Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
362/17.0T9VVD.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: PESSOA COLECTIVA
CONCEITO JURÍDICO
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE DOS SÓCIOS
CONCEITO DE OFENDIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A lei consagra um conceito estrito de ofendido, deixando fora do mesmo o titular de interesses mediata ou indiretamente protegidos, o titular de uma ofensa indireta ou o titular de interesses morais.

II - Assim, em processo crime em que o bem jurídico protegido pela incriminação é o património de uma sociedade, ofendida é esta última, não tendo os seus sócios ou gerentes legitimidade para se constituírem assistentes.

III - Sendo o requerimento de constituição de assistente inequívoco no sentido de que o requerente é o sócio gerente da sociedade ofendida, em nome próprio e enquanto pessoa singular, e não a sociedade, nem tão pouco aquele em representação desta, não padece esse articulado de qualquer erro de escrita suscetível de ser retificado ao abrigo do n.º 1 do art. 146º do CPC.

IV - Também não se verifica um vício puramente formal, suscetível de suprimento ou de correção ao abrigo do n.º 2 do mesmo artigo, por o alegado lapso não respeitar apenas à forma externa do ato, sem produzir qualquer efeito jurídico-processual imediato, incluindo-se no domínio das formalidades externas, antes se traduzindo na qualidade em que o requerente da constituição de assistente se apresenta a requerê-la, o que se prende com a legitimidade para a prática do ato.

V - O que se evidencia é um erro técnico, traduzido numa incompreensão sobre o conceito jurídico de que as pessoas coletivas, enquanto centros autónomos de imputação de direitos e deveres que são, possuem personalidade jurídica própria, sendo, pois, entes jurídicos distintos dos seus representantes, com os quais não se confundem.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo de instrução com o NUIPC 362/17.0T9VVD, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo de Instrução Criminal de Braga - Juiz 1, foi proferido despacho, em 22-05-2019, a indeferir o pedido de constituição de assistente formulado por A. S., por não ter a qualidade de ofendido nos autos, e, em consequência, a não admitir o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo mesmo, por não ser assistente.
2. Nesse seguimento, apresentou-se a recorrer de tal despacho a sociedade comercial “X Tuning, Lda.”, na qualidade de ofendida nos autos, concluindo a respetiva motivação nos termos que a seguir se transcrevem:[1]

