Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
952/14.3TBGMR.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
SUBSÍDIOS DE FÉRIAS E DE NATAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 1ª CIVEL
Sumário: Por força da submissão ao instituto da exoneração do passivo restante aquilo a que o devedor tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno e os subsídios de férias e de Natal não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do Apelante, pelo que têm que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.
Este sacrifício imposto ao devedor tem, no entanto, o reverso que é de o libertar das dívidas decorrido esse período, permitindo-lhe recomeçar de novo, totalmente desonerado.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:
I - Relatório
AA…veio em 8 de Abril de 2014 requerer a sua declaração de insolvência, a qual veio a ser declarada por sentença de 10.04.2014.
Por decisão de 23.09.2014 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração formulado pelo devedor.
É desse despacho que o apelante veio interpor recurso relativo ao segmento que determinou que o rendimento disponível do insolvente a ceder a um fiduciário, no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, será integrado por todos os rendimentos que ao insolvente advenham a qualquer título, com exclusão do correspondente a 1,5 salário mínimo nacional anualmente determinado, que se fixa como o necessário para o sustento minimamente condigno.
O ora recorrente requereu ao tribunal a quo que aclarasse o seu despacho no sentido de esclarecer se no cálculo do valor a entregar ao fiduciário se consideram 14 meses de retribuição, ou seja, se nele se incluem os subsídios de férias e de Natal e como tal, só estará obrigado a entregar a quantia que exceder 10.605,00 anuais, ou seja 1,5 x 505,00 (retribuição mínima mensal garantida) x 14.
A Mma Juíza a quo a fls 223 proferiu despacho no sentido de que, da quantia necessária ao sustento condigno do devedor estão excluídos os subsídios de férias e de Natal, alicerçando-se em acórdão deste Tribunal da Relação que identifica.
São as seguintes as conclusões do apelante:
1.ª) Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta decisão de fls..., datada de 23 de Setembro de 2014, através da qual se determinou, no seguimento da admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante oportunamente formulado pelo Recorrente, que o rendimento disponível do insolvente objecto de cessão será integrado por todos os rendimentos que ao insolvente advenham a qualquer título, com exclusão do correspondente 1,5 o salário mínimo nacional anualmente determinado.
2.ª) Na determinação do salário mínimo mensal anual impõe-se a inclusão do subsídio de férias e de Natal, como complementos legalmente exigidos do salário mínimo.
3.ª) Por forma a aferir o rendimento do agregado familiar em cotejo com o salário mínimo nacional, considerando o apuramento de rendimentos anuais, teremos que ao salário mínimo corresponde o rendimento anual de € 505,00 x 14, o que resulta das disposições conjugadas dos artigos 2º do Decreto-Lei n.º 144/2014, de 30 de Setembro e 273º e 274º do Código do Trabalho.
4.ª) Tal solução, aliás, é a única que permite harmonizar casuisticamente a situação financeira do devedor e suas despesas e, bem assim, o sacrifício financeiro dos credores e o proporcional sacrifício do insolvente, tendo como limite a vivência minimamente condigna do Recorrente, imposta pelo n.º 3 do artigo 239º do CIRE.
5.ª) Ao ser privado durante o período de cessão dos montantes integrais a perceber a título de subsídios de férias e de Natal, considerando que o Recorrente, nos termos da determinação do rendimento disponível, não se encontra em condição de aforrar um euro que seja, ficará sem meios de custear as despesas extra ou sazonais, como a compra dos livros e do material escolar no início do ano lectivo para os seus filhos, realizar consultas e exames médicos que a condição de saúde exija, pagar prémios de seguro e impostos que o fisco liquide, entre outras que surjam, como comprar um agasalho ou um par de sapatos que se romperem.
6.ª) Pelo exporto, atendo-se o Recorrente aos ditames do artigo 239º do CIRE e considerando a sua própria condição económica e despesas, o rendimento disponível do insolvente objecto da cessão deverá ser integrado por todos os rendimentos que ao insolvente advenham a qualquer título, com exclusão do correspondente a 1,5 salário mínimo nacional anualmente determinado, por referência a 14 vezes anuais tal grandeza, que se fixará como o necessário para o sustento minimamente condigno do Recorrente.
7.ª) Funda-se o presente recurso no disposto no artigo 239º do CIRE, artigo 2º do Decreto-Lei n.º 144/2014, de 30 de Setembro, artigos 273º e 274º do Código do Trabalho e, adjectivamente, nos artigos 613º, 614º, 617º e 644º e ss. do Código de Processo Civil.
II – Objecto do recurso:
Considerando que:

. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,

. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão a decidir é a seguinte:

. se o apelante apenas está obrigado a entregar ao fiduciário, relativamente às quantias que venha a auferir a título de subsídio de férias e de Natal, a quantia que exceder 1,5 e meia o salário mínimo nacional.

