Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4187/17.5T8BRG.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
REALIZAÇÃO DE OBRA EM PARTE COMUM
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OBRA NÃO AUTORIZADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I. A edificação de um alpendre, sobre um terraço de cobertura - parte comum -, sem a prévia autorização deliberada pela Assembleia de Condóminos, e sem a prévia autorização escrita do senhorio da facção autónoma a cujo uso está afecto, consubstancia uma obra ilícita, podendo ser exigida a respectiva demolição, quer pelo condomínio do prédio (à luz do regime da propriedade horizontal), quer pelo senhorio (à luz do regime do arrendamento urbano).

II. Não se tendo seguido às inércia/passividade do condomínio e do senhorio - no exercício do respectivo direito a exigirem a remoção do dito alpendre, registadas por mais de trinta anos - qualquer reforçada ou modificada utilização do mesmo, ou uma qualquer sua ampliação e/ou seu melhoramento, não se verificou qualquer causalidade entre o facto gerador da confiança e o investimento (aqui inexistente) da contraparte, feito apenas com base na dita confiança; e, assim, tem-se por indemonstrado o abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, na posterior exigência do condomínio e/ou do senhorio, de remoção do alpendre.

III. Não tendo as meras inércia/passividade do condomínio e do senhorio, no exercício do respectivo direito a exigirem a remoção do dito alpendre, sido acompanhada de quaisquer outros comportamentos seus, indiciadores de que tal direito não mais seria exercido, nomeadamente face à alteração das circunstâncias em que as respectivas passividade/inércia se manifestaram, vindo esta a registar-se e a ser então exigida a dita remoção, não se está perante o rompimento súbito do prévio estado gerado pelos antes inertes e agora actuantes; e, assim, tem-se por indemonstrado o abuso de direito, na modalidade de supressio, na posterior exigência do condomínio e/ou do senhorio, de remoção do alpendre.

IV. Sendo previsível (e exigível, em termos de sãs e normais relações de vizinhança) que quem dispõe de um terraço receba, de vez em quando, molas e roupa inadvertidamente caídas dos andares superiores, não se tem por justificada a remoção de um tal incómodo pela edificação de um alpendre em espaço comum, idóneo a alterar a substância do prédio e/ou a sua estrutura externa, ou a prejudicar a sua utilização em benefício dos demais condóminos; e, assim, tem-se por indemonstrado o abuso de direito, enquanto figura geral
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.
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I – RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. Luís (…) e mulher, Ana (…), residentes na Rua do (…), em (…) ... (aqui recorridos), propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Miguel (…), residente na Travessa do (…), em ... (aqui Recorrente), e contra (…) - Administração (…), Limitada, com sede na Praça Conde de (…), em ..., pedindo que

· (a título principal) os Réus fossem condenados a reconhecerem o seu direito de manutenção de um alpendre construído sobre o terraço da habitação de que eles próprios são arrendatários;

· (a título principal e cumulativo) os Réus fossem condenados a, logo que as obras da fachada das traseiras do prédio onde têm a respectiva habitação terminem, reporem o dito alpendre, nas mesmas condições em que se encontrava anteriormente à sua remoção (por ocasião das ditas obras), declarando-se que os custos dessa reposição sejam suportados ou pelo 1.º Réu (Miguel (…)) ou pelo 2.º Réu ((…) - Administração de Condomínios, Limitada), ou por ambos (custos esses de instalação, e demais encargos que a Câmara Municipal de ... possa exigir, por razões legais, pela recolocação do alpendre);

· (a título principal e cumulativo) o 1.º Réu (Miguel (…)) fosse condenado a abster-se de quaisquer actos ou atitudes que perturbassem o gozo do prédio locado (onde eles próprios têm a sua habitação);

· (a título principal e cumulativo) os Réus fossem condenados a indemnizá-los pelos danos morais que a pretensão de remoção do alpendre lhes causou, em valor nunca inferior a € 5.000,00.

Alegaram para o efeito, e em síntese, que, sendo arrendatários desde 1975 da fracção autónoma que habitam, construíram em 1980 sobre o respectivo terraço, com a autorização verbal do anterior senhorio e por razões de segurança (v.g. por forma a evitar que fossem atingidos com lixo e objectos caídos dos andares superiores), um alpendre (devendo o mesmo ser considerado benfeitoria útil); e não se encontrar constituído à data o condomínio do dito prédio.

Mais alegaram que, estando para ser realizadas obras no prédio, não se opõem que, para aquele efeito, o dito alpendre seja temporariamente removido, não aceitando porém que o mesmo seja qualificado pelo 1º Réu (que em 2015 adquiriu a fracção autónoma que habitam) como obra clandestina e feita de modo abusivo, acusando-os ainda aquele de não permitirem a realização de obras de reabilitação do prédio.

Por fim, alegaram que, sendo eles próprios pessoas educadas, de valores e cumpridoras da lei, se sentiam feridos nos seus bom nome, honra, reputação e dignidade, com tais afirmações.

1.1.2. Regularmente citados, os Réus contestaram, individual e separadamente.

1.1.2.1. O 1.º Réu (Miguel (…)) fê-lo pedindo que a acção fosse julgada improcedente; e deduzindo reconvenção, pedindo que

· os Autores fossem condenados a remover a cobertura/alpendre que fizeram no terraço da fracção arrendada, repondo o mesmo e a fachada correspondente do prédio no estado em que se encontrava quando o locado lhes foi entregue.

Alegou para o efeito, em síntese, verificar-se, quanto a si, a excepção dilatória de falta de interesse em agir, já que nada fizera para perturbar o gozo do locado por parte dos Autores.

Mais alegou impugnar, por desconhecimento ou falsidade, muitos dos factos alegados por eles, tendo nomeadamente negado que o anterior senhorio tivesse autorizado a construção do alpendre.

Alegou ainda que, estando aquele edificado sobre parte comum do prédio, prejudicaria a sua linha arquitectónica e estética, constituindo ainda uma inovação que alteraria a sua estrutura inicial, e ser uma obra voluptuária; e que os Autores, com a recusa de retirada do alpendre, estariam desde 2014 a inviabilizar a realização de obras no prédio, mantendo-se e agravando-se, consequentemente, o problema de infiltrações severas de água e humidade de que o mesmo padece.

Defendeu, por isso, o 1.º Réu (Miguel (…)) não assistir aos Autores o direito de exigirem a reposição do alpendre, por se tratar de uma obra ilegal (carecida de autorização, quer do senhorio, quer da Câmara Municipal, quer da assembleia de condóminos); e assistir a ele próprio o direito de exigir a sua remoção (por ter sido realizado sem a necessária autorização escrita do senhorio, estando ainda os Autores onerados com a obrigação de restituírem o locado no estado em que o receberam).

1.1.2.2. O 2.º Réu ( (…)- Administração de Condomínios, Limitada) contestou pedindo que a acção fosse julgada improcedente, e que os Autores fossem condenados como litigantes de má fé, em multa a seu favor não inferior a € 1.500,00.

Alegou para o efeito, em síntese, verificar-se a excepção dilatória de: ilegitimidade própria, já que os Autores deveriam ter demandado o Condomínio do prédio onde se insere a fracção autónoma que habitam (Condomínio da Rua do (...) , União de Freguesias de .../Sé, Cividade e (…)), ou o respectivo Administrador, e não ele próprio; e de ineptidão da petição inicial, por a pretensão dos Autores ser ininteligível, havendo contradição entre o seu pedido e a respectiva causa de pedir.

Mais alegou ter-se limitado a cumprir as deliberações aprovadas em assembleia de condóminos, nomeadamente de realização de obras de reabilitação da fachada traseira do prédio, obras essas que imporiam a remoção do alpendre, clandestino e ilegal, não sendo por isso permitida a sua manutenção ou reposição.