«CONCLUSÕES

I. Cumpre, antes de tudo, aclarar que a aqui Recorrente, através do seu sócio gerente e legal representante, A. S., apresentou requerimento de constituição de assistente, bem como requerimento de abertura de instrução por não se conformar com as razões que levaram à prolação do despacho de arquivamento nos presentes autos,
II. Pois, salvo o devido respeito, a factualidade constante dos mesmos e a prova carreada impunham decisão diversa.
III. Sucede, porém, que, veio, aqui e agora, a Meritíssima Juiz, indeferir o pedido de constituição de assistente formulado por A. S. e, consequentemente, rejeitar tal requerimento de abertura de instrução,
IV. Porquanto a ofendida, conforme resulta da queixa, é uma entidade comercial, X Tuning, de cujas quantias o Arguido se terá apropriado.
V. No entanto, não pode, nem deve a aqui Recorrente aceitar tal decisão, por desprovida de qualquer fundamento factual ou legal.
VI. Isto porque, tal como consta, aliás, de modo expresso e claro, do despacho de arquivamento do Ministério Público: “Os presentes autos tiveram origem na denúncia apresentada por A. S. – na qualidade de sócio-gerente e legal representante da sociedade comercial X Tuning, Lda.” (sublinhado nosso)
VII. O que, além do mais e a todos os títulos, revela que o requerimento de constituição de assistente e de abertura de instrução foi apresentado por aquele, na supra referida qualidade,
VIII. Sendo, até salientado, no artigo 8.º da al. A) do mesmo que o Arguido, J. C., teve intenção de enganar o sócio gerente e legal representante da sociedade “X Tuning, Lda.”.
IX. Tudo isto a significar, desde logo, que a interpretação adotada no Despacho de indeferimento do pedido de constituição de Assistente peca por, inexplicável e insustentável, purismo de caráter linear e levando à letra o que foi escrito, sem tomar, porém, em consideração todo o circunstancialismo existente e provado.
X. Nessa conformidade, não se pode, nem se deve, interpretar cada Lei, quer qualquer facto, do modo como consta no Despacho recorrido.
XI. Na verdade e como ensina o Prof. Castanheira Neves, quem tem de proferir um Despacho em processo-crime (ou em qualquer outro) tem de realizar uma interpretação no sentido judicativo decisório
XII. Ou seja, não se prendendo a uma literalidade sem espírito, sendo, assim, possível realizar-se Justiça material e não, tão só, uma Justiça formal baseada numa errónea interpretação à letra,
XIII. Em suma, a Lei tem de ser considerada sempre como fazendo parte integrante de um sistema jurídico, tal como o requerimento de constituição de assistente e de abertura de instrução apresentados e o Despacho, que sobre eles recaiu,
XIV. Isto é, tem de ser considerado dentro de todo o sistema de um processo, tal como o presente, e não de forma desgarrada que sucedeu no caso sub judice, com manifesto prejuízo da Sociedade queixosa.
XV. Tudo isto a revelar à saciedade que, só por mero lapso material, lapso esse que desde já a aqui Recorrente se penitencia,
XVI. E, por sua vez, foque-se, perfeitamente corrigível, se para tal a Juiz de Instrução tivesse ordenado a devida notificação,
XVII. É que a mesma terá apresentado ambos os requerimentos na pessoa do seu legal representante, A. S..
XVIII. E lapso esse que resulta claro de todo o conteúdo do requerimento efetuado e de todo o processo na sua globalidade,
XIX. No qual A. S. sempre agiu na qualidade de sócio-gerente e legal representante da Recorrente,
XX. Como se torna evidente, ou seja, como é facto notório que nem sequer carece de alegação ou de prova.
XXI. Tudo isto a revelar e a fazer chegar à inelutável conclusão de que nem sequer, verdadeiramente, se pode dizer que houve um erro material no requerimento, podendo apenas afirmar-se que houve uma menor explicitação, que se julgou até desnecessária face a tudo o que já constava dos presentes autos.
XXII. Para além de tudo isso e de forma conclusiva, cumpre alegar que o indeferimento constante do Despacho recorrido, quanto à constituição de assistente, importa graves consequências para a sociedade Recorrente, pois, também foi, no mesmo despacho, indeferido o seu pedido de abertura de instrução.
XXIII. Graves consequências essas que são mais que notórias na medida em que, para além de se encontrar em juízo a prática, pelo Arguido, J. C., de um crime de burla e de um crime de abuso de confiança, p. e. p pelos artigos 217.º, n.º1, e 205.º, n.º1, ambos do Código Penal,
XXIV. Ao ser indeferido o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Recorrente, fica a mesma coartada no seu legítimo acesso à Justiça e aos Tribunais,
XXV. Direito e garantia essencial esses, constitucionalmente consagrados nos termos do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
XXVI. Ora, como bem se sabe, as garantias fundamentais encontram-se no campo da proteção dos direitos dos cidadãos e do proporcionar dos meios adequados a essa proteção.
XXVII. E foi nessa conformidade e tendo em consideração tudo o supra exposto, que urgiu, na aqui Recorrente, forte necessidade de promover a abertura de Instrução,
XXVIII. Abertura de instrução essa que, por sua vez, não foi admitida, pelo facto do requerimento de constituição de assistente ter sido apresentado pelo Sr. A. S., alegadamente, a título pessoal,
XXIX. E com a qual a mesma não se conforma, porquanto, antes de proferida tal abrupta decisão, deveria a Julgadora da 1.ª Instância ter dado oportunidade à aqui Recorrente de proceder à correção formal,
XXX. Ou seja, de proceder à elaboração do requerimento de constituição de assistente, constando, clara e evidentemente, a intervenção do Sr. A. S. não como sendo a título pessoal, mas, ao invés, assumindo a qualidade de sócio-gerente e legal representante da mesma e que não se vislumbrou no caso sub judice.
XXXI. E diz-se que deveria a Julgadora da 1.ª Instância ter dado oportunidade à aqui Recorrente de proceder à correção formal, uma vez que a decisão recorrida vedou e limitou o acesso da mesma à Justiça, impedindo-a de fazer valer os seus direitos,
XXXII. E na sequência de tudo isso, não qualquer motivo para o indeferimento do requerimento de constituição de assistente e, consequente, rejeição da abertura de instrução apresentados pela aqui Recorrente,
XXXIII. Como V/Exas., com toda a certeza, julgarão, revogando o Despacho recorrido, e, consequentemente, deferindo o requerimento de constituição de assistente e admitindo o requerimento de abertura de instrução apresentados pela mesma.

Termos em que e nos melhores de Direito deverão V/Exas., Venerandos Desembargadores, proferir decisão que nessa conformidade:

a) Julgue o presente recurso procedente e revogue o Despacho recorrido, deferindo o requerimento de constituição de assistente apresentado, e, nessa conformidade, dar como admitido o requerimento de abertura de instrução deduzidos, com o que farão inteira Justiça.»
3. O Exmo. Procurador da República junto da primeira instância, em bem fundamentada resposta, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, pelas razões que sintetizou na conclusões que a seguir se transcrevem:

«Concluindo diremos que:

A) O presente recurso não devia ter sido admitido, uma vez que a recorrente “X Tuning” não foi afetada pela decisão recorrida;
B) E também porque o ilustre advogado subscritor do recurso não tem procuração da recorrente;