III - Fundamentação
De acordo com os elementos constantes dos autos, a situação factual é a seguinte:
. O devedor trabalha actualmente na sociedade BB…, Lda., exercendo as funções de técnico de vendas, auferindo o rendimento ilíquido de 1.000,00 e líquido de 837,13.
. Vive actualmente em casa dos pais, contribuindo para as despesas com o valor de 150,00 euros/mês.
. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de Guimarães mediante a Ap. 5/20070618 a constituição da sociedade CC…, S.A., e a nomeação do apelante como vogal do Conselho de Administração, funções às quais renunciou, em 8 de Julho de 2009, renuncia que se encontra registada pelo Av.1-Ap.4/20090910.
. Em 18 de Março de 2008 o apelante era titular de 13 750 acções da “CC”, representativo de 13,75% do capital social da sociedade.
. Enquanto membro do Conselho de Administração da referida sociedade avalizou alguns contratos de crédito e outras operações financeiras, tendo subscrito na qualidade de avalista o contrato de financiamento junto a fls 48 a 53, de concessão de crédito até ao montante máximo de 200.000,00 outorgado entre a sociedade CC e o Banco …, SA., em 1 de Agosto de 2007.
. As dívidas que o insolvente tem resultam da prestação dessas garantias.
. O devedor declarou como património um direito de crédito no montante de 12.875,00 sobre DD e EE, os quais vieram a ser declarados insolventes, respectivamente nos processos 222/10.6TBSTS e 229/13.1TBSTS, ambos do 4º Juízo do Tribunal Judicial de Santo Tirso.
. Por carta de 5 de Fevereiro de 2014 do Banco …, ACE, foi comunicado ao apelante que tinha sido preenchida pelo montante de 260.889,37 a livrança por ele avalizada, por força da resolução do contrato de locação financeira outorgado entre o … – Instituição Financeira de Crédito, S.A. e a sociedade CC em 17 de Agosto de 2007.
. O apelante nasceu em 06 de Janeiro de 1975, casou com FF em 13 de Setembro de 2003 e o casamento foi dissolvido por divórcio por decisão de 22 de Abril de 2010.
. O apelante celebrou com a sua ex mulher, o acordo junto aos autos a fls 163 a 165 , nos termos do qual se obrigou a pagar a cada um dos seus dois filhos GG e HH a quantia de 200,00 euros mensais. E ainda metade de todas as despesas extraordinárias originadas por doenças, intervenções cirúrgicas e de assistência médica e medicamentosa, bem como metade de todas as despesas com a educação pré-escolar e escolar, mediante a entrega dos respectivos documentos comprovativos.
. Por sentença de 01 de Abril de 2014 foi homologado o acordo relativo às responsabilidades parentais do ora apelante e de FF referente ao menor HH, nos termos do qual o apelante ficou obrigado a prestar a título de alimentos ao menor a quantia mensal de 200,00 euros.

Do Direito

Sendo admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz deverá proferir despacho inicial, nos termos do art. 239º, nºs 1 e 2, do CIRE (diplomas a que pertencem todas as disposições legais que venham a ser citadas), e determinar qual a parcela de rendimento disponível do ou dos insolventes que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência - período de cessão – deverá ser cedido ao fiduciário para os fins do art. 241º.

Findo o período de cessão, deverá ser proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência (cfr. art. 244º) e, sendo a mesma concedida, dar-se-á, de acordo com o art. 245º, a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, salvaguardando-se, contudo, os que vêm referidos no nº 2 do artº 245º.

No caso em análise, a Mma. Juíza a quo proferiu despacho no qual salvaguardou do rendimento disponível a entregar ao fiduciário, o valor correspondente a uma vez e meia ao salário mínimo nacional que actualmente é de 505,00 euros mensais.