Por fim, o 2.º Réu ((…) - Administração de Condomínios, Limitada) alegou terem os Autores onerado as demais partes com os incómodos e as despesas inerentes a uma demanda judicial, em vez de escolherem o caminho da legalidade (tentando obter junto do proprietário senhorio e dos restantes condóminos a pretendida autorização para manutenção do seu alpendre); e, assim, litigando de má fé.

1.1.3. Em sede de audiência prévia, foi proferido despacho: saneador (admitindo a reconvenção deduzida pelo 1º Réu, fixando o valor da causa em € 15.000,00, e certificando a validade e a regularidade da instância, nomeadamente julgando improcedentes as excepções de ineptidão da petição inicial, de falta de interesse em agir dos Autores, e de ilegitimidade do 2º Réu, por nomeadamente se ter entendido que o mesmo «intervém na acção apenas enquanto representante legal do condomínio»); dispensando a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova; apreciando os requerimentos probatórios das partes e designando dia para realização da audiência final.

1.1.4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente, lendo-se nomeadamente na mesma:

«(…)
IV) DECISÃO
Pelo exposto:
a) julgo parcialmente procedente a acção e, em consequência:
.- reconheço que os autores têm direito a manterem o alpendre melhor referido em F) da factualidade assente;
.- condeno a ré (…), na qualidade de administradora do condomínio integrante da fracção referida em A) da factualidade assente, e na condição de, aquando da realização das obras da fachada das traseiras do dito prédio optar pela retirada do dito alpendre, repor o mesmo logo que as obras findem, nas mesmas condições em que encontrava anteriormente à sua remoção, suportando os custos da reposição;
.- condeno o réu Miguel (…) a abster-se de quaisquer actos ou atitudes que perturbem o gozo do locado,
.- absolvo os réus de tudo o demais peticionado pelos autores;
b) julgo totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência, absolvo os autores do pedido contra si deduzido pelo réu Miguel ...;
c) decido não condenar os autores como litigantes de má fé.
Custas pelos autores e pelos réus/reconvinte na proporção do seu decaimento, nos termos do art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, fixando-se o decaimento na proporção de 1/3 para cada parte.
O valor da acção já foi fixado a fls. 85 verso.
Registe e notifique.
(…)»
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1.2. Recurso

1.2.1. Fundamentos

Inconformado com esta decisão, o 1.º Réu (Miguel (…)) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido e revogada a sentença recorrida, sendo substituída por decisão julgando a acção totalmente improcedente e a reconvenção procedente.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões):

1 - Os factos invocados na petição inicial não suportam os pedidos formulados pelos Apelados porquanto estes na qualidade de locatário são apenas titulares de um direito de gozo e não de um direito real sobre o imóvel locado;

2 - A matéria de facto dada como provada demonstra que os Apelados realizaram uma obra ilegal que constitui uma alteração estrutural e como tal uma inovação, sem qualquer tipo de autorização seja do Apelado seja da assembleia de condóminos, existindo por isso direito do Apelante e co-Ré a pedir a sua demolição e reposição no estado anterior à mesma, seja ao abrigo do disposto no regime da locação seja ao abrigo do disposto no regime de propriedade horizontal;

3 - A matéria de facto dada como provada não permite demonstrar que o Apelante tenha de forma alguma perturbado o direito de gozo sobre o imóvel locado dos Apelados;

4 - A matéria de facto dada como provada demonstra que os Apelados prejudicaram e prejudicam gravemente os proprietários do imóvel com a sua obra feita ilegalmente e sem autorização, impedindo há anos a realização de obras urgentes para debelar infiltrações nas casas de diversos proprietários;

5 - Na matéria de facto dada como provado não há elementos suficientes para se poder aplicar o instituto do abuso de direito a favor dos Apelados na modalidade de venire contra factum proprium, designadamente indícios de que o direito do Apelante ou do Condomínio não mais seria exercido, mesmo que se verifique o pressuposto do decurso significativo de tempo;

6 - De toda a forma sempre a ausência de um direito de natureza real por parte dos Apelados, que são meros detentores e titulares em nome alheio do imóvel locado detendo um mero direito de gozo sobre o mesmo, deverá inviabilizar os pedidos formulados nos autos e qualquer aplicação do instituto do abuso de direito a seu favor;

7 - No presente caso a única situação de desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem é a causada pela aplicação do instituto do abuso de direito a favor dos Apelados;

8 - A douta sentença recorrida fez uma errada aplicação do disposto no artigo 344º do Código Civil.
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1.2.2. Contra-alegações

Os Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)) contra-alegaram, pedindo que se julgasse o recurso improcedente.

Concluíram as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões):

1 - Carece de qualquer fundamento o presente recurso.

2 - Devendo, em consequência, e com o sempre douto suprimento de V.Exªs., ser-lhe negado provimento e manter-se a decisão recorrida, com todas as legais consequências.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do C.P.C.), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, ambos do C.P.C.).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, 01 única questão foi submetidas à apreciação deste Tribunal:

· Questão única - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação da lei, nomeadamente porque não assiste aos Autores qualquer direito à manutenção do alpendre que construíram no terraço cujo uso está afecto à sua habitação, e não consubstancia qualquer abuso de direito a exigência dos Réus de remoção de tal obra?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Factos Provados

Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1ª Instância, resultaram provados os seguintes factos:

A) Entre Luís (…) (aqui Autor) e o primitivo proprietário, Diamantino (…) foi celebrado, em 01 de Abril de 1978, o acordo escrito de «ARRENDAMENTO» que consta de fls. 60, verso, e 61 dos autos (cujo teor aqui se dá por reproduzido), que teve por objecto a fracção autónoma designada pela letra «…», de tipologia T2, destinado a habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua do(…), com entrada pelo n.º … de polícia, inscrito na matriz predial urbana sob o artº. (…) da actual União de freguesias de (..), constando de tal acordo, ademais, os seguintes dizeres:
«(…)
Que os benefícios que o arrendatário fizer ou mandar fazer na casa a ela ficam a pertencer, quer haja quer não haja consentimento do senhorio, sem que o arrendatário possa pedir qualquer indemnização, ficando esta condição sem efeito quando haja autorização do senhorio, por escrito.
(…)»

B) Em 2013, a posição de Diamantino (…) no acordo escrito de «ARRENDAMENTO» referido em A), em virtude do falecimento do mesmo, foi transmitida à sua filha e herdeira, Linda (…), por adjudicação em partilha.

C) Miguel (…) (aqui 1º Réu) adquiriu o imóvel em questão, por compra efectuada à anterior proprietária, Linda (…).

D) O imóvel referido em A) encontra-se virado para as traseiras da via pública e possui um terraço.

E) Inicialmente, este terraço não tinha qualquer cobertura e, por causa disso, o Autor e a sua mulher, Ana (…), estavam sujeitos a levar com o lixo dos vizinhos dos pisos superiores, o que de facto sucedia.

F) No ano de 1980, os Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)), a suas expensas, colocaram no terraço uma cobertura/alpendre.

G) Nessa data, todas as fracções do prédio pertenciam a Diamantino (…).

H) Tal alpendre está assim colocado há mais de 10, 20, 30 e 35 anos, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, quer do senhorio, quer dos vizinhos.

I) Em 18 de Maio de 1984, apareceu um fiscal da Câmara Municipal de ... a notificar os Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)) de que tinham colocado este alpendre sem a respectiva autorização camarária.

J) Em virtude do referido em I), os Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)) pagaram uma coima de Esc. 305$00.