Ainda assim, e por mera cautela,

C) A correção de erros de cálculo ou de escrita ou o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados pelos sujeitos processuais, em processo penal, afigura-se possível, por aplicação do disposto no art. 146.º do CPC, ex vi art. 4.º do CPP;
D) Sucede que, no caso, não estamos perante um erro material ou mero lapso de escrita, pois não houve qualquer errada representação da realidade, nem qualquer divergência entre a declaração e a vontade, na elaboração do requerimento de fls. 251;
E) Nem perante um vício puramente formal, uma vez que o ato teve consequências processuais imediatas;
F) Mas sim perante um erro técnico, derivado de uma errada aplicação de conceitos técnicos ao caso dos autos, por parte do ilustre mandatário;
G) Esse erro técnico vem já desde a data em que foi lavrada a procuração de fls. 38 (02MAR2018) e resulta da falta de consciência do ilustre mandatário sobre a distinção entre a pessoa coletiva queixosa e a pessoa singular seu gerente, incluindo os reflexos processuais dessa distinção;
H) O erro técnico está fora das hipóteses em que é permitida a correção de peças processuais;
I) Não se trata de um mero purismo de interpretação, mas antes da correta aplicação da lei;
J) Quando a lei é corretamente aplicada, não fica coartado o direito de acesso à justiça de ninguém;
K) Por conseguinte, a decisão recorrida não merece qualquer censura.»

4. Também o arguido respondeu ao recurso, terminando a respetiva contra motivação nos seguintes moldes (transcrição):

«CONCLUSÕES:

1ª Apresenta A. S., na qualidade de Ofendido em 04/01/2019 requerimento para constituição de Assistente, e abertura de Instrução, tudo isto em nome próprio, identificando-se inclusive como ofendido, conforme facilmente se atesta pelo mencionado requerimento de fls,...
2ª Sendo que, tenta agora alegar que se tratou de mero lapso, pelo que devia ter sido convidado a aperfeiçoar/corrigir o requerimento de constituição de assistente.
3ª Acontece que não existe nesta especifica matéria disposição legal ou prática jurisprudencial — nem a recorrente a indica — que permita ao tribunal “a quo” o afeto de assim beneficiar um dos sujeitos processuais, assessorando-o quanto às melhores opções jurídicas para a sua causa, transmitindo-lhe a ciência para uma melhor prossecução e um melhor desempenho dos seus objetivos pessoais, em detrimento do outro sujeito processual.
4ª As pessoas coletivas são centros autónomos de imputação de direitos e deveres, possuem personalidade jurídica e personalidade judiciária, pelo que, atento os crimes em causa nos autos e o seu objeto, dele se retira que a titular dos interesses imediata e diretamente tutelados, cuja afetação vem alegada, apenas poderá ser a sociedade.
5ª Sendo naquela sociedade que radicará a legitimidade para intervir na qualidade de assistente, sendo ela a titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com tais incriminações, sendo que, como se sabe, no nosso ordenamento jurídico as pessoas coletivas (entre elas, as sociedades, e, mais concretamente, as sociedades comerciais) não se confundem com as pessoas singulares, e nem tão pouco os seus sócios se confundem com elas.
6ª Não podendo o Tribunal “a quo” ter proferido decisão diferente daquela que ditou.

TERMOS EM QUE,
deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida como é de inteira JUSTIÇA»

5. Tendo a recorrente apresentado, a fls. 339 a 344, um requerimento em que toma posição sobre a resposta do Ministério Público, considerando que o exercício de tal faculdade não está legalmente previsto nem, consequentemente, é admissível, não será esse articulado tomado em consideração, determinando-se o seu desentranhamento e devolução à apresentante, na linha do que a Exma. Procuradora-Geral Adjunta promoveu previamente à emissão do seu parecer (cf. promoção com a referência 6582981).
6. Parecer esse em que se pronunciou no sentido de, em relação à questão prévia suscitada pelo Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância, as razões por ele invocadas não serem fundamento de rejeição do recurso, na medida em que, estando em discussão a constituição como assistente da recorrente, esta tem legitimidade para recorrer e interesse em agir, e, por outro lado, alegando ainda a mesma que A. S., em todo o processo, agiu sempre na qualidade de sócio-gerente e legal representante da recorrente, a questão da irregularidade do mandato também não se suscita como questão prévia, mas sim no âmbito do recurso, atentos os seus fundamentos.
Quanto ao mérito do recurso, entende a Exma. Procuradora-Geral Adjunta que não assiste qualquer razão à recorrente, porquanto o requerimento em apreço não enferma de qualquer lapso, pelo que a Mm.ª Juíza a quo não tinha de convidar a sociedade ofendida a retificá-lo, e, por outro lado, também não a podia ter admitido a intervir nos autos como assistente, já que a mesma não o requereu, nem constituiu advogado nem pagou a taxa de justiça devida, termos em se pronuncia no sentido de o recurso não merecer provimento.
7. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a recorrente respondeu a esse parecer, para reafirmar que se está perante uma divergência entre o que foi escrito e aquilo que se queria ter escrito, que decorre do que demais consta do respetivo contexto, consubstanciando, assim, um erro material suscetível de retificação, acrescentando, inovadoramente, que «verifica-se um comportamento desviante, por parte do Arguido, que gera consequências graves, quer para a Sociedade recorrente, mas, principalmente, para o seu sócio-gerente, na medida em que, para além de tal conduta, acima de tudo, ter quebrado uma confiança depositada por A. S. no seu próprio pai, e aqui Arguido, a confiança é a base das relações entre as partes, a quebra desta, deve ser sempre censurada e penalmente relevante», concluindo, assim que, « (…) tendo na devida conta que não só a propriedade, mas, essencialmente, a confiança deve ser assumida com relevante importância no seio jurídico-penal, (…) Claro é que tal confere legitimidade a A. S., sócio gerente e legal representante da Recorrente, de se constituir Assistente, (…) Razão pela qual deve ser aceite o requerimento de constituição de assistente apresentado pelo mesmo, nessa qualidade, (…) E subsequentemente deferido o seu pedido de Abertura de Instrução».
8. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do citado código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Como é jurisprudência pacífica[2], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art. 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
Assim, a única questão suscitada pela recorrente consiste em saber se havia fundamento para a Mm.ª Juíza a quo ter considerado os requerimentos de constituição de assistente e de abertura de instrução como tendo sido apresentados por A. S., não em nome próprio, mas em representação da sociedade “X Tuning, Lda.”, da qual é sócio gerente.
Na sua resposta, o Ministério Público suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, por ilegitimidade e falta de patrocínio judiciário por parte da recorrente, o que deveria ser objeto de análise em sede de exame preliminar (arts. 417º, n.º 6, al. b), e 420º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal).
Todavia, por tais questões estarem intimamente conexionadas com o mérito do recurso, podendo ficar prejudicadas em função do que aí vier a ser decidido, decidimos submetê-las à conferência, apreciando-as no presente acórdão.