A necessidade de consagrar um limite surge como uma exigência do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, afirmado no art. 1º da Constituição da República e a que se alude na al. a) do nº 1 do art. 59º do mesmo diploma fundamental, a propósito da retribuição do trabalho.

O reconhecimento do princípio da dignidade humana exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.

A lei estabelece qual é o limite máximo do valor que se deve entender como sendo “o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor” – o correspondente a três salários mínimos nacionais - , mas já não fixou um limite mínimo, cabendo ao intérprete e aplicador do direito fixar o seu conteúdo, caso a caso.

Tem-se entendido que o limite mínimo será o do salário mínimo nacional que visa assegurar a subsistência com o mínimo de dignidade, pelo que se mostra adequado tê-lo como referência, valor esse de referência para efeitos de impenhorabilidade, nos termos do actual nº 3 do artº 738º do NCPC, a não ser que se trate de um crédito por dívida de alimentos, caso em que o montante mínimo é mais baixo, correspondendo ao valor da pensão social de regime não contributivo.

Outras decisões há que afastam o critério do salário mínimo, norteando-se pelo conferido pelo rendimento social de inserção, tendo como critério orientador que o rendimento per capita do agregado familiar do insolvente não deve, em princípio, ser inferior a ¾ do indexante dos apoios sociais, interpretação que assentava no nº 4 do artº 824º do CPC, disposição que não se manteve com as alterações introduzidas pela L 41/2013, de 26/6.

Revertendo ao caso concreto, foi fixado um valor superior ao salário mínimo nacional, tendo sido considerado inatingível a quantia correspondente a 1,5 esse valor. No caso, correspondendo 1,5 x 505,00, a 757,50 e auferindo o apelante 837,13 líquidos, a quantia que resta para entregar ao fiduciário é de 79,63 euros/mês. A Mma. Juíza ao fixar uma quantia superior ao salário mínimo, ponderou as despesas do apelante.

Tendo em conta as despesas apresentadas pelo apelante - 200,00 euros que paga a título de alimentos a cada um dos seus filhos e 150,00 euros que entrega aos seus pais com quem vive, sobra ao requerente a quantia de 207,50. Não pondo em causa que o requerente seja um bom pai e que pretenda, mediante sacrifício das suas próprias necessidades, pagar aos seus filhos a título de alimentos uma quantia que representa metade daquilo que aufere mensalmente, tal quantia, assaz acima do que infelizmente é comum nos nossos tribunais, a que se obrigou numa altura em que já se sabia insolvente (a sentença homologatória do acordo relativamente ao filho Francisco é de 01.04.2014 e a petição inicial entrou em 09.04.2014), poderá eventualmente revelar-se desajustada, por não ter em conta o disposto no artº 2004º nº 1 do CC, face à situação de insolvente do apelante.

A quantia que sobra ao apelante não é efectivamente muito elevada, pelo que não se olvida que o apelante terá que fazer alguns sacrifícios e gerir o remanescente de forma muito criteriosa, como o exige a situação de insolvente, de modo a poder fazer face a despesas extras que sempre surgem e que refere no seu recurso.

Não se pode, contudo, olvidar que por força da submissão ao instituto da exoneração do passivo restante aquilo a que o devedor tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno e os subsídios em causa não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do Apelante, pelo que têm que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.
Este sacrifício imposto ao devedor tem, no entanto, o reverso que é de o libertar das dívidas decorrido esse período, permitindo-lhe recomeçar de novo, totalmente desonerado.

Com o instituto de exoneração do passivo restante pretendeu-se uma espécie de solução de compromisso entre o devedor e os credores e se não se discute que o devedor tem direito a um sustento mínimamente condigno, do outro lado estão os credores que também têm direitos legalmente consagrados.

Nada há assim a censurar à decisão recorrida e à interpretação da mesma efectuada no despacho subsequente de 05.01.2015.

Sumário:

.Por força da submissão ao instituto da exoneração do passivo restante aquilo a que o devedor tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno e os subsídios de férias e de Natal não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do Apelante, pelo que têm que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.
. Este sacrifício imposto ao devedor tem, no entanto, o reverso que é de o libertar das dívidas decorrido esse período, permitindo-lhe recomeçar de novo, totalmente desonerado.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Guimarães, 26 de Março de 2015

Helena Melo

Amílcar Andrade

Manso Rainho