K) O prédio integrante da fracção referida em A) é administrado por (…) - Administração de Condomínios, Limitada (aqui 2º Réu).

L) Pela Acta n.º 6 da Assembleia de Condóminos do prédio integrante da fracção referida em A), realizada em 12 de Junho de 2014, foi deliberado, por unanimidade, realizar obras de reabilitação da fachada traseira do prédio (conforme documento que é fls. 33, verso, e 34 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

M) O 2º Réu ((…) - Administração de Condomínios, Limitada), administradora do condomínio integrante da fracção referida em A), enviou à então proprietária, Linda (…), a carta que consta de fls. 36, verso, dos autos (cujo teor aqui se dá por reproduzido), datada de 09 de Dezembro de 2014, onde nomeadamente se lê:
«(…)
Na qualidade de administradores do condomínio, deslocamo-nos esta tarde ao v/ apartamento, na companhia da empresa C ..., para verificar as condições para colocação do andaime para dar início às obras de reparação da fachada das traseiras e deparamos com a existência de uma cobertura presa à fachada, que impossibilita a colocação do andaime.
Solicitamos que mande retirar a referida cobertura para possibilitar a realização das obras
(…)»

N) O 2º Réu ((…) - Administração de Condomínios, Limitada), administradora do condomínio integrante da fracção referida em A), enviou à Câmara Municipal de ... a carta que consta de fls. 37 dos autos (cujo teor aqui se dá por reproduzido), datada de 08 de Janeiro de 2015, onde nomeadamente se lê:
«(…)
Informamos que o 1º andar trás (fracção …) do prédio referido, pertencente à Sr.ª D. Linda (…), residente em Rua do (…), ..., construiu um telhado no terraço do apartamento sem consentimento do condomínio.
Mais informamos que tal telhado está preso à fachada do edifício e está a impossibilitar a realização, por parte do condomínio, de obras de conservação das fachadas, nomeadamente para dar cumprimento às notificações da Câmara Municipal de ... (NOT/636/DFISC/2012 e Processo nº 6982/PED/14).
Neste sentido solicitamos que mandem retirar o referido telhado.
(…)»

O 2º Réu ((…) - Administração de Condomínios, Limitada) recebeu, em resposta, o ofício da Câmara Municipal de ... que consta de fls. 37, verso, dos autos (cujo teor aqui se dá por reproduzido), datado de 02 de Junho de 2015, onde nomeadamente se lê:

«(…)
Relativamente à exposição apresentada por Vª Exa, acerca do assunto supramencionado, informo que, nesta data, foi notificada a infractora para proceder à regularização da situação, devendo, no entanto, no prazo de 15 dias, proceder à retirada das chapas colocadas no terraço e que impedem a realização das obras de conservação das fachadas determinadas por este Município.
(…)»

O) A cobertura/alpendre referido em F) cobre a maior parte de um terraço de cobertura.

P) O alpendre tem de ser retirado para a realização das obras referidas em L).

Q) As fracções do prédio continuam com problemas de infiltrações e humidade, provenientes da fachada traseira.

R) O 1º Réu (Miguel (…)) enviou aos Autores (Luís (…) e mulher, Ana (..)) a carta que consta de fls. 16 (cujo teor aqui se dá por reproduzido), e de onde constam, ademais, os seguintes dizeres:

«(…)
Exmos. Senhores, em face da carta que me enviaram a comunicar que foram interpelados para demolição do alpendre que cobre o terraço virado para as traseiras do imóvel e a interpelar-me para outras questões venho responder à mesma para não se lhes suscitam dúvidas.
Ignoro há quantos anos foi montado o alpendre mas as informações dadas pela vendedora do imóvel foram de que não lhes foi concedida qualquer autorização para o fazer, muito pelo contrário.
Desde já informo que nada farei para evitar a demolição dessa obra clandestina e feita abusivamente, e nada farei para legalizar tal obra pois não pactuo com ilegalidades, nem com abusos, pois V. Exas. sabem há vários anos que foram deliberadas a realização de obras nas fachadas a não foi possível fazê-las devido a essa construção ilegal que os senhores não retiraram, impedindo a realização de obras e prejudicando assim vários dos moradores do prédio, que não puderam beneficiar dessas obras, sofrendo com isso prejuízos.
São livres de avançar com o que quiserem para as competentes instâncias legais, onde certamente a questão será devidamente apreciada.
(…)».
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3.1.2. Factos não provados

Na mesma decisão, o Tribunal de 1ª Instância considerou como não provados os seguintes factos, «com relevância para a discussão da causa e seleccionados de acordo com as regras da repartição do ónus da prova»:

1 - No mês de Novembro de 1975, entre os aqui Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)) e Diamantino (…) foi celebrado contrato de arrendamento verbal da fracção autónoma identificada em A).

2 - O lixo referido em E) era constituído por cascas de fruta e pontas de cigarro, ainda acesas.

3 - Os Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)) corriam o risco de serem atingidos com vasos na cabeça, pois esses vasos eram postos nos muros das marquises superiores e, algumas vezes, caíam no terraço, bastando um pouco de vento para os fazer oscilar e cair.

4 - Em face de tal situação, os Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)) falaram com o senhorio de então, que os autorizou verbalmente a colocarem uma cobertura/alpendre.

5 - O senhorio prometeu aos Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)) que os ressarciria das despesas referidas em F).

6 - Os Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)) foram informados pelo fiscal da Câmara que tal obra não carecia de autorização camarária e que o assunto ficou resolvido, tendo a Câmara Municipal de ..., após o pagamento da coima, considerado a obra legalizada.

7 - O alpendre está a ser usado para escoamento de águas pluviais do terraço, na sequência de obras levadas a cabo pela actual Administração.

8 - A cobertura/alpendre é perfeitamente visível do exterior.

9 - Em virtude do referido em R), os Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)) sentem-se vexados e espoliados.

10 - Mercê da recusa dos Autores (Luís (…) e mulher, Ana (..)) em retirarem a cobertura/alpendre, as obras referidas em L) ficaram inviabilizadas.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Propriedade horizontal - Realização de obra em parte comum

4.1.1.1. Fracção autónoma - Parte comum

Lê-se no art. 1414º do C.C. que as «fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal».

Contudo, só «podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública» (art. 1415º do C.C.).

A propriedade horizontal pressupõe, assim, «a divisão de um edifício através de planos ou secções horizontais, por forma que, entre dois planos, se compreendam uma ou várias unidades independentes, ou ainda através de um ou mais planos verticais, que dividam igualmente o prédio em unidades autónomas» (Henrique Mesquita, «A propriedade horizontal no Código Civil português», R.D.E.S., XXIII, p. 84).

Lê-se ainda no art. 1420º do C.C. que cada «condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício» (nº 1), sendo o conjunto dos dois direitos incindível (nº 2).

Logo, na propriedade horizontal concorrem dois direitos reais: um, de propriedade singular e exclusiva, que tem por objecto as fracções autónomas do edifício (art. 1420º, nº 1 do C.C.); e outro, de compropriedade, incidente sobre as partes comuns (art. 1421º do C.C.).

Compreende-se, por isso, que se afirme que o «que caracteriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respectivo regime é o facto de as fracções independentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária - o que, necessariamente, há-de criar especiais relações de interdependência entre os condóminos, quer pelo que respeita às partes comuns do edifício, quer mesmo pelo que respeita às fracções autónomas» (Henrique Mesquita, ibidem).

As fracções autónomas serão individualizadas no respectivo título de constituição da propriedade horizontal, aí se especificando as partes do edifício pertencentes a cada uma delas (art. 1418º do C.C.). O que aí não esteja especificado como pertencente a cada fracção, será, em princípio, havida como parte comum, a não ser que esteja afectada ao uso exclusivo de um dos condóminos (al. e) do n.º 2 do art. 1421º do C.C.).