2. DA DECISÃO RECORRIDA

É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição):

«Requerimento de constituição de assistente de fls. 251:

A. S. veio requerer, na qualidade de ofendido e a título de pessoa singular, a sua constituição como assistente nos presentes autos.
Não houve oposição.
Apreciando.
Resulta dos autos, mormente da queixa apresentada, que o requerente se apresenta relatando factos em que é ofendida, X Tuning, sendo o requerente seu gerente, e como tal, representante.
Nos termos do disposto no art. 68º nº 1 a) do C.P.Penal podem-se constituir assistentes os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
A ofendida com conduta do arguido, é X Tuning, já que a queixa relata que o arguido se apropriou indevidamente do montante do IRS retido no pagamento das rendas no âmbito de um contrato de arrendamento em que é arrendatária a X Tuning – ver contrato de arrendamento de fls. 21 e ss.
Não cremos ser admissível a constituição de assistente de A. S., a título pessoal, nestes autos, porquanto a ofendida, conforme resulta da queixa, é uma entidade comercial, X Tuning, de cujas quantias o arguido se terá apropriado.
Do exposto decorre o indeferimento do pedido de constituição de assistente formulado por A. S..
Notifique.
***
Fls. 251:
A. S. apresenta, na qualidade de ofendido, requerimento de abertura da instrução.
Não é assistente nos autos, por ter sido indeferido o pedido para tanto formulado.
Apreciando.
Nos termos do disposto no art. 287.º n.º 1 do Código de Processo Penal, a abertura de instrução só pode ser requerida pelo arguido, ou pelo assistente, se o procedimento criminal não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação.
Tal normativo não confere, pois, ao ofendido ou seus representantes legais quando este seja menor, legitimidade para requerer a abertura da instrução, sendo certo que o requerente apenas assume aquela qualidade nestes autos.
Assim, não assistindo ao requerente, na qualidade de ofendido, o direito de requerer a abertura da instrução, por inadmissibilidade legal nos termos do artigo 287º nº 4 do CPP, indefere-se o requerimento de fls. 251 e ss.

Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, nos termos do artigo 8º nº 9 do RCP, sem prejuízo do apoio judiciário.».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

No despacho recorrido, a Mm.ª Juíza a quo entendeu que, atentos os factos denunciados nos autos, a qualidade de ofendido radica na sociedade comercial “X Tuning, Lda.” e não no seu sócio gerente A. S., razão pela qual indeferiu o pedido de constituição de assistente formulado por este, a título de pessoa singular, e, consequentemente, rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo mesmo.
É indiscutível o acerto desse entendimento, relativamente à determinação da entidade ofendida nos autos.
Ao considerar como ofendidos para efeitos de legitimidade para a constituição de assistente “os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos”, o art. 68º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal manteve consagrado o conceito estrito de ofendido tradicionalmente adotado pela doutrina e pela jurisprudência, segundo o qual ofendido é o titular do interesse “direta”, “imediata” ou “predominantemente” protegido pela incriminação[3].
Conceito esse igualmente plasmado no art. 113º, n.º 1, do Código Penal, a propósito da titularidade do direito de queixa.
O que deixa fora deste conceito restrito de ofendido o titular de interesses mediata ou indiretamente protegidos, o titular de uma ofensa indireta ou o titular de interesses morais, os quais, embora possam ser lesados e, nessa qualidade, sujeitos processuais enquanto partes civis, não têm, todavia, acesso à condição de assistente, por lhes faltar legitimidade para se constituírem como tal.
Sem prejuízo, todavia, do alargamento que a jurisprudência tem introduzido no entendimento sobre a legitimidade para a constituição de assistente, reconhecendo-se que, em determinados tipos de crimes públicos que protegem bens eminentemente públicos (v.g., desobediência, denúncia caluniosa, falso testemunho, falsificação de documentos), o legislador pretendeu também tutelar bens jurídicos de natureza particular.

