partes comuns, anteriormente já incluídas, mas outras que se situem, de acordo com os normativos em vigor, entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador sinistrado e as instalações que constituem o seu local de trabalho, sejam partes comuns de prédios em condomínio, sejam logradouros de uma habitação/vivenda unifamiliar.
Defender o contrário seria enveredar por uma interpretação restritiva do conceito de acidente in itinere, com tendência para abarcar os acidentes ocorridos na via pública ou em áreas comuns e já não os que tivessem lugar em logradouro pertencente apenas ao trabalhador.
Ora, se fosse essa a intenção do legislador, por certo teria mantido a redacção anterior.
E se a suprimiu, só pode ter sido com um duplo objectivo: o de, por um lado, pôr fim à referida distinção e, por outro, dar oportunidade à Jurisprudência de, in concreto, definir e delimitar a sua aplicação.
(…)
Destarte, o critério que conduz à caracterização de um acidente como ocorrido in itinere, nos termos previstos nos arts. 8º e 9.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, deve bastar-se com a saída (“ultrapassagem”/transposição) da porta da residência por parte do trabalhador sinistrado, para um espaço exterior à sua habitação, quer esta se situe num edifício condominial, quer numa moradia unifamiliar, podendo o acidente in itinere ocorrer ainda antes de se entrar na via pública, para se dirigir ao seu local de trabalho, através do respectivo trajecto que utiliza nessa ida.”
Esta posição tem vindo a ser seguida, sem reservas, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, como se exemplifica com os Acórdãos de 13 de Julho de 2017, proferido no processo n.º 175/14.1TUBRG.G1.S1, e de 5 de Dezembro de 2018, proferido no processo n.º 460/14.2TTVCT.G1.S1 (9).
As considerações acabadas de transcrever têm inteira pertinência no que concerne ao caso em apreço nos presentes autos.
A sinistrada, ao sair da casa onde residia, pertencente à mesma e seu marido, para ir trabalhar para a sua entidade empregadora, quando descia o primeiro lanço da escadaria exterior, na direcção do respectivo logradouro particular, escorregou no terceiro degrau e caiu, tudo ainda dentro dos limites da mesma propriedade e residência. Ou seja, não obstante se tratar de escadas exteriores privativas da residência e que faziam a ligação ao respectivo logradouro particular, eram a forma de a sinistrada aceder à via pública, fazendo parte do trajecto que a sinistrada tinha de percorrer com o fim de prestar o seu trabalho no local determinado pela empregadora, em benefício desta.
Em face do exposto, tendo o acidente ocorrido em ponto do trajecto normalmente utilizado pela A. entre a sua residência habitual e as instalações que constituíam o seu local de trabalho, não se vislumbra fundamento para alterar o entendimento que a jurisprudência vem unanimemente acolhendo desde a publicação da Lei n.º 98/2009, de 4/09, acima explicitado.
Nestes termos, improcede o recurso.

5. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Em 1 de Julho de 2021

Alda Martins
Vera Sottomayor
Maria Leonor Barroso


1. Disponível em www.dgsi.pt.
2. O Acidente de Trabalho - O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, pp. 168 e ss..
3. Op. cit., p. 177.
4. Op. cit., pp. 181-183.
5. Aut. cit., op. cit., p. 184.
6. Disponível em www.dgsi.pt.
7. Disponíveis em www.dgsi.pt, excepto o referido em contrário.
8. Disponível em www.dgsi.pt.
9. Disponíveis em www.dgsi.pt.