Dir-se-á, mesmo, que o título constitutivo da propriedade horizontal «é, fundamentalmente, um acto gerador de autonomização jurídica das fracções do edifício que preencham os requisitos indicados no art. 1415º e poderá ser também - acrescente-se agora - um acto modelador do estatuto da projectada propriedade horizontal, sempre que nele se estabeleçam regras que completem o regime legal ou dele se afastem (na medida em que a lei o permita). Estas regras, embora resultantes de uma declaração negocial, adquirem força normativa ou reguladora, vinculando desde que registadas, os futuros adquirentes das fracções, independentemente do seu assentimento» (Henrique Mesquita, «A propriedade horizontal no Código Civil português», R.D.E.S., XXIII, p. 100).

Das partes comuns do edifício, umas há que são imperativamente comuns a todos os condóminos (n.º 1 do art. 1421º do C.C.); outras partes comuns são-no apenas presuntivamente (n.º 2 do último artigo citado).

Precisando, serão imperativamente comuns as partes que integrarem a estrutura do prédio (como elementos vitais de toda a construção); e sê-lo-ão «ainda que o seu uso esteja afectado a um só dos condóminos, pela razão simples de que a sua utilidade fundamental, como elemento essencial de toda a construção, se estende a todos os condóminos.

Serão ainda imperativamente comuns as partes que, transcendendo o âmbito restrito de cada fracção autónoma, revistam interesse colectivo por serem objectivamente necessárias ao uso comum do prédio, já que, se «a sua utilidade pode ser mais ou menos ampla, (…) a justificação da sua natureza está no facto de constituírem, isolada ou conjuntamente com outras, instrumentos do uso comum do prédio» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 420).

Compreende-se, por isso, que do elenco legal das partes imperativamente comuns do prédio encontremos «todas as partes restantes [que não solo, alicerces, colunas, pilares e paredes mestras] que constituem a estrutura do prédio», bem como «o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção» (als. a) e b) do n.º 1 do art. 1421º citado, com bold apócrifo).

Trata-se aqui de elementos que constituem o esqueleto do prédio, que são parte integrante da sua ossatura, forçosamente comum pela função capital (v.g. de sustentação, de cobertura ou protecção) que exercem em relação a toda a construção, logo no interesse colectivo de todos os condóminos.

Dir-se-á, assim, como pano de fundo necessário à compreensão e interpretação do regime legal da propriedade horizontal, que o «condomínio é (…) a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários contitulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial - daí a expressão condomínio - sobre fracções determinadas.

O que já de específico no direito de propriedade sobre as fracções autónomas é apenas o facto de sobre tal direito impenderem restrições que não derivam do regime normal do domínio, mas que a lei estabelece ou permite em virtude de o objecto do direito de cada condómino se integrar num edifício de estrutura unitária, onde existem outras fracções pertencentes a proprietários diversos» (Henrique Mesquita, op. cit., p. 147).
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4.1.1.2. Realização de obra em parte comum

Lê-se no art. 1430º, nº 1 do C.C. que a «administração das partes comuns do edifício compete à assembleia dos condóminos e a um administrador».

Logo, a administração da fracção autónoma competirá, em exclusivo, ao condómino titular do respectivo direito de propriedade (art. 1305º do C.C.); já a administração das partes comuns caberá, em conjunto, à assembleia dos condóminos e ao administrador, este último eleito e exonerado por aquela (artºs. 1430º e 1435º, nº 1, ambos do C.C.).

Precisando, à Assembleia de Condóminos, «órgão deliberativo composto por todos os condóminos, compete decidir sobre os problemas do condomínio que se refiram às partes comuns, encontrando soluções para os resolver, delegando no administrador a sua execução e controlando a actividade deste». Ao Administrador, «órgão executivo da administração, cabe o desempenho das funções referidas no art. 1436º do C.C., próprias do seu cargo, assim como as que lhe forem delegadas pela assembleia ou cometidas por outros preceitos legais» (Ac. da RL, de 19.01.2011, Albertina Pereira, Processo n.º 234/09.2TTLRS.L1-4, in www.dgsi.pt, como todos os demais sem outra indicação de consulta).

Compreende-se, por isso, que se afirme que os poderes de gestão do Administrador são muito mais limitados dos que cabem à Administração de Condóminos, já que há assuntos respeitantes à administração dos bens comuns que exorbitam da competência daquele mas que cabem na desta.

Mais se lê, no art. 1425º do C.C. que as «obras que constituem inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio» (n.º 1); mas nas «partes comuns do edifício não são permitidas inovações capazes de prejudicar a utilização, por parte de algum dos condóminos, tanto das coisas próprias como das comuns» (n.º 2).

Como o próprio significado etimológico da expressão «inovações» permite, obras inovadoras serão aquelas que «criem», «façam algo de novo», introduzam uma «novidade», ou seja, algo diferente daquilo que está incluindo o desaparecimento de pré-existências; e esta alteração do estado original da edificação tanto pode ser de substância, como de forma, e ainda relativa ao destino ou à afectação que antes era dada ao espaço sobre a qual foi consubstanciada a obra inovadora.

Sendo as obras inovadoras realizadas sobre partes comuns sem a prévia autorização da assembleia de condóminos, serão ilícitas, correspondendo-lhes a sanção da demolição ou da destruição, conforme art. 829º, n.º 1 do C.C., por forma a que o edifício seja reposto no seu estado anterior.

(No mesmo sentido, Ac. da RC, de 05.07.2005, Ferreira de Barros, Processo n.º 1754/05, Ac. da RL, de 15.12.2011, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 5133/09.5TBOER.L1-8, e Ac. do STJ, de 17.05.2017, Nunes Ribeiro, Processo n.º 309/07.2TBLMG.C1. S1.)

Precisa-se que, para a natureza ilícita de tais obras, é indiferente que as mesmas sejam realizadas pelo proprietário da fracção autónoma, ou pelo seu mero arrendatário, já que também este está sujeito «às limitações impostas aos proprietários de coisas imóveis» (art. 1071º do C.C.).

Com efeito, «determinante é, antes, para o mesmo efeito, o facto das modificações introduzidas incidirem sobre a fracção autónoma que a cada condómino pertença, ou sobre as partes comuns, e ainda a circunstância dessas modificações se conterem, ou não, nos estritos limites dos poderes que a lei confere a cada um dos condóminos em relação a essas parcelas» (Ac. da RP, de 21.10.2014, João Diogo Rodrigues, Processo n.º 551/09.1TBPVZ.P1).

Precisa-se, ainda, que nem mesmo o eventual licenciamento camarário que tais obras tenham tido obsta ao juízo referido, já que o dito licenciamento respeita unicamente a fins administrativos (salubridade, ordenamento do território, estética das povoações, segurança) e não ao direito de propriedade que escapa à sua alçada (conforme Ac. do STJ, de 04.10.1995, Sousa Inês, BMJ, nº 450, p. 492-502).

Com efeito, o eventual licenciamento camarário não dá nem tira direitos privados, concedidos aos cidadãos pela lei civil, nomeadamente os decorrentes de disposições imperativas, como são as atinentes aos direitos reais em geral, maxime as restrições ao direito de propriedade e à propriedade horizontal em particular. Compreende-se, por isso, que se afirme que a aprovação camarária das obras em partes comuns constitui realidade diversa da sua autorização pelo condomínio, sendo os âmbitos das mesmas diferentes, não podendo a primeira suprir ou dispensar a segunda (conforme Ac. da RP, de 19.03.1996, Rapazote Fernandes, Processo n.º 9520077, e Ac. do STJ, de 05.02.2004, Ferreira de Almeida, Processo n.º 03B4453).
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4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, e com apelo à sentença recorrida, que se subscreve inteiramente para este efeito, verifica-se que:

«(…)
Conforme se retira da matéria de facto assente, os autores, que são arrendatários de uma fracção autónoma integrante de um prédio que os mesmos reconhecem estar constituído em regime de propriedade horizontal, vieram a realizar obras, concretamente a construção de um alpendre, sobre um terraço de cobertura do prédio.