Como se pode ler no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2010, de 17-11-2010[4]:

“A definição de «ofendido» mantém-se a da alínea a), estando assim circunscrito ao titular do bem juridicamente protegido. Esta a conclusão inexorável imposta pela lei.
O conceito legal de ofendido é pois restrito ou, mais rigorosamente, estrito.
Não é de somenos importância esta conclusão, pois a aceitação de um conceito amplo de ofendido poderia envolver consequências desastrosas para o processo, pois abriria eventualmente as portas à manipulação ou instrumentalização da figura do assistente, pondo-a ao serviço de outros interesses que não o da colaboração com o MP na prossecução da ação penal. A aceitação de um conceito estrito de ofendido não desprezará, porém, os interesses da «vítima», quando forem efetivamente relevantes, melhor, quando ela for portadora de um interesse protegido pelo tipo legal. Tudo dependerá do entendimento em torno do conceito de «bem jurídico».
O conceito teleológico-normativo, tradicionalmente seguido, conduz à fixação do bem jurídico a partir da identificação dos «valores» ínsitos ou promovidos pela norma penal. O interesse público ou comunitário apresenta-se sempre como prioritário ou prevalecente. Daí que os interesses corporizados nas pessoas apareçam normalmente subalternizados, a não ser nos crimes contra os bens eminentemente pessoais. Consequentemente, «ofendido», em bom rigor, só poderia haver nesses crimes, ou, quando muito, nos crimes contra a propriedade. Mas já não nos crimes contra o Estado e contra a sociedade, em que o carácter público ou supra individual dos valores consubstanciados nas respetivas normas relegaria os interesses particulares ou privados abrangidos pela tutela da incriminação para a categoria de meramente reflexos ou derivados, e, como tal, indignos de proteção penal direta, não tendo, pois, os seus titulares direito a arrogar-se um interesse especialmente protegido.
Esta conceção idealista, formal e «monolítica» de bem jurídico mostra-se porém incapaz de compreender a complexidade de uma grande parte das incriminações e a pluralidade de interesses que elas podem abranger no seu âmbito de proteção. Estes não podem ser «deduzidos» por uma interpretação teleológica dos tipos legais, sem referência com a realidade dos interesses concretos, corporizados nas pessoas efetivamente ofendidas pela prática do crime.
Tal não significa que todos os interesses lesados devem ser promovidos a bens jurídicos. Mas apenas que as incriminações podem eventualmente proteger vários interesses, todos eles se revelando suficientemente dignos da tutela da lei, ainda que algum dele se mostre mais «cintilante». É esta complexidade ou pluralidade de bens jurídicos que aquela conceção idealista é incapaz de apreender, no seu conceptualismo desligado da realidade.
Assim, a identificação do bem jurídico de um crime depende essencialmente da análise rigorosa dos seus elementos típicos, e não da sua inserção sistemática ou do seu «nome», elementos que deverão também ser considerados, mas não são decisivos.
Mesmo os crimes contra o Estado ou contra a sociedade podem «esconder» algum ou alguns interesses particulares suficientemente valiosos para a lei lhe reconhecer proteção direta. A defesa do interesse público ou social constitui naturalmente o objetivo primeiro deste tipo de crimes. Mas, a par dele, outros valores, de natureza privada, podem coexistir, amparando-se na tutela pública, mas com suficiente autonomia para se afirmarem como interessados específica e autonomamente, não apenas reflexamente, na punição da conduta típica. (…)
Em síntese: sempre que for identificado um interesse determinado, corporizado num concreto portador, que não se confunda com o interesse (típico do lesado) no simples ressarcimento do dano sofrido, nem com o interesse geral na mera vigência das normas penais (as chamadas «expectativas comunitárias»), estaremos perante um bem jurídico protegido.”
Será, assim, através da análise da norma incriminadora que se determinará qual o interesse que a lei quis proteger com a incriminação, passando, pois, a questão por averiguar da natureza individual ou supra individual do bem jurídico que é tutelado, não sendo de excluir que ambas se possam ter por verificadas perante uma concreta norma incriminadora.
No caso dos autos, os factos denunciados e em investigação reconduzem-se à conduta do arguido ao apropriar-se para si de valores monetários pertencentes à sociedade “X Tuning Lda.”, sendo esse comportamento suscetível de integrar a eventual prática do crime de abuso de confiança ou de burla.
O bem jurídico protegido pela incriminação é o património dessa sociedade, único que foi afetado pela conduta imputada ao arguido, e já não o património do seu sócio gerente A. S., ainda que este possa invocar prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais indiretos. Note-se que em parte alguma se alega que o arguido prejudicou ou se apropriou do património daquele.
Ora, as pessoas coletivas (entre elas, as sociedades comerciais, como é o caso), como centros autónomos de imputação de direitos e deveres que são, possuem personalidade jurídica própria, sendo, pois, entes jurídicos distintos dos seus representantes, com os quais não se confundem.
Daí que, pertencendo o património social da sociedade a esta e não aos seus sócios ou gerentes, a quem cabe apenas a administração e a representação da pessoa coletiva, a violação dos bens jurídicos operada na esfera desta última não se repercute na esfera jurídica daqueles. Ainda que, como a recorrente alega na resposta ao parecer do Ministério Público, a conduta do arguido tenha quebrado a confiança nele depositada pelo seu sócio gerente, tal reflete-se diretamente na esfera jurídica da própria sociedade e não na do sócio.
Como refere Figueiredo Dias[5] “Quando se tome o conceito de ofendido na sua aceção mais estrita, parece que a ideia de que o ente coletivo é dotado de personalidade jurídica conduzirá a encabeçar nele, antes que nos seus membros, a lesão dirigida contra os interesses jurídicos de que é o verdadeiro titular. Ele será, como pessoa jurídica distinta dos seus membros, o titular único dos interesses jurídicos violados, e portanto a única pessoa imediatamente ofendida, enquanto os seus membros – por mais consideráveis que sejam os prejuízos sofridos – serão atingidos nos seus interesses pelo crime apenas de maneira indireta e mediata: e tanto basta para que não possam constituir-se assistentes em processo penal pelo crime dirigido contra a sociedade.".
Também é abundante a jurisprudência no sentido de que os sócios de uma sociedade comercial não têm legitimidade para se constituírem assistentes num processo crime em que é ofendida a sociedade[6], interpretação que também mereceu acolhimento do Tribunal Constitucional no acórdão n.º 145/2006[7].
Assim sendo, há que concluir, como acertadamente fez a Mm.ª Juíza, que é na sociedade “X Tuning, Lda.” que radica a legitimidade para se constituir assistente, por ser ela a ofendida, enquanto titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação em causa.
Conclusão essa que a recorrente até parece aceitar pacificamente, tanto mais que é ela que se apresenta a recorrer do despacho recorrido e, ademais, na respetiva motivação identifica-se sempre a si como “ofendida”.
A questão suscitada no recurso é, então, a de saber se A. S., ao requerer a sua constituição como assistente e a abertura de instrução, o fez a título pessoal, como entendeu a Mm.ª Juíza no despacho recorrido, ou antes na qualidade de sócio gerente e legal representante da sociedade “X Tuning, Lda.”, como defende a recorrente.
Para tanto, alega esta que só por mero lapso material, perfeitamente corrigível se o tribunal lhe tivesse dado a oportunidade de o fazer, é que apresentou os requerimentos de constituição de assistente e de abertura de instrução na pessoa do seu legal representante, o qual, ao longo de todo o processo, sempre agiu nessa qualidade, sustentando, pois, que a Mm.ª Juíza interpretou tais requerimentos de forma linear e demasiado à letra, mais alegando que não terá havido sequer um verdadeiro erro material, mas apenas uma menor explicitação, até desnecessária face a tudo o que já constava dos autos.
Atenta a pretensão que a recorrente pretende fazer valer e o fundamento da respetiva alegação, dever-se-á reconhecer que ela tem legitimidade e interesse em agir na interposição do recurso, por ter sido afetada pela decisão recorrida, ao indeferir os requerimentos de constituição de assistente e de abertura de instrução, com base numa interpretação (que os mesmos foram apresentados pelo seu sócio gerente em nome individual e não em nome e representação da sociedade de que é legal representante), que a recorrente pretende ver revogada.
De igual modo haverá que reconhecer que a recorrente está devidamente patrocinada, o que é obrigatório em sede de recurso, pois, de acordo com a alegação subjacente ao recurso, também a procuração forense junta a fls. 20 terá sido passada pelo referido A. S. na qualidade de seu legal representante, sempre assim tendo agido ao longo do processo.
Donde se conclui pela improcedência dessas questões prévias suscitadas pelo Ministério Público na resposta ao recurso, não havendo motivo para rejeição do mesmo.
Vejamos, então, se assiste razão à recorrente.
Como o Ministério Público salienta na resposta ao recurso, o Código de Processo Penal apenas prevê a possibilidade de correção de sentenças e despachos (cf. art. 380º, n.ºs 1 e 3), sendo omisso quanto aos articulados dos sujeitos processuais.
Todavia, em relação a estes é subsidiariamente aplicável o disposto no art. 146º do Código de Processo Civil, atinente ao suprimento de deficiências formais de atos das partes, uma vez que claramente se harmoniza com as normas processuais penais (art. 4º do Código de Processo Penal).
Esse artigo, introduzido no Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, consagra um regime de "suprimento de deficiências formais dos atos das partes" que, para além da “retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada” (n.º 1), admite mais amplamente, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa” (n.º 2).
Em relação ao erro de cálculo e de escrita, já era pacífico na jurisprudência o entendimento de que, por força do disposto no art. 295º do Código Civil, segundo o qual “aos atos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente”, o princípio geral da retificação consagrado no art. 249º do mesmo código também era aplicável aos atos processuais das partes, em sintonia com os princípios enformadores do anterior Código de Processo Civil, como sejam o direito a um processo equitativo e à tutela judicial efetiva, a boa fé processual, a adequação formal e a prevalência do fundo sobre a forma.
Dispõe, efetivamente, o art. 249º do Código Civil, relativamente ao negócio jurídico, que "o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à retificação desta”.
Esse erro, compreendido no erro na declaração ou erro-obstáculo, consiste numa divergência não intencional entre a vontade real e a declarada, em que, como escreve Mota Pinto[8], “O declarante emite a declaração divergente da vontade real, sem ter consciência dessa falta de coincidência. Trata-se de um lapso, de um engano, de um equívoco. É o caso que se nos apresenta quando o declarante incorre num lapsus linguae ou lapsus calami, ou quando o declarante está equivocado sobre o verdadeiro nome de um objeto, dando-lhe uma denominação que, na realidade, corresponde a outro objeto”.
Revertendo ao caso dos autos, uma vez que os requerimentos de constituição de assistente e de abertura de instrução em apreço são autênticas declarações de vontade da parte, visando produzir determinados efeitos processuais, é-lhes efetivamente aplicável o referido princípio de retificação do erro de escrita, consagrado no art. 249º do Código Civil, desde que tal erro seja revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que esta é feita.
O que exigirá que, em face do teor do ato processual em causa e dos demais elementos constantes dos autos, logo se constate haver uma divergência entre o que naqueles se escreveu e o que, na realidade, se queria escrever, sendo tal erro ostensivo, evidente ou evidente, isto é que se revele por si, ou objetivamente comprovável.
O que apenas sucederá se ao ler os requerimentos em que A. S. requer a constituição de assistente e a abertura de instrução logo se constate que há erro e se entenda que aquele queria praticar esse ato processual não em nome individual e como pessoa singular, mas sim na qualidade de legal representante da sociedade ofendida, da qual é sócio-gerente.
Se assim for, o ato processual, devidamente interpretado em função do seu contexto (elemento sistemático) e circunstâncias (elementos extra literais), permanecerá com o seu verdadeiro sentido, sendo irrelevante o erro material.
Porém, não é possível concluir nesse sentido, porquanto todo o requerimento é inequívoco no sentido de que requerente da constituição de assistente e da abertura de instrução é A. S., em nome próprio e enquanto pessoa singular, e não a sociedade "X Tuning, Lda." nem tão pouco aquele em representação desta. Do mesmo modo que, inclusivamente, o mesmo se apresenta como ofendido nos autos.
Com efeito, logo no cabeçalho do requerimento consta que "A. S., ofendido nos autos (…) vem requerer a V/Exa. a CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE E ABERTURA DE INSTRUÇÃO".
Bem como, mais adiante, no art. 1º, que "A. S., Ofendido nos autos (…), por estar em tempo e ter legitimidade, vem declarar que deseja constituir-se Assistente nos presentes autos (…).
Também nos arts. 3º e 5º e no final do requerimento consta, respetivamente "(…) o Ofendido, aqui Requerente, (…)", "Foi o aqui Ofendido (…)" e "Admitindo a constituição de Assistente do aqui Ofendido".
No art. 12º é alegado que "Ora, tal entendimento [subjacente ao despacho de arquivamento do inquérito] vai ao total arrepio da plena convicção do Ofendido, pelo que discorda em absoluto de tal decisão".
A expressão "aqui requerente" é repetidamente utilizada ao longo do requerimento, nomeadamente nos arts. 21º, 23º, 24º, 32º, 33º, 36º, 38º (considerando-se inclusivamente vítima dos factos praticados pelo arguido) e 41º, sem qualquer referência a uma atuação em representação da sociedade.
A única alusão a essa qualidade surge no art. 8º, mas apenas em relação à alegada intenção do arguido de "(…) enganar o aqui Requerente, A. S., na qualidade de sócio gerente e legal representante da Sociedade "X Tuning, Lda.", ou seja, reportando-se à conduta do arguido e não à qualidade em que A. S. formulou os requerimentos em apreço.
Além disso, o requerimento de constituição de assistente é acompanhado de um comprovativo da concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, mas que foi requerido pelo próprio A. S., com menção expressa de que se destinava à constituição de assistente no presente processo, e a quem esse benefício foi concedido, com base na insuficiência da sua situação económica, sendo, pois, ele quem está dispensado do pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente, e não a sociedade.
O que é por demais revelador que não foi esta que se quis constituir como assistente, ainda que representada pelo seu sócio gerente.
O articulado em questão não padece, assim, de qualquer erro de escrita, posto que o que se escreveu foi o que se quis escrever.
O que se evidencia é antes um erro técnico e jurídico, traduzido numa incorreta compreensão sobre o facto de as pessoas coletivas, mormente as sociedades comerciais, serem entidades jurídicas distintas, com património próprio, relativamente às pessoas singulares que legalmente as representam, com reflexos no conceito de ofendido e de titular do direito de se constituir assistente, conduzindo a uma errada aplicação desses conceitos jurídicos à realidade dos autos.
Lapso esse incompreensível pelo facto de no despacho de arquivamento se identificar como queixosa e ofendida a sociedade "X Tuning, Lda." e se referir que é denunciante A. S., na qualidade de sócio gerente e legal representante daquela.
Atenta a natureza do erro cometido, inexistia fundamento para a Mmª. Juíza convidar a ofendida a corrigir os seus requerimentos, por tal convite não estar legalmente previsto, traduzindo-se, pois, num benefício injustificado de um dos sujeitos processuais, para mais estando este necessariamente assessorado por advogado.
Por seu lado, quanto à existência de um vício ou omissão puramente formal, suscetível de suprimento ou de correção ao abrigo do n.º 2 do art. 146º do Código de Processo Civil, importa ter presente que a irregularidade puramente formal é aquela que não produz qualquer efeito jurídico-processual imediato, que respeita apenas à forma externa dos atos praticados, como é o caso, nomeadamente, da identificação do processo, das partes e da forma do processo, elementos estes que, embora importantes, não contendem diretamente como o conteúdo da peça processual em causa (narração dos factos, formulação do pedido, etc.), incluindo-se, pois, no domínio das formalidades externas.