Ora, inexistem dúvidas de que as obras em causa foram realizadas sobre uma parte comum do prédio.

De facto, o art. 1421.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil, considera imperativamente comuns, entre outras partes do edifício, “os terraços de cobertura”.

No caso, tendo o alpendre sido colocado sobre um terraço de cobertura, teremos de concluir que foi efectuada uma obra de inovação sobre uma parte comum do edifício que, nos termos do art. 1425.º do Código Civil, sempre dependeria da aprovação da maioria dos condóminos.

(…)
No caso, é para nós inequívoco que a construção do alpendre sobre o terraço de cobertura configura uma obra de inovação, não se extraindo da matéria de facto assente que os autores tivessem obtido previamente à sua realização qualquer autorização para a sua feitura, autorização esta que, ante a circunstância de o prédio se manter ainda, à data da realização das obras, na propriedade de uma só pessoa, ou seja, sem condomínio constituído, haveria de ser obtida daquele proprietário das fracções.

De tal resulta que as obras devam ter-se efectivamente por ilícitas em face do estatuto da propriedade horizontal (…).

Aliás, estamos em crer que tais obras sequer seriam passíveis de autorização por serem susceptíveis de prejudicar a utilização, por parte dos condóminos, do terraço de cobertura, designadamente para a finalidade que está agora posta em causa, ou seja, a realização de obras na fachada traseira (vide art. 1425.º, n.º 2, do Código Civil).

E a sanção natural para a execução de obras ilícitas é, conforme vem sendo entendido, a sua demolição (cf. art. 829.º, n.º 1, do Código Civil).
(…)»

Logo, e ao contrário do sustentado pelos Autores nos autos, e conforme defendido pelos Réus, à luz do regime da propriedade horizontal, não lhes assistia o direito de edificarem, sobre o terraço de cobertura - parte comum -, um alpendre, sem a prévia autorização deliberada para o efeito pela Assembleia de Condóminos; e, tendo-o feito, consubstancia o dito alpendre uma obra ilícita, podendo o 2º Réu (… - Administração de Condomínios, Limitada) exigir a respectiva demolição.
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4.2. Contrato de arrendamento - Obra não autorizada

4.2.1. Lia-se art. 1043.º, n.º 1, do C.C. (na versão em vigor em 1980, aqui aplicável mercê do art. 12º, n.º 1 2 n.º 2, I parte, do mesmo diploma) que, na «falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato».

Mais se lia, no art. 1092º do mesmo diploma, que é lícito ao inquilino realizar pequenas deteriorações, quando elas se tornem necessárias para assegurar o seu conforto ou comodidade, deteriorações que, contudo, deveria reparar antes da restituição do prédio, salvo estipulação em contrário.

Logo, as «deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato», serão aquelas que «constituem o desgaste produzido através do uso do prédio ou por directa acção do arrendatário», enquanto que «as pequenas deteriorações (...) necessárias para assegurar o seu conforto ou comodidade» constituirão «inovações materiais (...), transformações ou acrescentamentos à identidade estrutural do prédio, mais ou menos importantes, que se destinam a conservá-la, a melhorá-la ou a dar-lhe aptidão para proporcionar ao utente certo uso recreativo. Não constituem, portanto, uma forma de uso, mas uma obra de implantação, uma e outra destinadas a manter ou a elevar a qualidade ou a proporcionar algum recreio ao uso do arrendatário» (Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª edição, Livraria Almedina, p. 798).

Lia-se ainda no art. 1074.º do C.C. que o arrendatário podia fazer benfeitorias úteis ou voluptuárias sem consentimento do proprietário, não podendo, contudo, ser afectada a substância do prédio ou o seu destino económico.

Recorda-se que se consideram benfeitorias «todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa», sendo necessárias «as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa», úteis «as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor», e voluptuárias «as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem para o recreio do benfeitorizante» (art. 216º do C.C.).

Por fim, lia-se no art. 1093º, n.º 1, al. d) do C.C que o senhorio podia resolver o contrato de arrendamento se o arrendatário fizesse no prédio, sem o seu consentimento escrito, obras que alterassem substancialmente a sua estrutura externa ou a disposição interna das suas divisões, ou praticasse quaisquer actos que nele causassem deteriorações consideráveis, igualmente não consentidas e que não pudessem justificar-se à luz de uma prudente utilização do locado, em conformidade com os fins do contrato, ou à luz do necessário para assegurar o seu conforto ou comodidade, ressalvado neste caso o dever de repará-las antes da restituição do prédio.

As alterações serão substanciais quando tenham a ver com a substância do prédio arrendado e, «neste sentido, as alterações realizadas pelo arrendatário serão substanciais quando atinjam ou aditem a própria substância da construção», desde que não se revistam de escassa importância (Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª edição, Livraria Almedina, p. 798).

Já «o conceito de estrutura externa do prédio deve ser entendido como alteração substancial da fisionomia essencial do prédio, sem corresponder apenas à noção especializada de estrutura resistente em matéria de construção civil, por o bem jurídico protegido por essa disposição ser o interesse do proprietário em manter o essencial da traça do seu prédio; obra substancialmente alteradora da estrutura externa de um prédio é aquela que é feita com carácter permanente, mesmo que possua características de reparabilidade.

A alteração da disposição interna das divisões de um prédio é sinónimo de planificação interna desse tipo de prédio ou do modo de distribuição interna desses tipos de prédios.

Deteriorações consideráveis são todas aquelas que não sejam inerentes à prudente utilização do prédio, ou que não constituem pequenas deteriorações necessárias ao conforto e comodidade do arrendatário, ou que revistam um certo vulto, quer pela sua extensão, que pelo custo da reparação, quer pelo confronto com o valor do prédio onde são praticadas» (Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento Urbano. Anotado e Comentado, Almedina, 1995, p. 289, com bold apócrifo. No mesmo sentido, entre muitos, Ac. da RL, de 11.11.1986, CJ, Ano XI, Tomo 5, p.115, e Ac. da RP, de 06.05.1977, CJ, Ano II, Tomo 4, p. 834).

Perpassa por todo este regime o reconhecimento de que, no contrato de locação, o locador proporciona ao locatário apenas o gozo temporário de uma coisa (art. 1022º do C.C.); e de que esse gozo temporário se traduz estritamente no aproveitamento das utilidades da coisa para a satisfação das necessidades do locatário.

Logo, o locatário em geral, e o arrendatário em particular, não podem (sem consentimento) alterar ou transformar a coisa, pois que se o pudesse fazer seriam, de facto, seus proprietários (conforme Januário Gomes, «Parecer» publicado na revista O Direito, ano 125º, p. 444 e ss., e Oliveira Ascensão e Menezes Leitão, «Parecer» publicado na mesma revista e ano, p. 417 e ss.).

Fazendo-o, isto é, realizando o arrendatário obra não permitida por lei sem a prévia autorização do seu senhorio, incumpre necessariamente o contrato de arrendamento; e, face a esse seu ilícito, o senhorio pode requerer a resolução do contrato (como se referiu supra) e/ou a imediata demolição de tais obras, já que este seu direito não depende de ter sido exercido aquele outro (de resolução). Compreende-se que assim seja, já que «não é só no momento da restituição que a coisa deve conservar-se no estado em que foi recebida, mas a todo o momento, após a entrega» (Pinto Furtado, op. cit., p. 416).

Por outras palavras, «sempre que um arrendatário realize no prédio arrendado obras de inovação ou de transformação sem o consentimento do senhorio, pratica um facto ilícito que deve ser qualificado como violação contratual»; e, nesse caso, «o senhorio tem o direito de exigir, com fundamento em que o arrendatário não respeitou a obrigação de manter o prédio no estado em que o recebeu (artigo 1043º do Código Civil), que as obras sejam demolidas e o imóvel restituído ao estado anterior à violação cometida» (Henrique Mesquita, RLJ, ano 130, p. 222 e 223).
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4.2.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, considerou-se na sentença recorrida consubstanciar o alpendre em causa uma benfeitoria voluptuária, que, ao afectar a estrutura essencial do locado, exigiria a prévia autorização escrita do senhorio para a sua edificação, lendo-se nomeadamente na mesma:

«(…)
Ora, no caso, a construção do alpendre não pode ter-se como deterioração do locado, por não lhe acarretar, nos termos da factualidade assente, qualquer estrago ou dano material, constituindo, ao invés, um melhoramento do imóvel, pelo que deve ter-se por benfeitoria (cfr. art. 216.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que, ante a escassez da factualidade assente, apenas pode ter-se como benfeitoria voluptuária (que são aquelas que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante – cfr. art. 216.º, n.ºs 1 a 3, do Código Civil), uma vez que não se infere da fundamentação de facto que tivesse acrescentado qualquer valor ao locado, sendo que também não se extrai daquela factualidade que fosse uma obra necessária a evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa (cfr. art. 216.º, n.º 3, do Código Civil), o que leva automaticamente ao afastamento da possibilidade de ter sido realizada nos termos do art. 1036.º do Código Civil.

Temos assim que a obra em causa, sendo uma benfeitoria voluptuária, só poderia ter sido realizada sem o consentimento do senhorio se não afectasse a substância do prédio ou o seu destino económico, exigindo-se, no caso contrário, aquele consentimento (cfr. o citado art. 1074.º do Código Civil).

No caso, resulta óbvio que a obra em questão afectou a substância do prédio, tendo levado a que um terraço de cobertura se transformasse num alpendre que cobre em grande parte aquele terraço, pelo que era necessário que tivesse sido autorizada a sua feitura, autorização que os autores não lograram demonstrar, devendo por isso ser considerada uma obra ilícita.

(…)
Regressando ao caso em apreciação, temos que os autores não provaram, como alegaram, que o alpendre foi construído com a autorização, ainda que verbal, do anterior proprietário, pelo que, tratando-se de um acto de inovação e transformação que não cabe na esfera dos seus poderes de gozo, tem de facto o réu Miguel, actual senhorio dos autores, o direito a exigir a sua demolição (vide neste sentido o Ac. da RP de 28/6/2001, processo n.º 0130626, disponível in www.dgsi.pt).
(…)»

Admite-se, porém, que o dito alpendre fosse igualmente - ou melhor - considerado como uma obra que afecta a «estrutura externa do prédio», já que altera substancialmente a sua fisionomia essencial (embora não enquanto estrutura resistente em matéria de construção civil, mas sim de traça); e tem carácter permanente (ali se encontra há mais de tinta anos), embora possua característica de reparabilidade (pode ser removido, e novamente reposto).

Logo, e ao contrário do sustentado pelos Autores nos autos, e conforme defendido pelos Réus, à luz do regime do arrendamento urbano, não lhes assistia o direito de edificarem, sobre o terraço de cobertura afecto ao seu uso exclusivo, um alpendre, sem a prévia autorização escrita do respectivo senhorio; e, tendo-o feito, consubstancia o dito alpendre uma obra ilícita, podendo o 1º Réu (Miguel ...) exigir a respectiva remoção, conforme o fez no pedido reconvencional por ele deduzido; e, por isso, assim totalmente procedente.
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4.3. Abuso de direito

4.3.1.1. Definição

Lê-se no art. 334º do C.C. que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».

Dir-se-á assim, e antes de mais, que o instituto do abuso de direito assenta na existência de limites indeterminados à actuação jurídica individual, resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito exercido.

Trata-se de uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o legislador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, p. 63. No mesmo sentido, Almeida Costa, Direito das obrigações, 3ª edição, p. 60, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol, I, 4ª edição, Coimbra Editora, p. 298).

Pretende-se ainda com ele assegurar expectativas e direccionar condutas (uma das funções primárias do Direito): assegurar, por um lado, a confiança fundada nas condutas comunicativas das «pessoas responsáveis», assente na própria credibilidade que estas condutas reivindicam; e, por outro, dirigir e coordenar dinamicamente a interacção social e criar instrumentos aptos a dirigir e coordenar essa interacção, por forma a alterar as possibilidade de certas condutas no futuro. Ambas as funções relacionam-se com aquela «paz jurídica» que, ao lado da «justiça» é referida como uma das expressões da própria «ideia de direito» (Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Jurídica, ..., 1991, p. 346).

A lei utiliza aqui, propositadamente, conceitos indeterminados («boa fé», «bons costumes», «fim social ou económico do direito») como modo privilegiado de atribuir ao aplicador intérprete - maxime ao juiz - instrumentos capazes de promover, no caso concreto, uma busca mais apurada da justiça (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, p. 198).

Contudo, pode dizer-se que:

. boa fé - objectiva-se em regras de actuação (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, Tomo I, p. 180 e 182): é a consideração razoável e equilibrada dos interesses dos outros, a honestidade e a lealdade nos comportamentos e, designadamente, na celebração e execução dos negócios jurídicos (Ana Prata, Dicionário Jurídico, 2ª edição, Almedina, 1989, p. 78), reporta-se à correcção e lealdade (Fernando Augusto Cunha e Sá, Abuso de Direito, C.E.F.D.G.C.I., Lisboa, 1973, p. 193). Por isso, agir de boa fé é «agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesse da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar» (Ac. do STJ, de 10.12.1991, BMJ, nº 412, p. 460).

A este propósito deverá ser tido em consideração o disposto nos arts. 227º e 762º, ambos do C.C., que se referem à exigência da actuação de boa fé nos preliminares e formação do contrato, no cumprimento da obrigação e exercício do direito.

. os bons costumes - é conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico, acolhidas pelo Direito, em cada momento histórico, que, não estando codificadas, provocam consenso em concreto, pelo menos nos casos limite, encontrando-se na sua concretização um grupo que se prende com princípios cogentes da ordem jurídica e outro que se liga à moral social (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, p. 193. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 10.12.1991, BMJ, nº 412, p. 460, onde se lê que os bons costumes são «um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social»).

Logo, para se determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, p. 299).

. o fim/função social ou económico do direito - tem a ver com a sua configuração real, a apurar através da interpretação; se um direito é atribuído com certo perfil, já não haverá direito quando o titular desrespeite tal norma constitutiva (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, p. 283).

Adoptou-se, ainda, uma concepção de abuso de direito «objectiva», isto é, «não é necessária a consciência de se excederem, como seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.

Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso de direito consagrado no artigo 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, p. 298).

Exige-se, porém, que o excesso cometido seja «manifesto», isto é, que o direito em causa tenha sido exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, por a invocação e aplicação de um preceito concreto da lei, válida para o comum dos casos, resultar na hipótese concreta intoleravelmente ofensiva do sentido ético-jurídico dominante na colectividade (boa fé e bons costumes), ou desvirtuar os juízos de valor positivamente nele consagrados (fim social ou económico).