No caso dos autos, o lapso invocado traduz-se na qualidade em que o requerente da constituição de assistente e de abertura da instrução presentou os respetivos requerimentos: se em nome próprio, enquanto pessoa singular, ou enquanto legal representante da sociedade ofendida, o que se prende com a legitimidade para a prática dos atos.
Consequentemente, tal alegado lapso não é meramente externo, antes altera a validade dos próprios requerimentos, uma vez que na falta de legitimidade para o efeito, não podem os mesmos ser deferidos, com as inerentes consequências processuais.
Conclui-se, assim, não estar verificado o primeiro dos requisitos referidos, ou seja, o vício invocado ser meramente formal.
Por tudo quanto fica dito, não merece reparo a decisão recorrida, quer ao considerar que A. S. se apresentou a requerer a sua constituição de assistente em nome próprio e na qualidade de ofendido, quer ao indeferir tal requerimento, por aquele não ser o ofendido nos autos.
Consequentemente, não tendo o requerente legitimidade para requerer a instrução, por não ser assistente, o que constitui fundamento de inadmissibilidade legal da mesma (art. 287º, n.º 3, do Código de Processo Penal), igualmente acertada foi a decisão de não admitir a abertura de instrução.
Sem que se possa sustentar que a ofendida ficou coartada no seu legítimo acesso à justiça e aos tribunais, uma vez que esse direito constitucionalmente consagrado não lhe foi negado a ela, mas sim a quem se apresentou, sem ter legitimidade para o efeito, a requerer a constituir de assistente e a requerer a abertura de instrução, tendo-se a Mmª. Juíza limitado a aplicar corretamente a lei, indeferindo tal requerimento.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, mais determinando o desentranhamento e entrega à apresentante do articulado junto a fls. 339 a 344.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro unidades de conta (art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este diploma).
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Guimarães, 11 de novembro de 2019
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(Jorge Bispo)
(Pedro Cunha Lopes)
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)