Concluindo, o abuso do direito pressupõe, logicamente, a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), e que o titular respectivo se exceda no exercício dos seus poderes. «A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deva ser exercido» (Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 300).
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4.3.1.2. Modalidades

Encontram-se já identificadas pela doutrina e pela jurisprudência as figuras mais típicas de manifestação de abuso de direito, contando-se entre elas: o venire contra factum proprium; as inalegabilidades formais; a supressio e a surrectio; o tu quoque; e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Precisando (no que ora nos interessa), «a locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente», pelo que «se está perante dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos entre si e diferidos no tempo. O primeiro - factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo» (António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa Fé No Direito Civil, Colecção Teses, Almedina, Vol. II, p. 742 e 745, com bold apócrifo).

Com efeito, a todos os negócios jurídicos deve presidir um princípio de confiança que, levando à expectativa de certa conduta futura, implica uma auto vinculação. Logo, «a confiança permite um critério de decisão: um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas. (...). Basta que o confiante ignore a instabilidade do factum proprium, sem ter desacatado os deveres de indagação que ao caso caibam» (ibidem, p. 756 e 758, com bold apócrifo).

Assim, «a proibição de venire contra factum proprium representa um modo de exprimir a reprovação por exercícios inadmissíveis de direitos e posições jurídicas. Perante comportamentos contraditórios, a ordem jurídica não visa a manutenção do status gerado pela primeira actuação, que o Direito não reconheceu, mas antes a protecção da pessoa que teve por boa, com justificação, a actuação em causa. O factum proprium impõe-se não como expressão da regra pacta sunt servanda, mas por exprimir, na sua continuidade, um factor acautelado pela concretização da boa fé» (ibidem, p. 769 e 770, com bold apócrifo).

Pode, pois, dizer-se que serão pressupostos exigíveis de aplicação da modalidade venire contra factum proprium do instituto em causa (condicionantes da sua actuação como instrumento de realização da justiça, e impeditivos da sua indevida banalização, por caucionadora de pretensões juridicamente infundamentadas):

. uma situação objectiva de confiança - uma conduta de alguém que, de facto, possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura (v.g. mera conduta de facto - nalguns casos mesmo simples passividade -, ou declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz, mas que revele directa ou indirectamente a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro);

. um investimento na confiança criada, de carácter irreversível - o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando uma contraparte, com base na situação criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que lhe advirão danos, se a sua confiança vier a ser frustrada.

Torna-se, assim, necessário, não só uma relação de causalidade entre o facto gerador da confiança e o investimento da contraparte (o investimento foi feito apenas com base na dita confiança), como ainda que o dano que provocaria a conduta violadora da fides não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma solução satisfatória (v.g. ou porque não existe, ou porque o investimento feito não é economicamente recuperável, ou porque a situação criada não pode ser removida, ou só pode sê-lo em condições muito onerosas).

. boa fé da contraparte que confiou - nos casos em que a base da confiança é uma aparência (porque a intenção real do responsável pela aparência diverge da sua intenção aparente), a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando esteja de boa fé (por desconhecer aquela divergência), e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.

Logo, o cuidado e as precauções exigíveis da contraparte que reivindica a protecção da sua boa-fé serão tanto maiores quanto mais vultuosos forem os «investimentos» (iniciativas, actos de disposição, decisões) feitos com base na confiança; e sê-lo-ão sobretudo quando circunstâncias particulares suscitem dúvidas sobre a verdade da situação aparente (v.g. nos negócios de grande vulto, que exigem uma actividade preparatória rodeada de muitas precauções, será menos desculpável a crença nos poderes de um procurador aparente do que nos negócios correntes da vida» (tudo apud Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Jurídica, ..., 1991, p. 415 a 418).

Relativamente à locução dupla supressio e surrectio, traduz «a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar o princípio da boa fé» consagrado no art. 762º do C.C.; ou o inverso do mesmo fenómeno, isto é, uma pessoa veria, por força da boa fé, surgir na sua esfera uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria (sendo a surrectio a contraface da supressio).

Contudo, exige-se um decurso significativo de tempo, acompanhado de várias circunstâncias (v.g. o conhecimento do direito e da possibilidade de o exercer), sem exercício do direito, acompanhado de indícios de que tal direito não mais será exercido, sendo desnecessária culpa ou qualquer outro elemento subjectivo por parte do não exercente (António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa Fé No Direito Civil, Colecção Teses, Almedina, Vol. II, op. cit., p. 797).

Por outras palavras, «a realidade social da supressio, que o Direito procura orientar, está na ruptura das expectativas de continuidade da auto-apresentação praticada pela pessoa que, tendo criado, no espaço jurídico, uma imagem de não-exercício, rompe, de súbito, o estado gerado.

(…) A supressio pode, pois, considerar-se uma forma de proscrever os comportamentos contraditórios», estando a sua chave «na alteração registada na esfera da contraparte, perante o não exercício. Protege-se a confiança desta, em que não haverá mais exercícios; a bitola pode ser procurada no sentido que o destinatário normal daria ao não exercício - Art. 236º, nº 1 do Código Civil» (op. cit., p. 813).

Logo, haverá uma «contradição inadmissível em boa fé entre uma omissão prolongada do exercício do direito, em circunstâncias tais que suscitam a expectativa de que ele não virá a ser exercido. Uma vez consolidada a confiança e a expectativa - a fé - e desde que essa consolidação da confiança seja imputável ao titular do direito, a brusca inflexão de atitude é contrária à boa fé» (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral de Direito Civil, 2ª edição, Almedina, p. 685).

Contudo, «a confiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura. Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação de confiança é preciso que ela, directa ou indirectamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro» (Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Jurídica, ..., 1991, p. 416).
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4.3.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, e tal como considerado na sentença recorrida, verifica-se que:

«(…) os autores construíram o alpendre em causa nos autos em 1980 e que o mantêm desde então, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, quer do senhorio, quer dos vizinhos»; e «tal factualidade demonstra que quer o(s) senhorio(s), quer os condóminos do prédio, se deixaram cair numa inércia que perdurou por tempo tal que levou a que se criasse nos autores a convicção ou expectativa fundada de que não mais exerceriam o direito à demolição do alpendre e que a sua posição jurídico-substantiva em relação ao mesmo, seja em termos de propriedade horizontal, seja em sede do contrato de arrendamento, se encontrava já consolidada.
(…)»

Contudo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, já se discorda da mesma sentença recorrida quando nela se afirma que os Autores, perante aquela inércia, «nela investindo, em conformidade, as suas expectativas, pelo que a inversão de tal actuação (de inércia) passados mais de 30 anos sobre a construção do alpendre constitui de facto uma violação drástica do princípio da confiança que impõe a paralisação do direito de demolição pretendido pelos réus e o reconhecimento do direito dos autores a manterem o alpendre».

Com efeito, e desde logo, não se vê que tenha existido da parte dos Autores o investimento na confiança alegadamente criada pela passividade dos Réus, de carácter irreversível: os Autores primeiro levantaram o seu alpendre, e só depois surgiu a inércia dos Réus perante ele, não se tendo alegado ou provado que, face à inércia e por causa dela, os Autores tivessem de algum modo alterado o seu procedimento anterior (nomeadamente, tomando disposições ou organizando planos de vida que passassem por uma reforçada ou modificada utilização do alpendre, ou por uma qualquer ampliação e melhoramento do mesmo).

Conforme bem referido na sentença recorrida, «para que estejamos perante um venire contra factum proprium terá que se observar uma contradição directa entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento adoptado pelo autor, sendo necessário que a segunda conduta, contraditória do factum proprium, atenta a reprovabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e correcção, represente uma manifesta ultrapassagem dos limites impostos pela boa fé» (com bold apócrifo).

Ora, esta inexistente relação de causalidade entre o facto gerador da confiança (passividade/inércia dos Réus, posterior) e o investimento da contraparte, feito apenas com base na dita confiança (indemonstrado, já que a edificação do alpendre foi prévia à dita conduta geradora da confiança), basta para afastar o abuso de direito, na sua modalidade de venire contra factum proprium.

Já relativamente a uma eventual supressio, dir-se-á que, se é inegável que existiu o decurso de um muito significativo lapso de tempo sem que os Réus exercessem o seu direito a exigir a demolição/remoção do alpendre, não se crê ter sido o mesmo acompanhado de indícios de que tal direito não mais seria exercido, nomeadamente face à alteração das circunstâncias em que a respectiva passividade/inércia se manifestou.

Com efeito, e pese embora alegado, os Autores não lograram demonstrar que o então proprietário e senhorio da fracção autónoma que habitam autorizou, ainda que verbalmente, a construção do alpendre em causa, desse modo inequivocamente indicando que não pretenderia exercer futuramente qualquer direito à sua exigível remoção.

Dir-se-á ainda que, e relativamente ao Condomínio do dito prédio, também não foi alegado, ou provado, qualquer comportamento do mesmo (repete-se, para além da sua passividade) que demonstrasse que não pretenderia jamais exercer o direito que igualmente lhe assistia, de exigir a reposição do terraço - parte comum - no seu primitivo estado.

À inexistência daqueles comportamentos por parte dos Réus, soma-se a circunstância de a sua própria passividade sempre se ter registado num cenário em que o interesse (que não direito, conforme já sobejamente explicitado supra) dos Autores na manutenção do seu alpendre (por forma a impedir que recebessem lixo e objectos provenientes das fracções superiores, como molas e roupa) não colidia com outro qualquer mais relevante interesse dos Réus (nomeadamente, a imperativa disposição do terraço, livre e desembaraçado, para nele serem montados os andaimes exigidos pelas realização de obras de conservação da fachada do prédio, impostas pela Câmara Municipal de ...).

Surgindo agora, pela primeira vez, essa efectiva colisão, não se crê ser exigível aos Réus a manutenção da sua anterior tolerância (consubstanciada na respectiva inércia), face à inequívoca violação dos seus direitos por parte dos Autores (que dela já beneficiaram por mais de trinta anos), uma vez que a expectativa destes na perpetuação do não exercício do direito de remoção por parte daqueles só seria tutelável pelo instituto do abuso do direito se se verificasse a manutenção simultânea do quadro fáctico anterior (sem outro conflito de interesses), que precisamente justificara a anterior passividade dos Réus.

Por outras palavras, se é verdade que se está, neste momento, perante a subjectiva ruptura das expectativas dos Autores, de continuidade do comportamento dos Réus de que beneficiavam, certo é que estes não exercem o direito antes inactivo/inerte no mesmo quadro fáctico anterior, não se podendo falar com propriedade do rompimento súbito do estado por eles previamente gerado (o que, necessária e inevitavelmente ocorreria se, sem necessidade de qualquer acesso ao terrado, e livre disposição do mesmo, ou sem qualquer outra alteração das vicissitudes inerentes à vida e interesses do Condomínio, os Réus pretendessem exercer o seu direito à remoção do alpendre em causa).

Por fim, dir-se-á que, face ao inequívoco carácter ilícito do dito alpendre, e ao limitado interesse que o mesmo tutela, não se crê que seja manifestamente abusivo o exercício do direito dos Réus à sua remoção.

Com efeito, é inequívoco que, ao longo dos anos, o legislador tem vindo a reforçar a protecção do espaço comum, público e privado, com a edição de novas ou renovadas exigências de urbanismo, nomeadamente tendentes a assegurar a segurança, manutenção e estética dos edifícios.

A este esforço legislativo soma-se um outro, executivo, de maior e mais rigorosa fiscalização e actuação por parte dos órgãos de gestão autárquica, por forma a não só detectarem situações infractoras, como a imporem a adopção de medidas tendentes à sua reparação.

Assim, o que antes se tolerava (não raro, por simples desconhecimento, indiferença ou desleixo) hoje tem-se por intolerável, exigindo-se por isso uma acrescida verificação dos interesses em conflito, isto é, dos beneficiados pela infracção cometida e pela simultânea inércia do titular do direito ofendido, e dos deste último, nomeadamente quando objecto de nova (e não apenas renovada) compressão.

No caso em apreço, e pese embora os Autores tenham alegado que receberiam no seu terraço lixo correspondente a cascas de fruta e pontas de cigarro ainda acesas, e estariam em risco de serem atingidos por vaso de flores depositados nos andares superiores, certo é que apenas provaram que a edificação do alpendre foi justificada por lixo que caía sobre o terraço, lixo caracterizado em audiência de julgamento como correspondendo a molas e roupa, e ainda a pedaços da fachada, já em adiantado estado de degradação.

Ora, é absolutamente previsível (e exigível, em termos de sãs e normais relações de vizinhança) que quem dispõe de um terraço receba, de vez em quando, molas e roupa inadvertidamente caídas dos andares superiores; e não se crê que a remoção de um tal incómodo se deva fazer, ou justifique, por meio da edificação de um alpendre em espaço comum, idóneo a alterar a substância do prédio e/ou a sua estrutura externa, ou a prejudicar a sua utilização em benefício dos demais condóminos.

Por fim, dir-se-á que, consubstanciando o alpendre construído pelos Autores uma obra ilícita, e decorrendo do próprio contrato de arrendamento em causa que os mesmos perderiam qualquer benfeitoria que não fosse autorizada por escrito pelo senhorio, também não se aceita como exigível por eles o carácter meramente temporário da remoção do dito alpendre, e a sua posterior reposição com custos a cargo do Condomínio.

Enfatiza-se, a propósito, que os Autores não têm qualquer direito à manutenção do alpendre, já que o instituto do abuso de direito não o outorga, e apenas paralisa o exercício daquele outro tendente a eliminar aquela ilícita situação de facto; e enfatiza-se, ainda, que a passividade do Condomínio sempre se registou num cenário em que dela não decorriam para si próprio quaisquer custos, ou outros prejuízos que não fossem a alteração da linha de fachada do prédio.

Concluindo, consubstanciando o alpendre em causa uma obra ilícita, assistindo aos Réus o direito de exigirem a sua remoção, e não consubstanciando o exercício deste seu direito qualquer respectivo e manifesto abuso, mostram-se improcedentes os pedidos formulados pelos Autores, e procedente a reconvenção deduzida pelo 1º Réu (Miguel ...).
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela total procedência do recurso de apelação interposto pelo 1º Réu (Miguel (..) ), e alterando-se em conformidade a sentença recorrida.
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V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pelo 1º Réu (Miguel ...) e, em consequência, em

· Revogar a sentença recorrida, na parte em que julgou parcialmente procedente a acção e totalmente improcedente a reconvenção, substituindo-a por decisão julgando totalmente improcedente a acção e, por isso, absolvendo os Réus (Miguel (..) e (…) - Administração de Condomínios, Limitada) dos pedidos contra eles formulados, e julgando totalmente procedente a reconvenção deduzida pelo 1º Réu (Miguel (…)) e, por isso, condenado os Autores (Luís (…) e mulher, Ana (…)) a removerem a cobertura/alpendre que fizeram no terraço da fracção autónoma que habitam, repondo-o no estado em que o mesmo se encontrava quando a tomaram de arrendamento.
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Custas da acção e da apelação pelos Recorridos (art. 527º, nº 1 do C.P.C.).
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Guimarães, 07 de Fevereiro de 2019.

O presente acórdão é assinado eletronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.