1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação do texto e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade do relator.
2. - Cf. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995.
3. - Vd. Beleza dos Santos, Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 57; Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º volume, págs. 505-506 e 512-513; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Volume I, pág. 126 a 131; e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 4ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, págs. 264 e 335.
4. - Publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 242, de 16 de dezembro de 2010 e que fixou a seguinte jurisprudência: “Em processo por crime de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, previsto e punido pelos artigos 391.º do Código de Processo Civil e 348.º, n.º 2, do Código Penal, o requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente
5. - "Da legitimidade do sócio de uma sociedade por quotas para se constituir assistente em processo crime cometido contra a sociedade", Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XII, n.ºs 1 e 2, pág. 140 a 163.
6. - Cf., entre outros, os acórdãos do TRL de 03-06-2008 (processo n.º 3185/08), de 16-01-2008 (processo n.º 5567/2007-3), de 20-06-2007 (processo n.º 4721/2007-3), de 05-02-2004 (processo n.º 5364/2003-9) e de 22-09-2005 (processo n.º 7063/2005-9), e do TRP de 02-03-2011 (processo n.º 1438/05.2TAVFR-A.P1), todos disponíveis em www.dgsi.pt
7. - De 22-02-2006, publicado no Diário da República, II série de 03-04-2006.
8. - In Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição atualizada, Coimbra Editora, pág. 464.